RESUMO
Introdução: Anualmente, entre 10 e 28 mil toneladas de medicamentos são inadequadamente descartados no ambiente pelos consumidores brasileiros, tratando-se de um grande problema em saúde pública e ambiental. A falta de conhecimento da população sobre os impactos gerados é um dos fatores promotores desse cenário.
Objetivo: Realizar a caracterização de medicamentos vencidos ou em desuso recebidos em práticas educativas em Goiânia, estado de Goiás, Brasil.
Método: Práticas educativas e recebimento de medicamentos vencidos/em desuso aconteceram em junho, outubro e dezembro de 2018 em diferentes pontos de Goiânia (instituição de ensino, parques municipais etc.). Os medicamentos foram caracterizados quanto à forma farmacêutica, classes terapêuticas, atendimento a legislações brasileiras vigentes etc. e encaminhados para descarte ambientalmente correto.
Resultados: Foram recebidos 866 medicamentos, dos quais havia predominantemente produtos de origem nacional (98,72%), para uso humano (97,46%), formas farmacêuticas sólidas (75,64%), em desuso (10,16%) ou vencidos (86,26%), e medicamentos industrializados do tipo genérico (26,32%), similar (39,26%) ou de referência (28,86%). Além disso, 17,10% eram amostras grátis, principalmente hormônios sexuais, medicamentos para o aparelho cardiovascular e antibacterianos. Ademais, 7,51% eram medicamentos sujeitos a controle especial (Portaria nº 344/1998), enquanto que 9,12% eram antimicrobianos com necessidade de retenção de receita (RDC nº 20/2011). Sobre os medicamentos classificados nas classes terapêuticas de abrangência da RDC nº 222/2018, foram recebidos 344 (39,72%) unidades, entre eles: antimicrobianos (18,93%), hormônios (14,20%), imunossupressores (6,12%) e antirretrovirais (0,47%).
Conclusões: Em vista da grande quantidade de resíduos farmacêuticos caracterizados nesse estudo, evidencia-se a necessidade de promover práticas educativas continuadas com a finalidade de fornecer à população informações corretas e conscientização pública. Além disso, é necessário estabelecer instrumentos legislativos eficazes que promovam o descarte ambientalmente correto de medicamentos vencidos/em desuso presentes em ambientes domiciliares.
Palavras chave: Poluição Ambiental, Uso de Medicamentos, Resíduos de Serviços de Saúde, Gerenciamento de Resíduos, Publicidade de Medicamentos.
ARTIGO
Análise dos resíduos farmacêuticos recebidos em práticas educativas para promoção do descarte consciente de medicamentos vencidos ou em desuso no estado de Goiás, Brasil
Recepção: 7 Maio 2019
Aprovação: 11 Dezembro 2019
De acordo com o Institute for Human Data Science1, o Brasil é um dos maiores mercados consumidores de medicamentos do mundo. Apesar dos obstáculos político-econômicos enfrentados nos últimos anos, a expectativa é que o Brasil ocupe a quarta posição a partir de 2018, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Japão. Diante desse alto consumo de medicamentos, questiona-se, por exemplo, se a população está adoecendo mais ou se o consumo está sendo exacerbado. A segunda opção parece plausível ao se observar que, a cada ano, cerca de 10 a 28 mil toneladas de medicamentos, o que corresponde a aproximadamente 20% de toda produção farmacêutica, são descartadas pelos consumidores brasileiros no esgoto ou no lixo comum2,3.
Em virtude do potencial de bioacumulação e baixa biodegradabilidade, sabe-se que parte desses resíduos químicos, como antibióticos, analgésicos e anticoncepcionais, não são removidos totalmente pelo processo convencional de tratamento de esgoto vigente no Brasil e em diversas partes do mundo4,5,6. Apesar disso, seus níveis no meio ambiente não são rotineiramente monitorados em diversas partes dos estados brasileiros, sendo, portanto, considerados como contaminantes emergentes7. Assim, a sociedade e o meio ambiente podem estar expostos a riscos potenciais diversos, muitos deles até então desconhecidos, devido ao restrito conhecimento do impacto toxicológico dos diferentes tipos de fármacos lançados no ambiente. Além dos princípios ativos responsáveis pela ação farmacológica, um medicamento é constituído por uma mistura de outras substâncias, chamadas de excipientes (por exemplo: em média, um comprimido ou uma cápsula contém aproximadamente nove excipientes). Apesar de serem declaradas como ingredientes inativos, essas substâncias não necessariamente são isentas de toxicidade ao organismo humano8.
