
Recepção: 30 Outubro 2017
Aprovação: 27 Março 2018
DOI: https://doi.org/10.17058/reci.v8i4.11269
Resumo: Justificativa e Objetivo: A morte de mulheres em idade reprodutiva é um evento de grande magnitude em todo o mundo, mas o perfil é distinto entre as regiões de alta e baixa renda. O presente estudo teve como objetivo analisar causas básicas e fatores associados aos óbitos de mulheres em idade reprodutiva no Piauí, de 2008 a 2012. Métodos: Estudo descritivo de base populacional, com dados de todas as declarações de óbitos de mulheres entre 10 a 49 anos registradas no Comitê de Mortalidade Materna do Piauí. Foram calculados odds ratio (OR) e intervalos de confiança de 95% (IC95%) para avaliar a associação entre as variáveis. Resultados: Neoplasias (20,9%), doenças cardiovasculares (18,8%), causas externas (18,6%) e maternas (5,5%) foram as causas básicas mais encontradas. Causas externas e maternas predominaram entre 10 a 29 anos e, a partir de 35 anos, neoplasias e doenças cardiovasculares. A mortalidade materna foi mais provável de ocorrer em municípios do interior (OR=2,04; IC95% 1,51-2,33), com até 50.000 habitantes (OR=1,33; IC95% 1,16-1,78) e com IDH-M < 0,566 (OR=1,42; IC95% 1,34-2,01). Conclusões:O padrão de mortalidade é semelhante ao encontrado na população feminina brasileira em idade fértil, sendo que as principais causas básicas encontradas poderiam ser evitadas mediante a implementação de medidas de intervenção.
Palavras-chave: Mortalidade materna, Saúde reprodutiva, Indicadores Básicos de Saúde, Estudos de séries temporais.
Abstract: Background and Objective: Female mortality in reproductive age is an event of great magnitude worldwide, but the profile is different among regions of high and low income. The objective of this study was to analyze causes and factors associated with reproductive age women deaths in Piauí, from 2008 to 2012. Methods: Descriptive population-based study, with data of all death certificates of women between 10-49 years living in Piauí. Odds ratio (OR) and 95% confidence intervals (CI95%) were calculated to assess the association between variables. Results: Neoplasms (20.9%), cardiovascular diseases (18.8%), external (18.6%) and maternal causes (5.5%) were the most common basic causes. External and maternal causes predominated in the age group between 10 to 29 years and, from 35 years, neoplasms and cardiovascular diseases. Maternal mortality was more likely to occur among women living in inland municipalities (OR=2.04;CI95% 1.51-2.33), and with up to 50,000 inhabitants (OR=1.33;CI95% 1.16-1.78) and HDI-M < 0.566 (OR=1.42;CI95% 1.34-2.01). Conclusions: The pattern of mortality is similar to that found in the Brazilian female population in reproductive age. The main basic causes of death observed can be considered avoidable and intervention measures should be implemented.
Keywords: Maternal mortality, Reproductive health, Health Status Indicators, Time series studies.
Resumen: Justificación y Objetivo: La muerte de mujeres en edad reproductiva es un evento de gran magnitud en todo el mondo, pero su perfil es distinto entre regiones de alta y baja renta. El presente estudio tuvo como objetivo analizar causas básicas y factores asociados a las muertes de mujeres en edad reproductiva en Piauí, de 2008 a 2012. Métodos: Estudio descriptivo y de base poblacional, con datos de todas las declaraciones de muertes de mujeres entre 10 a 49 anos registradas en Comité de la Mortalidad Materna en Piauí. Se calcularon odds ratio (OR) e intervalos de confianza del 95% (IC95%) para evaluar la asociación entre las variables. Resultados: Neoplasias (20,9%), enfermedades cardiovasculares (18,8%), causas externas (18,6%) y maternas (5,5%) fueran las causas básicas más encontradas. Causas externas y maternas predominaron entre 10 a 29 años y, a partir de 35 años, neoplasias y enfermedades cardiovasculares. La mortalidad materna fue más probable en municipios del interior (OR=2,04; IC95% 1,51-2,33), hasta 50.000 habitantes (OR=1,33; IC95% 1,16-1,78) y con IDH-M < 0,566 (OR=1,42; IC95% 1,34-2,01). Conclusiones: La mortalidad es similar al encontrado en la población femenina brasileña en edad fértil. Las principales causas básicas pueden ser consideradas evitables y medidas de intervención deberían ser implementadas.
