Análise epidemiológica da leishmaniose visceral no Estado do Tocantins no período de 2007 a 2017

Epidemiological analysis of visceral leishmaniasis in the State of Tocantins from 2007 to 2017

Análisis epidemiológico de la leishmaniasis visceral en el estado de Tocantins en el período de 2007 a 2017

Morgana Lívia De Oliveira
Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Leodson Santana Nascimento
Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Euclides Araújo De Carvalho
Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Fernando De Almeida Machado
Universidade Federal do Tocantins, Brasil

Análise epidemiológica da leishmaniose visceral no Estado do Tocantins no período de 2007 a 2017

Revista de Epidemiologia e Controle de Infecção, vol. 9, núm. 4, pp. 316-322, 2019

Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepção: 28 Junho 2019

Aprovação: 23 Janeiro 2020

Resumo: Justificativa e Objetivos: A leishmaniose visceral é uma zoonose endêmica em várias regiões do mundo. Com o aumento de casos, devido à urbanização da doença, a vigilância epidemiológica tem importância no controle do agravo. Este estudo objetivou verificar o perfil epidemiológico da leishmaniose visceral no Tocantins, com o intuito de compreender melhor a sua dinâmica ao longo dos anos. Métodos: Foi realizado o levantamento dos casos notificados no período de 2007 a 2017 e analisadas as variáveis: sexo, faixa etária, raça, escolaridade, distribuição sazonal, coinfecção com HIV, evolução para cura ou óbito e os critérios de confirmação diagnóstica. Resultados: O coeficiente de incidência médio dos 11 anos foi de 23,28 casos por 100.000 habitantes, sendo 59,3% homens e 30,2% crianças acometidas entre 1 e 4 anos. Observou-se maior concentração de casos entre março e junho. Houve aumento de casos notificados referentes à coinfecção com HIV. As taxas de letalidade foram maiores nos pacientes acima de 60 anos (12,87%), em menores de 1 ano (9,85%) e coinfectados com HIV (7,9%). Conclusão: A alta incidência da doença demonstra a necessidade de mais atenção e investimentos em estratégias de prevenção no estado.

Palavras-chave: Leishmaniose visceral, Epidemiologia, Monitoramento epidemiológico, Zoonoses.

Abstract: Background and Objective: Visceral leishmaniasis is an endemic zoonosis in several regions of the world. With the increase in the number of cases, due to urbanization of the disease, epidemiological surveillance is important in its control. This study aimed to verify the epidemiological profile of visceral leishmaniasis in Tocantins, in order to better understand its dynamics over the years. Methods: A survey of the cases reported between 2007 and 2017 was carried out, and the following variables were analyzed: sex, age, race, schooling, seasonal distribution, HIV coinfection, evolution to cure or death, and diagnostic confirmation criteria. Results: The mean incidence rate in 11 years was 23.28 cases per 100,000 inhabitants, 59.3% of which were men and 30.2% were children between 1 and 4 years. A greater concentration of cases was observed between March and June. There was an increase in reported cases of HIV coinfection. The lethality rates were higher in patients over 60 years (12.87%), in children under 1 year (9.85%) and people coinfected with HIV (7.9%). Conclusion: The high incidence of the disease demands greater attention and investments in prevention strategies in the state.

Keywords: Visceral leishmaniasis, Epidemiology, Epidemiological Monitoring, Zoonoses.

Resumen: Justificación y Objetivos: La leishmaniasis visceral es una zoonosis endémica en varias regiones del mundo. Dado el aumento de casos debido a la urbanización de la enfermedad, la vigilancia epidemiológica tiene importancia en el control del agravio. El presente estudio tuvo como objetivo verificar el perfil epidemiológico de la leishmaniasis visceral en Tocantins, con el fin de comprender mejor su dinámica a lo largo de los años. Métodos: Se realizó la recopilación de los casos notificados en el período de 2007 a 2017 y se analizaron las variables: sexo, grupo de edad, raza, escolaridad, distribución estacional, coinfección con VIH, evolución para cura o muerte y los criterios de confirmación diagnóstica. Resultados: El coeficiente de incidencia promedio de los 11 años fue de 23,28 casos por 100.000 habitantes, de los cuales, el 59,3% fueron de hombres y el 30,2% de niños acometidos entre 1 y 4 años. Se observó una mayor concentración de casos entre marzo y junio. Hubo un aumento de casos notificados relacionados con la coinfección con el VIH. Las tasas de letalidad fueron mayores en los pacientes mayores de 60 años (12,87%), en menores de 1 año (9,85%) y coinfectados con VIH (7,9%). Conclusión: La alta incidencia de la enfermedad demuestra la necesidad de una mayor atención e inversiones en estrategias de prevención en el estado.

