ARTIGO
Recepção: 09 Novembro 2019
Aprovação: 06 Maio 2019
DOI: https://doi.org/10.22239/2317-269X.01231
RESUMO
Introdução: A avaliação clínica de dispositivos médicos é um componente importante na avaliação de novas tecnologias para fins de registro sanitário no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e representa uma ferramenta importante para a tomada de decisão regulatória para verificar a conformidade com as normativas que estabelecem a necessidade de comprovação de segurança e eficácia de dispositivos médicos para efetuar o registro sanitário.
Objetivo: Avaliar e discutir as razões para o indeferimento de solicitações de registro motivadas por deficiências relacionadas à avaliação clínica dos dispositivos médicos de alto risco.
Método: Foram avaliados no sistema eletrônico Datavisa, sistema interno para armazenamento e análise de dados de processos submetidos à Anvisa, todos os indeferimentos ocorridos em 2017 no âmbito da Gerência-Geral de Tecnologia de Produtos para Saúde (GGTPS), que tiveram como causa aspectos relativos à avaliação clínica de dispositivos médicos de classe de risco III e IV, tanto na causa original do indeferimento, quanto relacionadas ao não cumprimento dos prazos legalmente estabelecidos para o cumprimento das exigências quando pelo menos uma das exigências envolvia a avaliação clínica.
Resultados: Foram recolhidos dados dos pareceres construídos pelos especialistas da agência para construir o delineamento das principais características relacionadas aos indeferimentos em relação à avaliação clínica oferecida nos dossiês de registro pelas empresas responsáveis pela submissão. As avaliações foram discriminadas de acordo com a área responsável pelo registro, envolvendo materiais implantáveis em ortopedia submetidos à análise da Coordenação de Materiais Implantáveis em Ortopedia (CMIOR), materiais de uso em saúde submetidos à análise da Gerência de Tecnologia de Materiais de Uso em Saúde (Gemat) e equipamentos submetidos à análise da Gerência de Tecnologia em Equipamentos (GQUIP) da Anvisa.
Conclusões: Considerando a amostra de indeferimentos de registro sanitário estudada, os achados sugerem uma heterogeneidade tanto na qualidade quanto no formato dos dados fornecidos em avaliações clínicas pelas empresas que submetem registros sanitários de dispositivos médicos, especialmente relacionado à natureza metodológica dos ensaios clínicos apresentados, deficiências no gerenciamento de risco e demais requisitos regulatórios relacionados ao cenário da avaliação clínica de dispositivos médicos e conformidade com os requisitos mínimos do projeto.
PALAVRAS-CHAVE: Dispositivos Médicos, Avaliação Clínica, Registro Sanitário, Anvisa, Ensaios Clínicos.
ABSTRACT
Introduction: The clinical evaluation of medical devices is an important component in the evaluation of new technologies for sanitary registration purposes within the Brazilian Health Regulatory Agency and represents an important tool for regulatory decision-making to verify compliance with regulations that establish the need for proof of safety and efficacy of medical devices to perform sanitary registration.
Objective: To evaluate and discuss the reasons for the rejection of registration requests motivated by deficiencies related to the clinical evaluation of high-risk medical devices.
Methods: In the electronic system Datavisa, internal system for storage and analysis of data submitted to Anvisa, all the rejections occurred in 2017 within the scope of the General Office of Medical Devices (GGTPS) concerning the clinical evaluation of medical devices of risk class III and IV, both in the original cause of the refusal and related to the non-compliance with the legally established deadlines for meeting the requirements when at least one of the requirements involved clinical evaluation, were evaluated.
Results: Data were collected from the expert opinion of the agency to construct the outline of the main characteristics related to the rejections in relation to the clinical evaluation offered in the registration dossiers by the companies responsible for the submission. The evaluations were divided according to the area responsible for the registry, involving implantable orthopedic materials submitted to the analysis of the Coordination of Implantable Materials in Orthopedics (CMIOR), materials for health use submitted to the analysis of the Office of Materials for Health Use (Gemat) and equipment submitted to the analysis of the Office of Equipment Technology (GQUIP) of Anvisa.
