RESUMO: O comércio informal de alimentos desempenha um grande papel socioeconômico, cultural e nutricional na vida dos consumidores. Entretanto, considera-se que os alimentos comercializados informalmente podem constituir um risco à saúde da população, pois podem ser facilmente contaminados devido às condições inadequadas do local de preparo, uma vez que tal comércio ocorre muitas vezes na rua e há falta de conhecimento de técnicas de manipulação higienicossanitária por parte dos comerciantes. Assim, o presente estudo teve por objetivo elaborar um roteiro de inspeção das boas práticas de manipulação e comercialização informal de alimentos. O roteiro estruturado foi fundamentado em legislações vigentes e na literatura científica da área. Foi elaborado, avaliado em campo e ajustado, com pós-avaliação por equipe composta por um fiscal da vigilância sanitária e os pesquisadores. O roteiro contou com 26 questões que versam sobre aspectos ambientais e estruturais do comércio, manipuladores de alimentos e qualidade e condições de exposição e de armazenamento dos alimentos prontos para consumo e das matérias-primas para seu preparo, assim como dos alimentos in natura . Este instrumento mostrou-se de fácil aplicação e adequado para avaliar a manipulação e comercialização de alimentos no setor informal, além disso, tem potencial para colaborar com o trabalho de agentes sanitários uma vez que possibilita o registro das principais irregularidades observadas nesse segmento, além de contribuir para uma uniformidade na inspeção.
Palavras chave: Alimentos de RuaAlimentos de Rua,Boas Práticas de Manipulação e Comercialização de AlimentosBoas Práticas de Manipulação e Comercialização de Alimentos,Lista de InspeçãoLista de Inspeção,Vigilância SanitáriaVigilância Sanitária.
ABSTRACT: The informal food trade plays a large social, economic, nutritional and cultural role in the lives of consumers. However, informally marketed food may be considered a health risk to the population because it can be easily contaminated due to inadequate conditions at the place of preparation, since they often occur on the street, and there is a lack of knowledge of handling, hygiene and sanitation techniques, by traders. Thus, the present study aimed to elaborate an itinerary of inspection of good practices of manipulation and informal food marketing. The structured roadmap was based on current legislation and bibliographical references of the area. It was prepared, evaluated in the field and adjusted, post-evaluation, by a team composed of a health surveillance supervisor and the researchers. The script had 26 questions on environmental and structural aspects of trade, food handlers and quality and conditions of exposure and storage of ready-to-eat foods and raw materials for their preparation, as well as fresh foods. This instrument was easy to apply and adequate to evaluate the commercialization. In addition, it has the potential to collaborate with the work of sanitary agents, since it makes it possible to register the main irregularities observed in this segment, besides contributing to a uniform inspection.
Keywords: Street Food, Good Practices in Food Handling and Marketing, Inspection List, Sanitary Surveillance.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Elaboração de roteiro para inspeção das boas práticas de manipulação e comercialização de alimentos no setor informal
Preparation of a roadmap for inspection of good practices in food handling and marketing in the informal sector
Recepção: 09 Outubro 2016
Aprovação: 31 Janeiro 2017
O comércio informal, em vias públicas ou outros locais similares, tem contribuído para suprir a demanda do mercado de alimentos1 . Os alimentos comercializados informalmente desempenham um importante papel socioeconômico, cultural e nutricional na vida das pessoas, uma vez que, além de se constituir um potencial de emprego, também colabora para o atendimento das necessidades alimentares e nutricionais dos consumidores e, tudo isso, a preços bastante acessíveis aos grupos de média e baixa renda2 , 3 , 4 .
Em algumas situações, a qualidade higienicossanitária desses alimentos comercializados informalmente é comprometida, o que pode levar à contaminação e, consequentemente, colocar em perigo a saúde dos consumidores. Inúmeros são os fatores que aumentam as chances destes alimentos serem contaminados por micro-organismos patogênicos, substâncias químicas ou objetos lesivos5 . Entre os fatores, destacam-se o desconhecimento sobre boas práticas de manipulação e comercialização de alimentos, por parte dos comerciantes; a exposição das matérias-primas à contaminação ambiente e o preparo/comercialização dos alimentos em locais com grande fluxo de pessoas, como pontos de ônibus, entradas de hospitais, escolas, praças, feiras e mercados. Além disso, muitos produtos são armazenados em recipientes plásticos, mantidos em temperatura ambiente e preparados em locais com infraestrutura inadequada, com ausência de água potável e rede de esgoto4 , 6 , 7 .