O uso irracional de medicamentos tem prevalecido em virtude, entre outros fatores, do modelo de atenção à saúde focado na doença em detrimento da promoção de medidas preventivas3,9,10. Também é impulsionado pela distribuição de amostras grátis pelos laboratórios farmacêuticos5 e a fácil aquisição associado à prática da automedicação, acarretando o acúmulo e o vencimento desses produtos nas residências5,10. Diversas outras razões podem levar à acumulação e ao desperdício de medicamentos em ambientes domiciliares, tais como: quantidade superdimensionada de medicamento por embalagem, melhora do quadro clínico do paciente e não finalização do tratamento completo, baixa adesão terapêutica ou mudança da prescrição em virtude da ocorrência de reações adversas6,11. A prescrição de medicamentos, em uma única vez, para tratamentos extensos (por exemplo: uso para três meses) também pode elevar as taxas de produtos não utilizados12. Vale ainda destacar que o mercado veterinário tem também promovido um grande consumo de produtos farmacêuticos, o que pode ocasionar a mesma problemática dos medicamentos de uso humano: acúmulo nas residências e descarte inadequado no ambiente13.
Entre os danos proeminentes gerados pelas práticas incorretas de descarte de medicamentos vencidos ou em desuso, destacam-se a contaminação da água, do solo, dos alimentos e a intoxicação animal e humana5,11,12. Apesar de que todo medicamento pode promover um malefício, o descarte de algumas classes farmacológicas tem chamado bastante atenção da comunidade científica. Por exemplo: os antibióticos estão envolvidos no processo de resistência bacteriana; os estrogênios afetam o sistema reprodutivo de organismos aquáticos promovendo a feminização de peixes machos; e os antineoplásicos e imunossupressores têm o potencial de causar mutações genéticas em organismos vivos, incluindo o homem14.
Essa questão vem sendo cada vez mais debatida entre órgãos de saúde e do meio ambiente, instituições do governo e não governamentais, pesquisadores, entre outros, com o intuito de elaborar instrumentos legais que regularizem o gerenciamento adequado destes resíduos perigosos. Tendo como base as Leis e as Diretrizes Brasileiras, um dos marcos regulatórios da área de Biossegurança foi a publicação, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de uma via legal que regulamenta as Boas Práticas de Gerenciamento dos Resíduos de Serviços de Saúde, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 222, de 28 de março de 201815, que revogou a RDC nº 306, de 7 de dezembro de 2004. Da mesma forma, a Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 201016, estabelece a Política Nacional de Resíduos Sólidos, o que inclui os medicamentos. Em 2018, o Ministério do Meio Ambiente abriu uma consulta pública para regulamentar a Lei nº 12.305/2010 e também instituir a logística reversa de medicamentos descartados pelo consumidor (http://consultaspublicas.mma.gov.br/medicamentos/). Na verdade, o descarte de medicamentos de uso humano, vencidos ou em desuso, já é uma medida normatizada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT NBR 16457:2016)17, porém não executada de forma eficaz no Brasil. Em Goiás, onde está localizado o segundo maior polo farmoquímico brasileiro, foi também instituído a Política Estadual de Resíduos Sólidos e a definição de diretrizes e normas de prevenção da poluição através da Lei n° 14.248, de 29 de julho de 200218.
