RESUMO: Introdução: Crianças geralmente rejeitam medicamentos não palatáveis. Formulações pediátricas contêm edulcorantes e flavorizantes para mascarar o sabor desagradável e evitar problemas na administração e adesão. A avaliação do sabor é parte essencial do desenvolvimento de medicamentos líquidos orais. Objetivo: Este trabalho visa contextualizar a palatabilidade, sua avaliação e influência na aceitação de medicamentos pediátricos. Método: Revisão narrativa da literatura através das bases eletrônicas PubMed e Google Acadêmico. Excluíram-se artigos relacionados ao desenvolvimento de formulações, uso de língua eletrônica e resumos sem acesso ao trabalho completo. Resultados: O sabor é considerado um dos principais determinantes para a adesão em pediatria. O acesso a formulações pediátricas palatáveis e seguras pode ter um efeito substancial sobre a morbidade infantil. Adultos e crianças apreciam gostos de formas diferentes, então testes sensoriais em crianças são o método mais confiável para a avaliação do sabor de formulações para esse público. Estudos da percepção sensorial e aceitação de medicamentos já utilizados pelas crianças podem ser eticamente viáveis, dadas as preocupações acerca de pesquisas com crianças. Conclusões: Análises sensoriais devem ser realizadas sempre que se deseje introduzir no mercado uma nova formulação, destinada a diferentes faixas etárias e contextos culturais, a fim de avaliar a aceitabilidade do produto.
Palavras-chave:Preparações FarmacêuticasPreparações Farmacêuticas,Adesão à MedicaçãoAdesão à Medicação,CriançaCriança,Análise SensorialAnálise Sensorial,Aceitabilidade do SaborAceitabilidade do Sabor.
ABSTRACT: Introduction: Children often reject non-palatable medications. Pediatric formulations contain sweeteners and flavorings to mask the unpleasant taste and avoid problems in administration and adherence. Taste assessment is an essential part of the development of oral liquid medicines. Objective: This paper aims to contextualize assessment and influence of palatability on the acceptance of pediatric medicines. Method: Narrative review of the literature through the electronic databases PubMed and Google Scholar. Articles related to the development of formulations, use of electronic tongue, and abstracts without access to the complete work were not considered. Results: Flavor is considered one of the main determinants for medications’ adhesion in pediatrics. Access to palatable and safe pediatric formulations can have a substantial effect on infant morbidity. Adults and children appreciate flavors in different ways, so sensory testing with children is the most reliable method regarding formulations for this population. Studies of sensory perception and acceptance of medications already used by children may be ethically feasible, given the concerns about research with children. Conclusions: Sensory analyzes should be carried out whenever there is a new formulation to be introduced on the market, addressed to different age brackets and cultural contexts, in order to assess the product’s acceptability.
Keywords: Pharmaceutical Preparations, Medication Adherence, Children, Sensory Analysis, Taste Acceptability.
ARTIGO
Estudos de palatabilidade de medicamentos: análise sensorial e aceitabilidade de formulações pediátricas
Palatability studies of oral formulations: an overview about drug acceptance in pediatrics
Recepção: 22 Julho 2017
Aprovação: 18 Janeiro 2018
Segundo a Organização Mundial de Saúde, um medicamento ideal para crianças é aquele apropriado para a idade, condições fisiológicas e peso corporal da criança, e que está disponível em uma forma farmacêutica oral flexível, ou seja, que possa ser ingerida facilmente inteira, dissolvida em líquido ou misturada à comida1, de maneira que se adapte às necessidades clínicas e capacidades ou preferências relativas às diferentes faixas etárias compreendidas entre a infância e a adolescência2,3. Deve também ser facilmente produzido, utilizando quantidades mínimas de excipientes não tóxicos, resultando em uma formulação estável, comercialmente viável, de baixo custo e com sabor agradável. Ademais, é necessário causar mínimo impacto sobre o estilo de vida da criança e ter dados científicos que respaldem o preparo e a determinação do prazo de validade, além de ter estabilidade química, física e microbiológica comprovadas4.
A administração de um medicamento pediátrico é otimizada quando a formulação não demanda tempo no preparo da dose e é de fácil deglutição pela criança, como é o caso da maioria das preparações líquidas4,5. Quando disponíveis, as formulações líquidas são quase sempre escolhidas para crianças6. Com o uso de dispositivos de medição adequados, como seringas para administração oral, por exemplo, é possível o ajuste de diferentes doses para administração em crianças com diferentes idades e pesos. Dessa forma, pode-se obter flexibilidade e precisão na medição da dose a partir de uma única formulação2,7.
