ARTIGO

As boas práticas de fabricação de medicamentos e suas determinantes

Good manufacturing practices of medicines and their determinants

Marcelo Vogler *
Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Brasil
Universidade de Brasília, Brasil
Tais Gratieri
Universidade de Brasília, Brasil
Guilherme M. Gelfuso
Universidade de Brasília, Brasil
Marcílio S.S. Cunha-Filho
Universidade de Brasília, Brasil

As boas práticas de fabricação de medicamentos e suas determinantes

Vigilância Sanitária em Debate, vol. 5, núm. 2, pp. 34-41, 2017

INCQS-FIOCRUZ

Recepção: 12 Janeiro 2017

Aprovação: 05 Maio 2017

RESUMO: As Boas Práticas de Fabricação (BPF) garantem que os medicamentos sejam consistentemente produzidos e controlados de acordo com padrões de qualidade previamente estabelecidos. Têm por objetivo gerenciar e minimizar os riscos inerentes à fabricação de medicamentos com vista a garantir a qualidade, eficácia e segurança do produto acabado. Desde o seu surgimento da forma como conhecemos hoje, várias versões se sucederam no Brasil e no mundo. Esse trabalho se propõe a analisar as BPF, por meio da análise de conteúdo dos marcos regulatórios brasileiros, identificando as determinantes que podem explicar a sua evolução através das últimas décadas. As BPF foram decompostas em temas e subtemas e suas versões, presentes nos cinco marcos regulatórios estudados, foram avaliadas. Foi possível comprovar, na evolução dos requisitos de fabricação de medicamentos, a interferência da inovação tecnológica e a influência de novas práticas relacionadas à qualidade, identificando, dessa forma, a dinâmica de transformação das BPF.

Palavras chave: Boas Práticas de Fabricação, Regulação e Fiscalização em Saúde, Regulamentação Governamental, Tecnologia Farmacêutica, Indústria Farmacêutica, Vigilância Sanitária.

ABSTRACT: Good Manufacturing Practices (GMP) ensure that drugs are consistently produced and controlled according to previously established quality standards. They are designed to manage and minimize the inherent risks involved in the manufacture of drugs in order to ensure the quality, efficacy and safety of the finished product. Since their inception as we know them today, several versions have taken place in Brazil and worldwide. This work proposes to analyze GMP, through the analysis of the content of Brazilian regulatory frameworks, identifying the determinants that can explain their evolution over the last decades. GMP were broken down into topics and subtopics and their versions present in the five regulatory frameworks studied were evaluated. It was possible to verify, in the evolution of drug manufacturing requirements, the interference of technological innovation and the influence of new practices related to quality, identifying the GMP transformation dynamics.

Keywords: Good Manufacturing Practices, Health Care Coordination and Monitoring, Government Regulation, Pharmaceutical Technology, Drug Industry, Sanitary Surveillance.

INTRODUÇÃO

As Boas Práticas de Fabricação (BPF) são o instrumento regulatório e técnico que garante que os medicamentos sejam consistentemente produzidos e controlados de acordo com padrões de qualidade previamente estabelecidos. Têm como objetivo o gerenciamento e a minimização dos riscos envolvidos na fabricação de medicamentos, com vista a garantir a qualidade, eficácia e segurança do produto acabado1. As BPF surgem como uma iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1967, com o intuito de subsidiar os esforços despendidos pelos seus estados-membros para melhorar a qualidade dos medicamentos comercializados2. O documento aprovado na XXI Assembleia Mundial de Saúde, intitulado Draft requirements for good manufacturing practices in the manufacture and quality control of drugs and pharmaceutical specialities, constitui o primeiro texto oficial que trata das regras de fabricação de medicamentos utilizando o termo BPF. Desde então, várias atualizações desse documento foram produzidas pela OMS ao longo das cinco décadas seguintes, sendo a última delas em 20141.