Conclusions: Considering the sample of rejected health records, the findings suggest a heterogeneity in both the quality and the format of the data provided in clinical evaluations by companies submitting applications of medical devices, especially related to the methodological nature of the clinical trials presented, deficiencies in risk management, and other regulatory requirements connected to the clinical assessment scenario of medical devices and compliance with minimum design requirements.
KEYWORDS: Medical Devices, Clinical Evaluation, Sanitary Registration, Anvisa, Clinical Trials.
INTRODUÇÃO
Para utilizar dispositivos médicos (DM) de forma racional, os profissionais de saúde devem fundamentar suas escolhas em uma avaliação objetiva de segurança e eficácia clínica. As evidências apresentadas pelos fabricantes ao buscar a aprovação de seus dispositivos de alto risco devem estar disponíveis publicamente, incluindo dados sobre o desempenho e estudos clínicos em nível de pré-mercado 1. Aos médicos, o acesso a essas informações complementa a literatura científica revisada por pares e pode ser essencial para comparar dispositivos alternativos. O desenvolvimento de novos DM é um processo dinâmico, rápido e continuamente incremental, sendo esses dispositivos utilizados em todas as facetas da assistência médica, melhorando a prevenção, o diagnóstico e o tratamento de doenças, bem como a reabilitação do paciente, no entanto, esses produtos podem estar associados a potenciais efeitos adversos e à deficiência de dados clínicos de alta qualidade para demonstrar eficácia 2. Para ser lançado no mercado, um novo DM precisa comprovar sua segurança e atingir o desempenho pretendido pelo fabricante. De um modo distinto dos medicamentos que quase sempre utilizam ensaios clínicos randomizados para avaliação de eficácia e segurança, não existe uma metodologia padronizada que especifique a profundidade e a extensão dos ensaios clínicos necessários para os DM 3.
A nova diretriz europeia sobre DM, por exemplo, afirma que o fabricante deve preparar um resumo das evidências para qualquer dispositivo implantável ou de alto risco passível de comercialização na Comunidade Europeia 4.
O ambiente regulatório da avaliação clínica de DM envolve uma série de questionamentos acerca do grau de transparência e embasamento científico sobre os requisitos exigidos pelas autoridades sanitárias ao redor do mundo 5. No sentido de assegurar ao usuário final que tais dispositivos operam no cenário clínico com a segurança e a eficácia em conformidade com as alegações do fabricante e considerando a incrível diversidade de DM no arsenal terapêutico atual, é particularmente desafiador parametrizar um modelo regulatório ideal que seja eficaz para garantir que os dispositivos atuem de forma a mitigar riscos ao usuário e, ao mesmo tempo, produzir o benefício na dimensão alegada pelo fabricante. Neste contexto, a existência de um arcabouço regulatório sólido na avaliação pré-mercado de novas tecnologias, assim como uma vigilância pós-comercialização que promova uma observação contínua e integrada com o mundo real são fundamentais para o alcance das necessidades dos usuários de DM e a garantia do uso seguro e eficaz 6. Por exemplo, o desempenho de um DM não depende apenas do dispositivo em si, mas também das habilidades e experiência do usuário. Em um relatório de avaliação de um DM, parece importante saber como a curva de aprendizado foi avaliada ou como o treinamento dos operadores foi gerenciado, na ausência dessa informação, pode ser difícil estabelecer a validade externa do estudo. A validade externa, que envolve a generalização dos resultados, é a medida em que os participantes, o contexto dos cuidados e as intervenções avaliadas nos estudos são representativos ou podem ser reproduzidos na assistência médica 7.