Dois importantes instrumentos para subsidiar e avaliar a qualidade higienicossanitária desde o preparo até a comercialização de alimentos são a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) no 216/20048 da Anvisa que dispõe sobre o Regulamento Técnico de Boas Práticas para Serviços de Alimentação e a RDC no 218/20059 da Anvisa que versa sobre o Regulamento técnico de Procedimentos Higienicossanitários para Manipulação de Alimentos e Bebidas Preparados com Vegetais. Embora possam auxiliar o trabalho dos agentes sanitários no que se referem às boas práticas de manipulação e comercialização, as duas resoluções não são específicas para o comércio informal de alimentos em vias públicas ou locais similares. Desta forma, em muitos casos, é necessário realizar adaptações das resoluções para utilizá-las na inspeção deste tipo de comércio de alimentos. Tal situação remete à importância e à necessidade de elaboração de um roteiro de inspeção das boas práticas de manipulação e comercialização informal de alimentos que seja compatível às peculiaridades e à diversidade deste tipo de comércio e que auxilie o agente sanitário durante sua inspeção.
Alguns roteiros para avaliar comércios informais de alimentos específicos, como carrinhos de cachorro-quente2 e de caldo de cana10 estão disponíveis na literatura científica. Entretanto, estes roteiros não se aplicam a outros segmentos do comércio informal, tais como barracas de pastéis, carnes in natura ou processadas (defumados), churrasco, condimentos, doces, lanches em geral, hortifrutigranjeiros, sucos e água de coco.
Diante da importância de instrumentos que subsidiem a ação de agentes sanitários e que permitam avaliar as boas práticas de manipulação e comercialização informal de alimentos em vias públicas ou locais similares, bem como a escassez de roteiros para avaliar diferentes comércios deste segmento, esse estudo objetivou elaborar um roteiro de inspeção das boas práticas de manipulação e comercialização informal de alimentos, de fácil aplicação e ampla abrangência.
Esta pesquisa foi realizada entre janeiro e junho de 2015, com abordagem descritiva e qualitativa. O roteiro estruturado de inspeção das boas práticas de manipulação e comercialização informal de alimentos foi elaborado considerando a legislação municipal11 e federal8 , 9 vigentes e as condições de funcionamento observadas no comércio informal de alimentos relatadas na literatura científica da área. A elaboração do roteiro foi realizada em quatro etapas, conforme descrito a seguir:
A partir das discussões realizadas durante o estudo das legislações vigentes e de literatura científica da área, tornou-se evidente a importância de se utilizar um instrumento para dar suporte à inspeção no comércio informal de alimentos em geral, realizado em vias públicas ou locais similares. Uma vez que já existe uma legislação que dispõe sobre a prestação de serviços de alimentação em eventos de massa (público superior à mil pessoas)15 , optou-se por elaborar um roteiro de inspeção específico para o comércio informal de alimentos realizado fora destes eventos e, em sua maioria, com público consumidor inferior à mil pessoas. As referências encontradas associadas às observações locais evidenciaram quais os itens de fato seriam importantes a serem contemplados no roteiro de inspeção, tendo em vista a diversidade desse tipo de comércio de alimentos e os principais riscos que a população consumidora está submetida.
O roteiro de inspeção das boas práticas de manipulação e comercialização informal de alimentos possuiu uma primeira parte de caracterização e identificação do comércio ambulante seguida de 26 questões que foram organizadas em quatro dimensões ( Figura ). As opções de resposta para a questão 1 foram: “não possui”, “possui, ligada à rede pública” e “possui, recipiente próprio”. Para as demais questões (de 2 a 25), as opções de resposta foram: “adequado”, “parcialmente adequado”, “inadequado” e “não se aplica”. Devido à abrangência do roteiro e à diversidade do comércio informal de alimentos, caberá ao agente sanitário selecionar durante a fiscalização os itens que se aplicam ao comércio.
A “dimensão I” do roteiro envolveu dez questões que se referiram aos aspectos ambientais e estruturais do comércio e abordaram as condições para higienização de mãos, de higiene e conservação da estrutura, de iluminação, das superfícies de manipulação de alimentos e de higiene e conservação de equipamentos e utensílios; recipiente de lixo; armazenamento de produtos saneantes.
