RESUMO
Introdução: Os incidentes relacionados à assistência à saúde representam um sério problema de saúde pública por estarem associados ao aumento da mortalidade, tempo de internação e custos no tratamento. Nesse contexto, o monitoramento e vigilância permanente da ocorrência de incidentes por parte dos serviços de saúde são importantes ferramentas de prevenção.
Objetivo: Descrever e avaliar a qualidade das notificações dos incidentes relacionados à assistência ocorridos no município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, entre os anos de 2016 e 2017.
Método: Estudo descritivo que se propõe a calcular a prevalência de incidentes notificados e analisar suas variáveis a partir de dados secundários.
Resultados: Um total de 1.059 eventos foi notificado entre os anos pesquisados, a maioria em hospitais, com grau de dano leve e durante a prestação de cuidados. A faixa etária mais acometida foi a de idosos e os incidentes mais frequentes foram as quedas. Os never events mais frequentes foram as úlceras por pressão e a qualidade das notificações mostrou-se baixa em geral.
Conclusões: É importante que o monitoramento de riscos e a notificação de incidentes sejam práticas permanentes nos serviços de saúde e que os dados notificados sejam utilizados como ferramenta para a melhoria constante dos processos de cuidado.
Palavras chave: Vigilância em Saúde, Segurança do Paciente, Vigilância Sanitária.
ARTIGO
Análise dos incidentes relacionados à assistência à saúde no município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, nos anos de 2016 e 2017
Recepção: 06 Maio 2019
Aprovação: 09 Dezembro 2019
O processo de cuidar não é isento de riscos e as instituições de saúde caracterizam-se como serviços complexos, onde vários fatores podem contribuir para a ocorrência de incidentes relacionados à assistência à saúde1. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define incidente como evento ou circunstância evitável, decorrente do cuidado, não associado à doença de base2. Estudos estimam que a ocorrência desses incidentes, e em particular de eventos adversos (EA), afete de 4% a 16% de pacientes hospitalizados em países desenvolvidos, estimulando, assim, que sistemas de saúde em todo o mundo desenvolvessem estratégias a fim de melhorar a segurança do paciente3.
Esta mobilização se iniciou a partir da publicação do relatório To Err is Human: building a safer health system, do Institute of Medicine (IOM)4, que estimou entre 44.000 a 98.000 mortes por ano nos Estados Unidos, devido a erros na assistência ao paciente. Desde então, os resultados ou desfechos em saúde têm sido objeto de estudo, pois a ocorrência dos EA envolve custos sociais e econômicos consideráveis, que podem implicar em danos irreversíveis aos pacientes e suas famílias5.
Diante do exposto no relatório, em maio de 2002, a 55ª Assembleia Mundial da Saúde adotou a Resolução WHA no 55.18, “Qualidade da atenção: segurança do paciente”, que solicitava urgência aos estados-membros em dispor maior atenção ao problema da segurança do paciente6.
A seguir, em 2004, a OMS, estabeleceu a Aliança Mundial para a Segurança do Paciente, a fim de desenvolver estratégias de melhoria no atendimento ao paciente e de aumentar a qualidade dos serviços de saúde. De abrangência internacional, a aliança tem a missão de coordenar, disseminar e acelerar melhorias para a segurança do paciente em termos mundiais. Em 2005, a Aliança definiu questões prioritárias para a pesquisa na área de segurança do paciente que sejam de alta relevância para países em todos os níveis de desenvolvimento: cuidados de saúde às mães e aos recém-nascidos; cuidados de saúde aos idosos; EA relacionados a erros de medicação; frágil cultura de segurança, voltada ao processo de responsabilização pelo erro; competências e habilidades inadequadas entre profissionais de saúde; infecções associadas ao cuidado de saúde7.
Segundo a OMS, a cultura de segurança é constituída por três componentes: cultura justa, na qual é clara a diferença entre atos inaceitáveis e erros devido às falhas no sistema. Uma cultura justa, aberta e não focada na culpabilização tem o potencial de criar um círculo virtuoso que vem a encorajar mais notificações, resultando em mais esforços para a melhoria de serviços e consequente otimização dos padrões relacionados à segurança do paciente8; cultura de notificação, na qual são realizadas coleta, análise e disseminação de informação acerca dos incidentes relacionados à assistência à saúde identificados; cultura de aprendizado a partir dos erros, estimulada a partir do monitoramento, análise e retorno das informações, possibilitando a reflexão sobre os incidentes ocorridos nos serviços de saúde. Por fim, essa cultura se constitui como substrato para ações de melhoria9.