Palabras clave: Leishmaniasis visceral, Epidemiología, Monitoreo epidemiológico, Zoonosis.

INTRODUÇÃO

As leishmanioses compreendem uma das sete endemias mundiais de prioridade absoluta da Organização Mundial da Saúde (OMS), em razão do seu caráter endêmico em várias regiões do mundo, afetando de 1 a 2 milhões de pessoas por ano e com aproximadamente 500 mil novos casos anualmente.1

Classicamente, a zona rural e a periferia das grandes cidades, marcadas pelo baixo nível socioeconômico, eram os locais de ocorrência da leishmaniose visceral (LV). Entretanto, percebe-se uma tendência à alteração dessas características, principalmente nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. As questões migratórias, econômicas e sociais, bem como a desigualdade na distribuição de renda, potencializada pelo intenso processo de urbanização, resultaram na expansão das áreas endêmicas, com surgimento de novos focos, o que facilita a ocorrência de epidemias. A doença é prevalente tanto em crianças como em adultos jovens, principalmente os do sexo masculino.2,3

Os dados epidemiológicos dos últimos anos revelam a periurbanização e a urbanização da LV, com recentes epidemias ocorridas nos municípios de Três Lagoas (MS), Campo Grande (MS) e Palmas (TO). Segundo o Ministério da Saúde (MS), em 19 anos de notificação (1984-2002), somaram-se 48.455 casos de LV, sendo que aproximadamente 66% deles ocorreram nos estados da Bahia (14.984 casos, 31%), Ceará (5.173 casos, 11%), Maranhão (6.334 casos, 13%) e Piauí (5.405 casos, 11%). Nos anos de 1997 a 2006, a média anual de casos no país foi de 3.156 casos, e a incidência foi de 2 casos/100.000 habitantes. No Estado do Tocantins, a LV assume importância nos municípios de Araguaína e Palmas com, respectivamente, 97 e 65 casos confirmados da doença no ano de 2017, o que corresponde a 61,13% dos casos do estado.2,4

Tendo em vista as dificuldades de controle da doença, análises do padrão de ocorrência e da epidemiologia contribuem para melhorar a definição do comportamento da LV e também das áreas de transmissão ou de risco, que constituem um instrumento útil para vigilância e adoção de medidas para controle e prevenção da doença.

Este estudo objetivou analisar o perfil epidemiológico da LV no estado do Tocantins no período de 2007 a 2017, com o intuito de fornecer dados que possam contribuir na melhoria de políticas públicas e planejamento de ações efetivas no combate à doença.

MÉTODOS

O Tocantins está localizado na região Norte do Brasil e tem como capital a cidade de Palmas. O estado possui uma população estimada de 1.550.194 habitantes, uma área de 277.720,412 km² e um índice de desenvolvimento humano (IDH) em 2010 de 0,699, ocupando a 14ª posição do ranking brasileiro. O clima é tropical com precipitação anual entre os meses de outubro a abril e a vegetação predominantemente composta por cerrado.5,6

Foi realizado um estudo epidemiológico descritivo de base populacional por meio do levantamento de todos os casos de LV notificados no período de 2007 a 2017 no estado do Tocantins. Os dados foram obtidos a partir do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), disponibilizado no site do Datasus pelo MS. Na análise foram incluídos os seguintes parâmetros: escolaridade, raça, sexo, faixa etária, coinfecção com HIV, evolução (cura ou óbito) e os critérios de confirmação.

Os dados foram colocados em planilhas eletrônicas geradas pelo próprio sistema do Datasus e exportados para o programa Microsoft Office Excel 2007, no qual as avaliações das frequências e a montagem de figuras e tabelas foram realizadas. Para calcular o coeficiente de incidência, foi dividido o número de casos confirmados e notificados pelo total da população estimada pelo IBGE, multiplicando-se o resultado por 100.000 habitantes. As variáveis estudadas foram apresentadas em números absolutos e em percetuais, estes foram obtidos pela divisão do número total de um determinado grupo pelo número total de casos notificados da doença e o valor final multiplicado por 100. As taxas de letalidade foram calculadas dividindo-se o número de óbitos pelo número total de casos notificados e multiplicando o resultado por 100.