O termo “palatabilidade” significa qualidade do que é palatável, ou seja, agradável ao paladar7,8. Substâncias de gosto amargo provocam determinados reflexos de rejeição inatos nos seres humanos9. Poucas horas após o nascimento, os bebês já percebem as diferenças de sabor das substâncias6. As papilas gustativas e receptores olfativos já estão bem desenvolvidos na infância10, havendo uma tendência natural nas crianças de preferir alimentos doces e rejeitar alimentos amargos. Ou seja, as crianças, de maneira geral, recusam qualquer coisa que para elas não tenha gosto ou cheiro bom, podendo ser extremamente difícil e desgastante administrar medicamentos a crianças, principalmente nos casos de doenças crônicas, quando precisam utilizar medicamentos diariamente por longos períodos. Isso explica, em parte, por que os pais muitas vezes utilizam açúcar ou mel para mascarar o sabor dos medicamentos e torná-los atrativos10.
Muitos fármacos têm intrinsicamente um gosto desagradável11. Um medicamento palatável é aquele em que os atributos sensoriais aversivos foram minimizados, mascarados ou eliminados na sua formulação12. O gosto amargo do princípio ativo é mais difícil de mascarar, pois deixa um gosto residual, aquele que permanece no paladar após a ingestão do medicamento13.
Um flavorizante é uma substância natural ou artificial que se adiciona à formulação para dar ou realçar o sabor e o aroma, já o edulcorante confere gosto doce à preparação14. O uso de edulcorantes e flavorizantes é de importância fundamental para melhorar a palatabilidade, pois geralmente ajudam a mascarar o sabor desagradável de um produto. Frequentemente, as propriedades químicas e o sabor de um fármaco ditam a escolha do flavorizante, de tal forma que seja eficaz em mascarar o sabor sem afetar negativamente a sua estabilidade ou biodisponibilidade15.
A Análise Sensorial é definida como uma disciplina usada para provocar, medir, analisar e interpretar as reações produzidas pelas características de produtos de consumo como alimentos, cosméticos e medicamentos, e o modo como elas são percebidas pelos órgãos da visão, olfato, gosto, tato e audição16. Princípios do planejamento experimental e da análise estatística são aplicados para preparar as provas (sensoriais) e analisar os resultados da utilização dos sentidos nas avaliações dos produtos17.
O presente artigo visa contextualizar a importância da palatabilidade e da realização de análise sensorial de formulações de medicamentos destinados à população pediátrica, tendo em vista a aceitação, facilidade de administração e adesão aos tratamentos.
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica do tipo revisão narrativa da literatura, apropriada para descrever e discutir o desenvolvimento ou o estado da arte de um determinado assunto, sob ponto de vista teórico ou contextual, sem, contudo, possuir sistematização que permita a reprodução do método. Consiste na busca de estudos na literatura publicada e análise crítica dos trabalhos encontrados18.
Os estudos foram buscados por meio das bases de dados eletrônicas PubMed (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed) e Google Acadêmico (https://scholar.google.com.br/), sem delimitação temporal, restringindo-se aos idiomas inglês, espanhol, francês e português.
Foram feitas buscas de outubro de 2016 até abril de 2017, utilizando-se as palavras-chave: Sensory analysis or Taste assessment or Palatability or Taste acceptability and Pediatric formulations or Children or Drug, em inglês e em português.
Em um primeiro momento, os textos foram selecionados pelos títulos e resumos. Foram lidos integralmente apenas os artigos que abordavam a palatabilidade de formulações medicamentosas. Excluíram-se os artigos relacionados exclusivamente ao desenvolvimento de formulações, os artigos relatando o uso de língua eletrônica e os artigos aos quais não se teve acesso ao texto completo. Atenção especial foi dada às publicações que abordavam medicamentos pediátricos e estudos brasileiros.
A partir das buscas foram encontradas 91 publicações, das quais 48 foram incluídos no presente artigo, nas línguas inglesa, portuguesa e francesa, sendo sete publicações realizados no Brasil. Por não haver delimitação temporal, foi possível resgatar estudos de 1984 a 2017, de modo a podermos perceber a discussão dessa problemática no decorrer das últimas três décadas.
A partir da análise dos achados, de acordo com as temáticas que abordavam predominantemente, as publicações foram agrupadas, podendo um artigo abordar mais de uma temática. Dessa forma, foram obtidas quatro categorias, que abrangem a relação da palatabilidade na seleção e adesão de medicamentos, a análise sensorial de medicamentos, como a indústria se relaciona com essa prática e como ela é realizada com crianças, correspondendo às subsecções a seguir.