A difícil tarefa de encontrar evidências robustas e em escala global que subsidiem a utilização segura de DM, para as indicações que foram idealizadas, possui como obstáculo os grandes investimentos necessários para a construção de ensaios clínicos, para a padronização de procedimentos em assistência, entre outros adstritos ao universo dos ensaios clínicos, tudo isso em conflito com um perfil de produto que apresenta um ciclo de vida muitas vezes incompatível com as necessidades de observação e acompanhamento de pacientes. É importante conhecer o significado de evidência clínica no contexto regulatório, assim como o processo de geração de dados e avaliação clínica para produzir tais evidências; as exigências no cenário internacional são por vezes distintas considerando o modelo regulatório para DM de cada país 8, 9.
Existe uma percepção comum acerca da necessidade de relacionar o DM com as inovações incorporadas e sua relação com a condição clínica alvo, muitas agências requerem que o fabricante demonstre o grau de equivalência da tecnologia proposta com as demais existentes no mercado, objetivando avaliar quais dados clínicos serão necessários para subsidiar o registro para comercialização do produto, muitos também apresentam exigências menos rígidas para produtos com menor risco 10.
Os requisitos de evidência para a comercialização são definidos através de uma abordagem de classificação de risco, com base no risco que os dispositivos apresentam para o paciente, e dependendo da região, podem ser evidenciadas de uma a cinco categorias de risco. Já os requisitos de segurança necessários para o reembolso são sempre específicos do país e podem variar de apenas estudos clínicos a estudos de custo-efetividade rigorosos. Como exemplo, após uma série de falhas e recalls de dispositivos, fragilidades foram identificadas no processo de aprovação europeu 5; que se relacionam com padrões de segurança muito baixos para o acesso ao mercado, a exclusão de avaliações de eficácia e a falta de transparência dos processos regulatórios e seus requisitos de evidência. Assim, o apelo ao desenvolvimento de novos quadros regulatórios com exigências de evidência mais rigorosas e transparentes foram intensificados. No entanto, embora marcos regulatórios mais rigorosos conduzam a uma maior segurança, isso, por outro lado, limitará o acesso antecipado ao mercado de alguns dispositivos. Em geral, há uma clara tensão entre a acessibilidade rápida a produtos novos, muitas vezes inovadores e a provisão de um alto nível de segurança para os pacientes.
Considerando o delineamento do perfil de necessidades de evidências clínicas para o registro de DM no Brasil, o presente estudo tem por objetivo avaliar criticamente o cenário de indeferimentos de registro de DM no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que foram motivados pela ausência ou insuficiência de informações envolvendo a avaliação clínica para demonstrar a segurança e/ou eficácia de DM de risco mais elevado (classes III e IV), conforme é exigido pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n° 56, de 6 de abril de 2001 1.
Considerando a natureza intrínseca a cada conjunto de dispositivos, sejam materiais de uso médico, equipamentos ou diagnósticos in vitro, as razões de natureza técnica que motivam os indeferimentos variam conforme a não conformidade em relação às necessidades de eficácia e segurança de cada dispositivo, descritas tanto em normas gerais como a RDC n° 185, de 22 de outubro de 2001 11, quanto em normas específicas de acordo com o enquadramento do dispositivo, conforme Tabela 1.
A priori, os produtos para diagnóstico in vitro possuem uma sistemática distinta de avaliação clínica, que se estabelece através do que a RDC n° 36, de 26 de agosto de 2015 12, denominada “desempenho clínico”, que envolve uma avaliação realizada para estabelecer ou confirmar uma associação entre o analito e a condição clínica ou estado fisiológico; que inclui um resumo geral de evidências clínicas, contemplando sensibilidade e especificidade clínicas; valores esperados ou valores de referência e relatório de avaliação de evidências clínicas. Considerando que tais produtos possuem características distintas dos demais no que tange o processo de avaliação clínica, o presente trabalho teve como objetivo delinear o impacto da avaliação clínica tradicional, ou seja, fundamentada em dados clínicos de produtos para saúde que representem uma intervenção terapêutica de alto risco, a saber, os materiais de uso médico, materiais implantáveis em ortopedia e equipamentos classes III e IV de risco sanitário conforme definido na RDC n° 185/2001 11, portanto, os produtos para diagnóstico in vitro estão fora do escopo da presente avaliação.