Palabras clave: Mortalidad materna, Salud reproductiva, Indicadores de Salud, Estudios de series temporales.
INTRODUÇÃO
Existe grande disparidade no perfil da mortalidade de mulheres em idade fértil no mundo. Nos países desenvolvidos, as principais causas são acidentes de trânsito, suicídios e neoplasias malignas da mama que, juntas, representam mais de 25% de todos os óbitos e apenas 6% dos óbitos de mulheres são encontradas entre mulheres de 10 a 49 anos.1,2Por sua vez, nos países em desenvolvimento, a infecção por HIV/ Aids, as causas maternas e a tuberculose são responsáveis por cerca de 50% dos óbitos de mulheres em idade fértil1, sendo que, entre todas as mulheres, 21% dos óbitos no Sudeste da Ásia e 42% na África ocorrem no período de vida reprodutivo2.
No Brasil, em 2002, as principais causas de morte da população feminina de 10 a 49 anos foram as doenças cardiovasculares, neoplasias e causas externas, com ampla variação da frequência segundo faixas etárias3. Um estudo que analisou as taxas de mortalidade por doenças crônicas não transmissíveis no Brasil, entre 1991 e 2015, observou que houve declínio na taxa padronizada de mortalidade por doença cardiovascular em ambos os sexos4. Apesar do risco de morte ser maior para homens de qualquer grupo etário, a taxa de mortalidade de doenças cerebrovasculares é quase duas vezes maior do que a das doenças isquêmicas do coração nas mulheres entre 1980-20125. Por sua vez, no período entre 1996 e 2010, houve tendência crescente da mortalidade por neoplasias para mulheres nas regiões Norte e Nordeste, com destaque para as neoplasias da mama, colo do útero e órgãos digestivos6. Mulheres jovens com câncer de mama tendem a apresentar doença mais agressiva do que mulheres mais velhas, culminando com taxas de mortalidade mais elevada7.
Desde a década de 1970, houve incremento persistente das causas externas de mortalidade (acidentes e violência) entre as mulheres em idade reprodutiva, com duplicação dos coeficientes de mortalidade por essas causas8. As mortes por motivos violentos foram as principais causas de óbito entre as mulheres de 10 a 29 anos nas capitais brasileiras, em 20029. Chama a atenção o predomínio dos acidentes de trânsito como primeira causa de morte até os 34 anos de idade, assim como a alta mortalidade por homicídios, mesmo em áreas urbanas do interior do Brasil.10 Uma pesquisa que analisou 3.086 declarações de óbitos de mulheres em idade fértil realizado na cidade de Campinas - São Paulo, entre os anos de 1985 a 1994, mostrou que as mortes devido a causas externas ocuparam o segundo lugar, perdendo apenas para as doenças do aparelho circulatório. O coeficiente de mortalidade por causas externas manteve-se com incidência superior a 20 óbitos por 100 mil mulheres dos 20 até 49 anos, com pico máximo para o grupo etário de 15 a 19 anos, em que esteve próximo a 30 óbitos por 100.000 mulheres.10
As mortes maternas geralmente não aparecem entre as dez primeiras causas de óbito entre mulheres no período reprodutivo. No entanto, a gravidade do problema é evidenciada quando se chama atenção para o fato de que a gravidez não é doença, e que, em cerca de 90% dos casos, as mortes maternas são evitáveis. Há consenso de que são as grávidas mais pobres e imersas em ambiente de forte desigualdade social as mais atingidas pela morte durante o ciclo gravídico-puerperal.1,3,9 A magnitude da mortalidade materna é utilizada, de forma indireta, também como marcador para inferir as condições de vida e de saúde da população em geral. A grande maioria das mortes de mulheres grávidas acontece em países em desenvolvimento e se presume que cerca de 85% delas seriam evitadas se no pré-natal, durante o parto e puerpério a assistência tivesse sido adequada.1,2
O perfil da mortalidade das mulheres frequentemente reflete a desigualdade social e regional existentes no Brasil. Dados da pesquisa Saúde Brasil 2014 mostram que as doenças circulatórias foram as mais frequentes causas de óbito em mulheres em idade fértil da região Nordeste, ao passo que as neoplasias foram as mais prevalentes nas demais regiões.11No entanto, poucos estudos foram realizados sobre o padrão da mortalidade de mulheres no período reprodutivo e nenhum referente à população do Piauí. Uma única pesquisa recente (2015) analisou os determinantes do near miss e de mortes maternas em um hospital terciário de Teresina, capital do estado. Nesse estudo, observou-se que as doenças hipertensivas e complicações hemorrágicas foram as principais causas de morbidade materna grave e que o aborto inseguro foi a causa mais frequente de morte materna. No entanto, cerca de 35% dos casos eram de mulheres oriundas de outros estados, dificultando a análise da RMM pelo local de residência.12Esse estudo teve como objetivo analisar as causas básicas e fatores associados aos óbitos de mulheres em idade reprodutiva no Piauí, no período de 2008 a 2012.