Quando há alternativas similares de eficácia e segurança, outros fatores podem entrar em jogo para determinar qual o melhor medicamento em um dado contexto. Alguns desses fatores são a inclusão do medicamento em formulários terapêuticos, custo e fatores que influenciam na facilidade de administração, aceitação e adesão ao tratamento, como a duração do tratamento, o número de doses diárias necessárias e os atributos sensoriais do medicamento, tanto em crianças como em adultos19,20,21,22,23,24.
A adesão em crianças é influenciada por diversos fatores, como eventos adversos e toxicidade, esquema posológico, duração e frequência do tratamento, características individuais, emocionais e cognitivas, estabilidade familiar, motivação dos cuidadores, instruções verbais e escritas detalhadas, apoio social, custo dos medicamentos, qualidade do sistema de saúde e a própria doença25,26. Contudo, um sabor aceitável é especialmente crítico em pacientes pediátricos7,27. Para que as crianças cumpram com um esquema de tratamento, além do empenho dos cuidadores, é importante que o sabor do medicamento seja aceitável, diminuindo, assim, a luta que enfrentam no momento da administração13,28,29.
Lin et al.25 realizaram um trabalho em que médicos canadenses, que atendem crianças e adolescentes (de zero a 18 anos) com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), que responderam a um questionário com perguntas acerca da palatabilidade dos medicamentos que prescreviam, referindo-se a princípios ativos e não marca comercial. Todos os médicos responderam que as crianças detestavam ritonavir líquido. Apesar disso, houve uma tendência maior de prescrever ritonavir líquido como tratamento de primeira linha em comparação com outras formulações líquidas. Nelfinavir e amprenavir líquidos também foram classificados como não agradáveis para as crianças. O ritonavir líquido gerou a necessidade de mudança de tratamento devido à sua baixa palatabilidade em mais de 50% das vezes. Nesse estudo, o conhecimento e a percepção dos médicos sobre as preferências dos pacientes e a baixa palatabilidade de certos medicamentos raramente os impediu de prescrevê-los para as crianças, apesar de a palatabilidade ser um dos fatores de diferenciação que mais influenciam na adesão de crianças aos tratamentos medicamentosos, gerando melhores resultados e menos estresse familiar23,25.
Em outra investigação, Gee et al.13 reuniram estudantes de medicina e farmácia, residentes de medicina e pediatras para provarem 24 formulações de antimicrobianos e avaliaram as características sensoriais de cada um dos produtos. Na ocasião, foi discutido o sabor dos antibióticos e os efeitos que ele pode ter sobre o cumprimento dos tratamentos. Após um mês, foi realizada uma entrevista com os participantes sobre como essas atividades afetaram seus hábitos de prescrição e aconselhamento, e 42% dos respondentes disseram ter percebido que seus hábitos haviam mudado. Entre as mudanças relatadas estavam: consideração do sabor e da textura da formulação na hora de prescrever, não prescrever medicamentos de reconhecido gosto ruim e prescrição de comprimidos triturados ao invés da formulação líquida com sabor desagradável. Embora a prescrição de comprimidos triturados seja desaconselhada quando existe alternativa adequada, essa atitude demonstra que os prescritores consideraram a importância da palatabilidade para o sucesso do tratamento. No entanto, muitos entrevistados relataram que seus hábitos de prescrição não tinham mudado, pois não havia outras opções equivalentes para alguns medicamentos, como a clindamicina e o metronidazol.
Um dos fatores mais importantes a serem considerados na seleção de medicamentos para crianças é o quanto as doses podem ser facilmente engolidas e retidas. Medicamentos com gostos ruins associados a doses de grande volume geram recusa e até vômito no momento da medicação20. A palatabilidade mostrou ser um fator preponderante na preferência de medicamentos, seja no uso de antibióticos em serviços de base comunitária com atenção básica à saúde19,24, no tratamento de crises agudas de asma20,21, ou, principalmente, nos tratamentos crônicos, como, por exemplo, nas nefropatias22.
No estudo de Wollner et al.30, os dois fatores que mais aumentaram a adesão foram o menor número de doses diárias e a aceitação do sabor. O sabor de uma formulação pediátrica é considerado por vários autores um dos principais determinantes para a adesão em pediatria13,21,31,32,33,34,35,36,37,38,39,40. Estudos têm demonstrado que as estratégias utilizadas para melhorar a adesão do paciente, tais como folhetos informativos sobre os medicamentos, calendários de automonitorização e lembretes por telefone não têm tanta influência sobre o cumprimento dos tratamentos em crianças quanto o sabor da formulação13,41. Atenção especial deve ser dada aos casos em que os fármacos não estão disponíveis em formulações apropriadas para crianças, sendo necessário modificar a forma farmacêutica ou concentração do medicamento na formulação para adultos, o que, além de problemas de dosagem e estabilidade, gera dificuldades em relação à palatabilidade4,41.
