RESUMO
Introdução: A COVID-19 é causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), tendo como principal via de transmissão a respiratória. Contudo, estudos recentes encontraram material genético do SARS-CoV-2 em fezes de indivíduos infectados e amostras de esgotos sanitários, apontando novos desafios.
Objetivo: Sintetizar as evidências sobre a presença do SARS-CoV-2 em dejetos humanos e esgotos, discutindo possibilidades de vias de transmissão alternativas da COVID-19.
Método: Trata-se de uma revisão narrativa, conduzida em maio de 2020, nas bases Web of Science, Portal de Periódicos da CAPES, Scopus e na Biblioteca Virtual em Saúde, considerando textos em qualquer idioma.
Resultados: Até a data das buscas, poucos estudos reportaram a presença do SARS-CoV-2 nas fezes e nos esgotos sanitários. Todavia, os achados sinalizam a importância de incluir esta temática nas discussões no atual contexto de pandemia. No Brasil, dada a incapacidade da testagem em massa, somada às subnotificações e existência de casos assintomáticos, torna-se importante cogitar alternativas que permitam diagnóstico coletivo para direcionar ações em regiões com maior risco de contágio e circulação do SARS-CoV-2. Assim, o monitoramento dos esgotos pode ser uma alternativa, apresentando, também, relevância econômica por requerer menos dispêndio de dinheiro público quando comparado a outras medidas – testes bioquímicos e moleculares ou outras tecnologias duras. Apesar das dificuldades relativas ao saneamento no Brasil, os esgotos podem ser mais uma ferramenta capaz de contribuir nas vigilâncias sanitária, ambiental e epidemiológica da COVID-19.
Conclusões: Reconhece-se que este artigo não esgota a discussão da temática, mas avança por trazer dados que podem ser somados às informações já existentes sobre as formas de dispersão do SARS-CoV-2 no ambiente.
Palavras chave: SARS-CoV-2, COVID-19, Sistema de Esgotamento Sanitário, Monitoramento do Sistema de Esgoto, Vigilância em Saúde Pública.
ABSTRACT
Introduction: The COVID-19 is caused by the novel coronavirus (SARS-CoV-2), and it’s main route of transmission is respiratory. However, recent studies have found genetic material of SARS-CoV-2 in feces of infected individuals and in sanitary sewage samples, pointing to new challenges.
Objective: Synthesize the evidences on the presence of SARS-CoV-2 in human waste and in sewage, discussing possibilities of alternative transmission routes of COVID-19.
Method: This is a narrative review, conducted in May 2020, in the platforms Web of Science, CAPES Publications Portal, Scopus and the Virtual Health Library, considering texts in any language. To date, few studies have reported the presence of SARS-CoV-2 in feces, urine and sanitary sewage.
Results: However, the findings indicate the importance of including this theme in discussions in the current context of the pandemic. In Brazil, given the inability of mass testing, added to underreporting and the existence of asymptomatic cases, it’s important to consider alternatives that allow the collective diagnosis to direct actions in regions with higher risk of contagion and circulation of SARS-CoV-2. In this sense, the monitoring of sewage can be an alternative, also presenting economic relevance because it requires less expenditure of public money when compared to other measures – biochemical and molecular tests or other hard technologies.
Conclusions: Even though this article does not exhaust the discussion of the theme, it advances by bringing data that can be added to the existing information on the forms of dispersion of SARS-CoV-2 in the environment.
Keywords: SARS-CoV-2, COVID-19, Sanitary Sewage System, Sewage System Monitoring, Public Health Surveillance.
