RESUMO
Introdução: Os endoscópios muito têm contribuído para a prevenção e tratamento de várias patologias. Entretanto, a despeito do avanço considerável na assistência hospitalar possibilitada pelo advento desses equipamentos, a utilização desses dispositivos trouxe para além dos evidentes benefícios, o risco de transmissão de infecção.
Objetivo: Identificar a incidência de eventos adversos (EA) relacionados a procedimento endoscópico.
Método: Estudo de coorte retrospectiva em um Serviço de Endoscopia Digestiva localizado em Salvador, BA. Fizeram parte desta coorte os procedimentos gastrointestinais, as notificações passivas feitas pelos pacientes e notificações relatadas pelos endoscopistas entre 2016 e 2018. A coleta de dados ocorreu entre outubro a novembro de 2018, com instrumento próprio.
Resultados: Durante 2016 e 2018 foram realizados 21.827 colonoscopias, com uma incidência de EA de 0,200% e 40.261 endoscopias digestivas altas com incidência de EA de 0,080%. Nesses anos, o serviço realizou 62.088 endoscopias, com uma incidência total de EA de 0,100%. Os EA mais frequentes foram: bacteremias, laceração de mucosa, dor e distensão abdominal, com incidência de 0,030%, 0,010%, 0,010% e 0,010%, respectivamente.
Conclusões: Este estudo identificou a incidência de EA relacionados aos exames endoscópicos, contribuindo para a formação de dados na área da endoscopia gastrointestinal brasileira. A incidência de 0,100% de EA aqui identificada é muito menor do que os dados da literatura internacional, bem como a incidência dos tipos de eventos adversos identificados, sinalizando para o controle de riscos, qualidade e segurança do serviço de endoscopia estudado.
PALAVRAS-CHAVE: Endoscópio, Dano ao Paciente.
ABSTRACT
Introduction: Endoscopes have greatly contributed to the prevention and treatment of various pathologies. However, despite the considerable advance in hospital care made possible by the advent of such equipment, the use of these devices has brought, beyond the obvious benefits, the risk of transmission of infection.
Objective: To identify the incidence of adverse events (AD) related to endoscopic procedures.
Method: Retrospective cohort study at a Digestive Endoscopy Service located in Salvador, BA. Gastrointestinal procedures, passive reports by patients and reports reported by endoscopists, between 2016 and 2018, were included in this cohort. Data collection occurred between October and November 2018, using our own instrument.
Results: From 2016 to 2018, 21,827 colonoscopies, with an incidence of AE of 0.200%, were performed, and 40,261 upper digestive endoscopies, with incidence of AE of 0.080%, were also performed. In those years, the service performed 62,088 endoscopies, with a total incidence of AE of 0.100%. The most frequent adverse events were bacteremias, mucosal laceration, pain and abdominal distension, with an incidence of 0.030%, 0.010%, 0.010% and 0.010%, respectively.
Conclusions: This study identified the incidence of AE related to endoscopic exams, contributing to the formation of data in the area of Brazilian gastrointestinal endoscopy. The incidence of 0.100% of AE identified here is much lower than the data in the international literature, as well as the incidence of the types of adverse events identified, signaling to the control of risks, quality and safety of the endoscopy service studied.
KEYWORDS: Endoscope, Patient Harm.
ARTIGO
Eventos adversos em endoscopia gastrointestinal: uma coorte de 62.088 procedimentos realizados
Adverse events in gastrointestinal endoscopy: a cohort of 62,088 procedures performed
Recepção: 28 Março 2019
Aprovação: 01 Agosto 2019
O acelerado desenvolvimento tecnológico na área da saúde ocorrido nas últimas décadas tem impulsionado o incremento de diversos produtos na assistência hospitalar, dentre eles, os equipamentos endoscópicos.
Endoscópios flexíveis foram introduzidos nos anos 1960 e, desde então, são utilizados em todo o mundo para detectar, diagnosticar e tratar diversas condições médicas, contribuindo de forma decisiva para a prevenção e tratamento de diversas patologias. Entretanto, a despeito do avanço considerável na assistência hospitalar possibilitada pelo advento desses equipamentos, a utilização desses dispositivos trouxe, para além dos evidentes benefícios, o risco maior de transmissão de infecção do que qualquer outro produto para saúde 1, 2, 3, 4.
Os endoscópios são classificados segundo o risco de transmissão de infecção em: produtos críticos (aqueles que acessam áreas estéreis do corpo) e semicríticos (os que contatam superfícies de membranas mucosas). Esses equipamentos devem ser limpos e descontaminados segundo a sua classificação de risco. Os endoscópios críticos, a exemplo dos artroscópios e laparoscópios, requerem a condição de esterilidade antes do uso. Os endoscópios semicríticos, tais como os endoscópios digestivos, broncoscópios e colonoscópios, requerem minimamente uma desinfecção de alto nível 4, 5.