MÉTODOS
Realizou-se estudo descritivo de base populacional com dados do Comitê de Mortalidade Materna do estado do Piauí e do Setor de Vigilância do Óbito Materno do município de Teresina, de janeiro de 2008 a dezembro de 2012.
O estado do Piauí está localizado na região meio-norte do Nordeste brasileiro e conta com 224 municípios distribuídos em uma área de 251.611km2. Em 2012, a população estimada foi de 3.204.028 habitantes, dos quais 50,9% eram mulheres e, destas, 63,8% estavam em idade reprodutiva. Os indicadores sociais do estado se encontram entre os piores do país, incluindo elevada taxa de analfabetismo (19,3%) e percentual ainda significativo de pessoas abaixo da linha de pobreza (4,2%).13
Os dados foram coletados entre agosto de 2015 e julho de 2016, por 02 pesquisadores independentes, utilizando formulário específico para o estudo. Todas as declarações de óbito (DO) de mulheres entre 10 a 49 anos residentes no Piauí foram avaliadas individualmente, com codificação das causas básicas dos óbitos de acordo com a Classificação Internacional de Doenças, na 10. Revisão (CID-10). As variáveis independentes, oriundas da DO, foram: idade, anos completos de estudo, cor da pele, local do óbito e cidade de residência. Porte do município de residência e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) foram obtidos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Para o cálculo dos coeficientes de mortalidade em idade fértil foram utilizadas as estimativas anuais da população do sexo feminino, para o estado do Piauí, por grupos etários de 05 anos, oriundas do Censo Demográfico do Brasil de 2010 e da Contagem da População de 2007. Para o cálculo da razão de mortalidade materna, foi consultado o número de nascidos vivos no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.
Os coeficientes de mortalidade (CM) foram calculados de acordo com a fórmula:
- CM = número de óbitos, por grupos de causas/ população feminina de 10 a 49 anos x 100.000
A razão de mortalidade materna (RMM), por sua vez, foi obtida pela fórmula:
- RMM = número de óbitos em decorrência de complicações da gravidez, do parto e do puerpério/ número de nascidos-vivos no período estudado x 100.000
Todas as categorias das variáveis foram agrupadas por frequências e percentuais. Odds ratios brutos foram calculadas (com intervalos de confiança de 95%) usando modelo de regressão logística para avaliar a associação entre características demográficas e dos municípios com os coeficientes de mortalidade. Para cada grupo de causa básica (variável dependente) foi realizado modelo de regressão separado e somente dados disponíveis para cada variável foram analisados. O nível de significância estabelecido foi de 5%.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Piauí (CAAE n. 15584313.9.0000.5209/ Parecer n. 273.767).
RESULTADOS
Entre 2008 e 2012 morreram 34.579 mulheres no estado do Piauí. Desse total, 4.970 (14,4%) foram de mulheres em idade fértil, ou seja, na faixa etária entre 10-49 anos. A tabela 1 evidencia que neoplasias (20,9%), doenças do aparelho circulatório (18,8%) e causas externas (18,6%) foram responsáveis por quase 2/3 dos óbitos. As mortes no ciclo gravídico-puerperal (mortes maternas) ocuparam o 4. grupo mais frequente (5,5%). Vale destacar que “causas mal definidas” ainda foram encontradas em 3,7% dos casos notificados.