REVISÃO
Presença do novo coronavírus (SARS-CoV-2) nos esgotos sanitários: apontamentos para ações complementares de vigilância à saúde em tempos de pandemia
Presence of the novel coronavirus (SARS-CoV-2) in sanitary sewages: notes for health surveillance complementary actions in times of pandemic
Recepção: 21 Maio 2020
Aprovação: 01 Junho 2020
A COVID-19 ( Coronavirus Disease 2019) é uma doença infecciosa que tem como agente causador o coronavírus denominado SARS-CoV-2 1, 2. Pelo fato de o vírus ter sido descoberto recentemente, a comunidade científica vem empenhando esforços para gerar conhecimentos que promovam tanto a prevenção e o combate à doença, quanto o fomento de discussões sobre os impactos sociais, econômicos e políticos da pandemia em todo o mundo 2, 3, 4, 5.
Estudos científicos têm apontado que a transmissão da COVID-19 entre humanos se dá, principalmente, pela via respiratória, através de gotículas expelidas pela pessoa infectada quando tosse ou espirra, e pelo contato do indivíduo sadio com superfícies e objetos contaminados, nos quais o vírus pode permanecer viável durante um período, a depender da composição do material e/ou superfície 1, 2, 6.
Contudo, nas últimas semanas, alguns estudos nacionais e internacionais foram divulgados apresentando como resultados a presença de material genético do novo coronavírus nas fezes de indivíduos infectados (com ou sem sintomas) 7, 8, 9, em uma amostra de urina 10 e em amostras de esgotos sanitários 11, 12, 13, 14. Assim, estes estudos evidenciam novos desafios que precisam ser reconhecidos e enfrentados pelos países.
Mesmo que, até o momento, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenha declarado que a via fecal-oral não seja uma das principais na disseminação da COVID-19 15, torna-se relevante, mediante o Princípio da Precaução 16, discutir sobre a possibilidade dessa via em meio a mais grave pandemia do século. No que concerne ao Princípio da Precaução 16, 17, devido ao fato de as consequências ou reflexos de determinados atos não serem totalmente conhecidos no ambiente, no espaço e no tempo, medidas necessárias para se evitar danos futuros (riscos) ao meio ambiente e à saúde devem ser adotadas. Ações que mitiguem possíveis impactos negativos podem ser tomadas antes de um nexo causal ter sido estabelecido cientificamente, sendo isso uma determinação do Princípio da Precaução 16, 17. Desta forma, as ações de monitoramento dos sistemas de esgotamento sanitário seriam importantes no sentido de somar forças nos mecanismos de vigilância, principalmente em países em que os casos têm aumentado de forma rápida, como o Brasil.
Assim, neste artigo, objetivou-se sintetizar as evidências disponíveis sobre a presença do novo coronavírus em dejetos humanos (fezes e urina) e em esgotos sanitários, discutindo as possibilidades de vias alternativas de transmissão da COVID-19.
Trata-se de revisão narrativa da literatura, pautando-se em protocolos já estabelecidos e cientificamente aceitos 18. Na primeira semana de maio de 2020, conduziram-se buscas nas bases de dados Web of Science, Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Scopus e naquelas indexadas junto à Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), além de repositórios de Instituições de Ensino e Pesquisa no Brasil. Os termos utilizados foram: “COVID-19”; “SARS-CoV-2”; “Sistema de Esgoto Sanitário”; “ Wastewater”; “ Sewage”; “ Sewage Coronavirus”; “ Wastewater Coronavirus”; “ Sewage COVID-19”; “ Wastewater COVID-19”; com auxílio do operador booleano “AND”.
Foram considerados como critérios de inclusão: artigos originais, editoriais, notas técnicas, revisões de literatura e/ou comentários; nos diversos idiomas; disponíveis na íntegra eletronicamente; publicados entre dezembro de 2019 e o dia 05 de maio de 2020 (data que se conduziram as buscas). A estratégia de consultar as citações dos textos incluídos também foi adotada. Como critério de exclusão, considerou-se: textos com resultados de experimentos feitos em animais. A Figura traz o esquema representativo dos procedimentos de seleção dos textos.