A evolução das regras de fabricação de medicamentos está usualmente vinculada a desastres de grande repercussão midiática, envolvendo a utilização de medicamentos sem qualidade que trouxeram graves prejuízos à saúde dos usuários, e em alguns casos, levaram a óbito dezenas de pacientes. De maneira ilustrativa, podem ser citados os incidentes envolvendo o medicamento sufatiazol, em 1941 nos Estados Unidos da América (EUA), que deixou aproximadamente 300 mortos ou feridos devido à ingestão de comprimidos contaminado por fenobarbital e, ainda, o caso da falha no processo de inativação viral de um lote de vacina da pólio na década de 1950, que fez com que 60 pessoas desenvolvessem pólio e outros 89 familiares contraíssem a doença, também nos EUA3. Ainda hoje, acidentes fatais devido à falta de qualidade dos medicamentos continuam a ocorrer ao redor do mundo, inclusive no Brasil4. Em resposta a cada uma dessas tragédias podem-se identificar várias ações governamentais subsequentes, tomadas pelas autoridades sanitárias de diferentes países, no sentido de adotar medidas restritivas relacionadas à fabricação de medicamentos3. Contudo, seria precipitado afirmar que as frequentes mudanças nas BPF são única e exclusivamente consequências das tragédias provocadas pelo uso de medicamentos sem qualidade.

Alguns autores relacionam o aumento da vigilância sobre um determinado objeto, como é o caso das BPF, ao progresso tecnológico. Tenner5, discorrendo sobre as iatrogenias decorrentes das novas tecnologias, afirma que o progresso tecnológico impõe uma vigilância cada vez maior para a mesma dose de risco, já que o uso de tecnologias mais avançadas pode produzir resultados melhores, mas exige que seja feito sob estritos controles e critérios. Lucchese6 expõe exaustivamente as implicações do progresso tecnológico na Vigilância Sanitária. Segundo ele, com algumas exceções (tecnologias novas que simplificam a necessidade de controles), as inovações tecnológicas constituem-se de sistemas mais complexos e poderosos, com maior número de componentes, que intensificam a probabilidade de acontecer algo de errado. Por isso, novas tecnologias demandam maior vigilância, maior conhecimento dos recursos humanos, mais habilidade, maior capacidade individual e experiência6.

Nesse sentido, se torna importante balizar o entendimento e a utilização do termo tecnologia. Dentre os vários conceitos e abordagens aplicáveis a este termo, o que mais se aproxima à realidade da fabricação de medicamentos é a conceituação de Blaumer7, que se refere ao conjunto de objetos físicos e operações técnicas (mecanizadas ou manuais) empregadas na transformação de produtos em uma indústria. Baseando-se nisso, Silva8 propôs uma nova abordagem do termo no campo da gestão da tecnologia em empresas de manufatura. O autor trabalhou os conceitos de macrotecnologia, referente ao conceito sistêmico dentro da organização (estrutura, criatividade, pessoas, informação, organização etc.), e microtecnologia, relativo ao conjunto de tecnologias inter-relacionadas embutidas em um processo ou produto. A microtecnologia constitui-se, dessa forma, em Tecnologias Complementares (TC), contempladas em um processo ou produto, que por sua vez, é denominado de Tecnologia Principal (TP). De acordo com essa abordagem, as TC se sucedem de forma mais intensa e rápida que as TP. Para o autor, a maioria das melhorias em produtos ocorre em decorrência do avanço das TC e não das TP. A caracterização das tecnologias empregadas na indústria farmacêutica pode facilitar o entendimento da dinâmica de evolução das BPF ao longo das últimas décadas.

Os estudos científicos pautados nas BPF de medicamentos e sua relação com as inovações tecnológicas, bem como outros possíveis determinantes, são bastante escassos. Nesse contexto, esse trabalho se propõe a investigar o processo de transformação das BPF e as suas motivações, adotando como lócus de avaliação o Brasil. A evolução da regulação sanitária brasileira em BPF e as referências internacionais que serviram como base foram analisadas de forma sistematizada, identificando os aspectos tecnológicos envolvidos e seu impacto nas BPF.

