RESUMO
Introdução: A qualidade insatisfatória e questionável de alguns produtos comercializados para a assistência à saúde constitui um dos problemas enfrentados pelas instituições hospitalares. Alguns hospitais contam com a gerência de risco e fazem parte da Rede Sentinela, implantada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para enfrentar esse problema.
Objetivo: Analisar as ações desenvolvidas por gerências de risco hospitalares na vigilância pós-comercialização.
Método: Estudo de casos múltiplos, com abordagem qualitativa, composto por quatro instituições hospitalares públicas integrantes da Rede Sentinela, em Florianópolis, Santa Catarina. Os dados foram coletados por meio de triangulação, com as técnicas de entrevista semiestruturada, observação direta não participante e pesquisa documental, no período de fevereiro a junho de 2017. A análise dos dados ocorreu por meio da síntese cruzada dos casos, da qual emergiram duas categorias: a estrutura organizacional da gerência de risco e as ações desenvolvidas pela gerência de risco.
Resultados: Entre as similaridades nas ações realizadas pela gerência de risco hospitalar estavam o estímulo à notificação, a investigação das notificações, o feedback sobre a notificação e a capacitação dos profissionais sobre a temática. Entre os principais contrastes encontrou-se a estrutura organizacional da gerência de risco em cada instituição e o processo de comunicação interna dos riscos.
Conclusões: Entre as ações desenvolvidas, destaca-se o encaminhamento das notificações para a Anvisa, via o sistema Notivisa. Essa ação é fundamental para que a agência realize a vigilância sanitária dos produtos utilizados na assistência à saúde na fase pós-comercialização.
Palavras chave: Vigilância em Saúde Pública, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Gestão de Riscos, Garantia da Qualidade dos Cuidados de Saúde, Vigilância de Produtos Comercializados.
ABSTRACT
Introduction: The unsatisfactory and questionable quality of some products marketed for health care is one of the problems faced by hospital institutions. Some hospitals have risk management and are part of the Sentinela Network, implemented by the National Health Surveillance Agency (Anvisa) to face this problem.
Objective: Analyze the actions taken by hospital risk management teams in post-marketing surveillance.
Method: Multiple case study, with a qualitative approach composed of four public hospital institutions that are part of the Sentinela Network in Florianópolis, Santa Catarina. Data were collected through triangulation, with semi-structured interview techniques, non-participant direct observation and documentary research, from February to June 2017. Data analysis occurred through the cross-synthesis of cases, from which two categories emerged: organizational structure of risk management and actions developed by risk management.
Results: The similarities between the actions taken by the hospital risk management are: an encouragement of notifications, the investigation of notifications, feedback on notification, and the training of professionals on the subject. Among the main contrasts, we can mention the organizational structure of risk management in each institution and the internal communication of risks.
Conclusions: Among the actions developed, the forwarding of notifications to Anvisa is highlighted via the Notivisa system. This action is essential for the agency to carry out health surveillance of products used in health care, in the post-marketing phase.
Keywords: Public Health Surveillance, Brazilian Health Surveillance Agency, Risk Management, Quality Assurance, Health Care, Product Surveillance, Postmarketing Surveillance.
ARTIGO
Ações desenvolvidas por gerências de risco hospitalar na vigilância pós-comercialização
Actions developed by hospital risk management teams in post-market surveillance
Recepção: 23 Março 2021
Aprovação: 04 Novembro 2021
A complexidade do ambiente hospitalar aumenta com o avanço das tecnologias em saúde, o que traz riscos e benefícios na assistência prestada. Não há como garantir a inexistência de riscos, independentemente do produto utilizado. Os serviços de saúde e a Vigilância Sanitária são responsáveis pela prevenção de danos aos pacientes que utilizam equipamentos e artigos de uso médico-hospitalar1. Conceitualmente, tecnologias em saúde são reconhecidas como um conjunto de equipamentos, medicamentos, insumos e procedimentos/processos usados na prestação dos serviços de saúde. Esses recursos envolvem a infraestrutura, bem como a forma de organização das instituições que prestam assistência em saúde2.
