RESUMO
Introdução: A necessidade do fortalecimento das iniciativas do modelo produtivo de agricultura familiar e do produtor rural em harmonia com os procedimentos de formalização e da produção de alimentos seguros requer da Vigilância Sanitária melhor apreciação do risco relacionado à essas atividades.
Objetivo: Analisar o panorama das inadequações às boas práticas de fabricação detectadas nas inspeções sanitárias de produtores rurais ou de agricultores familiares, do estado de Minas Gerais.
Método: Estudo transversal elaborado a partir das informações obtidas na “Planilha de notificações de riscos e situações de riscos”, da Superintendência de Vigilância Sanitária de Minas Gerais, resultado de todas as inspeções realizadas entre 2017 e 2019 nos estabelecimentos produtores de alimentos dos produtores rurais e agricultores familiares, dos 853 municípios do estado de Minas Gerais.
Resultados: Foram analisadas 3.442 notificações de risco de inspeções sanitárias, sendo possível verificar que os maiores percentuais de não atendimento aos requisitos higiênico-sanitários foram a ausência da capacitação formal dos manipuladores, em 26,00% das inspeções; o uso de água não potável, detectada em 16,50% e a não obediência às boas práticas, pelos manipuladores, citada em 14,20%. Ao contrário, as inadequações de tempo e temperatura no transporte (4,70%), o uso de matérias-primas sem registros (5,10%) e a exposição inadequada (6,20%) dos produtos finais representaram as não conformidades menos referidas nos laudos.
Conclusões: As principais não conformidades verificadas nas inspeções da produção de alimentos pelos pequenos empreendimentos rurais de Minas Gerais demonstraram uma polarização no atendimento às exigências sanitárias, com a priorização de adequações à estruturação física, em detrimento aos processos educativos e de saneamento básico. Tais limitações no cumprimento das determinações normativas ressaltaram as fragilidades basilares que dificultam a inclusão produtiva, devendo servir de referência para as iniciativas de desenvolvimento do setor.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde Pública, Inspeção Sanitária, Produção de Alimentos, Política Pública.
ABSTRACT
Introduction: The need to strengthen the initiatives of the productive model of family farming and rural producers in harmony with the procedures for the formalization and production of safe food requires that Health Surveillance departments better assess the risk related to these activities.
Objective: To analyze the panorama of inadequacies to good manufacturing practices detected in the health inspections of rural producers or family farmers in the State of Minas Gerais.
Method: Cross-sectional study based on the information obtained in the spreadsheet of risk notifications and risk situations ( Planilha de notificações de riscos e situações de riscos ) from the Health Department of Minas Gerais (Brazil). This spreadsheet collect data from all health inspections in food producing establishments of rural producers and family farmers, was carried out from January of 2017 to December of 2019, at 853 municipalities in the State.
Results: 3,442 health inspection risk notifications were analyzed, showing that the highest percentages of non-compliance with hygienic-sanitary requirements were the absence of formal training for handlers, in 26.00% of inspections; the use of non-potable water detected in 16.50% and non-compliance with good practices by handlers, mentioned in 14.20%. On the contrary, the inadequacies of time and temperature in transportation (4.70%), the use of feedstock without registration (5.10%), and the inadequate exposure (6.20%) of the final products represented the non-conformities less referred to in the reports.
Conclusions: The main non-conformities observed in inspections of small rural enterprises in Minas Gerais indicate that structural issues are a higher priority regarding health requirements to the detriment of educational and basic sanitation processes. These constraints on compliance with regulations expose the main vulnerabilities that hinder productive inclusion. These findings may serve as a reference for the sector’s development initiatives.
KEYWORDS: Public Health, Sanitary Inspection, Food Production, Public Policy.
ARTIGO
Principais não conformidades verificadas nas inspeções sanitárias na agricultura familiar e na produção rural de Minas Gerais
Main non-conformities verified in health inspections in family farming and rural production in Minas Gerais
Recepção: 30 Abril 2020
Aprovação: 26 Outubro 2020
O reconhecimento da importância da agricultura familiar e do produtor rural no cenário da alimentação no Brasil tem passado por profundas mudanças, agregando ao seu valor cultural uma consideração socioeconômica, materializada por parte do Estado, na implementação de políticas específicas e de regularização que ampliam as oportunidades e fortalecem o setor1 .