Em relação à classificação dos incidentes relacionados à saúde, as ocorrências comunicáveis são situações com potencial significativo para causar lesões, mas que não resultaram em incidente (por exemplo, um desfibrilador na sala de emergência que não está funcionando); um near miss é um incidente que não atingiu o paciente, mas teve esse potencial antes de sua ocorrência (erro na prescrição, corrigida antes do produto ser administrado ao paciente); incidente sem lesão é um incidente que o paciente sofreu, mas não resultou em ferimentos discerníveis (unidade de sangue transfundida, mas o sangue não era incompatível com o paciente); incidente com lesão (EA) é um incidente que resulta em danos decorrentes do cuidado à saúde, não intencional e não relacionado à evolução natural da doença de base, resultando em hospitalização prolongada e/ou morte (transfusão de uma unidade errada de sangue e eventual morte por reação hemolítica)10.
Os EA, quanto à gravidade/severidade, são classificados em: leves, moderados, graves/severos e letais, de acordo com a intensidade das intercorrências verificadas11.
A notificação de EA é importante para a identificação de incidentes em saúde. Além de ser um método de baixo custo, é amplamente reconhecida como um método importante para a melhoria contínua da segurança no cuidado à saúde e muitos países estabeleceram seus próprios sistemas de vigilância e notificação12,13. Entre suas possíveis utilizações, os dados notificados podem gerar informações para identificar padrões e tendências sobre a segurança do paciente, priorizando a aprendizagem contínua, a indução do enfrentamento dos problemas identificados e a adoção de medidas gerenciadas em base ao risco. A partir disso, poderão ser desenvolvidas soluções com o intuito de evitar que danos aos pacientes em serviços de saúde venham a se repetir, melhorando a qualidade e a segurança do paciente nesses serviços14.
No Brasil, um marco importante na atenção à saúde foi a criação do Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP), instituído pelo Ministério da Saúde (MS) mediante a publicação da Portaria no 529, de 1º de abril de 2013, que tem o objetivo de contribuir para a qualificação do cuidado em saúde em todos os estabelecimentos de saúde do território nacional. Dentre os objetivos do PNSP destaca-se a promoção da implantação da gestão de risco e dos Núcleos de Segurança do Paciente (NSP) nos estabelecimentos de saúde14.
Ainda em 2013, a Resolução RDC no 36, de 25 de julho de 2013, instituiu as ações para a segurança do paciente em serviços de saúde e definiu conceitos como cultura de segurança, dano, EA, incidente, gestão de risco, entre outros. Dentre essas definições, destacam-se as definições de NSP, como uma “instância do serviço de saúde criada para promover e apoiar a implementação de ações voltadas à segurança do paciente” e do Plano de Segurança do Paciente (PSP), documento que aponta situações de risco do serviço de saúde e descreve as estratégias e ações definidas pelo serviço de saúde para a gestão de risco visando à prevenção e à mitigação dos incidentes, desde a admissão até a transferência, a alta ou o óbito do paciente15.
A notificação de EA ao Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), é um instrumento de auxílio à gestão da assistência16, constituindo uma importante atribuição do NSP ao SNVS. Esse registro deve ser realizado no módulo específico do Sistema de Notificações em Vigilância Sanitária (Notivisa)17.
Em Porto Alegre, as ações de vigilância sanitária são conduzidas pela Coordenadoria Geral de Vigilância em Saúde (CGVS), um departamento ligado à Secretaria Municipal de Saúde (SMS), que tem por objetivo principal a promoção e prevenção da saúde —uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). A CGVS vem buscando consolidar uma prática de atuação articulada entre as áreas de vigilância epidemiológica, sanitária, ambiental e saúde do trabalhador, dividindo-se entre diferentes equipes dentro dessas áreas18.