MÉTODO

Para a condução de uma pesquisa qualitativa baseada em uma análise de conteúdo9,10, foi adotado como referencial teórico a versão atual das BPF no Brasil, a Resolução de Diretoria Colegiada – RDC n° 17, de 16 de abril de 201011, listada entre as mais importantes do mundo12 e cujo conteúdo é baseado no Anexo IV do Relatório n° 37 da OMS de 200313 e nas suas demais atualizações sobre o tema até aquele momento14. Esse marco regulatório foi confrontado com suas antecessoras, ou seja, a RDC n° 210, de 4 de agosto de 200315 (baseada no Relatório nº 32 da OMS de 199216), a RDC n° 134, de 13 de julho de 200117(baseada no Relatório nº 32 da OMS de 199216) e a Portaria SVS/MS n° 16, de 6 março de 199518 (baseada no Relatório nº 25 da OMS de 197519), bem como o Decreto n° 20.397, de 14 de janeiro de 194620 e sua respectiva complementação (Portaria DNS/MS n° 1, de 11 de janeiro de 1954)21.

Das técnicas disponíveis para a realização da análise de conteúdo, recorreu-se à análise temática, cuja presença de determinados temas denota os valores de referência e os modelos de comportamento presentes no objeto analisado. A RDC n° 17/201011 constitui-se em um marco regulatório bastante extenso, possuindo mais de 600 artigos, acrescidos de inúmeros parágrafos e incisos. Devido à necessidade da decomposição da RDC n° 17/201011 em temas e a ausência de referências para esse fim, utilizou-se a metodologia empregada pela Food and Drug Administration (FDA) em seu programa de inspeções e apresentada no documento Compliance Program Guidance Manual for FDA Staff: Drug Manufacturing Inspections. Program 7356.002 – 0122. Nesse documento, a FDA dividiu as BPF em seis sistemas, de acordo com o seu formato e conteúdo. São eles: i) Qualidade; ii) Instalações e Equipamentos; iii) Materiais; iv) Produção; v) Embalagem e Rotulagem; e vi) Laboratórios de Controle.

Partindo-se desse racional, cada sistema foi definido como um tema no presente trabalho, que por sua vez, foi decomposto em inúmeros subtemas que contemplam todos os requisitos técnicos do referencial teórico. O Quadro 1 apresenta os subtemas da RDC n° 17/201011 e a sinalização sobre a presença ou ausência de tais requisitos técnicos nos demais marcos regulatórios analisados.