Para a realização do estudo, não foi necessária a aprovação do comitê de ética, pois os dados utilizados são de livre acesso.

RESULTADOS

O número de casos notificados e confirmados de LV no Tocantins, no período de 2007 a 2017, foi de 3.683 casos, originando uma média de 334,81 casos por ano. O coeficiente de incidência médio dos 11 anos foi de 23,3 casos/100.000 habitantes, tendo sido registrada no ano de 2011 a maior incidência, com 35,01 casos/100.000 habitantes (Tabela 1). A Figura 1, que mostra o coeficiente de incidência ao longo dos anos, evidencia que após o pico de incidência em 2011 houve um comportamento descendente dos casos até 2014, com posterior tendência a ascensão (Figura 1).

Tabela 1
Casos confirmados e coeficiente de incidência (por 100.000 hab.) da leishmaniose visceral entre 2007 e 2017 no estado do Tocantins.
Casos confirmados e coeficiente de incidência (por 100.000 hab.) da leishmaniose visceral entre 2007 e 2017 no estado do Tocantins.

Coeficiente de incidência de leishmaniose visceral no estado do Tocantins ao longo dos anos de 2007 a 2017.
Figura 1
Coeficiente de incidência de leishmaniose visceral no estado do Tocantins ao longo dos anos de 2007 a 2017.

A distribuição de casos ao longo dos meses no período apresentou maior concentração de casos notificados em março, abril, maio e junho com 348, 390, 391 e 388 casos, respectivamente. E a menor concentração de casos foi encontrada nos meses de outubro, novembro e dezembro com 249, 225 e 195 casos de acordo com a ordem citada, como evidenciado na Figura 2.

Distribuição dos casos notificados de leishmaniose visceral de acordo com os meses em que ocorreram, ao longo do período 2007-2017 no estado do Tocantins.
Figura 2
Distribuição dos casos notificados de leishmaniose visceral de acordo com os meses em que ocorreram, ao longo do período 2007-2017 no estado do Tocantins.

Dos 3.683 casos notificados, 2.184 foram do sexo masculino, correspondendo a 59,2% dos casos. Houve predomínio de casos na raça parda, com 3.063 casos notificados (83%) (Tabela 2).

Tabela 2
Tabela 2

Distribuição dos casos de leishmaniose visceral de acordo com sexo, raça, faixa etária e escolaridade entre os anos de 2007 e 2017 no estado do Tocantins.

Quanto à distribuição etária dos casos, os dados mostram que cerca de 53,7% dos casos correspondem a crianças de 0 a 9 anos de idade. Durante os 11 anos estudados, crianças entre 1-4 anos foram responsáveis pela maior proporção de casos, totalizando 1.112 (30%), seguidos da faixa etária de 20-39 anos com 722 casos notificados (19,6%). Em terceiro lugar, temos os menores de 1 ano de idade, que foram responsáveis por 467 casos (12,6%).

A Figura 3, que delineia os casos ao longo de cada ano segundo a faixa etária, mostra que o padrão ordenado da distribuição dos casos durante os 11 anos foi mantido até 2014. A partir desse ano houve ascensão na proporção de casos em adultos (de 20 a 59 anos). O último ano analisado, 2017, mostrou predominância de casos na faixa etária de 20-39 anos, com um total de 61 casos notificados (22,8%), seguidos pelas crianças de 1-4 anos com 49 casos (18,3%) e pela faixa etária de 40-59 anos com 47 casos notificados (17,6%).

Distribuição anual de casos de leishmaniose visceral de acordo com a faixa etária durante o período 2007-2017 no estado do Tocantins.
Figura 3
Distribuição anual de casos de leishmaniose visceral de acordo com a faixa etária durante o período 2007-2017 no estado do Tocantins.

Em relação à escolaridade, os resultados mostram que em 48,6% dos casos esta variável não se aplica, o que está ligado à grande proporção de casos em crianças. No que se refere aos casos onde esta variável foi declarada, observou-se a maior quantidade de casos notificados em pessoas com 4-7 anos de estudo, com 554 casos notificados (15%), e a menor quantidade de casos notificados em analfabetos, cerca de 78 (2,1%).