A Equipe de Vigilância de Serviços de Interesse à Saúde (EVSIS) — integrante da vigilância sanitária — trabalha com foco na segurança do paciente visando a prevenção de EA. Para tanto, trabalha fiscalizando e realizando orientação para adequação dos estabelecimentos de saúde à legislação sanitária vigente18. Esta equipe é composta pelo Núcleo Municipal de Segurança do Paciente (NMSP), constituído frente a magnitude que os EA relacionados à assistência à saúde apresentam, bem como a grande relevância da temática da segurança do paciente e da qualidade da assistência. Ao NMSP competem ações de monitoramento das notificações de EA, de consolidação, avaliação e análise de casos notificados, realização de investigações, apoio à implementação das práticas de segurança nas instituições, promoção e colaboração na capacitação de pessoas, entre outros19.
O presente trabalho teve por objetivo avaliar a qualidade e descrever as notificações de incidentes e EA e analisar suas variáveis informadas através do Notivisa durante os anos de 2016 e 2017.
Trata-se de um estudo observacional descritivo das notificações de incidentes relacionados à assistência à saúde em Porto Alegre. Se propôs a calcular a prevalência desses incidentes e estudar suas variáveis a partir de dados secundários, ou seja, as notificações de incidentes relacionados à assistência à saúde oriundas dos NSP de todos os estabelecimentos de saúde de Porto Alegre (públicos, privados, filantrópicos, civis ou militares, inclusive aqueles que exercem ações de ensino e pesquisa) ao SNVS, presentes no Sistema Notivisa 2.0, no período de janeiro de 2016 a dezembro de 2017. O trabalho apresenta os dados de incidentes relacionados à assistência à saúde analisados pelo pesquisador de forma agregada, sendo mantida a confidencialidade dos estabelecimentos de saúde notificadores.
Uma limitação desta pesquisa é a subnotificação. Partindo de dados secundários, as informações somente podem ser computadas quando as instituições realizam a notificação. Quaisquer casos que não são notificados ficaram omissos do estudo.
A coleta foi feita por meio da exportação dos dados referentes às notificações realizadas no período compreendido pela pesquisa. O sistema Notivisa 2.0 permite a escolha das variáveis desejadas, a exportação para uma planilha eletrônica compatível com o software Microsoft Excel® e o download da planilha.
Foram utilizadas as credenciais do NMSP, que integra a EVSIS junto à CGVS.
A tabulação do banco de dados utilizado para o estudo das variáveis (tipo de incidente; consequências para o paciente; característica do paciente; características do incidente/evento adverso; fatores contribuintes; consequência à organização; detecção; fatores atenuantes do dano; ações de melhoria; e ações para reduzir o risco) foi realizada utilizando-se o software Microsoft Excel®.
Para a avaliação da qualidade das notificações, foi utilizado o critério de incompletude, já aplicado em outros estudos20, levando em conta a proporção de informação ignorada nos campos de preenchimento não obrigatório do formulário (fatores contribuintes; consequência à organização; identificação do incidente/evento adverso; fatores atenuantes do dano; ações de melhoria; e ações para reduzir o risco). Os escores utilizados para avaliação da qualidade da informação foram: excelente (menos de 5% dos campos não preenchidos), bom (entre 5% e 10%), regular (entre 10% e 20%), ruim (entre 20% e 50%) e muito ruim (50% ou mais).
Com relação aos aspectos éticos, este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul, com número de Parecer 2.570.491, estando de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde n° 466, de 12 de dezembro de 2012. O projeto de pesquisa também foi avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, por ser instituição coparticipante, e aprovado sob número de Parecer 2.616.212.
Entre janeiro de 2016 e dezembro de 2017, as instituições de saúde de Porto Alegre notificaram 1.059 incidentes relacionados à assistência à saúde.
Em estudo realizado no Brasil, entre março de 2014 e março de 2017, foi observado que apenas 36,87% dos NSP cadastrados no país realizaram pelo menos uma notificação, totalizando uma média de 123,67 incidentes notificados por NSP21. No período de investigação do presente trabalho estavam cadastrados 20 NSP em Porto Alegre, dentre estes, 12 (60,00%), notificaram pelo menos um incidente, resultando numa média de 88,25 incidentes notificados por NSP notificante.