Com o intuito de obter informações qualificadas dos produtos após sua comercialização e desenvolver ações de vigilância sanitária intra-hospitalar, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) implantou em 2002 a Rede Sentinela3. Desde então, foi estruturada no Brasil uma rede de instituições hospitalares qualificadas para acompanhar e notificar queixas técnicas (QT) e eventos adversos (EA) dos produtos utilizados na assistência à saúde sujeitos à Vigilância Sanitária4.
A rede é um observatório do uso de tecnologias em saúde e um notificador para o Sistema de Notificação e Investigação em Vigilância Sanitária (VIGIPÓS). O VIGIPÓS é uma dimensão da vigilância que mantém uma observação sistemática de EA e desvios de qualidade ou QT dos produtos sob vigilância sanitária no país3, envolvendo sangue e derivados, medicamentos, produtos para a saúde, saneantes, cosméticos e assistência à saúde4.
Os hospitais credenciados à Rede Sentinela assumem o compromisso de implantar na instituição uma gerência de risco, responsável por capacitar a equipe e fomentar a cultura de notificação. Além disso, esses serviços devem nomear um profissional como gerente de risco, que terá como atribuição coordenar as ações de identificar, investigar e notificar na instituição e fazer a interface entre as ações de vigilância sanitária intra-hospitalar e a Anvisa5 , 6.
Frente a esse cenário, este estudo se justifica pelo enfoque na gerência de risco em instituições credenciadas à Rede Sentinela, com a expectativa de produzir evidências empíricas sobre as ações de monitoramento dos produtos utilizados na assistência à saúde na fase pós-comercialização. Com essa perspectiva, admitem-se as seguintes proposições: 1) a gerência de risco hospitalar se caracteriza como o elo entre o hospital e a Anvisa, que identifica, analisa, avalia, monitora e comunica os riscos, sob a coordenação do gerente de risco; 2) a Rede Sentinela é um observatório da pós-comercialização de produtos para a saúde, que concretizou as ações do VIGIPÓS em âmbito hospitalar.
Com base nessas proposições, questiona-se: como se evidenciam as ações desenvolvidas por gerências de risco hospitalar na vigilância pós-comercialização? Este estudo teve por objetivo analisar as ações desenvolvidas por gerências de risco hospitalar na vigilância pós-comercialização.
Estudo de casos múltiplos, com abordagem qualitativa. O estudo de casos múltiplos é composto por um grupo de casos individuais que permite compreender e investigar de maneira aprofundada o fenômeno estudado. São considerados mais robustos e possibilitam maior certeza sobre os resultados7.
Os casos estudados corresponderam a quatro instituições hospitalares públicas integrantes da Rede Sentinela em Florianópolis, Santa Catarina (um hospital universitário federal e três hospitais estaduais). Dentro do estudo de casos múltiplos, cada instituição hospitalar correspondeu a um caso. Constituíram critérios de seleção dos informantes-chave: 1) ser gerente de risco ou profissional designado para essa função; 2) ser profissional atuante em conjunto com o gerente de risco na vigilância sanitária pós-comercialização, independentemente da formação e do tempo de atuação no setor.
Os dados foram coletados no período de março a julho de 2017, por meio de entrevista semiestruturada, observação direta não participante e pesquisa documental. As entrevistas semiestruturadas foram agendadas previamente via telefone e realizadas individualmente, em local determinado pelo participante do estudo, sendo gravadas após sua autorização com o auxílio de um gravador de voz. Posteriormente, essas entrevistas foram transcritas na íntegra e retornadas aos participantes via e-mail para validação.
As observações diretas não participantes foram realizadas em cada gerência de risco por um período aproximado de quatro horas e foram agendadas pessoalmente no dia da entrevista, ou realizadas em diferentes períodos, enquanto a pesquisadora aguardava a entrevista. A pesquisa documental foi realizada mediante a solicitação verbal de documentos, disponibilizados em sua maioria por e-mail . Também foram consultadas as informações disponíveis nos sites das instituições. A análise dos documentos foi realizada com base na leitura e sistematização dos conteúdos documentais, para posterior confronto com as demais técnicas de coleta de dados.