A tabela 2 detalha as principais causas básicas dos 04 grupos mais frequentes de óbito no período. Dentre as neoplasias, a causa básica de morte que se destacou foi por câncer de mama (23,6%), seguida pela neoplasia no colo do útero (17,1%). Já entre as doenças circulatórias predominaram acidente vascular cerebral (39,1%) e infarto agudo do miocárdio (26,7%). Os mais frequentes determinantes das causas externas de óbito foram acidentes de trânsito (49,3%), homicídios (22,8%) e suicídios (18,9%). As doenças hipertensivas (30,0%), desordens hemorrágicas (13,3%) e complicações do aborto (9,2%) foram as mais comuns causas de morte entre as gestantes e puérperas.

O conjunto de causas externas foi a mais frequente razão de óbitos entre 10 e 29 anos, com coeficientes de mortalidade estáveis e geralmente com valores acima de 15 mortes/100.000 mulheres. Ganham destaque os óbitos por complicações na gestação, parto e puerpério, que ocuparam a segunda causa de morte no grupo entre 15 e 29 anos, com pico máximo no grupo etário de 20-24 anos. A partir da faixa etária de 35-39 anos houve aumento continuado dos coeficientes de mortalidade por neoplasias e doenças cardiovasculares, sendo a primeira e segunda causas de óbito até os 49 anos, respectivamente (Gráfico 1).

À medida que a faixa etária se eleva maiores foram as frequências de morte por neoplasias (81,8% entre 30-49 anos) e distúrbios do aparelho circulatório (86,7% entre 30-49 anos), ao passo que houve concentração mais alta de mulheres mais jovens na mortalidade por causas externas (78,4% entre 15-39 anos) e por causas maternas (90,8% entre 15-39 anos). Mulheres com baixa escolaridade (analfabetas e com 01 a 07 anos de estudo) e pardas representaram o contingente mais prevalente das 04 principais causas de óbito. A maior parte dos óbitos ocorreu no hospital, exceto por causas externas (30,2%). As mortes maternas foram mais frequentes em mulheres oriundas do interior do estado (80,6%) e residentes em municípios com até 50.000 habitantes (61,1%) e com baixo IDH-M (64,5%) (Tabela 3).

Mulheres com idade inferior a 30 anos tem mais chance de morrer por causas externas (OR=1,57; IC95% 1,28-1,84) e causas maternas (OR=1,76; IC95% 1,33-1,91) comparadas àquelas acima de 30 anos. A mortalidade de mulheres por causas relacionadas à gravidez, parto e puerpério é mais provável entre aquelas que residem em municípios do interior do estado (OR=2,04; IC95% 1,51-2,33), com até 50.000 habitantes (OR=1,33; IC95% 1,16-1,78) e com IDH-M < 0,566 (OR=1,42; IC95% 1,34-2,01) (Tabela 4).

DISCUSSÃO
Dada a crescente participação feminina no processo produtivo, os óbitos de mulheres em idade fértil são um importante problema de saúde pública. Dados prévios de mortalidade de mulheres em idade fértil não são existentes no Piauí e, por esse motivo, inexistem parâmetros de comparação. Os resultados demonstram que, no período estudado, as principais causas básicas de óbito no estado (neoplasias, doenças cardiovasculares e causas externas) são semelhantes às encontradas em outras localidades do Brasil, exceto pela maior frequência de mortes maternas (4. causa).3,9,10,14 Em geral, a mortalidade materna não está entre as 5 ou 10 principais causas de mortes de mulheres em idade fértil.
O câncer de mama e o câncer do colo do útero foram as neoplasias com maior incidência entre as mulheres piauienses estudadas. Dados recentes demonstram comportamentos distintos entre as taxas de mortalidade dessas duas neoplasias no Brasil. Ao passo em que se observa aumento nas taxas de mortalidade por câncer de mama no país como um todo,15 tem havido tendência decrescente da mortalidade para o câncer do colo do útero.16No entanto, nas regiões Norte e Nordeste, a mortalidade por câncer do colo do útero ainda segue aumentando, como evidencia um estudo que caracterizou incremento na tendência nas taxas de mortalidade por câncer do colo do útero no Piauí entre 2000 e 2011.16 Tendo em vista a alta frequência dessas duas neoplasias como causa de óbito de mulheres em idade fértil, é possível especular que tem ocorrido retardo no diagnóstico precoce e demora na instituição da terapêutica adequada no estado.