A resistência a tomar formulações líquidas amargas ou de sabor ruim pode motivar os pais a tentar, como alternativa, medicamentos em outras formas farmacêuticas, como, por exemplo, em comprimidos, que são muitas vezes triturados e misturados com alimentos6. Recorrer à combinação com alimentos, como suco de frutas e iogurtes, embora possa mascarar o gosto do medicamento, pode ter um efeito negativo sobre a biodisponibilidade, seja por interação medicamento-alimento ou por dosagens inexatas42.
A literatura relata dificuldades de administração de medicamentos em crianças devido ao sabor. McCrindle et al.43 relataram que uma das primeiras formulações disponíveis de resinas sequestradoras de ácidos biliares para tratamento de hipercolesterolemia era em forma de um pó para ser misturado com um volume de líquido da escolha do paciente. A palatabilidade dessa preparação não era boa, de modo que pacientes adultos e pediátricos tinham problemas para cumprir o esquema posológico, levando à falha na adesão ao tratamento. Posteriormente, foram desenvolvidos comprimidos desses medicamentos para superar tais problemas. Contudo, os comprimidos eram relativamente grandes e pacientes pediátricos, com dificuldades para engolir esses comprimidos, continuavam com problemas de adesão ao tratamento.
Lucas-Bouwman et al.44, em uma comparação do tratamento da asma aguda em crianças com prednisolona em duas formulações (solução oral ou comprimidos triturados), constataram que a solução oral foi melhor tolerada. Vômitos foram observados em 23% dos pacientes que utilizavam os comprimidos, e em nenhum dos pacientes utilizando a solução, provavelmente porque a solução apresenta excipientes como edulcorantes e flavorizantes que ajudam a mascarar o gosto do fármaco. Antes da disponibilidade de soluções orais de corticosteroides, os médicos recorriam aos comprimidos triturados, que muitas vezes não eram tolerados pelas crianças, o que os deixava com apenas uma alternativa, a administração parenteral do medicamento para tratamento da asma aguda grave45. Gries et al.45, em uma avaliação dos tratamentos de crianças com exacerbações leves a moderadas da asma com dose única de acetato de dexametasona via intramuscular ou com cinco dias com prednisona oral (suspensão ou comprimidos, conforme escolha do paciente), relataram que muitos pais preferiram a via intramuscular devido à luta que enfrentavam para administrar o medicamento oral durante cinco dias, apesar de crianças muitas vezes terem aversão a injeções.
Reconhecer a importância da palatabilidade no momento da prescrição faz parte da atenção centrada no paciente e pode melhorar a adesão, influenciando a evolução clínica27. Segundo Gee e Hagemann13, é importante que os profissionais de saúde tenham conhecimento sobre as questões relacionadas com a adesão à terapia medicamentosa em pacientes pediátricos, das quais a palatabilidade desempenha um papel importante.
A palatabilidade de medicamentos é assunto de muitos artigos publicados em periódicos científicos ao redor do mundo, abordados a seguir.
Em 1984, quando poucos estudos nessa área haviam sido publicados, Sjövall et al.35 lançaram uma investigação na qual comparou-se dois métodos de avaliação da preferência em relação ao gosto de três formulações de bacampicilina em pacientes pediátricos. Observou-se que a utilização de escala hedônica foi o método mais adequado. Uhari, Eskelinen e Jokisalo39 pesquisaram a aceitação de pacientes pediátricos a pares de formulações de fenoximetilpenicilina e eritromicina farmacologicamente idênticas, diferindo apenas quanto ao sabor e o fabricante, porém sem citar marcas. Utilizou-se o tempo necessário para a administração como critério para a avaliação da aceitação. Observou-se que uma das formulações de fenoximetilpenicilina tendeu a ser mais aceita, porém sem diferença significativa entre as duas, e que uma das formulações de eritromicina foi significativamente mais aceita que a outra.
Avaliações dos atributos sensoriais de medicamentos corticosteroides têm sido publicadas com diferentes populações de participantes. Gerson et al.46 avaliaram três corticosteroides nasais em adultos. Diversos atributos sensoriais relacionados ao tipo de formulações em questão, spray nasal, foram avaliados, como odor, gosto, umidade, irritação e conforto, mostrando que, nos atributos odor e sabor, a triancinolona foi preferida sobre beclometasona e fluticasona. O estudo de Meltzer et al.23, realizado por pesquisadores de uma indústria farmacêutica, analisou a preferência de pacientes adultos entre sprays nasais de fluticasona propionato e o mais recente, fluticasona furoato, produzidos pela indústria. Foram avaliados atributos sensoriais como odor, gosto, gosto residual, irritação, entre outros, além da preferência geral entre os dois medicamentos. O medicamento mais novo foi preferido.