A fim de se preservar o anonimato dos participantes, os casos são denominados A, B, C e D. Os gerentes de risco e os demais profissionais que atuam na vigilância sanitária pós-comercialização são identificados pela letra que determina o caso, seguida de um número de 1 a 5 que representa o profissional. Os documentos estão identificados pela sigla DOC., seguida de um número que representa o documento e da letra que identifica o caso. As observações estão identificadas pela sigla OBS., seguida da letra que identifica o caso. A Figura ilustra o conjunto dos dados coletados.
Para a análise dos dados, foi utilizado o software MaxQDA®plus, que possibilitou codificar, categorizar e realizar a triangulação dos dados coletados nas entrevistas semiestruturadas, nas observações diretas não participantes e nos documentos. A análise dos dados foi realizada por meio da síntese cruzada dos casos, técnica empregada para a análise de casos múltiplos. Essa técnica de análise é relevante em estudos que possuem no mínimo dois casos7. Após o tratamento dos dados com o apoio do software , foram estruturadas tabelas, nas quais os dados foram agrupados em duas categorias: a estrutura organizacional da gerência de risco e as ações desenvolvidas pela gerência de risco.
O estudo foi submetido para a apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos e foi aprovado com o CAAE nº 63084416.6.0000.0121.
Todos os casos estudados são hospitais de referência estaduais e são credenciados no perfil participante na Rede Sentinela. As instituições possuem gerente de risco, contudo, sem dedicação exclusiva para as atividades do setor. Todos os casos realizavam notificações nas áreas de tecnovigilância, hemovigilância, farmacovigilância e erros de assistência, mas apenas o caso B realizava notificações na área de biovigilância. As características de cada caso estão descritas no Quadro 1 .
Em seguida, estão descritas as duas categorias que emergiram da triangulação dos dados: a estrutura organizacional da gerência de risco e as ações desenvolvidas pela gerência de risco. A primeira aborda como cada gerência de risco é estruturada dentro da instituição. A segunda apresenta as ações que são realizadas pela gerência de risco.
A estrutura organizacional da gerência de risco apresenta similaridades e contrastes entre os casos. Nos casos B e C, o gerente de risco é responsável por coordenar uma equipe multiprofissional, que atuava em conjunto nas ações da Vigilância Sanitária pós-comercialização. No período de observação, foi possível perceber que o gerente de risco no caso B coordenava quatro profissionais, sendo cada um responsável por áreas específicas na farmacovigilância, na tecnovigilância, na hemovigilância e nos Núcleos de Segurança do Paciente (NUSEP). A gerência de risco do caso C contemplava, além das áreas citadas, o Gerenciamento de Resíduos, a Comissão Permanente de Parecer Técnico de Materiais (CPPTM) e o Núcleo de Vigilância Epidemiológica.
[...] a minha contribuição no gerenciamento de risco é ser o gerente. [...] E como é o conjunto, de hemovigilância, farmacovigilância, tecnovigilância, biovigilância e a parte da segurança paciente. Então para cada área afim tem pessoas responsáveis [...] (B2).
Estou nomeada pela Direção como gerente de risco [...] a gerência de risco aqui no hospital é desenhada como um grande guarda-chuva, contemplando o Gerenciamento de Resíduo, a CPPTM e o NUSEP e o Núcleo de Vigilância Epidemiológica [...] (C1).
Já nos casos A e D, o setor estava estruturado de maneira diferente. No período de observação, percebeu-se que, no caso A, dois profissionais trabalhavam em conjunto nas ações da gerência de risco e no NUSEP. No caso D, o gerente de risco atuava sozinho e tinha suas ações voltadas para a farmacovigilância, a tecnovigilância e a hemovigilância.
[...] nós realizamos as atividades em conjunto. [...] após a estruturação do NUSEP, também foi designado para nós (A2).
Além de gerente de risco [...] a farmacovigilância, a tecnovigilância e a hemovigilância (D2).
O contraste entre os casos está relacionado com a estrutura e organização do setor dentro de cada instituição.
Entre as ações desenvolvidas, o estímulo à notificação foi citado como principal atribuição da gerência de risco. As ações desenvolvidas pela gerência de risco são articuladas entre si, sendo desencadeadas a partir da notificação.