Ainda que se observe tendência de queda na taxa de mortalidade entre 1980 e 2012, as doenças cardiovasculares ainda são a principal causa de morte na população brasileira5. Isoladamente, no presente estudo, as doenças cerebrovasculares e as doenças do coração foram a primeira e terceira causa de morte entre mulheres em idade fértil, respectivamente. Existem dados consistentes que mostram que a redução da mortalidade por doenças isquêmicas é menor para adultos jovens e notadamente para mulheres, em especial para regiões com grande desigualdade social e baixa escolaridade, como é o caso do Piauí.17 Hipertensão arterial, dislipidemias, tabagismo e diabetes são conhecidos fatores de risco para doenças cardiovasculares como um todo e é consenso que seu controle contribui diretamente para o decréscimo da mortalidade2. Os resultados da última Pesquisa Nacional de Saúde (2013) mostraram pior desempenho das regiões Norte e Nordeste para o diagnóstico e tratamento dos mais importantes fatores de risco para as doenças cardiovasculares. O estado do Piauí esteve entre aqueles com mais baixo consumo de frutas e verduras, menor frequência de atividade física, menor uso de alguma medicação anti-hipertensiva e menos verificação periódica da dosagem de glicose, colesterol e triglicerídeos.18
A partir da década de 1980 as causas externas se estabeleceram como segunda causa de morte no país, principalmente em grandes centros urbanos.19 A vulnerabilidade é maior para os homens (8 homens para cada 1 mulher), porém tem se observado aumento das taxas brutas de óbitos por causas externas entre as mulheres na última década.11,20 Além disso, também como observado nesse estudo, é a primeira causa de morte entre mulheres entre mulheres de 15 a 35 anos. Em todos os estudos há destaque para as mortes decorrentes de acidentes de transporte terrestre, homicídios e suicídios, geralmente nessa ordem de frequência.10,11,19,20 No presente estudo, chamou a atenção o fato de que quase metade (49,3%) dos óbitos por causas externas foi causada por acidentes de trânsito e que, destes, mais de 1/5 (22%) ocorreu por acidentes de motocicletas. Esses dados são coerentes com aqueles observados em pesquisa que analisou a tendência de mortalidade por acidentes de transporte terrestre no Brasil entre 2000 a 2010, mostrando aumento continuado das mortes no trânsito de ocupantes de motocicletas nos estados da região Nordeste – o Piauí esteve entre os 10 estados brasileiros com taxas mais elevadas8. Embora não se possa inferir sobre fatores causais, o aumento exponencial da frota de motocicletas, o crescimento da renda da população e a associação entre álcool e direção podem contribuir para essas altas taxas de morte, inclusive entre as mulheres8.
Neste estudo, os determinantes mais frequentes das mortes maternas foram as doenças hipertensivas, hemorragias e complicações do aborto, corroborando o achado de que a maior parte das mortes maternas brasileiras são ainda associadas a causas obstétricas diretas e evitáveis.3,9,21,22Há ampla concordância que os fatores determinantes das mortes maternas atuam em níveis diversos, englobando tanto questões individuais – como a escolaridade e autonomia da mulher – como a disponibilidade de serviços de saúde adequados.. No entanto, a baixa qualidade de assistência à gestação e ao parto, explicitada pela demora na detecção precoce das complicações e retardo no uso de intervenções apropriadas, é um ponto central na questão da morbimortalidade materna.1,2 O emprego oportuno do sulfato de magnésio na prevenção e tratamento da eclâmpsia e a utilização sistemática da ocitocina imediatamente após o parto, por exemplo, são estratégias de ação simples e seguras que poderiam reduzir as principais causas de mortalidade materna no país1.