Considerando que a higienização das mãos é fundamental para manutenção da qualidade higienicossanitária dos alimentos16 , 17 fez-se necessário estabelecer um item referente à disponibilidade de água, bem como a presença de papel toalha, sabão e/ou álcool gel para higienização das mãos. Sousa, Brum e Orlanda17 relataram a falta de condições apropriadas para a higiene das mãos dos manipuladores e evidenciaram que comumente os pesquisados utilizavam toalhas de tecido para secar as mãos e para limpeza das superfícies17 .
Em um estudo realizado por Resende et al.18 , foi constatado que as falhas nos procedimentos de higienização de equipamentos e utensílios, permitem que os resíduos aderidos a eles se transformem em potencial fonte de contaminação cruzada. Sousa, Brum e Orlanda17 encontraram na grande maioria dos comércios informais de alimentos pesquisados, a higienização de utensílios realizada em água presente em baldes em péssimas condições de higiene. Em outro estudo realizado por Franco e Ueno16 , a minoria dos pontos de venda informal de alimentos possuía lixeiras com tampa acionada por pedal. Além disso, alguns pontos de venda se situavam próximos a redes de esgoto, bueiros e lotes vagos. Estas características constituem fatores de risco de contaminação que contribuem para o aparecimento de pragas e vetores. Em função disso, as condições de higiene e conservação dos equipamentos, utensílios e lixeiras assim como a localização do comércio informal de alimentos foram considerados na elaboração do roteiro.
A “dimensão II” do roteiro abordou os aspectos relacionados ao manipulador de alimentos e constituiu-se de seis questões sobre vestimenta; apresentação pessoal; mãos e unhas; comportamentos durante a manipulação, manipulação de dinheiro e capacitação do manipulador. Neste caso, o manipulador foi considerado por desempenhar um papel importante na segurança higienicossanitária dos alimentos. De acordo com a legislação consultada8 , os manipuladores devem fazer uso de uniformes conservados, limpos e compatíveis com as atividades realizadas. Não devem fazer uso de adornos, devem manter os cabelos presos e protegidos, não possuir barba, manter as unhas curtas, limpas e sem esmalte e não apresentar comportamentos que possam resultar em contaminação do alimento durante o preparo. Além disso, devem ser capacitados quanto à higiene pessoal, manipulação adequada dos alimentos e doenças transmitidas por alimentos. Entretanto, nem sempre essas determinações legais são seguidas pelos manipuladores do comércio informal de alimentos. Estudos demonstraram que, comumente, eles não fazem uso de uniforme adequado e proteção de cabelo, utilizam adornos, unhas compridas e com esmalte e manuseiam dinheiro e alimentos sem nenhuma higienização entre as atividades14 , 17 , 19 , 20 , 21 . Os diferentes autores14 , 17 , 22 , 23 corroboram em apontar a capacitação como uma importante estratégia para sanar ou minimizar estas inadequações. Além disso, a RDC no 216/20048 determina que todo manipulador de alimentos deve ser supervisionado e capacitado periodicamente em higiene pessoal, manipulação higiênica dos alimentos e em doenças transmitidas por alimentos.
A “dimensão III” do roteiro englobou nove questões que se relacionaram à qualidade e condições de exposição e armazenamento dos alimentos prontos para consumo, levando em conta a temperatura de conservação, armazenamento, manipulação e/ou distribuição dos alimentos; embalagens descartáveis; condimentos oferecidos; qualidade do gelo e do óleo de fritura e grau de cozimento de alimentos prontos para consumo. Já a “dimensão IV” continha uma questão que abordou a qualidade e a procedência dos alimentos in natura ou da matéria-prima utilizada no preparo dos alimentos prontos para consumo.
No que tange à matéria-prima e à manipulação dos alimentos, a legislação8 , 9 , 11 determina que os estabelecimentos que produzem e comercializam alimentos devem dispor de equipamentos adequados para manutenção dos alimentos perecíveis, nas temperaturas exigidas para conservação a frio e a quente.
Vários são os alimentos comercializados no mercado informal, mas uma categoria deles necessita de especial atenção: as carnes in natura . Uma pesquisa realizada por Silva e Furtado22 , na qual se avaliou físico-quimicamente a carne de frango comercializada em feira livres, foi constatado que a carne apresentava sérias deficiências no seu armazenamento e conservação. Ainda no que se refere à comercialização informal de carnes in natura , outro estudo realizado por Lacerda et al.23 constatou total inadequação em todos os quesitos avaliados (recursos humanos, condições de ambientais, instalações e equipamentos).