Entretanto, diversos fatores culminam para a promoção do descarte inadequado de medicamentos no Brasil. Um deles é a falta de conhecimento da população sobre os impactos gerados por esses produtos farmacêuticos quando descartados no lixo domiciliar ou rede de esgoto5,19. Exemplificando isso, uma pesquisa de campo, realizada no Rio de Janeiro, mostrou que 61% (n = 25) dos entrevistados desconheciam as consequências do descarte incorreto de medicamentos19. Outra pesquisa, realizada na mesma localidade e com 1.055 universitários de diferentes cursos (áreas humanas, exatas ou biomédicas), mostrou que 96% (n = 1.012) dos entrevistados nunca receberam orientações sobre a forma correta de realizar o destino final de resíduos farmacêuticos. Já em São Paulo, um estudo evidenciou que 92% (n = 564) dos universitários entrevistados faziam o descarte inadequado por falta de informação sobre locais de recolhimento de medicamentos, evidenciando a necessidade de campanhas públicas de divulgação de pontos de coleta localizados nos postos municipais públicos de saúde, por exemplo5. Essa falta de informações adequadas e instruções claras sobre o modo correto de gerenciar resíduos farmacêuticos domiciliares tem sido, de fato, relatada em outros países, como Estados Unidos, Nova Zelândia, Bangladesh, Malta e Irlanda20.
Nessa conjuntura, a Liga Acadêmica de Toxicologia (LATox), da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Goiás (FF/UFG), estabeleceu em 2018 ações sociais em pontos estratégicos da cidade de Goiânia, localizada no estado de Goiás (GO), Brasil, na expectativa de orientar a sociedade acerca do tema. Além de promover a conscientização em mídias e redes sociais, foi realizado o recolhimento de medicamentos vencidos ou em desuso da comunidade para destinação final correta. Assim, neste trabalho foi realizada uma caracterização do material recebido durante as ações para analisar os tipos de medicamentos que poderiam ter sido descartados de forma inadequada no meio ambiente.
Todas as atividades educativas e/ou recebimento de medicamentos vencidos ou em desuso ocorreram em 2018 na cidade de Goiânia/GO. A primeira parte das atividades foi uma ação educativa sobre o descarte correto de resíduos farmacêuticos e o recebimento de medicamentos da população, tendo sido realizada em 30 de junho de 2018 (mês do Dia do Meio Ambiente – 05 de junho) em um parque municipal de médio porte. A partir dessa experiência, ações continuadas foram conduzidas durante todo o mês de outubro e no dia 1° de dezembro de 2018 nos seguintes locais: na UFG (regional Goiânia), em um estabelecimento farmacêutico de farmácia magistral, dois parques de médio a grande porte e em um evento beneficente promovido em uma igreja. Além disso, foram realizadas atividades de conscientização por meio de palestras na Universidade e eventos científicos no mês de outubro de 2018. As ações também foram promovidas por meio de redes sociais com postagens do tipo “Você sabia?”, por exemplo (https://www.instagram.com/p/BofY-38lJ0k/). Informativos das ações de conscientização e a divulgação dos locais de coleta foram realizados pelo sítio eletrônico da UFG (https://www.ufg.br/n/110117-acao-evita-descarte-incorreto-de-medicamentos), redes sociais, pelo Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas da UFG (http://sigaa.sistemas.ufg.br/) e em programas televisivos e de rádio.
O recebimento de medicamentos também consistiu na distribuição de sete caixas personalizadas em lugares estratégicos da UFG (Regional Goiânia), no período de 1 a 31 de outubro de 2018. Esses locais foram escolhidos em virtude do alto fluxo de alunos, servidores e comunidade externa à Universidade: FF, Escola de Engenharia Civil e Ambiental (EECA), Faculdade de Enfermagem (FEN), Faculdade de Nutrição (FANUT), Farmácia Universitária (FU), Rádio Universitária da UFG, e Escola de Veterinária e Zootecnia (EVZ). As sete caixas de papelão foram revestidas com camada interna plástica e devidamente identificadas. A abertura de cada caixa foi lacrada e um orifício realizado para o descarte de medicamentos (Figura 1).
