Cartas ao editor

Recepción: 03 Mayo 2022
Aprobación: 06 Mayo 2022
Caro editor:
Em setembro de 2021 dezenas de pesquisadores, trabalhadoras/es do Sistema Único de Saúde (SUS) e de outras políticas sociais, gestoras/es, conselheiras/os de saúde e representantes de movimentos sociais participaram de uma jornada de cinco encontros virtuais semanais, promovida pelo Comitê Estadual de Enfrentamento da Tuberculose do RS (CEETB/RS), intitulada Tuberculose em debate: perspectivas para proteção e cuidado de populações vulneráveis à tuberculose e coinfecção tuberculose-HIV/Aids. Buscou-se, nesses encontros, situar a epidemia de tuberculose no contexto das crises sanitária, econômica e social vivenciadas no Brasil nos últimos anos e debater alternativas para ampliar o cuidado e a proteção social das populações com maior risco de adoecimento.
A tuberculose é a segunda doença infecciosa que mais mata no mundo e, atualmente, perde apenas para a Covid-19. [1] Tem íntima relação com a desigualdade social, pois sua disseminação é facilitada pela precariedade das condições de vida de importante parcela da população. Nesse sentido, determinados grupos apresentam maior risco de adoecimento. São eles: pessoas em situação de rua, população privada de liberdade, pessoas vivendo com HIV/Aids e indígenas. Estas populações sofrem com estigmas e barreiras de acesso às políticas sociais de longa data, o que afeta diretamente o cuidado em saúde. Sistemas de saúde públicos devem ter como objetivo principal a busca da equidade, o que representa que aqueles que têm maior vulnerabilidade devem ser tratados de maneira diferente de modo que as desvantagens resultantes da posição social possam ser reduzidas ou anuladas. [2]
A pandemia de Covid-19 provocou diversas alterações no modo de se produzir saúde e ações programáticas tiveram que ser colocadas em segundo plano a fim de dar conta da emergência em saúde pública. Passados dois anos desde os primeiros casos, o SUS urge por uma reorganização de modo que possa fortalecer as ações em áreas que sempre foram negligenciadas, como o enfrentamento da Tuberculose.
O cenário atual expressa o aprofundamento da desigualdade social, a qual se manifesta através do aumento do desemprego e da informalidade, do aumento sem precedentes da fome e da desnutrição e do crescimento do contingente de pessoas em situação de rua, para citar alguns exemplos. Soma-se a este cenário os retrocessos no financiamento da Atenção Primária à Saúde e o desmonte do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Todos esses fatores contribuem para a degradação das condições de vida da população e abrem o flanco para o aumento da prevalência de doenças socialmente determinadas.
A fim de sintetizar e dar visibilidade aos debates e proposições da jornada, foi elaborado o presente documento. Os temas abaixo elencados expressam demandas e propostas históricas dos movimentos sociais, atualizadas pelos retrocessos no campo dos direitos sociais em curso no Brasil.
· Revogação da Emenda Constitucional 95/2016 [3]: também conhecida como emenda do Teto de Gastos, a medida congela por 20 anos os investimentos do governo em serviços públicos, possibilitando apenas a reposição da inflação. Levantamento do Conselho Nacional de Saúde aponta que a emenda retirou do Sistema Único de Saúde cerca de R$42,5 bilhões nos anos pré-pandemia (2018 e 2019) e em 2022. [4]
· Defesa da Atenção Básica: reverter imediatamente o desmonte da Atenção Básica do SUS e ampliar sua capacidade assistencial (com o aumento, por exemplo, do número de agentes comunitários de saúde). Ademais, incentivar a implantação das linhas de cuidado para o HIV/Aids e tuberculose e facilitar o acesso ao Tratamento Diretamente Observado para todos que necessitarem, com apoio matricial de qualidade e fortalecimento das redes de saúde e socioassistenciais existentes.
· Combate ao preconceito às pessoas com tuberculose e/ou HIV-Aids: preconceito, estigma e discriminação em relação às pessoas com HIV/Aids e/ou tuberculose ainda fazem parte do dia a dia da nossa sociedade e precisam ser superados com ações mais efetivas em educação e comunicação em saúde que superem abordagens moralistas e de culpabilização dos indivíduos.