Quadro 1
Conteúdo presente na RDC n°17/2010 frente aos demais marcos regulatórios relacionados às Boas Práticas de Fabricação.
Temas e subtemasDecreto n°20.397/1946Portaria n°16/1995RDC n°134/2001RDC n°210/2003RDC n°17/2010
Qualidade
Controle de mudançasAusenteAusenteParcialmenteParcialmentePresente
Revisão periódica de produtoAusenteAusenteAusenteAusentePresente
Qualificação de fornecedoresAusenteAusenteParcialmenteParcialmentePresente
AutoinspeçãoAusenteParcialmentePresentePresentePresente
RecolhimentoAusenteParcialmentePresentePresentePresente
Reclamação / devoluçãoAusentePresentePresentePresentePresente
Tratamento de desvios da qualidade/CAPAAusenteAusentePresentePresentePresente
Estrutura organizacionalAusenteAusentePresentePresentePresente
TreinamentoAusenteParcialmentePresentePresentePresente
Pessoal (responsabilidades / conhecimentos e competências / exames médicos periódicos)ParcialmenteParcialmenteParcialmenteParcialmentePresente
Gerenciamento de documentosAusenteAusentePresentePresentePresente
Liberação de lote para comércioAusenteAusenteParcialmenteParcialmentePresente
ReprocessamentoAusenteAusentePresentePresentePresente
Validação / plano mestre de validaçãoAusenteAusentePresentePresentePresente
Sistemas computadorizados / validaçãoAusenteAusenteParcialmenteParcialmentePresente
Contaminação cruzada e misturaParcialmentePresentePresentePresentePresente
Pesquisa & desenvolvimentoAusenteAusentePresentePresentePresente
Instalações e equipamentos     
Manutenção preventivaAusenteParcialmentePresentePresentePresente
Qualificação de equipamentosAusenteAusentePresentePresentePresente
Sistema de águaAusenteParcialmenteParcialmenteParcialmentePresente
Sistema de ar – estéreisParcialmentePresentePresentePresentePresente
Sistema de ar – não estéreisAusenteParcialmentePresentePresentePresente
Requisitos gerais de construçãoParcialmentePresentePresentePresentePresente
Materiais
Recebimento - teste de identificação (recipiente por recipiente)AusenteAusentePresentePresentePresente
Armazenamento (quarentena eletrônica)AusenteAusenteParcialmentePresentePresente
Segregação física de materiais - armazenamentoAusentePresentePresentePresentePresente
RetesteAusenteAusenteAusenteAusentePresente
Gestão de estoque (adoção de códigos e numeração de lotes)AusenteParcialmentePresentePresentePresente
Gestão de estoque (FEFO)AusenteParcialmentePresentePresentePresente
Produção
Tecnologia de sopro / envase / selagem (blow/fill/seal)AusenteAusenteAusenteAusentePresente
IsoladoresAusenteAusentePresentePresentePresente
Preparação asséptica - classificação das áreasAusenteAusentePresentePresentePresente
Validação de filtração esterilizanteAusenteAusenteAusenteAusentePresente
Validação de limpezaAusenteAusentePresentePresentePresente
Simulação de enchimento – media fillAusenteAusentePresentePresentePresente
Validação de esterilizaçãoAusenteAusentePresentePresentePresente
Embalagem e rotulagem
ReconciliaçãoAusentePresentePresentePresentePresente
Liberação de linhaAusenteParcialmentePresentePresentePresente
Controles eletrônicos em linhaAusenteAusentePresentePresentePresente
Laboratório de controle
Validação de método analíticoAusenteParcialmentePresentePresentePresente
Resultado fora da especificaçãoAusenteAusenteAusenteAusentePresente
Estudo de estabilidadeAusentePresentePresentePresentePresente

A classificação de “parcialmente” foi utilizada nos casos em que os requisitos, ainda que presentes encontravam-se descritos de forma incipiente e pouco clara. Essa mesma classificação foi utilizada nos casos em que o item se apresentava no Roteiro de Inspeção (Anexo III) e não no texto das BPF do marco regulatório (Anexo I). O roteiro de inspeção é um instrumento que funcionava como check list, no qual cada item é classificado como “Imprescindível”, “Necessário”, “Recomendável” ou “Informativo” e encontra-se presente em três versões das BPF (Portaria n° 16/199518, RDC n° 134/200117 e RDC n° 210/200315). Por conferir maior liberdade à autoridade sanitária no momento da sua elaboração, muitas vezes o roteiro acabava por ser mais detalhado que o próprio texto da RDC.

Outra consideração metodológica relevante diz respeito à possível inserção do mesmo subtema em diferentes temas. Como exemplo, pode-se citar o subtema qualificação de equipamentos, que, devido às suas características, poderia ser inserido nos temas de “Produção”, “Embalagem e Rotulagem” e “Laboratórios de Controle”. Nesses casos, optou-se por inserir subtemas dessa natureza no tema de “Qualidade”, evitando-se duplicidades, sendo que a presença desses elementos somente foi considerada quando estavam contemplados em todas as áreas pertinentes previstas na referência utilizada (RDC nº 17/201011). Caso contrário, o subtema foi classificado como parcialmente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No Quadro 1 podem ser observados os subtemas: pessoal, sistema de ar – estéreis e requisitos gerais de construção, que parecem balizar a elaboração das regras de fabricação de medicamentos desde os seus primórdios, já que estiveram presentes em todos os marcos regulatórios, ainda que de forma parcial ou pouco desenvolvida. A presença de requisitos relacionados a esses subtemas denotam a preocupação com aspectos relacionados à higiene, à limpeza e à possibilidade de contaminação microbiana em medicamentos, principalmente, os estéreis.