Estudos que comparam medicamentos genéricos com os medicamentos de referência também têm sido publicados. Uma vez que os testes exigidos para que um medicamento genérico seja registrado e lançado no mercado não incluem aspectos sensoriais, a palatabilidade de um medicamento genérico pode ser bastante diferente do medicamento original, afetando drasticamente a adesão ao tratamento27,47,48. Samulak, El-Chaar e Rubin49 compararam o sabor de formulações pediátricas orais de antibióticos de referência com os seus genéricos em voluntários adultos. Para dois dos medicamentos estudados, as formulações de referência foram significativamente classificadas com melhor sabor do que os outros produtos testados, todavia, para outros três medicamentos, pelo menos uma apresentação genérica não apresentou diferença significativa no sabor com relação ao seu produto de referência.
Estudo semelhante foi realizado por El-Chaar et al.50, com crianças de 3 a 14 anos em tratamento com os antibióticos, concluindo que as apresentações de referência não são necessariamente melhores do que os seus equivalentes genéricos. Apesar da preferência pelo sabor da apresentação de referência de trimetoprim-sulfametoxazol, as crianças neste estudo não fizeram distinção em relação à preferência dos demais medicamentos comparando-se apresentações de referência e seus genéricos. Ishizaka et al.48, no Japão, compararam o sabor, a granulosidade e a uniformidade da dose de 11 formulações genéricas de claritromicina com a de referência, e encontraram variações consideráveis na granulosidade entre vários produtos. Na França, em 2009, Cohen et al.47 observaram crianças em uso de formulações líquidas de antibióticos, genéricos e de referência, em casa, avaliando através dos pais, entre outros aspectos do tratamento, a aceitação e a palatabilidade. Foram encontradas diferenças na palatabilidade entre formulações genéricas e de referência de amoxicilina + clavulanato, mas não em formulações de amoxicilina somente. Os autores acreditam que essa diferença se dá devido ao gosto ruim intrínseco do clavulanato, que torna o gosto do medicamento difícil de ser melhorado47.
Portanto, se o medicamento genérico for mais palatável, a sua escolha se torna ainda mais vantajosa. Se a adesão é significativamente maior com o medicamento de referência do que com formulações genéricas, a prescrição de produtos de referência mais caros pode ser justificada. No entanto, se a adesão é semelhante, o produto menos dispendioso deve ser utilizado49,51.
Em 2013, foi publicada uma revisão sistemática da literatura52 que avaliou as ferramentas utilizadas no estudo da palatabilidade e facilidade de deglutição em ensaios clínicos com formulações pediátricas orais durante os anos de 2008 a 2013, na qual foram incluídos 27 artigos na análise final. Os autores destacaram as múltiplas abordagens que são utilizadas para avaliar palatabilidade em populações pediátricas. Concluíram que a palatabilidade de formulações é frequentemente avaliada em ensaios clínicos de formulações pediátricas através da utilização de escalas visuais, sem que haja uma metodologia estatística padrão para analisar os resultados. Contudo, essas escalas têm sido amplamente aceitas pela comunidade científica. Um exemplo de escala visual é a escala hedônica facial, adequada a crianças, na qual o provador expressa sua aceitação do produto seguindo categorias previamente estabelecidas que variam gradativamente, descritas por uma série de desenhos de expressões faciais ordenadas em uma sequência que mostra desde um sorriso, indicando a aprovação do produto, até uma face triste, que indica a reprovação do produto. Outro exemplo é a escala visual analógica, que consiste em uma linha contínua, ancorada nos extremos por termos que correspondem à intensidade baixa de algum atributo à esquerda, e à direita por termos que correspondem a intensidade alta do mesmo atributo, na qual o provador marca sua percepção em qualquer ponto da linha. Apesar da importância relatada da palatabilidade para a adesão terapêutica, nesse estudo foram identificadas evidências limitadas sobre a correlação entre ambas em pacientes pediátricos52.
Em 2017, outra revisão de literatura foi publicada51, dessa vez voltada para a aceitabilidade dos medicamentos pediátricos em diversas formas farmacêuticas, incluindo comprimidos, comprimidos dispersíveis e mastigáveis, minicomprimidos, cápsulas, minicápsulas, líquidos orais, pastilhas, entre outras. Foram identificadas 19 publicações focando especificamente a avaliação da palatabilidade de formulações orais para criança. Esse estudo destaca que mais informações são necessárias com respeito à influência de atributos sensoriais além do sabor (forma, tamanho e volume) na palatabilidade de formas farmacêuticas diferentes de líquidos orais (como minicomprimidos e pastilhas)51.