Segundo a literatura, vários microrganismos estão envolvidos com infecções associadas a endoscópios, a exemplo dos vírus da Hepatite B e C, Salmonella sp , Staphylococcus aureus, Klebsiella pneumonia, Enterococcus spp , Pseudomonas aeruginosa, Micobactérias, fungos, parasitos, entre outros 2, 4, 5, 6, 7, o que aponta para os riscos infecciosos relacionados a esses procedimentos e torna a prevenção das infecções um objetivo importante para a segurança dos pacientes 1, 2, 3, 4.
As infecções relacionadas aos endoscópios podem ser transmitidas de várias formas: a) por microrganismos de paciente a paciente através do equipamento contaminado; b) a partir do trato gastrointestinal para órgãos suscetíveis do corpo, através da corrente sanguínea durante endoscopia e c) do paciente para profissionais da endoscopia e, talvez, dos profissionais para pacientes 3.
Até hoje, a maioria dos episódios de transmissão de patógenos relacionados com endoscopia tem sido associada com falência dos processos de limpeza, desinfecção, enxágue ou estocagem desses aparelhos. Não há casos relatados de transmissão de infecção, quando o reprocessamento do endoscópio é realizado segundo protocolos bem estabelecidos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12.
De maneira geral, o reprocessamento de endoscópios é um processo de multipassos que confere a endoscópios contaminados segurança para o próximo uso. Inclui meticulosa limpeza, completa imersão em um desinfetante de alto nível/esterilizante, enxágue com água potável, irrigação dos canais internos com álcool a 70%, secagem e estocagem 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8.
Alguns fatores podem contribuir para falhas no reprocessamento de endoscópios tais como: estrutura complexa do endoscópio que dificulta a limpeza e desinfecção (existência de canais, ângulos fechados, juntas, comprimento longo); ausência de protocolos de descontaminação padronizados e corretamente implementados; número insuficiente de aparelhos para atender a demanda de procedimentos realizados; falta de treinamento dos profissionais responsáveis pela limpeza e desinfecção dos equipamentos; contaminação da água usada para enxaguar os equipamentos, falência do processo de limpeza e desinfecção desses equipamentos, dentre outros 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17.
Alguns estudos apontam a importância do crescimento de biofilmes nos canais dos endoscópios fato que não apenas compromete o processo de limpeza e desinfecção, mas que concorre para o fenômeno da resistência antimicrobiana e consequente falência da descontaminação desses aparelhos 5, 6, 7, 8. A emergência de enterobactérias resistentes a carbapenens em pacientes submetidos à colangiopancreatografia retrógrada endoscópica tem suscitado questões de controle de infecções nessas unidades 5, 11.
Dados de infecção associados a procedimentos endoscópicos têm sido frequentemente publicados. A Associação Americana de Endoscopia Gastrointestinal estima uma taxa de uma infecção para cada 1,8 milhão de procedimentos endoscópicos realizados nos Estados Unidos 7, 8, 9, 10. Esta incidência, embora considerada baixa em relação ao número de procedimentos realizados, constitui infecção frequente relacionada com o uso de produtos médicos, e supõe-se que a verdadeira incidência de transmissão de infecção pode não ser identificada em virtude do inadequado ou inexistente sistema de vigilância e monitoramento de eventos adversos (EA) após esses exames, fato que dificulta a avaliação do risco real de infecção para pacientes submetidos a endoscopias 3, 5, 7, 8, 10.
Dada a relevância dos problemas relacionados com o uso de equipamentos endoscópicos para a saúde coletiva, e tendo em vista a escassez de dados publicados de EA em serviços de endoscopia brasileiros, este estudo procurou responder a seguinte questão norteadora: qual a incidência dos EA relacionados com procedimentos endoscópicos gastrointestinais no Brasil? Neste sentido, teve como objetivo identificar a incidência de EA relacionados com procedimentos gastroendoscópicos.
Trata-se de um estudo de coorte retrospectiva, dinâmica, realizado num Serviço de Endoscopia Digestiva localizado na cidade de Salvador, Bahia (BA). Esse serviço é de caráter privado, conveniado, que realiza exclusivamente procedimentos endoscópicos digestivos e colonoscópicos em regime de hospital dia, com um volume de aproximadamente 90 procedimentos diários.
A escolha dessa instituição residiu no fato de ser o serviço que realiza o maior número de procedimentos endoscópicos em regime ambulatorial no estado da BA e de as autoras deste estudo trabalharem nessa instituição.