Além dos subtemas mencionados, a preocupação com a possibilidade de contaminação cruzada também se mostra presente desde o primeiro marco regulatório que trata da fabricação de medicamentos no Brasil na década de 1940. A incorporação de exigências relacionadas a esse subtema (segregação de áreas para produção; utilização de equipamentos e utensílios dedicados para a fabricação de determinados produtos; produção em campanha; utilização de antecâmaras com diferenciais de pressão de ar; redução ao mínimo do risco de contaminação causada pela recirculação ou reentrada de ar não tratado ou insuficientemente tratado etc.) sugerem uma possível influência da tragédia ocorrida nos EUA na mesma década (1941), em que 300 pessoas foram intoxicadas por consumirem comprimidos de sulfatiazol contaminados com fenobarbital.

Nota-se que a cada novo marco regulatório brasileiro, independentemente de tragédias, surgem requisitos destinados a eliminar ou mitigar a possibilidade da contaminação cruzada de produtos específicos. O primeiro documento a trazer regras da fabricação de medicamentos no Brasil, o Decreto n° 20.397/194620, já contemplava requisitos específicos (segregação de áreas produtivas, bem como a utilização de materiais e equipamentos dedicados) para a produção de soro antitetânico, vacina anticarbunculosa ou vacina BCG.

Ao considerar que cada um dos produtos mencionados pode ser definido como uma nova tecnologia, fica evidente a relação do seu surgimento com as transformações nas BPF. Com a descoberta e disseminação do uso de grande parte dos antibióticos na década de 1940 e 1950, a determinante tecnológica, mais uma vez, se mostra presente ao examinar os requisitos de fabricação contemplados na Portaria DNS/MS n° 1/195421, que complementa o Decreto n° 20.397/4620 (do ponto de vista técnico) e traz a seguinte passagem:

SERVIÇO NACIONAL DE FISCALIZAÇÃO DA MEDICINA na conformidade do Art. 13, letra C, do Decreto n° 21.339, de 20 de junho de 1946, e considerando o desenvolvimento que vem se notando na indústria farmacêutica nacional no que se refere a fabricação de antibióticos, RESOLVE: [...]21(Grifo nosso)

Tal marco regulatório determinou que a fabricação de antibióticos deveria observar o cumprimento de alguns dos requisitos já preconizados para produtos biológicos presente no Decreto n° 20.397/194620. Assim, os antibióticos deveriam ser fabricados em locais especiais, além de atender, naturalmente, os demais requisitos de fabricação pertinente a qualquer outro produto farmacêutico.

A Portaria n° 16/199518, em seu Anexo I, que teve como base as diretrizes da OMS de 197519, também traz requisitos específicos relacionados à fabricação de antibióticos e manifesta preocupação com a possibilidade de contaminação cruzada desses produtos. No Anexo III (Roteiro de Inspeção) do mesmo marco regulatório, tal preocupação foi direcionada, especificamente, para penicilínicos e cefalosporínicos, deixando clara a necessidade da fabricação em áreas dedicadas para esses produtos.

Nos Roteiros de Inspeção das versões posteriores das BPF (RDC n° 134/200117 e RDC n° 210/200315), a necessidade expressa de fabricação em áreas segregadas que, até então, vigorava somente para penicílinicos e cefalosporínicos, foi ampliada para produtos biológicos (microrganismos vivos), outros antibióticos, hormônios, produtos altamente ativos (talidomida, prostaglandinas, imunossupressores e algumas substâncias psicoativas), substâncias citotóxicas e citostáticas. A RDC n° 210/200315 chegou, inclusive, a exigir a fabricação de penicilínicos e cefalosporínicos em prédios separados dos demais produtos.