Os eventos mais frequentemente notificados foram as quedas, responsáveis por 50,00% das notificações. A queda é um evento que faz com que o indivíduo termine no chão ou em um nível inferior de forma involuntária e é capaz de causar traumas e fraturas, os quais têm grande potencial para influenciar nas atividades diárias e qualidade de vida, especialmente de pessoas idosas. Além disso, estão associadas ao aumento da mortalidade, das despesas médicas, do período de internação e ocorrência de processos judiciais22,23.
Em estudo retrospectivo realizado em hospitais de Porto Alegre, entre 2003 e 2013, observou-se que ocorreram 26 óbitos por queda de leito, sendo a maioria pacientes do sexo feminino (65,39%) acima dos 70 anos24.
No período pesquisado, as quedas ocorreram majoritariamente na área do quarto do paciente (33,80%), a partir da cama (28,70%) e no banheiro (21,70%). Em menor frequência, também foram notificadas quedas a partir de cadeiras (6,40%), de escadas ou degraus (2,30%), enquanto fazia uso de equipamento terapêutico ou diagnóstico (2,30%) e enquanto era transportado por outro indivíduo (1,90%). Ainda, dentre o total de notificações, 36,10% das quedas foram de própria altura, 32,90% causadas por escorregões, 17,40% por perda de equilíbrio, 7,40% por tropeçar e 5,50% devido a desmaios.
O segundo tipo de incidente mais frequente foram as falhas durante a assistência à saúde (24,30%), dentre as quais destacaram-se procedimentos, tratamentos e intervenções realizados de forma incompleta ou inadequada (23,70%), errados ou inoportunos (16,30%) ou fora do horário indicado (14,40%).
As falhas durante a assistência à saúde, por sua generalidade, dificultam intervenções e implementação de estratégias de melhoria nos serviços25.
Estudo realizado no centro cirúrgico de um hospital, através da análise de 1.717 relatórios cadastrados previamente em um sistema de notificação de segurança do paciente, observou que os fatores determinantes mais frequentes nas notificações realizadas por médicos, enfermeiras e assistentes são relativos a equipamentos, suprimentos e dispositivos (27,20%), relacionados a procedimentos, tratamentos e testagens (24,90%) e erros de medicação (12,40%). Se observou também, que entre os médicos houve a maior proporção de notificações relacionadas a conduta profissional26.
No presente estudo, também se destacaram as notificações de lesões por pressão (LP), que abrangeram 12,20% do total de notificações. As LP são lesões localizadas na pele e/ou no tecido ou estrutura subjacente, geralmente sobre uma proeminência óssea, resultante de pressão isolada ou de pressão combinada com fricção e/ou cisalhamento27. Dentre estas, as mais frequentes foram as de estágio II (74,40%). As lesões de estágios III e IV são classificadas como never events e foram o segundo tipo de lesão por pressão mais frequente (24,00%), seguidas pelas lesões de estágio I (1,60%).
Um estudo com pacientes sob cuidados paliativos demonstrou que, dentre 475 eventos notificados, 266 estavam relacionados a lesões por pressão28, confirmando a maior vulnerabilidade desses pacientes, principalmente quando submetidos a cuidado e práticas não seguras29.
No estudo em questão, em menor frequência, também foram notificados os acidentes do paciente, falhas na identificação do paciente, durante procedimento cirúrgico, nas atividades administrativas, ocorridas em laboratórios clínicos ou de patologia, na documentação, na administração de dietas, na administração de O2 ou gases medicinais, no cuidado ou proteção do paciente. Essas ocorrências somaram 8,40% das notificações e estão detalhadas na Tabela 1.
Ainda, dentre as notificações, 54 foram classificadas na categoria “Outros”, sendo os eventos mais descritos aqueles relacionados a extravasamentos, a reações alérgicas a contrastes, a medicamentos e a intercorrências durante exames diagnósticos (Figura 1).
Segundo dados divulgados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por meio do Boletim Segurança do Paciente e Qualidade em Serviços de Saúde nº 15: Incidentes Relacionados à Assistência à Saúde, em 2016, 28,00% dos incidentes notificados no país foram classificados na categoria “Outros”, 26,00% como falhas durante a assistência à saúde, 18,90% como úlceras por pressão, 10,90% como quedas e 8,20% como falhas na identificação do paciente30. Esses dados diferem muito dos oriundos de Porto Alegre, onde quedas e úlceras por pressão somaram aproximadamente 62,00% do total de notificações, enquanto a categoria “Outros” correspondeu a 5,10% dos incidentes.