Historicamente considerada como exclusivamente de subsistência, com produção que visa garantir a sobrevivência do agricultor, da sua família e da comunidade em que está inserida, a agricultura familiar é, nos dias atuais, um significativo elemento na cadeia de suprimentos, sendo estimado que cerca de 70% dos produtos que chegam à mesa dos brasileiros derivam dela2 . Do ponto de vista dos produtores, apesar das leis de incentivo e do incremento as iniciativas locais, esse modelo produtivo ainda encontra grandes entraves à comercialização dos seus artigos por se tratar, em sua maioria, de empreendimentos pouco capitalizados, que geralmente recorrem a métodos menos tecnológicos e não comportam transformações complexas, estruturais ou em seus processos, reduzindo a possibilidade de acesso ao mercado formal3 . Assim, para harmonizar os procedimentos de formalização e de segurança alimentar, resguardando os costumes e os conhecimentos tradicionais alinhados às boas práticas, a atuação da vigilância sanitária tornou-se ainda mais relevante.
O prestígio resultante dos programas e o surgimento de novos produtores tornaram urgente a necessidade da apreciação do risco relacionado às atividades desenvolvidas. Em Minas Gerais há uma ferramenta digital, a “Planilha de notificações de riscos e situação de riscos” no FormSUS, de preenchimento rotineiro e remoto, determinado pelo Programa de Monitoramento das Ações de Vigilância em Saúde, deliberado pela Comissão Intergestores Bipartite do Estado de Minas Gerais (CIB-SUS/MG) nº 2.418, de 17 de novembro de 20164 . Essa planilha objetiva a identificação dos perigos, suas diferenciações, avalia a exposição e caracteriza o risco encontrado em todas as inspeções sanitárias, independente da natureza do estabelecimento. No estado, o preenchimento compulsório da planilha parametriza o acompanhamento das fiscalizações e espera-se, com isso, que todas as inspeções (100,00%) realizadas pelos fiscais sanitários, em qualquer tipo de estabelecimento sujeito a fiscalização estadual ou municipal, gerem notificações de risco correspondentes, de forma que o banco de dados resultante seja o mais abrangente possível4 .
Preocupações dessa natureza avigoram a indigência de estudos que verifiquem as condições em que tais empreendimentos estão exercendo suas atividades, de modo que, diante de possíveis não conformidades, possam ser oferecidas sugestões e intervenções que contribuam para a oferta de um alimento com mais segurança e qualidade. Isso porque, além dos atributos de fiscalização, guiados na mensuração dos riscos e na identificação dos fatores associados, a Vigilância Sanitária (Visa) tem a possibilidade de orientar a prevenção de agravos e a promoção das boas práticas sanitárias dirigidas especialmente aos grupos que mais necessitam dos expedientes intelectivos e instrumentais disponíveis5 .
Desse modo, o presente trabalho teve como objetivo analisar o panorama das inadequações às boas práticas de fabricação encontrado durante as iniciativas de regularização, em estabelecimentos de produtores rurais ou de agricultores familiares (assim declarados nas opções da “Planilha de notificações de riscos e situação de riscos”, no FormSUS4 ), do estado de Minas Gerais, de 2017 a 2019.
Com vistas ao embasamento fático e à análise da situação sanitária vigente nos estabelecimentos da agricultura familiar e da produção rural de alimentos, realizou-se um estudo transversal a partir de dados secundários obtidos das inspeções de Visa realizadas pelos fiscais sanitários nos 853 municípios do estado de Minas Gerais, entre janeiro de 2017 e dezembro de 2019.
Em diagnóstico censitário, foram considerados os registros da planilha relativos às inspeções dos estabelecimentos de alimentos e, por interesse da pesquisa, exclusivamente aqueles categorizados como sendo de produtor e/ou de agricultor familiar. Os dados da “Planilha de notificações de riscos e situações de riscos”, compulsoriamente preenchida pelos fiscais permitiram a identificação dos materiais/situações de perigo que se destacaram como os principais riscos sanitários nesses empreendimentos.