· Uso problemático de álcool e outras drogas: é necessário repensar os processos de trabalho buscando novas formas de intervenção e a necessidade de reconhecer o alcoolismo e a dependência química como fatores que influenciam o tratamento da tuberculose, buscando estratégias de cuidado não excludentes, na perspectiva da redução de danos, dando importância ao trabalho dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), grupos de ajuda mútua, entre outros recursos existentes.
· População Privada de Liberdade (PPL): é preciso superar a histórica submissão da saúde à segurança, o que dificulta o acesso dessa população ao cuidado integral e em tempo oportuno. Ademais, é de amplo conhecimento as precárias condições das instalações prisionais, o que exige uma reforma estrutural, que garanta a redução dos fatores de risco para a tuberculose nestes ambientes. Por fim, é necessário ampliar políticas de acesso à saúde das pessoas privadas de liberdade, especialmente em relação à prevenção de agravos, bem como facilitar o fluxo de informações para a comunidade prisional, respeitando o papel dos conselhos de comunidade enquanto instâncias de controle social junto às prisões. Para além dessas medidas, em longo prazo é importante que se debata com a sociedade civil e com os estudiosos da área de segurança pública uma agenda de desencarceramento, tendo em vista a superpopulação carcerária brasileira, seus marcadores sociais (em especial, de raça e classe) e as péssimas condições de saúde vividas nas prisões do país.
· Populações indígenas, migrantes e refugiados, quilombolas e LGBTTQIA+: deve-se garantir equipes de saúde em quantidade suficiente e capacitadas para interagir com estas populações, respeitando questões culturais e crenças, valorizando seus conhecimentos e promovendo momentos de informação, projetos, ações, oficinas, com materiais gráficos, cartilhas e outros recursos que permitam compreensão e inclusão.
· População em Situação de Rua: é imprescindível estabelecer compromisso para instituir políticas sociais estruturantes, como habitação, educação, trabalho e renda, enquanto garantia de construção de autonomia e emancipação dos sujeitos. Além disso, os esforços devem incluir a ampliação e o fortalecimento dos Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), albergues, abrigos e outros equipamentos ou espaços de descanso e higiene que acolham esta população, assim como ampliar também a atuação dos Consultórios na Rua.
· Acesso a políticas sociais públicas é fundamental para garantir a cura da tuberculose: ampliar políticas públicas que garantam acesso aos serviços de saúde, alimentação, vale transporte e distribuição de renda. Estudo publicado recentemente por pesquisadores brasileiros demonstra que o Bolsa Família trouxe impacto positivo em relação à adesão ao tratamento da tuberculose, reduzindo mortalidade e taxas de abandono. [5]
Não obstante a conjuntura desfavorável, com o advento de uma crise sanitária que afetou o Brasil em um período de recessão econômica e fragilidade do sistema democrático, o CEETB/RS não tem medido esforços para mobilizar a sociedade civil organizada e articular iniciativas que denunciem os retrocessos no combate à tuberculose.
Referências
1. ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. (OPAS). Mortes por tuberculose aumentam pela primeira vez em mais de uma década devido à pandemia de Covid-19. OPAS, 2021b. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/14-10-2021-mortes-por-tuberculose-aumentam-pela-primeira-vez-em-mais-uma-decada-devido. Acesso em: 30 jan. 2022.
2. BARATA, RB. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2009. Temas em Saúde collection. 120 p. ISBN 978-85-7541-391-3.
3. BRASIL. Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm. Acesso em: 01 fev. 2022.
4. BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação n° 032, de 03 de novembro de 2021. Recomenda a priorização da revisão das regras fiscais da EC 95/2016. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/2155-recomendacao-n-032-de-03-de-novembro-de-2021. Acesso em: 11 abr 2022.
5. OLIOSI, JGN, et al. Effect of the Bolsa Familia Programme on the outcome of tuberculosis treatment: a prospective cohor study. The Lancet. 2019. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(18)30478-9.