Eu sempre vi como a principal atuação, e o restante era a consequência, é estimular os profissionais a realizar as notificações [...] (D2).
Entre as ações desenvolvidas pelos profissionais que atuavam na gerência de risco dos casos A, B e D, estavam receber as notificações, investigar o evento notificado, notificar no Sistema de Notificação em Vigilância Sanitária (Notivisa), buscar solucionar o incidente que ocasionou a notificação e acompanhar o evento notificado dentro da instituição e no sistema Notivisa.
[...] as principais atribuições são basicamente essas: receber as notificações, notificar, tentar solucionar e acompanhar. [...] quando houver solução no caso eu fecho encerro a notificação (A1).
Ir atrás de todos os riscos, de todos os eventos adversos notificados na instituição, é ajudar na investigação de alguns e monitorar os eventos que são notificáveis no Notivisa (B2).
Outra ação desenvolvida pela gerência de risco era a busca ativa. No caso B, os profissionais que atuavam na tecnovigilância, na hemovigilância e na segurança do paciente realizavam busca ativa nas evoluções dos prontuários dos pacientes e nas unidades assistenciais, envolvendo outros setores como o almoxarifado. A busca ativa tem por objetivo identificar os eventos não notificados pela equipe de saúde e verificar o quantitativo dos artigos médico-hospitalares notificados na instituição, para decidir as ações necessárias.
O caso C sinalizou que a maior parte das notificações com foco nos protocolos de segurança do paciente são identificados por meio da busca ativa, que é realizada diariamente em todos os prontuários dos pacientes. O caso D desenvolveu como estratégia a busca ativa por meio do contato pessoal com os profissionais nas unidades, questionando-os sobre possíveis EA e QT ocorridas nos setores.
E também a busca ativa nas evoluções dos enfermeiros que nós fizemos, para ver se tem algum evento adverso que eles não notificaram, que a gente precisa investigar. Nas evoluções, no sistema (B5).
[...] a maior parte das notificações são identificadas através da busca ativa realizada em 100% dos prontuários eletrônicos dos pacientes [...] (C1).
E fazia também aquela busca do corpo a corpo, e perguntava: estou pegando as notificações, alguém tem mais alguma notificação? (D2).
Na análise documental, foi possível perceber que, no caso B, também se realizava a consulta aos profissionais de saúde e aos pacientes. É destacada como imprescindível a participação dos profissionais de saúde para ampliar e qualificar esse processo (DOC. 11 B).
O caso A não realizava busca ativa. Isso é justificado devido às ações da gerência de risco serem desenvolvidas na farmácia e conciliadas com as atividades desse setor. No caso B, a farmacovigilância não realizava busca ativa devido à carga horária restrita do profissional que atuava na área.
Nós não conseguimos fazer uma busca ativa [...] isso que é a grande dificuldade por estar na área de farmácia, porque, às vezes, muitas coisas acontecem durante a assistência ao paciente, ali no dia a dia, que o farmacêutico não tem contato. Isso prejudica tanto o entendimento do que está acontecendo quanto na coleta dessas notificações [...] (A1).
[...] eu ainda como tenho uma carga horária muito restrita, eu não consigo fazer busca ativa (B1).
Todos os casos estudados apresentaram similaridade nas ações que envolvem a investigação das notificações recebidas pelo setor e nas mudanças de processos internos ocasionadas pela notificação/investigação. A investigação ocorre por meio da busca em prontuários e da interação com os autores envolvidos no evento notificado, sendo priorizados os eventos mais graves. Isso resulta em planos de ação, mudanças de processos internos e criação de barreiras, com o objetivo de evitar a ocorrência de um novo evento. Os casos destacaram que a gerência de risco atua no sentido de oferecer soluções para as falhas identificadas e que a maioria dos problemas são solucionados pela mudança dos processos internos e capacitação dos profissionais.
[...] a investigação é uma das funções... que é importante porque muitas vezes é onde você vai conseguir fazer um fluxo e ter um plano que vai melhorar aquilo que está acontecendo, seja um evento, ou uma situação anômala que está acontecendo naquele momento. [...] Muitas coisas, às vezes, é erro de processo. As pessoas não têm a informação correta ou não foram treinadas (D2).