O material recebido foi separado conforme uso humano ou exclusivamente veterinário. Dessa divisão, o material foi agrupado baseado na classificação anatômica terapêutica química (anatomical therapeutic chemical – ATC), forma farmacêutica (sólida, semissólida, líquida etc.), embalagem primária vazia, embalagem primária contendo medicamento (blister de comprimidos, frasco de xarope etc.) e embalagens secundárias e bulas. O tipo de medicamento recebido foi também considerado: amostras grátis; medicamentos em que há necessidade de retenção de receita no estabelecimento de saúde que os dispensam, conforme Portaria nº 344, de 12 de maio de 199821, ou RDC nº 20, de 5 de maio de 201122; medicamentos pertencentes a uma das oito classes terapêuticas (hormônios, antimicrobianos, citostáticos, antineoplásicos, imunossupressores, digitálicos, imunomoduladores e antirretrovirais) elencadas no artigo 59 da RDC nº 222/201815; e medicamentos vencidos (prazo de validade expirado), em desuso (prazo de validade não expirado, mas descartado pelo indivíduo) ou de prazo de validade indeterminado (aquele produto descartado que não foi possível obter a informação da validade no rótulo do medicamento, por exemplo: embalagem com data de validade apagada). Além disso, materiais recicláveis que não tiveram contato direto com medicamentos foram descaracterizados e encaminhados para reciclagem, enquanto que os demais foram pesados e encaminhados para destinação final ambientalmente correta por empresa especializada. Todos os dados foram incluídos em uma planilha usando o programa Excel® para Windows. As atividades de caracterização do material recebido foram realizadas no Laboratório de Práticas Farmacêuticas da FF/UFG.
Foram realizados diferentes eventos envolvendo atividades de conscientização e/ou recebimento de medicamentos da comunidade. Um deles foi a participação no “Dia C de Ciência” realizado durante o 15º Congresso de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFG (15 a 17 de outubro de 2018). Também foram realizadas, na Universidade, quatro palestras educativas acerca da importância em não descartar medicamentos no lixo comum domiciliar e redes de esgotos, por exemplo, e os impactos gerados ao meio ambiente, saúde humana e animal. O público envolveu profissionais, estudantes de pós-graduação e graduação de diferentes cursos (Farmácia, Medicina, Odontologia, Engenharia de Alimentos, Engenharia Elétrica, Biomedicina, Nutrição, Medicina Veterinária, Direito etc.) e comunidade. Além disso, quatro ações sociais foram conduzidas nos dias 30 de junho, 6 e 20 de outubro, e 1° de dezembro de 2018 na cidade de Goiânia. Dessa forma, as atividades educativas presenciais abrangeram um público de 1.430 pessoas. Vale destacar que as ações educativas também foram divulgadas em outras plataformas (por exemplo: redes sociais e programas televisivos e de rádio), abrangendo ainda mais o público orientado.
A Figura 2 mostra uma visão geral da quantidade de material recebido nas atividades presenciais e nos pontos de coleta instalados. Ao todo, foram recebidos 939 produtos: 73 (7,78%) resíduos não farmacêuticos (protetores solares, xampus, suplementos alimentares etc.); e 866 (92,22%) medicamentos (embalagens inteiras ou consumidas parcialmente), dos quais havia produtos de origem nacional (n = 863, 98,72%) ou importada (n = 3, 1,28%), para uso humano (n = 844, 97,46%) ou exclusivamente veterinário (n = 22, 2,54%), em desuso (n = 88, 10,16%), vencidos (n = 747, 86,26%) ou com validade indeterminada (n = 31, 3,58%). Os medicamentos de origem sintética (n = 818, 94,45%) e os princípios ativos dos mais prevalentes são apresentados na Tabela 1. Pode-se observar um predomínio de agentes indicados para analgesias, infecções e tratamentos hormonais.
Além disso, foi verificado que, do total de 866 medicamentos, 148 (17,10%) eram amostras grátis, na sua maioria representada por hormônios sexuais (n=98), medicamentos do aparelho cardiovascular (n = 11) e anti-infecciosos para uso sistêmico, em especial, antibacterianos (n = 9) (Tabela 2).
Os materiais farmacêuticos foram, então, segregados em duas categorias: resíduo comum reciclável (12,7 kg), incluindo bulas e caixas vazias que não tiveram contato direto com medicamentos; e resíduo químico (34,5 kg), tais como medicamentos em sua embalagem primária (32,1 kg) ou materiais que tiveram contato direto com o produto como embalagens primárias vazias (2,4 kg) (Figura 3A).