Quanto à gravidade dos incidentes, 47,20% foram classificados como leves, 26,80% sem danos, 17,70% moderados, 7,10% graves e 1,20% resultante em óbito do paciente. No período analisado, em Porto Alegre, a proporção de óbitos mostrou-se mais elevada que a média nacional observada entre junho de 2014 e junho de 2016 (0,60%)24 e a maioria dos óbitos ocorreu devido a falhas durante a assistência, em especial durante tratamentos, procedimentos e intervenções (46,10%) e falhas durante procedimento cirúrgico (23,10%).
Três óbitos foram decorrentes de incidentes classificados como “Outros”, sendo um devido a uma cateterização inadvertida da artéria subclávia, outro resultante de parada cardiorrespiratória em paciente ambulatorial e o último ocorrido em paciente classificado como de baixo risco.
No levantamento realizado observou-se que os incidentes foram mais frequentes enquanto eram realizados procedimentos de tratamento (80,50%) e diagnóstico (13,10%) e menos frequentes em procedimentos como parto ou puerpério (1,60%), reabilitação (0,60%), prevenção (0,30%) e outros (3,90%).
Em relação ao sexo, dentre os pacientes que sofreram algum incidente, 51,60% eram do sexo masculino e 48,40% do sexo feminino.
Quanto a faixa etária, os mais acometidos foram indivíduos entre 26 e 85 anos de idade (84,30%), sendo mais frequentes as faixas dos 66 aos 75 anos de idade (16,40%), 56 a 65 anos de idade (16,00%) e 26 a 35 anos de idade (13,50%). Em 15,70% dos incidentes os acometidos foram crianças, adolescentes e jovens até os 25 anos de idade.
A raça/cor mais frequente foi a branca (20,40%), seguida da preta (1,30%), amarela e parda (0,60% cada). O atributo raça/cor não foi informado em 77,10% das notificações.
Com relação ao diagnóstico, 21,40% dos pacientes estavam acometidos por doenças do aparelho respiratório, 11,80% por neoplasias, 8,90% por doenças infecciosas e/ou parasitárias, 7,60% por doenças do aparelho cardiovascular, 7,00% por transtornos mentais e comportamentais e 6,00% por doenças do sistema nervoso. Também se observou que 11,00% dos pacientes eram acometidos por sintomas, sinais e achados anormais de exames clínicos e de laboratório, não classificados em outra parte. Em menor frequência observaram-se as doenças do aparelho geniturinário, doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas, doenças do aparelho digestivo, doenças do sistema osteomuscular e tecido conjuntivo, entre outras, totalizando 26,30% do total de notificações.
Os hospitais foram as instituições que mais notificaram incidentes relacionados à assistência à saúde (86,20%), seguidos por ambulatórios (5,20%), serviços de radiologia (3,40%), laboratórios de análises clínicas, microbiológicas e/ou anatomia patológica (2,40%), clínicas (1,10%), serviços de urgência e emergência (0,80%), serviços de hemodiálise (0,10%) e outros (0,80%). Segundo o último levantamento publicado pela Anvisa, em nível nacional, os hospitais respondem por 94,00% das notificações de incidentes, seguidos pelos serviços de urgência e emergência (2,30%) e ambulatórios (0,90%)30.
Destaca-se que durante os dois anos foram notificadas apenas duas ocorrências de incidentes por centros de saúde e unidades básicas de saúde. Embora a atenção primária atenda pacientes com menor complexidade, um estudo demonstrou que 82,00% dos eventos causaram danos ao paciente, 25,00% deles com gravidade alta e 7,00% resultantes em óbito31.
Entre as unidades de saúde dos hospitais, 73,70% dos incidentes ocorreram nas unidades de internação, 17,40% nas unidades de terapia intensiva (adulto, pediátrico ou neonatal) e 3,30% nos centros cirúrgicos. Registraram-se eventos em menor frequência nas unidades de urgência e emergência (1,70%) nos setores de radiologia e laboratórios de análises clínicas (0,90% cada), ambulatórios (0,40%) e hospital dia (0,10%).