No Brasil, poucos foram os estudos encontrados na literatura relatando análise sensorial de produtos farmacêuticos, associados ao desenvolvimento de novas formulações. Fregonezi-Nery et al.53 avaliaram três formulações de albendazol sujeitas a diferentes condições de armazenamento com 24 provadores treinados e encontraram diferenças entre amostras controle e de armazenamento, concluindo que a análise sensorial é uma importante ferramenta no controle de qualidade de um produto farmacêutico. No estudo de Leite54 foram desenvolvidas quatro formulações de enxaguatório bucal com microemulsões contendo extrato e óleo essencial de Baccharis dracunculifolia, que, entre outras análises físico-químicas, foram submetidas à análise sensorial por teste de preferência e uma delas foi preferida entre as demais. Batista e Siqueira55 avaliaram a eficácia de associações de flavorizantes e edulcorantes em mascarar o sabor amargo da ranitidina em 20 usuários voluntários. Verificou-se que, em formulações com sacarose, o flavorizante que apresentou melhores resultados foi framboesa, mas frutose em associação com sacarina é mais eficaz para mascarar o sabor amargo da ranitidina, independentemente do flavorizante utilizado. Goncalves, Srebernich e Souza, em 201156, desenvolveram e avaliaram uma formulação dermocosmética (uso tópico) à base de extrato de própolis quanto à estabilidade e às características sensoriais. Nesse estudo, conclui-se que a associação de extrato de própolis e acetato de tocoferila mostrou ser promissora, devido à preferência dos provadores e ao estudo de estabilidade.
Em 2012, Isaac et al.57 apresentaram uma revisão crítica sobre a análise sensorial em cosméticos, bem como resultados de testes sensoriais obtidos pelo grupo de pesquisa, na qual consideraram que a análise sensorial é uma ferramenta útil no sentido de se obter produtos não só seguros e eficazes, mas também aceitáveis pelos consumidores.
Fonseca et al.58, no desenvolvimento de formulação de praziquantel nanoencapsulado, realizaram análise sensorial com equipe treinada em dois momentos: imediatamente após a reconstituição e após 10 min de reconstituição. Na avaliação sensorial não foi percebido o sabor amargo do fármaco imediatamente após a reconstituição, devido ao encapsulamento e ao alto teor de edulcorantes. No entanto, o sabor amargo foi percebido 10 min após a dispersão do sólido liofilizado em água, o que indica a liberação rápida do medicamento. Os autores ponderaram a possibilidade de prolongar o tempo de liberação para evitar o desenvolvimento de sabor amargo na boca após a exposição ao medicamento.
Em 2016, Medeiros et al.59analisaram a aceitação de formulações extemporâneas de captopril e furosemida, flavorizadas em três sabores e edulcoradas, em crianças cardiopatas usuárias desses medicamentos. A avaliação foi realizada por duas abordagens: através das respostas dadas pelos cuidadores e da observação direta dos pesquisadores às reações das crianças, com o uso de uma escala hedônica. As suspensões nos sabores neutro e morango foram consideradas aceitas para ambos os medicamentos. Os resultados obtidos a partir das duas abordagens foram comparados por meio do coeficiente linear de Pearson, que mostrou correlação moderada entre os dois métodos para formulações de captopril, mas não mostrou correlação nos resultados das formulações de furosemida. Os resultados relativos ao sabor neutro mostraram que a adição de flavorizantes não influenciou na aceitação das suspensões, podendo ser evitada, nesse caso, uma vantagem em termos de segurança para bebês e neonatos. A avaliação através do responsável, com escala hedônica foi considerada o método mais discriminativo da aceitação em crianças pequenas.
O desenvolvimento de formulações pediátricas palatáveis é um desafio considerável que a indústria farmacêutica ainda enfrenta para que preparações adequadas estejam disponíveis para todas as faixas etárias e acessíveis a toda a população3. As indústrias farmacêuticas investem tempo e recursos adotando várias técnicas de mascaramento de sabor para desenvolver produtos palatáveis60. Para se alcançar esse objetivo, é essencial avaliar o sabor da formulação no processo de desenvolvimento de uma nova formulação oral34. No entanto, a análise sensorial de fármacos em fases precoces de seus desenvolvimentos é muito complexa, pois novas moléculas não podem ser experimentadas por seres humanos, devido à falta de dados toxicológicos adequados.