MÉTODO
Trata-se de estudo descritivo no qual foram avaliados, no sistema eletrônico Datavisa, sistema interno para armazenamento e análise de dados de processos submetidos à Anvisa, todos os indeferimentos ocorridos em 2017 no âmbito da Gerência-Geral de Tecnologia de Produtos para Saúde (GGTPS), que tiveram como causa aspectos relativos à avaliação clínica de DM de classe de risco III e IV, tanto na causa original do indeferimento, quanto relacionadas ao não cumprimento dos prazos legalmente estabelecidos para o cumprimento das exigências quando pelo menos uma das exigências envolvia a avaliação clínica. Foram recolhidos dados dos pareceres construídos pelos especialistas da agência para estabelecer o delineamento das principais características relacionadas aos indeferimentos, em relação à avaliação clínica oferecida nos dossiês de registro pelas empresas responsáveis pela submissão. As avaliações foram discriminadas de acordo com a área responsável pelo registro, envolvendo materiais implantáveis em ortopedia submetidos à análise da Coordenação de Materiais Implantáveis em Ortopedia (CMIOR), materiais de uso em saúde submetidos à análise da Gerência de Tecnologia de Materiais de Uso em Saúde (Gemat) e equipamentos submetidos à análise da Gerência de Tecnologia em Equipamentos (GQUIP) da Anvisa.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O indeferimento de processos de registro para DM de risco elevado se relaciona tanto com aspectos não clínicos relacionados às características adstritas aos dispositivos e aos ensaios previstos em normas técnicas, quanto às necessidades de avaliação de risco associadas ao perfil de segurança e eficácia. Na GGTPS, a relação de indeferimentos registrada no sistema Datavisa no triênio 2015–2017 ( Figura) mostra uma relação de 803 indeferimentos em relação a uma entrada total de 4.551 solicitações de registro de produtos de risco mais elevado (classes III e IV).
Analisando as informações contidas nos pareceres técnicos incluídos no sistema no ano de 2017, nos quais foi constatado maior número de indeferimentos ( Figura, Tabela 2), foi avaliada inicialmente a relação entre o número de indeferimentos por tipo de DM e sua relação com a avaliação clínica.
Para um detalhamento acerca das características e perfil dos indeferimentos apresentados, a Tabela 3 fornece um delineamento dos DM submetidos à Gemat (gerência responsável pela análise de registro dos materiais de uso médico) que receberam questionamentos relacionados à avaliação clínica e foram indeferidos, tendo como causas principais tais questionamentos. Nota-se, a rigor, uma prevalência da ausência de dados clínicos conclusivos para subsidiar a segurança e/ou a eficácia, ora designados como pivotais, e que desempenham um papel crucial no ambiente regulatório no sentido de aferir o cenário clínico de inserção do DM que mais se aproxime da realidade de sua futura comercialização, sendo que esta modalidade de investigação clínica de DM é o meio de obter evidências para a avaliação de dados sobre a segurança e desempenho de produtos médicos em seu uso pretendido. Isso inclui quaisquer riscos ou efeitos/eventos adversos apresentados pelo produto durante o uso.