Pertinentes às inadequações, para a apreciação das boas práticas, foram consideradas as respostas às perguntas diretas, elencadas do relatório ( Quadro ), sendo quantificadas as frequências das respostas negativas, “NÃO”, no conjunto das notificações de riscos e situações de riscos, derivadas dos distintos fatores que desencadearam as inspeções, também considerados no período, em Minas Gerais. Por igual motivo, as respostas “SIM” e “NÃO SE APLICA” foram desconsideradas para o cálculo das ocorrências, na população estudada.
Em uma mesma inspeção, mais de uma não conformidade higiênico-sanitária pode ser verificada, sendo, portanto, quantificadas conforme os requisitos, não havendo uma distribuição proporcional destas, quanto ao total das notificações realizadas no período.
A análise do banco de dados revelou o cadastro de 482.781 notificações de riscos e situações de riscos correspondentes ao registro das inspeções, de todos os estabelecimentos sujeitos a fiscalização sanitária, realizadas entre 2017 e 2019. Destas, a proporção relativa àquelas dos estabelecimentos da agricultura familiar ou da produção rural totalizaram 3.442 (0,71%) inspeções.
Para as instituições do estado, o caráter compulsório da planilha possibilita o seu uso como instrumento para a proteção da qualidade e do cumprimento das exigências sanitárias relativas à fabricação do alimento comercializado, em todos os municípios mineiros, independentemente da natureza do estabelecimento. É nesse ponto que as ações da vigilância sanitária se fazem importantes para o presente estudo, mantendo-se excluídas do escopo as diferenças entre os produtos e os estabelecimentos, justamente por uma concepção de que possam ser ponderadas como um somatório de práticas e, consequentemente, entendidas na dimensão de sua potencialidade de generalização para o conjunto da agricultura familiar e da produção rural de alimentos em Minas Gerais.
Cabe ressaltar que não se sabe ao certo a representatividade do alcance da presente pesquisa, já que o universo dos agricultores familiares ou produtores rurais de alimentos em Minas Gerais não é conhecido. Porém, provavelmente o número de estabelecimentos é maior do que o registrado. Um déficit no controle sanitário foi apurado por Dorigon6 , ao avaliar os produtos coloniais em Santa Catarina, e adverte que quase todos os produtores familiares rurais, à época, devidamente registrados, iniciaram suas atividades na informalidade. Fischer et al.7 corroboraram a expectativa e asseguraram que o mercado informal é uma alternativa para muitos produtores familiares.
No exercício da fiscalização, variados fatores desencadearam as 3.442 inspeções, durante o período estudado ( Figura ). Avulta o percentual de vistorias para a renovação do alvará sanitário (40,06%), o que indica uma grande quantidade de estabelecimentos já licenciados que se mantiveram em atividade no ano anterior e que expectam por continuidade. Do mesmo modo que a taxa de 33,06% correspondente ao primeiro licenciamento, demonstra o bom percentual de novos estabelecimentos no setor, o que reforça o papel do empreendedorismo na agricultura familiar e na produção rural para a promoção da inclusão produtiva8 .
Em contraponto, se destaca a diminuta ação de Visa motivada por requerimento de autoridades (0,12%) que pode sinalizar um preceito de qualidade, já que tais demandas resultam, em sua maioria, das solicitações do Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor de Minas Gerais (Procon-MG), órgão do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) ou solicitações do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento que, vislumbrando a ocorrência de um risco, requerem a verificação por parte da Visa9 . Além desse, sobressai o baixo percentual de inspeções requeridas por denúncias (1,05%). Esta é uma atividade bastante importante e, diferentemente do que se observou em outros estudos, nos quais a falta de técnicos e de veículos promoveu o condicionamento das vistorias baseadas nas denúncias da população10 , 11 , por aqui, porquanto todas as denúncias devam ser investigadas, esta questão não impactou a frequência das atividades. E, ainda que as dificuldades de infraestrutura e a insuficiência de recursos atinjam todo o país, não se pode desprezar o fato de a baixa representatividade dessa demanda poder estar sendo influenciada pelos novos padrões da relação produtor-consumidor, pautados na confiabilidade e na percepção da conformidade12 .