Nesse serviço, todos os pacientes são orientados verbalmente e com auxílio de uma cartilha, a reportarem qualquer sintoma presente após os procedimentos endoscópicos e, na vigência da notificação do paciente, o Serviço de Controle de Infecção Hospitalar realiza uma investigação epidemiológica no sentido de identificar se os sintomas relatados pelos pacientes estão associados com o procedimento endoscópico realizado na instituição.
Fizeram parte desta coorte as notificações de EA relatadas pelos pacientes, bem como as notificações relatadas pelos médicos endoscopistas no período compreendido entre os anos de 2016 e 2018, período no qual foram realizados 62.088 procedimentos gastroendoscópicos na instituição estudada.
A coleta de dados foi realizada nos meses de outubro a novembro de 2018, com o auxílio de um instrumento próprio para registro das variáveis de interesse dessa pesquisa: número de procedimentos endoscópicos realizado, número de EA relacionados e descrição desses eventos. Foram utilizados os dados dos relatórios de EA relacionados com os procedimentos endoscópicos elaborados pelo Serviço de Controle de Infecção Hospitalar da instituição estudada. Os dados foram armazenados e analisados no programa Epiinfo.
Esse estudo utilizou dados primários e não publicados, não envolveu entrevista com seres humanos seja de forma individual ou coletiva, o que dispensa a submissão em Comitê de Ética em Pesquisa segundo o artigo VII da Resolução n° 466, de 12 de dezembro de 2012, que trata de ética em pesquisa. Foi realizado um contato com a Diretoria para expor os objetivos da pesquisa, obter permissão para sua realização, com a garantia do sigilo dos dados coletados, sendo aprovado pelo Comitê de Ética da instituição, Parecer n° 022/2018.
O Quadro 1 descreve o número de procedimentos endoscópicos realizado no serviço estudado entre o período de 2016 a 2018 (janeiro a novembro), bem como os EA identificados. Observa-se que durante esse período foram realizados 21.827 procedimentos colonoscópicos, com uma incidência total de EA de 0,200%. Foram realizadas 40.261 endoscopias digestivas altas e incidência total de EA de 0,080%. Nos anos desse estudo, o serviço realizou 62.088 procedimentos endoscópicos, com uma incidência total de EA de 0,100%. Observa-se a incidência de 0,100% de EA entre os anos de 2016 e 2017, com uma tendência decrescente de 0,080% em 2018.
A Figura apresenta o número de EA notificados em procedimentos colonoscópicos e de endoscopia digestiva alta nos anos estudados.
Observa-se que não houve uma variação significativa dos EA nesses anos. A incidência de EA em colonoscopia variou de 0,200% a 0,100% e a de endoscopia digestiva alta, de 0,100% a 0,060%, com uma tendência decrescente em 2018.
A distribuição percentual dos EA notificados no serviço estudado está descrita no Quadro 2.
O Quadro 2 descreve os EA identificados no período estudado. Bacteremias, laceração de mucosa, dor e distensão abdominal são os eventos mais frequentes, com incidência total de 0,030%, 0,010%, 0,010% e 0,010%, respectivamente. Ocorreram três casos de perfuração intestinal após colonoscopia com uma incidência de 0,010%.
Os dados mundiais acerca de EA relacionados com endoscopia gastrointestinal flexível são escassos. Para a Sociedade Norte Americana de Endoscopia Gastrointestinal, os EA relacionados à endoscopia gastrointestinal são raros e incluem infecção, perfuração e hemorragias 12.
A literatura reporta que a incidência de bacteremia após endoscopia digestiva alta com ou sem biópsia é menor do que 8%, e esse evento varia segundo o procedimento. Há registros de taxas entre 0% a 53% após esclerose esofágica, de 1% a 25% após ligação de varizes e de 2% a 54% após dilatação esofágica. Outras complicações infecciosas reportadas após endoscopia digestiva alta incluem: endocardite, meningites e/ou abscessos cerebrais e peritonite bacteriana 4, 13, 15, 16.
A incidência de bacteremia após colonoscopia, com ou sem biópsia e polipectomia, varia 0% a 25% e de 0% a 1% após retosigmoidoscopia. Outras complicações incluem: apendicite, peritonite bacteriana, endocardite e septicemia 13- 18.
Nosso estudo de coorte com 62.088 procedimentos gastroendoscópicos realizados revelou uma incidência total de EA de 0,200% para colonoscopia e 0,080% para endoscopia digestiva, com uma taxa global de EA de 0,100% (68/62.088). Esses dados são inferiores aos reportados na literatura acima descrita, que refere uma incidência total de bacteriemia menor do que 8% para endoscopia digestiva alta e uma variação de 0 a 25% para colonoscopias.