Informações sobre o sabor do produto podem surgir a partir de vários métodos, como a língua eletrônica, os modelos baseados em células ou animais e os ensaios com painel humano37,60. Com o avanço das indústrias farmacêuticas e de alimentos nas técnicas de modificação do sabor, a importância da avaliação sensorial está aumentando continuamente31. É importante avaliar e classificar o sabor dos produtos de uma maneira cientificamente confiável35. Certas técnicas de predição do gosto in vitro e em in vivo, como a tecnologia da língua eletrônica e modelos animais, mostram avanços, contudo, precisam ser eficientes e de baixo custo. Anand et al., em 200760, descreveram o status da época em relação aos métodos in vitro e in vivo para medir as características sensoriais de produtos farmacêuticos. Os autores afirmaram que a análise sensorial em humanos constitui a técnica mais utilizada para avaliar o sabor de medicamentos ou formulações em desenvolvimento, mas seu uso é limitado devido à subjetividade dos provadores, toxicidade potencial dos novos fármacos e questões éticas relacionadas ao recrutamento de provadores, principalmente crianças, uma tarefa particularmente difícil quando se trabalha com fármacos60. Apesar disso, testes com consumidores são realizados rotineiramente com crianças, contudo os resultados desses estudos geralmente permanecem como propriedade das empresas que os encomendam61.
Segundo Anand et al.60, as abordagens in vitro emergentes resultariam em uma diminuição da dependência dos testes com painéis humanos. Contudo, em artigo publicado posteriormente, em 200831, os mesmos autores forneceram uma visão geral sobre realização de ensaios de avaliação sensorial em voluntários humanos, onde comentaram que, apesar das novas abordagens in vitro, ensaios de avaliação sensorial são e vão continuar sendo a abordagem padrão, preferível e mais confiável para a avaliação do sabor, uma vez que as novas abordagens in vitro ainda são dependentes dos ensaios com humanos para fins de validação. As abordagens in vitro surgiram como métodos auxiliares, mas não podem substituir ensaios com painel de provadores31.
Em artigo publicado em 201362, revisando uma tecnologia de língua eletrônica e suas aplicações em alimentos, bebidas e produtos farmacêuticos, considerou-se que a avaliação da totalidade de gostos e sensações percebidas pelos humanos só é possível com a combinação de diferentes técnicas. Além disso, os seres humanos têm outras percepções como o odor, a textura, a aparência visual e os fatores baseados em conhecimentos culturais, como preferência, experiência e memórias, não captadas por técnicas in vitro62.
Na Europa, a agência reguladora European Medicines Agency (EMEA) estabelece diretrizes para a execução de planos de investigação e desenvolvimento clínico com o objetivo de registrar medicamentos na faixa etária pediátrica, as quais realçam a importância de se ultrapassar os desafios relacionados à palatabilidade dos medicamentos63,64. Para a elaboração do plano, o requerente do registro do medicamento deve fornecer uma visão geral dos estudos realizados ou medidas previstas, incluindo os estudos de palatabilidade e melhoria do gosto da formulação27. Como vimos até aqui, esses estudos têm particular relevância, tornando-se parte intrínseca e essencial do desenvolvimento e controle de qualidade do medicamento oral que é destinado a populações com necessidades especiais (pediatria, geriatria, pacientes que sofrem de transtornos mentais e pessoas com distúrbios da deglutição)7,31,37. Para além dos benefícios para os pacientes, neste caso, crianças, o mascaramento do sabor indesejado proporciona ganhos comerciais para os laboratórios, devido ao maior sucesso comercial e maior demanda de produtos, à proteção de patentes para novas formulações de sabor mascarado e também, em alguns casos, a direitos de exclusividade de comercialização estendidos52.
Resultados de avaliações sensoriais de formulações pediátricas em voluntários adultos sadios nem sempre são válidos para outras populações, particularmente crianças35. Adultos e crianças apresentam diferenças na farmacocinética e na farmacodinâmica de medicamentos65, mas existe outra diferença importante que muitas vezes é esquecida: as crianças preferem significativamente maiores concentrações de edulcorantes, quando comparados com os adultos6,66. Além disso, algumas crianças são mais sensíveis ao gosto amargo do que os adultos, fazendo com que o gosto ruim de alguns medicamentos seja mais problemático para elas6.
As indústrias farmacêuticas procuram anunciar que o sabor de seus medicamentos é mais bem-aceito pelos pacientes pediátricos do que o dos seus concorrentes, mesmo quando as evidências de tais afirmações são frequentemente baseadas em estudos com um pequeno número de provadores adultos, não incluindo crianças nos estudos32,39.