No que se refere à coinfecção de LV com HIV, durante o período estudado observou-se um aumento de 3 casos em 2007 para 18 casos em 2017, sendo que o maior número ocorreu em 2016, com 23 notificações. Ao todo foram notificados 126 casos, o que corresponde a 3,42% do total de casos de LV ocorridos no período.

No diagnóstico da doença, foi observado que na maioria dos casos, 3.371 (91%) ao todo, o critério de confirmação foi laboratorial e que em apenas 311 casos (8,4%) o critério foi clínico-epidemiológico. O exame parasitológico foi realizado em 620 casos (16,8%), sendo positivo em 501 deles (80,81%). Já a imunofluorescência, realizada em 2.936 casos (79%), foi positiva em 2.749 casos (93,6%).

O Coeficiente de Letalidade da LV no período estudado foi de 4,83%, enquanto o percentual de cura no período foi de 86,9%. O restante dos desfechos correspondeu a transferências (3,09%), óbito por outras causas (1,14%), abandono (0,46%) e casos com desfecho ignorado (3,5%). Na distribuição do coeficiente de letalidade ao longo dos anos foi possível observar que o ano de 2015 foi o de maior coeficiente de letalidade (8,1%), enquanto o de menor coeficiente foi o de 2009, com 2,5%.

No que se refere à letalidade em relação ao sexo, o coeficiente de letalidade médio no sexo masculino foi maior que no sexo feminino, sendo respectivamente 5,22% e 4,27%. Quanto à faixa etária, a letalidade foi mais significativa em maiores de 60 anos, onde o coeficiente de letalidade médio é de 12,87 e em menores de 1 ano, com 9,85%. Na coinfecção com HIV, o coeficiente de letalidade durante os 11 anos analisados foi de 7,9%, enquanto o percentual de cura foi de 73,8%. Os casos restantes correspondem a óbitos por outra causa (8,7%), transferências (2,4%) e desfechos ignorados (7,1%).

O percentual de recidiva da LV em relação ao total de casos notificados foi de 2,2%, com um número absoluto de 82 recidivas durante o período estudado. Nos pacientes coinfectados com HIV o percentual de recidiva foi de 13,5% enquanto na população não coinfectada foi de 1,84%.

Observou-se uma concentração de casos nas três microrregiões mais populosas do Tocantins, correspondendo a 57,67% da população. A microrregião de Araguaína, responsável por 20,14% da população do estado, foi a que teve maior número de casos notificados (2034), que representa 55,2% do total de casos, seguida por Porto Nacional, que tem 23,33% da população, com 736 casos (20% do total de casos) e Bico do Papagaio, que tem 14,19% da população, com 453 casos (12,2% dos casos notificados). Juntas, essas três microrregiões são responsáveis por 87,4% dos casos de LV.

Em relação ao coeficiente de letalidade, as microrregiões de Gurupi e Porto Nacional tiveram as maiores taxas, com 8,3% e 7,2%, respectivamente.

DISCUSSÃO

O estado do Tocantins é considerado região endêmica de LV. Durante os 11 anos estudados, o Brasil apresentou 41.263 casos notificados, dos quais o Tocantins colaborou com 8,9%, ocupando o 4º lugar entre as unidades da federação no período. O Ceará correspondeu com o maior número de casos, seguido de Minas Gerais e Maranhão.4

Antes mais relacionada com a região rural, a LV vem se urbanizando recentemente. São determinantes dos níveis epidemiológicos da doença nos centros urbanos tanto o convívio próximo do homem com o reservatório quanto o aumento da densidade do vetor, que está diretamente ligado às variações climáticas locais, o desmatamento e os movimentos migratórios.7

Segundo a literatura, a distribuição dos casos de LV no Brasil é cíclica, com intervalos médios de aumento dos casos a cada cinco anos, com variações a depender da localidade. Há quem sugira que o fenômeno El Niño contribua para tal variante cíclica.8,9

Essa sazonalidade pode ser sugerida pela análise dos dados obtidos neste trabalho, em que se observa um pico considerável de casos em 2011, seguido por redução e com posterior aumento a partir de 2015.