Ao compararmos os indicadores identificados deste estudo com os dados da literatura, surgem questionamentos acerca da metodologia utilizada nos estudos referidos, tipo de população estudada e seguimento desses pacientes após procedimentos endoscópicos. Questões importantes para efeito de possíveis avaliações e comparações entre os indicadores internacionais e os nossos indicadores.
Os pacientes submetidos aos procedimentos endoscópicos no serviço ora apresentado são monitorados após exames, uma vez que são orientados verbalmente e com auxílio de uma cartilha a informarem qualquer sinal e sintoma presentes após a alta. Adicionalmente, os médicos endoscopistas trabalham na instituição e relatam os EA identificados nos seus pacientes. Nesse sentido, os indicadores apresentados são oriundos de um sistema de vigilância de notificação de EA após os procedimentos. A despeito de ser constituído por uma metodologia considerada “passiva”, ele possibilita a captação de dados no seguimento após exames endoscópicos, informação essa ausente nos estudos internacionais, o que contribui também para a dificuldade de comparações entre os indicadores desse estudo e os referidos na literatura.
Os EA mais frequentes identificados no nosso estudo foram: bacteriemia (0,030%), laceração de mucosa (0,010%), distensão e dor abdominal (0,010%) e perfuração intestinal após colonoscopia (0,010%). A bacteriemia constitui o EA mais frequente, e esse indicador também é inferior aos dados de bacteriemia após endoscopia gastrointestinal apontados na literatura mundial (“menor do que 8%” 4 e variação de 0 a 25% 12).
O risco de complicações e de sérios EA após colonoscopia tem implicações importantes para os benefícios do programa de screning de câncer colorretal 19. Um estudo de meta-análise constituído por 1.074 artigos identificou uma taxa de perfuração intestinal após colonoscopia de 0,5/1.000 exames e de 0,8/1.000 exames para colonoscopia com polipectomia 20. Outro estudo que avaliou a incidência de complicações dentro de 30 dias após colonoscopias com 21.375 pacientes verificou uma taxa de perfuração intestinal de 0,2/1.000 exames realizados 21. Nosso estudo identificou uma incidência total de EA em colonoscopia de 0,2/21.827 exames realizados, apontando baixa incidência de complicações relacionadas a esse procedimento tão importante para a vigilância e prevenção do câncer colorretal.
A proporção de perfuração intestinal versus procedimentos colonoscópicos também é objeto de estudo, e a literatura registra a proporção de uma perfuração intestinal para cada 11.000 procedimentos colonoscópicos 13. Nossa pesquisa identificou uma proporção de uma perfuração para 7.275 procedimentos colonoscópicos realizados, indicador também inferior ao descrito na literatura e que revela uma baixa proporção de perfuração intestinal relacionada a colonoscopias no serviço pesquisado.
Ao analisarmos todos os EA identificados nesse estudo, observamos que apenas as bacteriemias podem estar associadas a falhas no reprocessamento dos equipamentos endoscópicos. Tendo em vista que a incidência de bacteriemia identificada nesse serviço é muito inferior aos dados da literatura, consideramos que esse indicador também é um parâmetro indireto da qualidade dos processos de limpeza e desinfecção de alto nível adotados nesse serviço, dado esse relevante uma vez que o reprocessamento eficaz dos endoscópios é a chave da segurança do paciente em endoscopia 22,23 .
Este estudo permitiu identificar a incidência de EA relacionados aos procedimentos endoscópicos em um serviço nacional, contribuindo desse modo para a formação de um banco de dados de EA na área da endoscopia gastrointestinal brasileira.
Apesar da robustez dos dados desse estudo, apontamos uma limitação no mesmo, na medida em que os EA aqui identificados são originados da notificação passiva dos pacientes e da informação dos médicos endoscopistas, o que pode contribuir para a omissão de outros EA e desse modo, não refletir a real taxa de EA desse serviço. O ideal seria um sistema de vigilância epidemiológica ativa para a busca desses eventos após procedimento realizado em cada paciente.
Os indicadores epidemiológicos de EA ora apresentados são menores do que os indicadores de EA em endoscopia referidos na literatura internacional e, a despeito da dificuldade de comparação entre esses dados já referida, a incidência de 0,100% de EA aqui identificada é muito menor do que os dados da literatura internacional, bem como a incidência dos tipos de EA identificados, sinalizando para o controle de riscos, qualidade e segurança do serviço de endoscopia estudado.
Esses achados encorajam a continuidade dos esforços para a manutenção dos objetivos seguros das práticas endoscópicas do serviço apresentado.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: costaeliana2003@ hotmail.com