Os textos foram analisados, inicialmente, pelo título, em seguida pela análise do resumo, sendo que para aqueles que não apresentassem informações suficientes que permitissem sua seleção ou exclusão, conduziram-se leituras verticais. A seleção dos textos foi efetuada por todos os autores, sendo que as divergências foram resolvidas por consenso. Por fim, realizaram-se leituras minuciosas do material selecionado, de forma analítica e interpretativa, buscando reunir os consensos, sem deixar de imprimir discussões frente às questões levantadas, principalmente no contexto brasileiro. Pela novidade da temática, a amostra final desta revisão consistiu em oito textos, que serão detalhados a seguir.
A fim de organizar a apresentação dos resultados encontrados, primeiro, foram destacados, na seção “Resultados”, os estudos encontrados por meio das buscas. Em seguida, na seção de “Discussão”, apresentam-se alguns estudos desenvolvidos em períodos anteriores a dezembro de 2019 e que analisaram outros coronavírus nos sistemas de esgotamento sanitário, com destaque para o SARS-CoV (que causa a síndrome respiratória aguda grave) por apresentar características estruturais e genéticas semelhantes ao SARS-CoV-2. Esta opção se deu na tentativa de melhor entender a possibilidade de viabilidade do novo coronavírus, reconhecendo eventuais limitações por se tratar de um patógeno novo.
Apesar de o SARS-CoV-2 ter sido descoberto em dezembro de 2019, todos os estudos encontrados por meio das buscas nas bases eletrônicas foram publicados em 2020. Quanto ao tipo, foram encontrados artigos originais e notas técnicas com resultados prévios de pesquisas.
Em um estudo conduzido na China, no Quinto Hospital Afiliado da Universidade Sun Yat-sem ( Fifth Affiliated Hospital of Sun Yat-sem University), os autores coletaram amostras respiratórias e fecais de pacientes com COVID-19 a cada um ou dois dias, dependendo da disponibilidade da amostra, até dois testes consecutivos darem negativo. Dos 74 pacientes investigados, 41 tiveram testes fecais positivos por, em média, 27 dias, enquanto que, para os testes respiratórios, a média de dias com resultados positivos foi de 16 dias desde o primeiro sintoma 7.
Outra investigação realizada na China mostrou que, na análise de dez crianças com resultado positivo para SARS-CoV-2, oito delas apresentaram amostras fecais positivas com o vírus. Ademais, os autores observaram que, decorrido o período sintomático, as amostras fecais continuaram positivas mesmo com as amostras nasofaríngeas indicando resultado negativo. Os pesquisadores reforçam que há necessidade de estudos que comprovem a presença de vírus com capacidade de replicação nas amostras fecais 8.
Ainda em relação às fezes, outro estudo conduzido na China encontrou uma cepa do SARS-CoV-2 em amostra fecal de um único paciente. Os autores destacam que, além do contato com secreções respiratórias dos casos infectados, haveria possibilidade de o vírus ser transmitido pela via oral-fecal, significando que as fezes poderiam contaminar as mãos, alimentos, água e causar infecções ao invadir a cavidade oral, mucosa respiratória e/ou conjuntiva 9. Todavia, é preciso reconhecer as limitações deste estudo, principalmente em relação à falta de uma amostra representativa.
Ressalta-se, ainda, um estudo que conseguiu fazer o isolamento do novo coronavírus na amostra de urina de um único paciente no Guangzhou Heights People’s Hospital, na China 10. Destaca-se que, apesar da limitação de se analisar apenas um paciente, os autores reforçam que tais achados aumentam a importância das medidas de precaução para se evitar possível transmissão pela urina 10.