Há predominância de notificações de março a junho e menor incidência entre outubro e dezembro. Tal fenômeno pode ser explicado em parte pela pluviosidade característica da região, com concentração de chuvas no período imediatamente anterior ao período de maior incidência da doença. O índice pluviométrico está diretamente ligado à proliferação de flebotomíneos, e, portanto, a uma maior disseminação da doença.10

Em relação ao gênero, a predominância no sexo masculino (59,2%) é consonante com a tendência nacional e mundial.11 Estudos brasileiros mostram esse padrão variando de 54% a 68%.8,12-14

Esse tipo de perfil já foi relatado em outros países como Uganda e Quênia. Apesar de ser um achado comum, a explicação para essa tendência permanece incerta. Entre as explicações para a predominância no sexo masculino, sugere-se que o comportamento do homem possa ter características que facilitem a exposição aos mosquitos, por desempenharem atividades ocupacionais e comportamentais mais próximas à fonte de infecção. Além disso, fatores hormonais podem estar envolvidos.8,15,16

O coeficiente de incidência de LV em pardos (83%) supera o percentual de população parda no estado (63,13%). O trabalho não foi delineado para estudar variáveis que possam explicar esse resultado.5

Durante os anos estudados observa-se uma predominância de casos de LV na faixa etária de 0 a 9 anos, assim como pode ser visto em outros estudos. Sabe-se que a faixa etária infantil é mais suscetível à doença devido à imaturidade de sua imunidade humoral. Por outro lado, em alguns estados do Nordeste, a imunodepressão consequente à desnutrição é fator determinante para o adoecimento. Associado a isto está o fato de crianças estabelecerem um contato mais próximo com os reservatórios (cães) e permanecerem mais tempo em casa e no peridomicílio, o que as deixa suscetíveis à picada do flebotomíneos contaminados. Em Aracaju foi demonstrado que na faixa etária de 1 a 4 anos o risco de desenvolver a doença chega a ser quatro vezes maior que em outras faixas etárias.8,12,13,17

Por outro lado, nos últimos anos percebe-se aumento de casos na população de adultos jovens, chegando a ultrapassar a incidência de casos infantis. Tendência similar foi documentada em estudos no Ceará e no Rio Grande do Norte.12,14

Segundo o IBGE, 14,5 % da população tocantinense é considerada analfabeta. Essa população representou 2,1% dos casos de LV. Devido ao crescente desenvolvimento econômico do país, a quantidade de pessoas analfabetas provavelmente tende a concentrar-se nas idades mais avançadas, que são menos suscetíveis à LV segundo este estudo. Ainda em relação à escolaridade, conforme esta aumenta, nota-se uma tendência à diminuição do percentual de infecção pela LV, uma vez que pessoas com menos de 7 anos de estudo são responsáveis por 25,04% dos casos, enquanto entre 8 e 12 anos de estudo correspondem a 14,8%. Algo semelhante é encontrado por Borges et al. em Belo Horizonte, onde 22% dos casos possuem apenas o primeiro grau incompleto e 17,1% o segundo grau completo. Tal fenômeno ocorre porque as atividades de prevenção diretamente ligadas com o controle epidemiológico da doença estão fortemente presentes no ambiente escolar.5,12

A letalidade foi maior em indivíduos com mais de 60 anos, o que está de acordo com outros estudos, como o realizado em Aracaju, onde a taxa de letalidade em idosos entre 60 a 69 anos foi de 60% e entre 50 a 59, 55,8%. Isso é esperado, visto que a população mais idosa possui menor eficiência do sistema imunológico, característico da senescência, e mais comorbidades.8

A população com menos de 1 ano apresentou a segunda maior taxa de letalidade. No Ceará, em Bauru e em Campo Grande algo semelhante foi encontrado, com a taxa de letalidade sendo maior entre os menores de 1 ano e maiores de 60 anos. Um sistema imunológico ainda incipiente poderia explicar a alta letalidade da população de menor idade.13,18

Por outro lado, a população de jovens teve a menor taxa de letalidade. Em Campo Grande foi encontrada taxa de letalidade de 0% entre os indivíduos entre 15 e 19 anos, enquanto que neste estudo ela foi de 5,32%. Esses valores são explicados pelo melhor estado de saúde geral da população jovem, que permite que a infecção seja combatida de forma mais eficaz.13