Na análise documental, observou-se que as ações da gerência de risco eram voltadas para melhorias, correções e/ou prevenção da recorrência de eventos relacionados aos riscos sanitários hospitalares. As informações geradas pela gerência de risco devem ser utilizadas para o aperfeiçoamento dos processos e das medidas preventivas e corretivas, uma vez que não basta acompanhar as notificações sem utilizá-las para o aperfeiçoamento interno (DOC. 11 B). As fichas de notificações possuem orientações para detalhar o incidente, com o objetivo de estabelecer medidas preventivas (DOC. 1 A).
Outra ação desenvolvida pela gerência de risco era o retorno ao notificador, aos setores e/ou ao profissional envolvido no incidente notificado. No caso B, o retorno era realizado ao notificador (quando este se identifica) por e-mail ou pessoalmente. Tudo depende da gravidade do evento. Também se realizava o retorno para os setores e para as equipes que realizaram o atendimento, principalmente quando envolvia questões voltadas à segurança do paciente ou eventos gerados por falhas de processos internos. Nesses casos, a preocupação da gerência de risco era evitar caracterizar o evento ocorrido como individual, centrado no profissional envolvido no evento.
O caso C estabeleceu um fluxo interno, no qual a gerência de risco elaborava um plano de ação a partir das demandas que surgem dos notificados, que era encaminhado para os setores, que executavam o plano, corrigindo as falhas nos processos de trabalho. No caso D, o retorno era realizado para o profissional que prescreveu erroneamente alguma medicação. Na análise documental, percebeu-se que o ofício explicava as consequências que isso pode ocasionar ao paciente, sugerindo melhorias no processo (DOC. 3 D).
Habitualmente, dá-se o retorno dessas notificações, ao notificador. [...] que ocorre por meio de uma carta... ou por e-mail. [...] quando é um caso mais grave, dá-se um retorno ao setor. Não é diretamente relacionada à pessoa (a carta), quando envolve problema de processo...para não caracterizar nenhum problema, principalmente em relação a segurança do paciente, como individual (D2).
Desenhamos um fluxograma, que encaminha as demandas notificadas para os setores responsáveis desenharem planos de ação [...] a fim de corrigirem as falhas nos processos de trabalho e com prazo determinado para o cumprimento (C1).
Além disso, os casos A, B e D, quando identificavam QT ou EA nos artigos médico-hospitalares e/ou medicamentos, comunicavam o ocorrido ao fornecedor. Este, por sua vez, avaliava a necessidade de capacitação dos profissionais sobre o uso do produto, assim como a necessidade de troca de lote/marca/substituição do material. No caso B, o setor de licitação e compras também era comunicado, para que estive ciente do que estava ocorrendo. No caso C, após as informações serem repassadas para o Notivisa, a notificação de tecnovigilância era encaminhada para a Secretaria de Saúde, que realizava os trâmites com os fornecedores. Os casos A e D também encaminhavam para a Secretaria de Saúde, contudo, foi destacado que, no caso D, devido à demora no retorno da Secretaria, a gerência de risco entrava em contato com o fornecedor.
[...] com desvio de qualidade do material [...] ligo para o SAC da empresa, que vai direcionando [...] recolhe o material, ou vem aqui e verifica se é necessário capacitar os funcionários sobre seu uso, ou repor, ou trocar o lote do material. [...] eu escaneio (ficha de notificação) e mando para uma comissão de material hospital que tem na secretaria (Secretaria de Saúde) (A1).
[...] quando é por problemas de material, o retorno é dado para a empresa, para eles saberem qual o lote do material que está com problema e, habitualmente, eles vêm para saber da instituição ou, pelo menos, por e-mail ou algum meio de comunicação saber o que aconteceu com os produtos deles (B2).
O caso D desenvolveu uma ação que o diferencia dos demais casos. O gerente de risco era responsável por averiguar se os artigos médico-hospitalares possuem QT ou EA notificados, antes de encaminhá-los para os setores realizarem o parecer técnico.
[...] Então são coisas que eu tenho que olhar no Notivisa se tem alguma queixa técnica, se não tem e encaminhar. É a gerência de risco que vê se existe alguma queixa de materiais (D1).