A relação entre a presença de ácido ribonucleico (RNA) viral em amostras de esgoto e o número de casos da COVID-19 também foi encontrada em investigação realizada em Paris, na França 11. Os autores analisaram amostras de esgoto sanitário bruto e tratado proveniente das três maiores Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) da capital francesa. O monitoramento foi conduzido entre os meses de março e abril de 2020; e a presença do SARS-CoV-2 foi positiva em todas as amostras de esgoto bruto. A presença também foi constatada em 75% das amostras de esgoto tratado, apesar de ter sido observado que a ETE propiciou redução da carga viral em 100 vezes. Os pesquisadores observaram que a contaminação do esgoto aconteceu antes do aumento exponencial da doença, enfatizando que o aumento da quantidade de material genético do SARS-CoV-2 no esgoto bruto possui relação com o número de mortes, tanto em relação à cidade de Paris quanto em todo território da França. Dessa forma, o estudo confirmou a validade e a importância que o monitoramento nos esgotos sanitários possui na detecção do novo coronavírus entre grupos populacionais em tempo hábil 11.
Em outro estudo realizado no Instituto Nacional Holandês de Saúde Pública e Meio Ambiente ( Dutch National Institute for Public Health and the Environment), os pesquisadores reportaram a detecção de material genético do novo coronavírus em amostras de águas residuárias oriundas dos Países Baixos, na Holanda. O material genético do SARS-CoV-2 foi detectado em amostras de esgoto provenientes do Aeroporto Amsterdã-Schiphol e das ETE das cidades de Kaatsheuvel e de Tilburg, após duas semanas da confirmação do primeiro paciente com a COVID-19 12.
No Brasil, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) detectaram material genético do novo coronavírus em amostras de esgotos na cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, em abril de 2020. Os pesquisadores utilizaram a metodologia de ultracentrifugação, tradicionalmente utilizada para concentração de vírus em esgotos, associada à técnica de transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR) em tempo real, a qual é indicada pela OMS. Reforça-se que a pesquisa ainda está em andamento, com expectativa de expansão, segundo os autores 13.
Já em outro estudo brasileiro, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) coletaram amostras de esgoto entre 13 e 17 de abril; e entre 20 e 24 de abril de 2020, nas cidades de Belo Horizonte e Contagem, municípios do estado de Minas Gerais. Os resultados apontaram que 31% das 26 amostras coletadas tiveram resultado positivo para a presença do SARS-CoV-2. Destaca-se que os pesquisadores recolheram amostras de esgoto sem tratamento e há previsão de analisarem os pontos de saída das ETE 14.
Até o momento, poucos estudos reportaram a presença do SARS-CoV-2 nos dejetos humanos (fezes ou urina) e nos esgotos sanitários, sendo que nenhum confirmou transmissão da COVID-19 pela via fecal-oral.
Contudo, pelo fato de a estrutura do SARS-CoV-2 ser semelhante a de outros coronavírus, alguns estudos anteriores que analisaram patógenos da mesma família trouxeram informações que podem acrescentar na compreensão sobre as possibilidades de transmissão do SARS-CoV-2 por vias diferentes da respiratória. Em 2003, durante um surto de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) causada por um coronavírus denominado SARS-CoV, pesquisadores relataram uma rápida disseminação da doença em Amoy Gardens, um grande complexo de apartamentos particulares localizado em Hong Kong, na China. Foi demonstrado que, diferentemente de um surto viral típico que se dissemina pelo contato pessoa a pessoa, o vírus causador da SARS espalhou-se, nesse caso, principalmente pelo ar. Os resultados mostraram, ainda, que altas concentrações de aerossóis virais provenientes do encanamento de edifícios foram arrastadas para os banheiros dos apartamentos através de ralos no piso, contaminando moradores e visitantes 19.
Em pesquisa executada em 2005, por meio de testes in vitro, Wang et al. 20 avaliaram a persistência do vírus responsável pela SARS em água de torneira sem desinfecção (adição de cloro), águas residuárias de hospital e esgoto doméstico, verificando a permanência do vírus nesses ambientes por dois dias a uma temperatura de 20°C. Essa pesquisa demonstrou, ainda, que o SARS-CoV foi mais suscetível ao processo de desinfecção do que Escherichia coli. Para concentração de cloro residual acima de 0,5 mg/L, verificou-se a inativação completa do SARS-CoV, enquanto essa completa inativação não foi verificada para E. coli. Os dados sugeriram que as práticas padrão de cloração do sistema de águas residuárias municipais poderiam ser suficientes para desativar os coronavírus, desde que as concessionárias monitorassem o cloro disponível durante o tratamento para garantirem que ele não tivesse sido esgotado. Importante também o monitoramento da geração de organoclorados no processo de cloração das águas residuárias 20.