Um importante achado desse estudo foi que houve maior chance de morrer por causas maternas entre mulheres que residiam em cidades com menos de 50.000 habitantes, com baixo IDH-M e no interior do estado, o que sugere dificuldade de acesso a serviços de saúde estruturados para assistência à gestação e ao parto. Ainda que não se possa afirmar com os dados disponíveis, parece razoável supor que nas áreas rurais menos desenvolvidas do estado existam hospitais menos equipados e equipes de saúde com menor treinamento para lidar com emergências obstétricas ou mesmo assistência ao parto de baixo risco. A grande distância entre a residência da mulher e o serviço de saúde mais próximo, a ausência de sangue e derivados no hospital e a pequena disponibilidade de médicos com habilidades para realizar anestesias e cesáreas são algumas das barreiras que podem estar envolvidas nas mortes maternas em áreas rurais.1,2 A julgar pela magnitude das mortes maternas no interior do estado, é possível imaginar que as mulheres podem ter dificuldade de chegar ao serviço de saúde e, uma vez no hospital, podem receber com atraso ou mesmo não receber a assistência necessária.
Mesmo considerando que, no Piauí, praticamente todas as mulheres passem por pelo menos uma consulta de pré-natal, que a grande maioria dos partos ocorra em instituições de saúde e cerca de 90% deles sejam assistidos por médicos, as taxas de mortalidade materna ainda são elevadas e sem redução desde a última década.23 Em cenários como esse, as ações deveriam ser intensificadas na melhoria da qualidade da assistência à gestação e ao parto, com foco nas mulheres pobres, residentes em áreas rurais e de baixa escolaridade. Por outro lado, o fortalecimento dos sistemas de informação em saúde, principalmente sob a forma de auditorias institucionais e pesquisas para diagnosticar e solucionar problemas já existentes, também deve ser levado em conta para redução dos óbitos maternos. O reflexo direto dessa busca de informação no cotidiano dos serviços de saúde seria o aprimoramento da prática clínica e deflagrar a mudança do comportamento profissional.
Existem limitações no presente estudo, principalmente relacionadas à qualidade de informação do registro de óbito. Ainda que possam ocorrer erros na digitação das informações, o preenchimento inadequado das declarações de óbito é considerado o principal fator que altera a confiabilidade dos dados do Sistema de Informação de Mortalidade, tanto por erros na classificação do tipo de óbito como da causa básica de morte.3,11,24 Sabe-se que, apesar da melhora progressiva na última década, ainda existem grandes discrepâncias regionais em relação à qualidade das informações coletadas no SIM, tendo as regiões Norte e Nordeste os piores indicadores.24 Neste estudo, a proporção de causas mal definidas de óbito (3,7%) foi considerada aceitável, porém a proporção de mortes maternas por causas não especificadas (14,7%) mostrou-se elevada. Uma hipótese para esse fato é que, em geral, apenas os eventos terminais são discriminados, sem o correto preenchimento da causa básica ou mesmo sem referência ao estado gestacional, com mascaramento das taxas de mortalidade por causas específicas.
O conhecimento da magnitude da mortalidade, bem como as causas básicas de óbito e a localidade que mais incidem, pode ser uma ferramenta para desenvolvimento de políticas públicas focadas na saúde das mulheres de determinada população. Os resultados obtidos demonstram que as principais causas de óbito de mulheres em idade reprodutiva no Piauí estão determinadas, de um lado, por doenças crônicas não transmissíveis comuns em locais mais desenvolvidos – como as neoplasias e doenças cardiovasculares – e, do outro, por complicações da gestação e do parto, típicas de regiões mais pobres. Além disso, há desigualdade na distribuição do óbito materno dentro do estado, com maior chance de morte entre as mulheres que residem em pequenas cidades do interior, onde o acesso aos serviços de saúde é provavelmente menor.
O tema da saúde das mulheres deveria fazer parte prioritária da agenda de toda sociedade, uma vez que medidas de intervenção realizadas nos anos reprodutivos terão impacto nas próximas gerações. No Piauí, por exemplo, é possível que muitas das mortes maternas poderiam ser evitadas se as mulheres pudessem contar com profissionais qualificados nos serviços de saúde e medicamentos necessários para prevenir e tratar complicações. Ou, ainda, que o acesso ao programa de rastreamento pudesse diminuir o grande número de mulheres que ainda morrem por câncer do colo do útero. Os dados do estudo reforçam a importância de fortalecer os sistemas de saúde do estado para que sejam melhor orientados para atender as necessidades das mulheres.
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