EDITORIAL
Em que época vivemos! A ciência avança em grande velocidade. A tecnologia oferece novos materiais, produtos, serviços, processos. Alguns em fase ainda experimental, outros em pleno uso. Tecnologias poderosas, como a engenharia genética, que permitem manipular os códigos genéticos de qualquer espécie, são instrumentos capazes de intervir na natureza de forma dramática. Clonagens já são possíveis em grandes animais e, possivelmente, em humanos. Organismos geneticamente modificados são amplamente produzidos e constituem matéria-prima para o processamento de alimentos em larga escala. Materiais nanoparticulados apresentam propriedades físico-químicas completamente diferentes das dos materiais que lhes dão origem e também já são amplamente utilizados, principalmente nas áreas farmacêutica, cosmética e de alimentos. Células-tronco, com poder de diferenciação celular, trazem perspectivas de terapias inéditas para males que não contam com alternativas terapêuticas, mas apresentam, além de sérios problemas técnicos, questões éticas, morais e religiosas. A biotecnologia e o armazenamento e processamento de informações por meio eletrônico confirmam a nova onda tecnológica que provoca uma verdadeira revolução; mudam processos produtivos, profissões, organizações, instituições, sistemas de controle, gestão de empresas e do Estado. Muitos e grandes interesses estão em jogo.
Toda essa realidade reivindica sistemas bem estruturados e qualificados de regulação dos riscos por meio de instituições públicas. Ao contrário do que se pode pensar, é necessário um Estado forte, com políticas transparentes e voltadas à proteção da vida e do ambiente; que tenha como missão a proteção dos setores mais expostos a fatores de risco e os mais vulneráveis. Tais sistemas são incompatíveis com rupturas na ordem democrática e exigem o funcionamento pleno do Estado de Direito, no qual as normas e as ações de justiça não sejam manipuladas pelos grandes investidores.
Entretanto, em contraste com a dinamicidade dos avanços científicos e tecnológicos e a necessidade de aprimorar o conhecimento e o gerenciamento dos riscos já conhecidos, vivemos no Brasil mais uma ruptura da ordem democrática e a decadência do Estado de Direito. A hegemonia de uma narrativa que nomeia a crise econômica como o principal problema e a austeridade fiscal como único remédio elide a crise política e o questionamento do remédio adotado, o que significa que o Estado não pode gastar em políticas de amplo espectro social, como a saúde pública, a educação e a previdência social. Os recursos para pesquisa e inovação também são reduzidos drasticamente. Neste contexto, a estrutura de todo o setor de regulação sanitária também se fragiliza. Não há como acompanhar as demandas da vigilância sanitária e dar eficácia às medidas de proteção da saúde.
A história já nos ensinou que cada nova tecnologia traz novos riscos e, portanto, que devemos investir na produção de conhecimento dos efeitos nocivos da produção, uso ou consumo destes materiais, produtos, serviços e processos. Mas a dinâmica da sociedade capitalista não espera. O uso amplo destas novas tecnologias antecede o conhecimento mais esclarecido sobre os potenciais danos à saúde dos indivíduos, das coletividades e ao ambiente. E o desafio da avaliação e do gerenciamento dos riscos destas novas tecnologias segue em ritmo lento, ao sabor das instabilidades políticas e econômicas. Mesmo tecnologias já bastante conhecidas, como os agrotóxicos ou os medicamentos, ainda não têm controle sanitário razoável. Em geral, são abusivamente utilizadas, em especial no Brasil. Embora ainda não tenhamos avaliações mais precisas, sabemos que as consequências desse uso abusivo e inadequado são alarmantes. O controle sanitário destas tecnologias que já conhecemos ainda é um desafio.
Esta Revista continua perseverante em sua missão de identificar e divulgar conhecimentos sobre novas e velhas tecnologias e seus impactos sobre a saúde da coletividade. Este número contém artigos de revisão relacionados aos desafios da ciência regulatória – sistemas microfisiológicos; novas tecnologias – emprego de células-tronco; análise de riscos pelo método Hazop; e resíduos de antibióticos veterinários em produtos de origem animal. Tem artigos sobre controle de medicamentos – interações farmacológicas, resistência bacteriana e ambiente, riscos das terapias multidrogas para HIV/TB, qualidade da heparina; dilemas da organização do sistema nacional de vigilância sanitária – recursos humanos; reprocessamento de materiais em serviços de saúde; e metodologia de análise de alimentos – vitamina A.
Como entendemos que não há sentido na existência de tecnologias inovadoras com risco avaliado e regulado se a população não tiver acesso a elas, trazemos o debate a respeito da dificuldade dos sistemas de saúde e da imensa maioria da população mundial em ter acesso a medicamentos novos, às vezes, as únicas alternativas farmacológicas para algumas doenças.
Boa leitura.
Geraldo Lucchese Editor Científico.Declaração de interesses
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.