Martins et al.2 , ao avaliarem as condições higienicossanitárias do comércio de alimentos de rua em Itumbiara/GO, observaram que 6,7% dos pontos avaliados armazenavam produtos perecíveis em caixa de papelão e 33,3% deles não possuíam recipientes adequados para a exposição dos produtos. Sousa, Brum e Orlanda17 encontraram apenas 25,0% de conformidade no quesito manipulação de alimentos por comerciantes informais de alimentos. De acordo com Oliveira et al.25 , a manipulação e a exposição imprópria dos alimentos aumentam o risco de ocorrência de doenças veiculadas por alimentos (DVA).
No que tange aos condimentos (molhos do tipo maionese, catchup , mostarda, azeite, entre outros), a literatura da área de alimentos16 , 25 recomenda que sejam fornecidos aos clientes em sachês individuais. Em estudo realizado por Carneiro et al.14 , observou-se que esta recomendação é praticada pela maioria dos comerciantes informais de alimentos pesquisados, na cidade de Belo Horizonte/MG, entretanto, segundo Pinho26 , o acondicionamento de molhos e condimentos, em bisnagas, ainda é comum no comércio informal de alimentos. Há ainda, comércios que oferecem molhos caseiros6 , 27 , o que aumenta o risco à saúde do consumidor devido à utilização de ovos crus e/ou à contaminação cruzada durante a manipulação.
A qualidade da matéria-prima utilizada na preparação desses alimentos comercializados informalmente e o tempo de espera dos produtos para venda são importantes para a oferta de um alimento seguro ao consumidor. Desta forma, é imprescindível que as matérias-primas estejam dentro do prazo de validade e de acordo com as características sensoriais de cada alimento25 .
No tocante ao tratamento térmico empregado na manipulação dos alimentos, a legislação8 determina que, no preparo do alimento, todas as partes dele atinjam a temperatura de no mínimo 70ºC e que, ao ser exposto à venda, devem ser mantidas à temperatura superior a 60ºC por até 6 horas ou a temperaturas inferiores a 5ºC por no máximo 5 dias. Determina também que o óleo e/ou gordura utilizados para fritura não constituam uma fonte de contaminação química do alimento preparado, devendo ser substituídos imediatamente, sempre que houver alteração evidente das características físico-químicas ou sensoriais, tais como aroma e sabor, e formação intensa de espuma e fumaça.
Sendo assim, no roteiro de inspeção das boas práticas de manipulação e comercialização informal de alimentos, buscou-se considerar questões relevantes no que se refere à manipulação de alimentos e sua exposição à venda.
O roteiro para inspeção do comércio informal de alimentos incluiu uma ampla variedade de questões que versam sobre aspectos ambientais e estruturais do comércio, do manipulador de alimentos e da qualidade, condições de exposição e de armazenamento dos alimentos. O instrumento mostrou-se de fácil aplicação e adequado para avaliar a manipulação e a comercialização de alimentos em diferentes tipos de comércios informais em vias públicas ou locais similares.
Além disso, o roteiro tem potencial para colaborar com o trabalho de fiscais sanitários, uma vez que possibilita o registro das principais irregularidades observadas nesse segmento, além de contribuir para uma uniformidade na inspeção.
Dessa forma, espera-se contribuir com o trabalho da vigilância sanitária no que tange à qualidade higienicossanitária dos alimentos comercializados informalmente, diminuindo, assim, o risco de ocorrência de DVA.
É necessário ponderar que a participação de apenas um agente fiscal na equipe de elaboração do roteiro pode limitar a percepção dos problemas na prática da inspeção fiscal do comércio informal de alimentos e isso pode ter resultado em um roteiro não tão ajustado à realidade e necessidade do município. Diante disso, sugere-se que o roteiro seja frequentemente avaliado visando adequá-lo às legislações vigentes, às características do comércio informal de alimentos, bem como às necessidades dos profissionais que irão aplicá-lo. Sugere-se ainda que outros estudos sejam desenvolvidos a fim de avaliar os resultados obtidos a partir do roteiro e promover a discussão dos mesmos junto aos membros da vigilância sanitária do município em estudo, para que cada vez mais as inspeções sejam coerentes tanto com a legislação e os referenciais bibliográficos da área, quanto com a conduta dos próprios agentes sanitários.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: angelica.cotta@ufjf.edu.br