Neste mesmo período de surto da SARS, pesquisadores de Pequim, na China, reportaram a detecção do RNA do coronavírus SARS-CoV em amostras de esgoto previamente concentradas oriundas de dois hospitais que receberam indivíduos infectados. A detecção indicou que o SARS-CoV foi excretado pelas fezes e urinas desses pacientes. Testes in vitro também foram realizados inoculando o SARS-CoV em amostras de esgoto proveniente de um dos hospitais avaliados, demonstrando que o vírus permaneceu infeccioso por mais de 14 dias a 4°C e por dois dias a 20°C. Ademais, o RNA do vírus pôde ser detectado por 14 dias nas amostras de esgoto mantidas a 4°C e por oito dias nas mantidas a 20°C, sugerindo tendência de inativação para temperaturas mais elevadas 21. Já em outro estudo também realizado na China, em 2009, os autores identificaram a persistência de alguns vírus semelhantes ao SARS-CoV-2 em águas naturais e no esgoto por mais de dez dias; relatando a possibilidade de contaminação por meio de gotículas (aerossóis) provenientes do esgoto infectado 22.
Assim, somando os estudos apresentados na seção dos Resultados com os citados na Discussão, os dados aqui reunidos apontam para a necessidade de ampliar o debate sobre outras formas de transmissão do novo coronavírus, com destaque para a via fecal-oral; bem como a possibilidade de realizar o monitoramento da circulação do vírus em populações através do esgoto, propiciando que sejam tomadas as medidas pertinentes em tempo hábil. A adoção dessas medidas torna-se válida, principalmente, nos locais onde há inviabilidades econômicas, logísticas ou culturais de se realizar a testagem em massa 19, 23. Neste contexto, o monitoramento dos sistemas de esgotos pode ser uma importante alternativa a ser incluída pelo Estado ou Administração Pública nas ações contra a COVID-19, fortalecendo a vigilância sanitária, epidemiológica e ambiental.
A epidemiologia de esgotos surge nesta discussão, uma vez que já tem sido usada no rastreamento e sinalização de alertas precoces de surtos de outras doenças virais, tais como a Hepatite A, a Poliomielite e a Gastroenterite 23, 24, 25. Desta forma, o presente artigo aponta esta técnica como uma das possibilidades de oferecer informações importantes sobre a COVID-19 no Brasil, sendo os esgotos sanitários vias ou meios capazes de determinar a escala do surto da doença em determinadas populações.
O Brasil já é considerado um dos países com maior número de infectados – 584.016 casos confirmados até o dia 03 de junho de 2020 26, e com o aumento da circulação do vírus na população, deve-se reconhecer que isso aumentará a carga viral nos sistemas de esgotos das cidades 13, 22. Desta forma, discussões acerca de vias alternativas de transmissão da COVID-19, com destaque para a fecal-oral, necessitam ser consideradas nos meios de comunicação, para se pensar numa estrutura que oriente novas pesquisas com este foco 27.
Sob outra perspectiva, coletar informações sobre a ocorrência e o destino do SARS-CoV-2 no esgoto pode permitir que se conheçam áreas com maior presença do vírus, prevendo possíveis aumentos inesperados e contribuindo em ações regionalizadas (localizadas) que otimizem as respostas dos serviços de saúde, sem sobrecarregá-los, principalmente o Sistema Único de Saúde (SUS).