A introdução de novas tecnologias traduzidas pelas novas classes de produtos motivou a regulação sanitária a atuar pelo “Princípio da Precaução”23, estabelecendo que a produção desses produtos deveria ser realizada em áreas segregadas. Somente com a assimilação do conhecimento técnico ao longo do tempo acerca dessas tecnologias, foi possível a reversão desse quadro de ações restritivas que nesse ponto envolvia um grande número de produtos com demanda de fabricação em área dedicada. Com a publicação da RDC nº 17/201011, as exigências de produção em área exclusiva foram racionalizadas. Nesse regulamento, a segregação da fabricação ficou restrita aos penicilínicos, cefalosporínicos, carbapenêmicos, além de substâncias de baixo índice terapêutico, substâncias citotóxicas e determinadas classes de hormônios.

A influência da inovação tecnológica nas BPF também se mostra presente em subtemas relacionados aos exercícios de validação, que passaram a estar presentes apenas com a publicação da RDC n° 134/200117. O surgimento de novas metodologias analíticas auxiliadas pelo emprego de novos instrumentais, como é o caso dos cromatógrafos líquidos de alta eficiência, introduzidos na rotina das análises farmacêuticas a partir da década de 1990, permitiu a adoção de práticas relacionadas à validação de método analítico, à validação de limpeza e à validação de processo. De igual maneira, o desenvolvimento tecnológico foi determinante na inserção de subtemas como sistemas computadorizados, qualificação de equipamentos e pesquisa & desenvolvimento.

Outros subtemas como isoladores (presente, a partir de 2001, na RDC n° 134/200117) e tecnologia de sopro/envase/selagem (presente na RDC n° 17/201011) ilustram de forma nítida e marcante a influência da inovação tecnológica no processo de fabricação de medicamentos. Agalloco et al. relataram, em 200224, o aumento significativo da utilização de tecnologias avançadas relacionadas ao envase asséptico de produtos estéreis, que compreendem isoladores, sistemas de barreira de acesso restrito (RABS – restricted access barrier systems) e equipamentos de sopro/envase/selagem (blow/fill/seal). Tais tecnologias constituem-se em sistemas fechados e estanques que minimizam a contaminação microbiana provocada, na maioria das vezes, pelo componente humano durante as etapas de enchimento e fechamento de injetáveis.

Por fim, subtemas como recebimento e armazenamento, reafirmam o papel das inovações tecnológicas na evolução do marco regulatório em questão. O surgimento da espectroscopia Near Infra-red (NIR) e dos softwares de gerenciamento de estoque e materiais permitiram, respectivamente, a viabilização da identificação de matéria-prima de volume a volume, principalmente em indústrias de Soluções Parenterais de Grande Volume (SPGV), e o armazenamento em sistema caótico, proporcionando a otimização da utilização de espaços nos almoxarifados e conferindo maior segurança ao gerenciamento de materiais. Avanço semelhante ocorreu em relação às linhas de embalagem que passaram a contar com uma vasta gama de sensores, com vistas a exercer controles eletrônicos e retificar possíveis erros humanos e mecânicos ao longo do processo de embalagem. Dessa forma, a partir da publicação da RDC n° 210/200315, há a introdução do subtema controles eletrônicos em linha, com a demanda de utilização dos aparatos tecnológicos nas linhas de embalagem (leitores de código de barras, fotografias, sensores de presença, entre outros) com vista a inspecionar 100% da produção, substituindo ou complementando o controle em processo.

Diante do exposto, torna-se útil a utilização do modelo proposto por Silva8 de caracterização de tecnologias (microtecnologias) de produto e processo na indústria de manufaturas, a fim de compreender a dinâmica de evolução das BPF. Ao considerar que a TP compreende o processo fabril propriamente dito de uma forma farmacêutica (por exemplo, injetáveis), uma vez que se distingue de qualquer outro processo por suas finalidades específicas de utilização, propriedade e características, verifica-se que o emprego de novas TC acarreta mudanças nas propriedades e características do processo e confere segurança ou outro atributo desejável, além de agregar valor ao processo e, consequentemente, ao produto. Além disso, observa-se que o surgimento das TC se dá com velocidade maior do que as TP. A Figura 1 ilustra essa aplicação metodológica no processo fabril de produtos injetáveis. Cada uma das TC apresentada é consequência do aprimoramento de outras TC até então empregadas na fabricação de uma mesma TP, no caso, o processo de fabricação de injetáveis. Assim, a revisão automática substitui a revisão manual sobre fundo preto/branco, a utilização de isoladores confere maior segurança que o envase asséptico sob fluxo laminar, a filtração esterilizante configura-se alternativa importante a esterilização por calor de medicamentos termolábeis etc.