Outro aspecto importante, que se faz presente na percepção de indeferimentos envolvendo avaliação clínica é a ausência da anuência da Anvisa para a realização de ensaios clínicos no Brasil, conforme estabelecido desde a RDC nº 219, de 21 de setembro de 2004 13, e atualmente regido pela RDC nº 10/2015 14, que determina a necessidade de anuência da Anvisa para ensaios clínicos conduzidos em território nacional envolvendo produtos para saúde, condição necessária para que a Anvisa monitore os ensaios clínicos considerando o risco sanitário e as boas práticas clínicas em complemento às atividades regulatórias no campo da avaliação ética exercidas pelo sistema Comitês de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/Conep). É fundamental que os pesquisadores se apropriem do ambiente regulatório antes de iniciar uma pesquisa clínica envolvendo DM, pois, ainda na fase de protótipo ou demais fases de desenvolvimento, a utilização de tais dispositivos apresenta riscos que precisam de avaliação tanto no contexto sanitário quanto ético, o que se torna um fator essencial tanto para a segurança dos participantes de pesquisa quanto para assegurar a qualidade metodológica para a obtenção dos dados para um futuro registro sanitário.
As solicitações de registro realizadas à CMIOR (coordenação responsável pela análise de registro dos materiais implantáveis em ortopedia) envolvem DM associados a próteses para restauração de movimentos e alívio da dor na grande maioria das apresentações, assim, os aspectos mais relevantes associados ao cenário clínico desses dispositivos envolvem a reabilitação funcional e aspectos relacionados à qualidade de vida, desta forma grande parte das inovações nesse segmento se encontram associados a alterações nos materiais empregados, no desenho do dispositivo e estruturas dinâmicas no intuito de oferecer melhor relação de impacto nas atividades rotineiras dos pacientes. É importante perceber que a técnica cirúrgica empregada exerce grande influência no resultado esperado da utilização de tais dispositivos, o que requer uma avaliação criteriosa por parte do sistema regulatório integrando o contexto assistencial no qual a evidência foi produzida. A Tabela 4 mostra as características que motivaram os indeferimentos na área de implantes ortopédicos em 2017 com ênfase na avaliação clínica e evidências apresentadas nos dossiês de registro apresentados à Anvisa, e as situações já citadas no presente artigo para os materiais de uso médico também se mostram presentes nos motivos de indeferimento dos implantes ortopédicos, ressaltando a importância da qualidade da evidência apresentada para assegurar conformidade com a RDC nº 56/2011 1. Com relação à Tabela 4 podemos verificar também a submissão reiterada de dispositivos que apresentam sérios questionamentos de segurança que ainda não foram plenamente resolvidos com incrementos de projeto. Por exemplo, as próteses de quadril “metal em metal”, que podem provocar reações adversas a debris metálicos muitas vezes altamente debilitantes e suscitar revisões cirúrgicas precoces, sendo que tecnologias dessa natureza exigiriam um acompanhamento pós-mercado mais estrito, considerando a busca de mais evidências acerca das causas efetivas das revisões, considerando que os processos cirúrgicos para sistemas tradicionais de substituição do quadril e os sistemas de reconstrução (resurfacing) apresentam características distintas, ensejando curvas de aprendizagem igualmente distintas, além disso, seria necessário construir um perfil de indicações que maximizasse o benefício clínico em pacientes com alto risco de revisões decorrentes das reações adversas oriundas dos debris metálicos 13, 14, 15, 16, 17.
Um dos grandes desafios para a construção de uma avaliação clínica adequada para DM que atenda às exigências regulatórias ocorre quando há necessidade de construção de um ensaio clínico de características confirmatórias para subsidiar a segurança e a eficácia do dispositivo nas indicações de uso pleiteadas ou na validação de novas indicações de uso. Muitas vezes o desenho dos ensaios clínicos não consegue evitar os vieses tradicionais, pois, diferentemente dos ensaios clínicos com medicamentos, o cegamento dos DM pode ser operacionalmente desafiador ou eticamente inaceitável. Quando o cegamento não pode ser considerado, um estudo aberto é a única opção prática. Se existir um dispositivo equivalente, estudos comparativos de eficácia podem ser conduzidos, por exemplo, no estudo Avaliação randomizada de assistência mecânica para o tratamento da insuficiência cardíaca congestiva (REMATCH), os dispositivos de assistência ventricular de geração mais recente foram comparados com dispositivos aprovados sem a utilização de grupo comparador não tratado. Na ausência de um dispositivo equivalente, ainda pode ser sustentável projetar um estudo no qual os resultados de estudos de braço único sejam comparados com resultados obtidos com controles históricos ou contemporâneos aceitos em um registro paralelo; entretanto, tal estudo pode apresentar deficiências devido às diferenças medidas ou não entre as coortes 18.