Nos estabelecimentos de interesse da pesquisa, em 2017 foram contabilizadas 1.008 vistorias, 1.199 em 2018 e, em 2019, somaram 1.235, e média do triênio ( = 1147,3) revelou um aumento superior a duas vezes, quando comparada às fiscalizações anteriores, como, por exemplo, as 514 registradas em 2016. Esse aumento pode ser creditado ao caráter compulsório do preenchimento da planilha, efetivo a partir de 20174 . Mas devem ser consideradas também as atuações do Projeto de Inclusão Produtiva com Segurança Sanitária, iniciativa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e a Frente Nacional de Prefeitos, que aprimorou as ações do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) junto aos empreendimentos que enfrentavam dificuldades para formalizar suas atividades econômicas5 .
Apesar de representar um avanço expressivo, acredita-se que a realidade dessa produção seja ainda muito maior do que a alcançada pelos serviços de Visa. Segundo o relatório do Sistema Safra Agroindústria, Minas Gerais teve 5.728 agroindústrias familiares cujas atividades se subordinaram à competência de fiscalização da Visa, quantificadas em 201813 , representando, portanto, uma média deficitária, em quase cinco vezes, no tocante a este tipo de inspeção. Além disso, nem todos os estabelecimentos rurais de produção de alimentos são classificados como agroindústrias, em função do porte ou da figura fazendária4 , 14 , resultando em números subestimados, da abrangência do serviço de inspeção. Isso porque, para fins do preenchimento da planilha, a categorização do estabelecimento como produtor e/ou agricultor familiar se subordina à avaliação do fiscal, não sendo oferecidas orientações específicas na planilha de notificação. Depende, portanto, do conhecimento sobre a Lei nº 19.476, de 11 de janeiro de 201115 , sobre o Decreto nº 46.712, de 29 de janeiro de 201516 e a Resolução da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES/MG) nº 6.362, de 08 de agosto de 201817 , podendo ser influenciada pelos conceitos e sentimentos pessoais do fiscal sobre o tema.
Por outro lado, ainda que os estabelecimentos sejam categoricamente distintos, as não conformidades, quando presentes, corrompem os princípios sanitários gerais, comuns às boas práticas de fabricação/manipulação. Particularidades conceituais não afetam as avaliações dos requisitos sanitários, para efeito das notificações de risco e de situações de risco, e por isso, os resultados aqui apresentados merecem destaque pela objetiva representatividade no cenário da produção de alimentos e pelo potencial que concebem18 .
Com a pesquisa, foi possível observar que a ausência de capacitação dos manipuladores quanto à paramentação, ao comportamento, à higiene e à condição de saúde foi a inadequação mais frequente, destacada em 869 (25,25%) das 3.442 inspeções realizadas no período. Esta e outras não conformidades se avultaram no comprometimento do nível de adequação do serviço de alimentação frente à legislação sanitária vigente ( Tabela 1 ).
A falta de capacitação dos manipuladores revelou o baixo atendimento dos estabelecimentos à legislação, em especial à Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 275, de 21 de outubro de 200219 e à Resolução SES/MG nº 6.362/201817 . Outros autores também a descrevem como sendo uma deficiência frequente20 , havendo os que atribuíram a exigência da Visa como o motivo para a aderência aos cursos de formação21 , não sendo cônscios dos reais benefícios da cobrança. Desde os primórdios, a agricultura familiar no Brasil ocorre com baixo nível técnico, o que inibe o investimento em adequações sanitárias. Isso reforça a necessidade da conscientização dos trabalhadores da área (e também dos consumidores) quanto ao imperativo das boas práticas para a segurança alimentar, considerando-se que a ausência da capacitação aumenta o risco sanitário e concorre para a inadequação dos alimentos para o consumo22 .
A segunda não conformidade mais encontrada, o uso de água não potável, presente em 550 (15,98%) das inspeções, é um achado de suma importância, por impactar diretamente a qualidade dos alimentos, seja pela possibilidade de contaminação microbiológica ou química, bem como por alterar caracteres estéticos como cor, odor, turbidez, precipitação, cristalização, entre outros, representando sempre, um risco à segurança sanitária do produto23 . Este uso, porém, reflete um cenário que suplanta o ambiente produtivo. Reconhecida como direito fundamental do ser humano pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 201024 , a água potável ainda não está disponível em todo o território nacional. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que 9,1% da população residente na zona rural do Brasil, não possuem acesso à água potável25 . Percentual compartilhado por Minas Gerais, onde a caracterização das formas de abastecimento e o monitoramento da qualidade da água para consumo humano demonstraram que cerca de 10% de toda a população do estado ainda se utiliza de soluções alternativas como forma de abastecimento, nem sempre submetidas a tratamento adequado26 , 27 .