Em relação às formas farmacêuticas, foram recebidas predominantemente formas sólidas (n = 655, 75,64%), representadas por 6.214 comprimidos, drágeas ou cápsulas, em detrimento de formas semissólidas (n = 138, 15,94%), líquidas (n = 61, 7,04%), gasosas (n = 2, 0,23%), ou especiais (n = 10, 1,15%), que nesse caso foram apenas em spray (Figura 3B). Também foi observada uma maior quantidade de medicamentos industrializados do tipo genérico (n = 228, 26,32%), similar (n = 340, 39,26%) e de referência (n = 250, 28,86%), quando comparado àqueles manipulados (n = 22, 2,54%), homeopáticos (n = 2, 0,23%) ou fitoterápicos (n = 24, 2,77%) (Figura 3C).
No que diz respeito à necessidade de retenção de receita no estabelecimento de saúde, verificou-se que 722 (83,37%) medicamentos eram livres de retenção de receita, enquanto o restante não (n = 144, 16,62%) (Figura 3D). Desses, 65 (7,51%) eram medicamentos sujeitos a controle especial, conforme estabelecido pela Portaria nº 344/1998, enquanto que 79 (9,12%) eram antimicrobianos com necessidade de retenção de receita em conformidade com a RDC nº 20/2011 (Figura 3D).
Sobre os medicamentos classificados nas classes terapêuticas de abrangência da RDC nº 222/2018, foram recebidos 344 (39,72%) unidades, entre elas: antimicrobianos (n = 164, 18,93%), hormônios (n = 123, 14,20%), imunossupressores (n = 53, 6,12%) e antirretrovirais (n = 4, 0,47%) (Tabela 3).
O estoque doméstico de medicamentos pode ocasionar diferentes impactos relacionados à saúde pública e questões ambientais, tais como automedicação, consumo acidental por crianças, acúmulo de ingredientes farmacêuticos em fontes hídricas e risco de resistência bacteriana12,23. Visando promover a conscientização da população sobre a importância de se fazer o descarte correto de medicamentos vencidos ou em desuso, esse estudo apresentou atividades educativas, além de divulgação de conhecimento por meio de outras abordagens como o uso de redes sociais e programas televisivos e de rádio. Além disso, as atividades contribuíram no reconhecimento da necessidade de elaboração de normas legais eficazes que promovam a coleta e o descarte reverso de medicamentos vencidos ou em desuso em estabelecimentos de saúde, como drogarias e farmácias (https://www.ufg.br/n/112091-liga-de-toxicologia-contribui-para-projeto-de-lei). Isso ilustra a necessidade de haver um comprometimento em diferentes esferas para evitar ou minimizar a problemática do descarte ambientalmente incorreto de medicamentos, uma vez que a responsabilidade deve ser compartilhada entre os gestores, a população, prescritores, distribuidores de produtos farmacêuticos e geradores de tais resíduos3,9.
Entre o total de 939 materiais recebidos no prazo de 32 dias de atividades, 866 (92,22%) eram medicamentos, os quais poderiam ter sido descartados incorretamente na rede de esgoto ou lixo comum, que é uma forma usual verificada no Brasil e outros países (por exemplo: Reino Unido, Lituânia, Sérbia, Arábia Saudita, Kuwait)20,23,24. Uma pesquisa realizada na Austrália verificou a presença de 1.424 medicamentos de uso humano em 166 domicílios. Desse total de produtos farmacêuticos, 29% (n = 413) estavam vencidos12. Outro estudo de 2009 mostrou uma taxa de 19% de medicamentos vencidos ao analisar uma amostra de resíduos farmacêuticos de um Departamento Municipal de Resíduos de Viena/Áustria; contudo, vale ressaltar que, dos 152 materiais, apenas 22 continham resíduos farmacêuticos6. Já em outra pesquisa realizada na mesma cidade entre 2015 e 2016, foi encontrada uma taxa maior de medicamentos vencidos (64%) ao se analisar 637 materiais farmacêuticos oriundos de resíduo domiciliar25. Entretanto, esses valores são inferiores à alta taxa de medicamentos vencidos encontrada no presente estudo, o que nos chama a atenção e também nos alerta para uma possibilidade de que a população brasileira parece estar comprando e/ou consumindo medicamento em excesso.