Assim, uma vez que um adulto e uma criança podem apreciar os gostos de forma muito diferente, a aceitabilidade do medicamento pediátrico deve ser avaliada em crianças7,10,19,32,39, ou seja, os testes sensoriais em crianças são considerados como o método mais confiável para a previsão de como o sabor será aceito, uma vez que as crianças são a população alvo da maioria das formulações de sabor mascarado voltadas para essa população. Os métodos in vitro ainda não conseguem discriminar ou levar em consideração as diferenças nas preferências entre adultos e crianças31,34,37.
Matsui et al.34 avaliaram a palatabilidade de quatro suspensões de antibióticos em crianças e adultos (citando marcas) e os resultados foram comparados. Embora tenha havido semelhanças nas respostas sobre o sabor de três dos antibióticos e na seleção do antibiótico que apresentava melhor sabor (azitromicina), houve diferença significativa na proporção de crianças e adultos que escolheram cada um dos antibióticos como sendo o de pior sabor. As crianças tiveram tendência a não gostar da claritromicina e os adultos, a não gostar de eritromicina-sulfisoxazol. À vista disso, os autores concluem que a avaliação da palatabilidade de medicamentos destinados à utilização em pediatria deve ser realizada em crianças34.
Além das divergências entre adultos e crianças, na população pediátrica, as preferências também podem diferir entre os subgrupos etários, bem como entre as diferentes regiões geográficas e culturais35,67. Recém-nascidos e crianças mais novas tendem a preferir gostos e sabores que são para elas familiares66. A diversidade étnica e cultural deve ser levada em consideração quando se determina o sabor favorável para um país ou comunidade específica10. O que é aceito como palatável é afetado pelos costumes e sabores de alimentos típicos em cada país40. Além disso, a percepção do gosto dos medicamentos provavelmente difere entre crianças saudáveis e doentes64.
Contudo, questões éticas com relação à realização de estudos com medicamentos em crianças saudáveis podem ser levantadas. Mesmo se tratando de fármacos conhecidos por terem um bom perfil de segurança e por evitarem que as crianças engulam os medicamentos ao provarem, pesquisas com crianças são sempre um assunto delicado e alvo de preocupações, pois se argumenta que crianças saudáveis também são vulneráveis, como as crianças com alguma doença ou condição especial, uma vez que não têm idade suficiente e competência para que consintam de maneira livre e autônoma64. Seria extremamente útil que estudos de palatabilidade com adultos pudessem ser validados de maneira que fosse possível transferir os resultados para a população pediátrica, o que simultaneamente os tornaria aceitáveis pelas autoridades reguladoras e comitês de ética. Uma maneira de conseguir essa avaliação poderia ser identificar adultos com um paladar particular, mais parecido com o das crianças. Métodos para a identificação de provadores com capacidades sensoriais especiais são uma abordagem comumente usada na indústria alimentar e cosmética64.
Avaliações da percepção sensorial e da aceitação de medicamentos já utilizados por crianças que possuam condições de saúde que requerem a sua prescrição são encontradas na literatura, como é o caso de El-Chaar et al.50, Cohen et al.47, Martínez et al.67, que avaliaram a aceitação de recém-nascidos relativamente a duas formulações de vitamina D3. De forma semelhante a esse estudo, em 2011, Lava et al.68 compararam a aceitação de duas formulações de vitamina D3, administradas a bebês para as quais as mães classificaram a reação facial, método análogo ao utilizado por Medeiros et al.59. Uma vez que a população alvo dos tratamentos e a população estudada desses estudos coincidem, os problemas com relação a questões éticas podem ser superados.
O desenvolvimento de novas formulações de medicamentos voltadas para crianças deve sempre considerar a palatabilidade, de forma a evitar problemas futuros na sua administração e adesão à terapêutica. Formulações do mesmo fármaco, mas de diferentes fabricantes, com distintas composições, podem ter diferenças na aceitabilidade devido à palatabilidade. Por outro lado, a mesma formulação em diferentes contextos culturais pode ser percebida distintamente. Portanto, idealmente, análises sensoriais devem ser realizadas sempre que se introduza uma nova formulação de medicamento no mercado destinada a diferentes faixas etárias, populações e contextos culturais, a fim de avaliar a aceitabilidade do produto. Uma vez que um adulto e uma criança podem apreciar os gostos de forma muito diferente, em tese, a aceitabilidade do medicamento pediátrico deve ser avaliada em crianças.
Garantir o acesso de formulações pediátricas palatáveis, seguras e adequadas à população pediátrica pode ter um efeito substancial sobre a morbidade infantil, uma vez que contribuem para o uso correto e racional de medicamentos em pediatria.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.