A falta de acesso à água potável acarreta um grande obstáculo aos empreendimentos rurais, pois o uso se associa às doenças transmitidas por alimentos (DTA), estimadas como causa integrada na morte de mais de 2 milhões de pessoas por ano, em decorrência da ingestão de alimentos ou água contaminados28 . Não obstante a necessidade de que cada empreendimento zele pela qualidade da água que emprega em seus processos, é imperioso reconhecer que, sendo um bem comum, torna-se mister a implementação de políticas públicas que configurem medidas sobre a qualidade sanitária e o caráter sustentável dessas iniciativas29 .
Outro destaque entre as não conformidades se refere à desobediência dos manipuladores, quanto às boas práticas, identificada em 476 (13,83%) das 3.442 inspeções. Trouxe surpresa o fato de esse quesito não encabeçar a lista das inadequações encontradas, já que constitui o achado principal, em diversas publicações, cujos textos fazem parecer que os agricultores familiares e os produtores rurais desconhecem por completo, os requisitos das boas práticas de fabricação. Muitos acrescentam ainda a queixa da inflexibilidade da legislação, frente à pequena escala de produção e à impossibilidade de investimentos30 , 31 .
Diversos aspectos podem estar envolvidos na menor ocorrência dessa não adequação. As iniciativas de descentralização e a fiscalização municipal podem ter contribuído para superar os entraves ligados às especificidades do território, de forma que os fatores de risco, as relações sociais e as políticas permitiram uma ação diferenciada nos serviços de fiscalização32 . O desenvolvimento de políticas públicas de alimentação e nutrição que transitaram do planejamento autoritário ao participativo, nas últimas décadas33 , o incremento sociocultural da população, incluído nesse contexto, a educação sanitária e os reflexos na agricultura familiar34 , 35 contribuem para uma alternância no protagonismo dos episódios, para os quais a Visa deve se manter atenta.
Nesse cenário, embora nossos resultados não sejam a única interpretação para explicar tal fenômeno, sinalizam uma disposição de adequação dos pequenos produtores rurais quanto à aplicação das boas práticas, nos quais se observa o uso da prática e da incorporação das metodologias como estratégia de ajustamento, para solucionar os problemas que ocorrem, quando na ausência de um certo rigor na produção36 . Os achados reforçam, portanto, que a apreciação da Visa necessita ser constantemente atualizada para não se perpetuar em combates impassíveis na mitigação das ocorrências contemporâneas. Demonstram ainda que o panorama da cadeia produtiva de alimentos no estado se modifica, imerso na inexorável mutabilidade dos contextos nacionais e internacionais e, como destacado por Prezotto37 , as pesquisas precisam ser continuamente realizadas para que subsidiem a inovação do serviço e das políticas públicas relacionadas.
Quanto aos demais quesitos avaliados, ao se considerar o alimento seguro38 como sendo aquele que não causa doença ou injúria ao consumidor, ausente de contaminações químicas, físicas ou biológicas, as inadequações das edificações, instalações, equipamentos, móveis e utensílios, seja quanto à presença de vetores/pragas, seja nas condições higiênico-sanitárias, constituem significativo achado39 . A higiene inadequada do ambiente de produção pode contaminar os alimentos por meio do contato direto ou indireto36 . Insetos, roedores e pássaros devem ser controlados nas áreas interna e externa do local de produção, com vistas a impedir que sirvam como vetores de patógenos e pragas que comprometem a sanidade e a qualidade dos produtos processados39 . Tais presenças, encontradas em 448 (13,02%) das ações de fiscalização, oferecem elevados riscos por serem fontes de perigos químicos, físicos e microbiológicos, principais formas de contaminação dos alimentos. Do mesmo modo, a falta de condições higiênico-sanitárias nos equipamentos, móveis e utensílios, observada em 365 (10,60%), deve ser um item mais bem avaliado, quando nas inspeções nesses empreendimentos.
De modo inverso, a pesquisa também destaca as não conformidades que representaram os mais baixos percentuais, citadas nos laudos analisados no período ( Tabela 2 ).