Microtecnologia: Conjunto de tecnologias do processo fabril de medicamentos injetáveis.
Figura 1
Microtecnologia: Conjunto de tecnologias do processo fabril de medicamentos injetáveis.
Fonte: Adaptado de Silva8

As situações descritas até o momento revelam uma das determinantes que move as BPF, forçando a sua evolução e apontando algumas de suas características. No entanto, é importante observar que a influência das inovações tecnológicas se dá de forma antagônica dependendo da tecnologia em questão. Se por um lado, o surgimento de novas TC agrega mais segurança à fabricação de medicamentos e, por isso, faz com que as BPF se tornem mais permissivas. Por outro lado, quando se trata de novas TP envolvendo novos produtos (cefalosporínicos, carbapenêmicos, citotóxicos, produtos biológicos obtidos por técnicas de DNA recombinante etc.), ou mesmo novos processos (processo fabril de novas formas farmacêuticas ou novos sistemas terapêuticos), isso parece demandar um maior rigor e uma maior precaução por parte das BPF.

Os demais subtemas a serem destacados no estudo constituem-se em ferramentas da Garantia da Qualidade ou procedimentos/atividades afetos ao tema Qualidade, aplicados e aprimorados ao longo dos anos pela indústria farmacêutica. Nesses casos, a análise da presença desses subtemas deve ser amplificada e não se restringir ao universo farmacêutico, mas sim, à evolução dos conceitos e práticas da qualidade.

Com o surgimento de elementos característicos da chamada “Garantia da Qualidade”, um dos momentos da Era da Qualidade25, práticas orientadas para a melhoria contínua dos processos foram amplamente disseminadas entre os diversos setores produtivos da sociedade. Ao analisar determinados instrumentos da Qualidade como a ISO 900126, identifica-se rapidamente a presença de requisitos relacionados aos subtemas qualificação de fornecedores, autoinspeção, tratamento de desvios/CAPA, estrutura organizacional, documentação/gerenciamento de documentos e liberação de lote27. Tais práticas da Qualidade parecem ter sido assimiladas pela indústria farmacêutica na segunda metade do século a reboque do movimento da qualidade empreendido pelas empresas japonesas, a partir da década de 1960.

Assim, mais uma possível determinante das BPF se revela, mostrando que avanços relacionados ao tema Qualidade influenciam decisivamente a necessidade de atualização das BPF.

A evolução das demandas presentes nos marcos regulatórios analisados estão ilustradas na Figura 2, que mostra o dinamismo das BPF imposto pelo surgimento de novas tecnologias e pela evolução das práticas relacionadas à Qualidade. Excetuando-se a RDC n° 210/200315, que não apresentou nenhum aumento de subtemas em relação a sua versão anterior, em todos os demais casos houve um aumento do número de subtemas, denunciando o dinamismo das BPF.

Quantitativo de subtemas presentes nos marcos regulatórios relacionados as BPF.
Figura 2
Quantitativo de subtemas presentes nos marcos regulatórios relacionados as BPF.
Fonte: Elaboração própria

Com base na última versão das BPF publicada pela OMS em 20141, é de se esperar que a atualização da RDC n°17/201011 supere os 42 subtemas identificados hoje. Novas recomendações devem ser incorporadas, como a implantação de ferramentas de gerenciamento do risco, em que os riscos à qualidade do medicamento são avaliados, controlados, comunicados e revisados por um processo sistemático. Demandas acerca da necessidade da realização de revisão periódica de produto e a introdução do conceito de Unidade da Qualidade também devem estar contempladas na nova versão das BPF brasileira1. No entanto, considerando a velocidade de atualização das BPF no Brasil, é impossível prever quando a nova BPF será publicada e representará, de fato, a versão atualizada das BPF da OMS. O Quadro 2 mostra a cronologia de atualização das BPF brasileira em relação à OMS.