Outro aspecto relevante é o nível de avaliação de tecnologias realizada pela Anvisa e o contexto no qual esta avaliação se insere no sistema de saúde brasileiro. A agência possui a primazia na avaliação inicial de DM antes que possam ser comercializados ou disponibilizados para ensaios clínicos 11 em território nacional. Esta avaliação distingue-se dos aspectos relacionados ao processo de incorporação e reembolso por planos de saúde e no Sistema Único de Saúde 19, e se encontra pautada na relação benefício/risco do dispositivo para os pacientes e na metodologia empregada para a mensuração de desfechos que propiciem uma tomada de decisão inequívoca nessa direção. Os indeferimentos ocorrem sempre que a área técnica não recebe uma documentação consistente para assegurar a conformidade com os princípios essenciais relevantes no desenvolvimento do projeto do dispositivo existindo lacunas relacionadas aos dados clínicos produzidos. Para dispositivos de alto risco, esta incerteza pode representar um risco sanitário tanto pelos aspectos relacionados à segurança do dispositivo para os usuários/pacientes quanto à eficácia em relação a uma determinada condição clínica, pois a ausência de eficácia de um dispositivo priva a utilização por parte de um paciente de uma outra intervenção mais apropriada para sua enfermidade.
No cenário internacional encontramos diversos modelos semelhantes ao adotado pela Anvisa, cujas diferenças se encontram associadas a características geoeconômicas e políticas e atreladas ao desenvolvimento de um modelo regulatório específico para avaliar as evidências necessárias para a comercialização de DM.
Uma iniciativa em prol da convergência internacional se encontra estabelecida no International Medical Device Regulators Forum (IMDRF) 20, concebido em 2011 no intuito de discutir direcionamentos na harmonização do ambiente regulatório de DM. Constituído por Brasil, Austrália, Canadá, China, Europa, Japão, Rússia, Singapura e Estados Unidos, este fórum possui alguns documentos importantes utilizados como referências para o delineamento tanto da avaliação clínica quanto da qualificação das evidências necessárias para submissão às autoridades regulatórias ( Tabela 5), sempre respeitando a soberania de cada jurisdição em estabelecer normas específicas relacionadas ao tema, considerando as particularidades de cada sistema de saúde.
CONCLUSÕES
Apesar do recorte temporal delineado pelo presente trabalho refletir apenas o ano de 2017, acredita-se que recentemente o perfil relacionado às exigências envolvendo a avaliação clínica seja recorrente e assume características semelhantes àquelas abordadas no presente texto. Embora com abordagem qualitativa, o presente trabalho revela a preocupação dos especialistas da agência em exigir dados robustos no intuito de conhecer os riscos oriundos das novas tecnologias e utilizar a informação mais qualificada possível na tomada de decisão regulatória. Na busca de maior transparência e orientação às futuras submissões, a Anvisa planeja construir um guia para avaliação clínica de DM em conformidade com o tema 8.1 da agenda regulatória da agência concernente a registro, pós-registro, cadastro ou notificação de produtos para saúde, este guia deverá mostrar o ponto de vista da agência com relação ao assunto, assim como os referenciais técnicos para a construção de um relatório de avaliação clínica que atenda às necessidades regulatórias no âmbito da comprovação de segurança e eficácia de DM, especialmente os de alto risco.
Agradecimentos
À equipe da Gerência-Geral de Produtos para Saúde da Anvisa.
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Autor notes
* E-mail: alessandro.ferreira@anvisa.gov.br
Declaração de interesses
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.