Tais achados, fortemente relacionados aos métodos de conservação e à tecnologia de alimentos40 , podem ser explicados pelo fato de grande parte da produção nos estabelecimentos rurais, também pela dificuldade de arcar com os custos desse processo, não requerer temperaturas especiais para a preservação, facilitando a adequação dos estabelecimentos41 . E sobre o quesito da exposição, o ensejo de proteger e melhorar a aceitação do produto fabricado42 parece promover o entendimento sobre a amortização dos investimentos necessários e favorecer o acolhimento às conformidades.
Cabe lembrar, contudo, que qualquer não adequação sanitária guarda em si potencial ameaça à qualidade sanitária do alimento produzido. Porém, na avaliação do risco em alimentos, não se observa uma ponderação no âmbito das fiscalizações. Considerando as disposições sobre a segurança sanitária, sugere-se a adoção da pedagogia do risco na inspeção da produção de alimentos pelo pequeno produtor rural, para a tomada de decisões pela Visa. A hierarquização das não conformidades permitirá ao fiscal elencar as prioridades de correção, analisadas conforme o risco, auxiliando na escolha das intervenções sugeridas para a adequação do produtor. Trata-se de fundar uma hierarquia dos riscos, cuja avaliação dos dispositivos mitigadores se baseia em princípios como a precaução, a responsabilidade política para os riscos de natureza coletiva e a responsabilidade compartilhada para os riscos individuais43 .
O que se propõe instaura a lógica do risco aceitável, no qual as diretrizes para as inferências, no processo de avaliação, são monitoradas por um sistema perito, considerado de excelência técnica, destinado à ordenação dos âmbitos social e material da vida, como é a instituição Visa44 . Embora previsto pelo Código de Saúde do Estado de Minas Gerais45 , o emprego dessa metodologia se restringe à avaliação de alguns tipos de estabelecimentos da área de medicamentos e congêneres. A propositiva, porém, beneficiará tanto os fiscais quanto os produtores de alimentos, assegurando um melhor gerenciamento dos riscos relacionado aos alimentos.
Por fim, cabe asseverar que o presente estudo apresenta limitações, particularmente emolduradas pelo instrumento de pesquisa. Embora a “Planilha de notificações de riscos e situações de riscos” apresente perguntas relativas às boas práticas para diferentes tipos de estabelecimento – favorecendo o uso em uma vasta gama de atividades –, a caracterização dos estabelecimentos não se aprofunda para além da classificação genérica de produtor rural e/ou de agricultor familiar, impedindo mais detalhamentos sobre a população em questão. Ademais, a abordagem generalista e o uso multissetorial da planilha colaboram para que a relevância dos quesitos não seja adequadamente parametrizada, frente à variada possibilidade de produtos fabricados, impossibilitando apreciações mais específicas. Porém, por meio da análise realizada, o estudo oferece uma primeira verificação do desempenho da planilha, nessa categoria específica de produção, cujos achados divisam a restrição do alcance das políticas públicas de saneamento básico e educação sanitária. E serve ainda como um incentivo para estudos complementares que promovam a inclusão produtiva de forma estratégica e articulada no cenário rural mineiro.
A frequência do não cumprimento às normas reguladoras aponta para uma priorização dos quesitos de estruturação física, em detrimento aos processos educativos e de saneamento básico, identificada nas inspeções sanitárias na produção de alimentos pelos empreendimentos rurais de Minas Gerais. O conhecimento dessa anteposição ressalta as principais vulnerabilidades que derrogam o cumprimento das determinações normativas e dificultam a inclusão produtiva, devendo servir de orientação para fomentar o setor. Por meio deste estudo, concebe-se, por fim, que as regulamentações sanitárias, de aspecto genérico, precisam vir acompanhadas de instrumentos que amparem as diferenças no controle dos alimentos, para a aplicabilidade das normas nas ações da Vigilância Sanitária.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
Cesar DF - Concepção, planejamento (desenho do estudo), aquisição, análise, interpretação dos dados e redação do trabalho. Moreira SM - Planejamento (desenho do estudo), análise, interpretação dos dados e redação do trabalho. Todos os autores aprovaram a versão final do trabalho.
* E-mail: danielafcesar@gmail.com