Dada a incapacidade de realização de testes para toda a população no Brasil, torna-se importante pensar em alternativas que tenham potencial de conhecer coletivamente e direcionar regiões com maior risco e circulação do SARS-CoV-2, principalmente porque, além da possibilidade de subnotificação dos casos, há muitas pessoas contaminadas que são assintomáticas, mas apresentam potencial de transmissão. E, nesse sentido, o monitoramento dos esgotos pode ser uma destas alternativas, apresentando inclusive relevância econômica, pois pode requerer menos dispêndio de dinheiro público quando comparado a outras medidas – testes bioquímicos e moleculares ou outras tecnologias duras.
No Brasil, a opção do monitoramento dos esgotos pode ser considerada pelos gestores federais, estaduais e municipais, pois a coleta de esgoto é um serviço já existente no país. Todavia, é necessário reconhecer as limitações quanto à cobertura ideal em todas as cidades, áreas e regiões, mesmo que o país tenha o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) 28 – que remete a processos de universalização destes serviços. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) 29, o percentual médio de atendimento por redes coletoras de esgotos é de 60,9% nas áreas urbanas das cidades brasileiras, destacando-se a região Sudeste, com média de 83,7%. Em relação ao tratamento dos esgotos, observa-se que o índice médio do país é de 46,3% para a estimativa dos esgotos gerados e 74,5% para os esgotos que são coletados 29.
Todavia, mesmo diante destas dificuldades, os esgotos surgem como mais um tema a ser considerado neste momento de pandemia, apresentando-se como uma ferramenta que pode fornecer um diagnóstico coletivo, especialmente nas maiores cidades que já dispõem de sistema de esgotamento sanitário com coleta que atende percentual acima de 50% da população. No entanto, é essencial que o Estado amplie o sistema de esgotamento sanitário, incluindo também o acesso à água de qualidade 30, garantindo o direito a melhores condições de vida da população, com impacto direto sobre a saúde.
Destaca-se que, para cada R$ 1,00 investido em saneamento, economiza-se R$ 4,00 na saúde 31. Assim, considerar a vigilância dos sistemas de esgoto é, também, considerar ações que envolvam a saúde coletiva 25, 31, 32, valorizando as especificidades dos territórios e suas dinâmicas populacionais, sem deixar de considerar o controle social como um instrumento de lutas para garantia do direito ao saneamento 28 e à saúde 33.
Apesar de, até o momento, nenhuma pesquisa confirmar a transmissão da COVID-19 pela via fecal-oral, os estudos aqui apresentados sinalizam a importância de incluir esta temática na pauta de discussões frente à pandemia. No Brasil, mesmo com as dificuldades relativas ao saneamento, os esgotos podem ser mais uma ferramenta capaz de contribuir nos esforços das vigilâncias sanitária, ambiental e epidemiológica. Torna-se essencial que o Estado amplie o sistema de esgotamento sanitário para a população, além de adotar medidas que estimulem e exijam das empresas prestadoras dos serviços de saneamento o alinhamento de suas atuações, com a necessidade de que elas tenham controle sobre os sistemas, para que sejam fornecidos dados de qualidade e capazes de orientar medidas preventivas de contágio e mitigação dos riscos de adoecimento.
Por fim, reconhece-se que este artigo não esgota a discussão da temática, mas avança no sentindo de apresentar dados que se somam às informações já existentes sobre as formas de dispersão do SARS-CoV-2 no ambiente. Investigações nas diversas cidades do Brasil precisam ser conduzidas, considerando as disparidades regionais, para que se tenha maior clareza sobre a viabilidade do vírus no esgoto bruto e tratado e sobre a viabilidade da contaminação fecal-oral, para que o monitoramento dos sistemas de esgotamento sanitário se fortaleça como ferramenta auxiliar na vigilância de doenças e agravos como a COVID-19.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
Soares AFS – Concepção, planejamento (desenho do estudo), aquisição, análise, interpretação dos dados e redação do trabalho. Souza e Souza LP, Nunes BCR, Costa FCR, Silva LFM – Planejamento (desenho do estudo), aquisição, análise, interpretação dos dados e redação do trabalho. Todos os autores aprovaram a versão final do trabalho.
*E-mail:luis.pauloss@hotmail.com