Quadro 2
Relação entre as BPF brasileira e as BPF da OMS.
BPF – BrasilBPF – OMSDefasagem das BPF (anos)
Brasil X OMS
Portaria n° 16Technical Report Series (TRS) n° 56720
19951975
RDC n° 134Technical Report Series (TRS) n° 8239
20011992
RDC n° 210Technical Report Series (TRS) n° 82311
20031992
RDC n° 17Technical Report Series (TRS) n° 9087
20102003
Nenhuma atualização até o momentoTechnical Report Series (TRS) n° 961-
2011
Nenhuma atualização até o momentoTechnical Report Series (TRS) n° 986-
2014

A defasagem das versões brasileira das BPF em relação às BPF da OMS mostra uma variação de 20 anos (Portaria N° 16/9518 X TRS 567/7519) há sete anos (RDC No 17/201010 X TRS 986/908/20031), o que denota certa morosidade no processo de regulamentação brasileiro, dificultando qualquer previsão sobre uma próxima atualização.

CONCLUSÕES

A divisão das BPF em componentes representados pelos temas e subtemas proporcionou a realização do trabalho proposto de uma forma mais lógica e sistemática, além de permitir uma melhor visualização da evolução dos requisitos de BPF ao longo dos cinco marcos regulatórios estudados.

Ainda que colocadas sob uma ótica secundária, em meio a graves tragédias que marcam a história da produção de medicamentos no Brasil e no mundo, o desenvolvimento tecnológico e a evolução dos conceitos e práticas relacionadas à Qualidade, assumem de forma direta e indireta, um papel protagonista na evolução das BPF. A análise realizada pautada pelo rigor científico não deixa dúvidas de que a inovação tecnológica, já discutida por vários autores, de fato influi diretamente nas BPF. O surgimento de alguns requisitos das BPF ilustram tal fato de forma bem clara. Já em relação à Qualidade, os seus conceitos e práticas vêm evoluindo ao longo dos séculos e, por isso, é natural que os seus avanços sejam incorporados à produção de bens e serviços, inclusive à fabricação de medicamentos. Este componente está intrinsecamente relacionado ao componente humano, já que muitas das suas práticas procuram minimizar ou eliminar os riscos de falhas em decorrência da interferência humana no processo fabril.

Espera-se que esse estudo abra espaço para que as próximas atualizações das BPF não sejam respostas a uma prática já estabelecida no mercado, fruto da incorporação de novos conhecimentos ou tecnologias, e sim, uma ação mais pró-ativa das autoridades sanitárias visando à qualidade do medicamento comercializado.

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16. World Health Organization – WHO. Good manufacturing practices for pharmaceutical products: main principles: annex 1. Geneva: World Health Organization; 1992. (Technical Report Series, Vol 823).

17. Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Resolução RDC N° 134, de 13 de julho de 2001. Determina a todos os estabelecimentos fabricantes de medicamentos, o cumprimento das diretrizes estabelecidas no Regulamento Técnico das Boas Práticas para a Fabricação de Medicamentos. Diário Oficial União. 16 jul 2001;Seção 1:32.

18. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância Sanitária. Portaria N° 16, de 6 de março de 1995. Determina a todos os estabelecimentos produtores de medicamentos, o cumprimento das diretrizes estabelecidas pelo Guia de Boas Práticas de Fabricação para Indústrias Farmacêuticas aprovado na 28ª Assembleia Mundial de Saúde em maio de 1975 (WHA 28.65). Diário Oficial União. 9 mar 1995;Seção 1:3176.

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Autor notes

* E-mail: marcelo.moraes@anvisa.gov.br

Declaração de interesses

Conflito de Interesse

Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.

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