Entre os agentes terapêuticos, foram recebidos majoritariamente produtos indicados para analgesias (paracetamol e associações, ácido acetilsalicílico, dipirona e nimesulida), infecções (amoxicilina e azitromicina) e hormônios sexuais (associação de estinilestradiol com desogestrel ou levonorgestrel). Em uma pesquisa realizada com 613 universitários do estado de São Paulo, verificou-se que 91% dos entrevistados descartavam medicamentos incorretamente, dos quais os antibióticos (39%), analgésicos (33%) e anti-inflamatórios (16%) eram os mais prevalentes5. Além disso, resultados de análises de amostras de água, coletadas entre o período de 2006 e 2015 em São Paulo, apresentaram um perfil similar no que diz respeito à presença de fármacos: entre as 58 substâncias químicas detectadas na água, estavam agentes analgésicos (paracetamol, ácido acetilsalicílico, ibuprofeno e diclofenaco), antibióticos (amoxicilina, ampicilina, cefalexina, ciprofloxacino, norfloxacino, sulfametoxazol e trimetoprima) e hormônios (17α-etinilestradiol, 17β-estradiol, estriol, estrona, levonorgestrel, progesterona e testosterona)7. Dessas, uma análise preliminar mostrou riscos potenciais para a vida aquática em virtude da presença de paracetamol, diclofenaco, 17α-etinilestradiol, 17β-estradiol, estriol, estrona e testosterona7. Isso evidencia que, mesmo estando em baixas concentrações (ou seja, concentrações em ng/L), há riscos potenciais que são desconhecidos na sua maior parte, principalmente no que diz respeito à exposição crônica23.
Diante do pouco que se sabe sobre os malefícios à saúde humana e animal ao se lançar inadequadamente resíduos farmacêuticos no ambiente, algumas classes terapêuticas têm ganhado destaque discreto na legislação brasileira, como ocorre na RDC nº 222/201815, por exemplo. Apesar de não haver legislação específica no Brasil para descarte de medicamentos, o artigo 59 da RDC nº 222/2018 destaca oito classes terapêuticas (hormônios, antimicrobianos, citostáticos, antineoplásicos, imunossupressores, digitálicos, imunomoduladores e antirretrovirais) cujos resíduos devem ser submetidos a tratamento ou dispostos em aterro de resíduos perigosos (classe I). Entre os medicamentos recebidos no presente estudo, 344 (39,72%) unidades eram contempladas pela RDC nº 222/2018, havendo predomínio de antimicrobianos (n = 164, 18,93%), hormônios (n = 123, 14,20%) e imunossupressores (n = 53, 6,12%).
Tem se estabelecido a obrigatoriedade de venda sob prescrição a algumas classes de medicamentos, bem como a retenção de receita no estabelecimento de saúde de dispensação de medicamentos, no Brasil e em diferentes países21,22,25,26. Isso ocorre em virtude dos danos até então conhecidos, conforme já elencados aqui, tais como uso abusivo de opioides e resistência à antibioticoterapia de populações bacterianas patogênicas14,27. Nesse sentido, foi verificado que 16,62% (n = 144) dos medicamentos recebidos eram sujeitos a controle especial, dos quais 7,51% (n = 65) eram medicamentos entorpecentes, psicotrópicas, imunossupressoras ou precursoras (Portaria nº 344/1998), enquanto que 9,12% (n = 79) eram antimicrobianos (RDC nº 20/2011). Em Viena, foi encontrado um porcentual de 63% (n = 402) de medicamentos sujeitos à receita médica em amostras de resíduos domiciliares farmacêuticos recolhidos entre 2015 e 201625. Desse total, 8% (n = 50) eram antibióticos25. Nessa localidade, também são estabelecidas restrições a certas classes terapêuticas (por exemplo, opioides, benzodiazepínicos, antibióticos), de forma similar ao estabelecido na legislação brasileira.