Assim como foi observado no Tocantins no período estudado, outros estudos relatam uma tendência ao aumento do número de casos de coinfecção LV-HIV ao longo do tempo. Esses achados indicam probabilidades mais altas de superposição de áreas de risco de LV e HIV.19

Alvarenga et al. ao analisarem a presença de comorbidades em pacientes com LV, notaram a presença de HIV em 20% dos casos. Em outros estudos epidemiológicos o percentual de indivíduos HIV positivos atingidos pela LV variou de 5%-9,2%.13,14,20

É fácil entender a relação entre a infecção pelo vírus do HIV e os casos de LV. O estabelecimento da Aids leva o organismo a um estado de comprometimento do sistema imune. Dessa forma, como o organismo não consegue combater de forma eficaz o invasor, as chances de uma infecção por LV são muito elevadas. O aumento do número de coinfecções pode ser inferido por maior cobertura de saúde nos últimos anos, com maior quantidade de diagnósticos tanto de pacientes com HIV como de pacientes com LV.

O coeficiente de letalidade nos pacientes com coinfecção LV-HIV observado neste estudo foi de 7,9%, menor que o encontrado em outras localidades, com variação entre 15% e 29%. Porém esse valor ultrapassa a letalidade geral da LV, o que pode ser explicado pela baixa resposta do sistema imune e parasitismo intenso nos indivíduos HIV positivos, além de ser um grupo com maiores taxas de insucesso terapêutico e com pior resposta clínica ao tratamento, independentemente do esquema utilizado. Isso também pode explicar o percentual de recidivas em coinfectados LV-HIV, que é 7,3 vezes maior que dos não coinfectados.13,18, 21,22

Assim como no Estado do Tocantins, em outros estudos viu-se que a maioria dos diagnósticos da doença é obtida através da confirmação laboratorial. Das técnicas laboratoriais, a mais utilizada no Tocantins no período estudado foi a imunofluorescência indireta (IFI). Entre 2007 e 2012, 53% dos casos de LV no Brasil foram confirmados por IFI, e no estudo em Aracaju, entre 1999 e 2008, 71,4% dos casos foram confirmados por essa técnica.8,20,23

Em um estudo realizado no Rio Grande do Norte, em 18,14% dos indivíduos não foi realizado nenhum método laboratorial de diagnóstico. Em 13% dos casos foi realizada a IFI associada ao exame parasitológico (mielograma). A resposta positiva nas técnicas de IFI e no exame parasitológico foi observada em 8% dos casos.14

Mesmo sendo muito usado, o exame parasitológico de aspirado de baço (ou de medula) requer infraestrutura e profissionais capacitados, além de ser um procedimento invasivo, que envolve riscos, e cuja sensibilidade pode variar entre 70,2% a 96,4%, o que pode justificar uma maior utilização da IFI, que possui sensibilidade em torno de 88%.24,25

As três microrregiões mais populosas do Tocantins, correspondendo a 57,67% da população, foram responsáveis por 87,40% dos casos no estado. Tal distribuição vai de encontro com o fenômeno de urbanização da doença, ou seja, sua concentração cada vez maior nos centros urbanos. A microrregião de Araguaína, com 20,14% da população do Tocantins, foi responsável pela maioria dos casos (55,20%). Esse grande volume de casos pode ser explicado pelo fato de a cidade de Araguaína ser um polo de saúde importante no Tocantins, possuindo um hospital de referência em doenças tropicais, além de ser uma cidade de grande porte no estado e receber grande volume de pacientes dos estados vizinhos (Maranhão e Pará).2

Este estudo mostra a necessidade de melhorar a compreensão da epidemiologia da LV no Tocantins e, consequentemente, aumentar atenção e eficácia na consolidação e execução de ações de controle dos vetores e seus reservatórios. Espera-se que esse detalhamento contribua para uma precocidade no diagnóstico, possivelmente diminuindo a letalidade da doença e reduzindo o ciclo de transmissão. Também é necessário ver se a crescente incidência em adultos jovens se consolida com o tempo. Caso isto ocorra, é necessário investigar quais seriam as variáveis envolvidas para o aumento da incidência nesta faixa etária.

Os dados obtidos poderão contribuir e auxiliar na elaboração de melhores estratégias de vigilância e planejamento de ações para prevenção do agravo.

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