A maioria dos incidentes ocorreu durante a prestação de cuidados, como diagnóstico, avaliação, tratamento ou intervenção cirúrgica (89,10%). Em 8,50% dos casos o paciente não se encontrava internado e o restante dos incidentes ocorreu durante a consulta, no momento da admissão, na alta ou durante a transferência a outro serviço de saúde (2,40%).
Observou-se também que a maioria dos incidentes ocorreu durante o dia, das 7 h às 19 h (49,50%), e 28,30% ocorreram no período da noite e madrugada, das 19 h às 7 h. Não souberam informar o período da ocorrência 22,20% das instituições.
O termo never events foi criado nos Estados Unidos em 2001, por uma importante agência que promove a segurança do paciente e a qualidade do cuidado (Fórum Nacional de Qualidade). Por definição, um never event consiste num incidente evitável, resultante de erro no cuidado médico, que em geral apresenta consequências sérias aos pacientes, sugerindo a existência de um problema real na segurança e credibilidade do estabelecimento de saúde. É comum a ocorrência destes eventos em cirurgias (local errado, pessoa errada, procedimento errado, retenção de corpo estranho no paciente após a cirurgia)32,33,34,35.
No período da pesquisa foram notificados 39 never events, a maioria deles com grau de dano moderado (74,30%), seguido pelos graves (20,50%) e sem dano (5,20%). A Tabela 2 ilustra os tipos mais frequentes e delimita o problema ocorrido.
Never events em cirurgias não são incomuns, mesmo sendo completamente preveníveis e evitáveis35. No Brasil, em 2016, 1,60% desses eventos foi relacionado a falhas durante o procedimento cirúrgico30. Em Porto Alegre, essa proporção mostrou-se mais elevada tanto em 2016 (50,00%) quanto em 2017 (12,50%).
Os campos não obrigatórios são importantes ferramentas que auxiliam na elucidação dos fatores com potencial para comprometer a qualidade dos serviços e a segurança dos pacientes, assim como uma oportunidade de registrar as medidas adotadas pelas instituições a fim de evitar que erros voltem a ocorrer.
Mediante contabilização dos campos não obrigatórios que não foram preenchidos e aplicação da metodologia escolhida, tanto em 2016 quanto em 2017, as notificações foram classificadas como muito ruins. A Figura 2 ilustra a proporção de campos não obrigatórios que não foram preenchidos nas notificações de incidentes ocorridos durante o período pesquisado.
A notificação de incidentes pelos NSP é uma importante ferramenta com potencial de utilização pelos serviços de Vigilância em Saúde, pois permite a análise da distribuição dessas ocorrências e seus fatores contribuintes, além da identificação de pontos cruciais para atuação a fim de mitigar a ocorrência de EA e melhorar a qualidade do cuidado nos serviços de saúde do território.
O estudo auxiliou na compreensão da epidemiologia local no que se refere à ocorrência de incidentes relacionados à assistência à saúde. Os dados obtidos confirmam a necessidade de implementação de políticas públicas voltadas à segurança do paciente, assim como o desenvolvimento de protocolos para a prevenção de incidentes nos serviços de saúde.
Mostrou-se evidente a carência de notificações oriundas de outros tipos de estabelecimentos, como unidades básicas de saúde, hemocentros, serviços de hemodiálise e serviços de saúde mental ou psiquiátrica. Observou-se também que, dentre os NSP de Porto Alegre, poucos notificaram incidentes durante o período pesquisado, sugerindo que os resultados desse trabalho revelam apenas a ponta do iceberg de eventos ocorridos na capital gaúcha.
Reforça-se a necessidade de ampliação da cultura de segurança nas instituições de saúde, com ênfase em educação e comunicação, por meio do comprometimento de gestores e profissionais, do envolvimento e empoderamento de usuários e familiares e da colaboração entre os diversos departamentos e categorias, evitando-se a cultura punitiva, um importante fator que contribui para a subnotificação de incidentes.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
Cartana JB - Concepção, planejamento (desenho do estudo), aquisição, análise, interpretação dos dados e redação do trabalho. Breier A - Concepção, planejamento (desenho do estudo) e redação do trabalho. Anelo TFS - Análise, interpretação e redação do trabalho. Todos os autores aprovaram a versão final do trabalho.
* E-mail: joaquim.cartana@gmail.com