Além disso, foi observada uma porcentagem de 17,10% (n = 148) de amostras grátis em relação ao total de medicamentos recebidos. Desses materiais, houve um predomínio de medicamentos para o aparelho geniturinário e hormônios sexuais (n = 98), em sua maioria em pacotes não consumidos/abertos, seguido, em menor quantidade, por medicamentos para o aparelho cardiovascular (n = 11) e antibacterianos (n = 9). A distribuição de amostras grátis de medicamentos aos profissionais prescritores é uma estratégia de publicidade de produtos utilizada por laboratórios farmacêuticos28. Apesar de ser uma prática antiga, somente em 2009 entrou em vigor uma legislação brasileira específica, a RDC nº 60, de 26 de novembro de 200929, sobre a produção, dispensação e controle de amostras grátis de medicamentos. Assim, ficou estabelecido, por exemplo: a proibição de distribuição de amostras de preparações magistrais e produtos biológicos e a obrigatoriedade de as amostras permitidas conterem no mínimo 50% da quantidade total da apresentação registrada na Anvisa e comercializada pela empresa. Nesse último caso, há exceções para os hormônios sexuais, que deverão apresentar 100% da quantidade do produto correspondente; e antibióticos, dos quais o profissional médico deve entregar a quantidade de amostras necessárias para o tratamento completo do paciente29. Apesar de também estabelecer que “a entrega de amostras grátis pelo profissional prescritor ao paciente deve ser realizada de forma a garantir o uso racional do medicamento” (artigo 10), nossos dados mostram que, de fato, isso não parece ser realizado de forma eficaz, dado, principalmente, a extensa quantidade de hormônios sexuais recebidos e não consumidos. Assim, destaca-se a necessidade de estabelecer um maior controle da quantidade de amostras grátis entregues pelo profissional médico e o estabelecimento de prazo de distribuição após registro do produto, que são itens conflitantes na legislação brasileira, mas que ocorre em países europeus28. Isso seria uma medida importante como forma de promover o uso racional de medicamentos ao reduzir, por exemplo, os estoques desnecessários nos domicílios e perdas de medicamentos. Ainda, a educação continuada de profissionais da saúde acerca dessa temática se faz necessária, pois a comunicação com a população deve ser ativa para garantir orientação correta e o desejável é que seja realizada por equipe multiprofissional (médicos, odontológos, enfermeiros, farmacêuticos)30. Também pode-se agregar uma estratégia para eliminar ou reduzir influências propagandistas sob a escolha de um determinado medicamento pelo profissional prescritor, que deve ser conduzida utilizando critérios éticos, técnicos e científicos (ou seja, dados de eficácia, segurança, conveniência e acessibilidade ao paciente etc.)31.
Apesar dos importantes achados e observações feitas aqui, algumas limitações do estudo podem ser elencadas. Foi um estudo piloto, que aconteceu em um curto espaço de tempo. Em vista disso, não temos como, por exemplo: identificar a mudança de comportamento do público abrangido pelas ações educativas, sua percepção sobre o tema em destaque e fatores socioeconômicos envolvidos (gênero, idade, nível de escolaridade etc.).
A partir da caracterização realizada dos medicamentos recebidos em nossas ações educativas, nossos achados destacam a importância do uso racional de medicamentos, assim como evidenciam a necessidade de um trabalho conjunto para promover o descarte consciente de resíduos farmacêuticos, seguindo normas ambientalmente corretas. Uma dessas formas é promover práticas educativas com a finalidade de fornecer à população informações corretas e conscientização pública sobre a magnitude do problema relacionado ao descarte inadequado de medicamentos. Dessa forma, espera-se uma mudança de postura frente a esse tema de importância na saúde pública e ambiental. Além disso, nossos dados visam servir de suporte para o estabelecimento de instrumentos legislativos eficazes que estabeleçam a instalação normatizada de pontos de coleta em estabelecimentos brasileiros de saúde (por exemplo: postos de saúde, farmácias e drogarias) para os consumidores devolverem os medicamentos vencidos ou em desuso, e também o descarte reverso desses produtos farmacêuticos.
Os autores agradecem ao apoio recebido durante a realização desse trabalho: Incubadora Social da Universidade Federal de Goiás, em especial Fernando Bartholo; Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia; Farmácia Artesanal; Therapeutica Pharmacia de Manipulação; Sabor Goiano (TS Indústria e Comércio de Alimentos Eireli – Inhumas/GO); e Taynan Alexandre Camilo, Gustavo Cruvinel e equipe.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
Todos os autores participaram da concepção, planejamento (desenho do estudo), aquisição, análise, interpretação dos dados e redação do trabalho. Todos os autores aprovaram a versão final do trabalho.
* E-mail: renatoivan.avila@gmail.com