Os entrevistados dos casos A, B e D relataram que as amostras dos artigos médico-hospitalares ou dos medicamentos notificados eram arquivadas pela gerência de risco. Essa é uma orientação da Anvisa que também é utilizada como argumento no contato com o fornecedor. Na análise documental, constatou-se que as fichas de notificação possuíam a orientação para encaminhar o produto notificado para a gerência de risco (DOC. 4 A, DOC. 4 B, DOC. 2 D).
Nós recebemos uma orientação da Anvisa que tinha que deixar o material, como diz aqui: mantenha a amostra em seu poder (B3).
É uma orientação nossa de estar mandando junto, porque, ao entrar em contato com a empresa, já mostramos o material com problema [...] (D1).
Diante dos relatos dos profissionais, percebeu-se que o caso B apresentava alguns contrastes em relação aos demais casos. A gerência de risco desenvolveu ações voltadas para a comunicação interna dos riscos. Isso ocorria por meio de boletins informativos em farmacovigilância (realizado em situações pontuais) e triagem e repasse dos alertas técnicos da Anvisa para os setores do hospital. Observou-se que a primeira ação desenvolvida pelo profissional no início do seu processo de trabalho foi a consulta ao site da Anvisa (no espaço “consulta ao produto irregular”) para identificar os alertas emitidos e comunicar aos setores que, se necessário, devem retirar o artigo médico-hospitalar e/ou medicamento de circulação na instituição (OBS. B).
Às vezes, eu emito alguns boletins da farmacovigilância quando existe algum evento ou um erro de medicação recorrente ou informação específica sobre a diluição de medicamento, estabilidade, então eu faço um boletim informativo. [...] É impresso. Mas ele não tem uma circulação, uma frequência específica. É quando ocorre uma situação pontual (B1).
Na análise documental, foi possível perceber, também, que a direção e os principais gestores da instituição eram informados sobre os EA que causaram danos ao paciente. Essa ação tem o objetivo de mantê-los cientes do que está ocorrendo na instituição (DOC. 11 B).
Os quatro casos estudados apresentaram similaridades nas ações de capacitações da equipe sobre as áreas de atuação da gerência de risco.
Capacitar as suas equipes. Temos feito bastante curso aqui no hospital em todos os níveis (C1).
O caso B destacou como atribuição da gerência de risco o fornecimento de relatórios semestrais à Rede Sentinela. Na fala do profissional do caso D, também foi possível perceber a realização do relatório.
E também fornecer para a Rede Sentinela os relatórios semestrais que eles exigem (B2).
Sai um boletim informativo a cada seis meses da Rede Sentinela, e o nosso hospital estava no grupo A (D2).
Na análise documental, percebeu-se que o caso A também emitia o relatório, uma vez que ele foi disponibilizado para análise.
No Quadro 2 , apresentam-se as principais similaridades e os contrastes entre os casos estudados.
Os resultados do estudo possibilitaram comparar, nos quatro casos estudados, as ações realizadas pela gerência de risco na vigilância sanitária pós-comercialização. Os casos apresentaram similaridades na maioria das ações e alguns contrastes.
Todos os casos estudados estavam credenciados no perfil participante, assim, possuem o compromisso de ter implantado na instituição uma gerência de risco atuante que alimente os dados do VIGIPÓS. As instituições hospitalares se credenciam de maneira voluntária na Rede Sentinela e podem optar por diferentes perfis de credenciamento, que não possuem hierarquias nem são excludentes3.
A adesão dos hospitais na Rede Sentinela possibilita conhecer as QT e os EA nas áreas de farmacovigilância, de tecnovigilância, de hemovigilância, de biovigilância e nos erros de assistência. Contudo, é necessário um maior fortalecimento da Rede Sentinela no país, que seja capaz de torná-la referência na vigilância dos produtos utilizados na assistência à saúde em nível nacional e internacional, sobretudo em relação à importância que o processo de notificação tem para a obtenção de informações qualificadas para a regulamentação sanitária8.
Ademais, as notificações permitem a investigação das inconformidades identificadas, o que reflete na tomada de decisão nas ações voltadas à segurança do paciente9. Nesse contexto, ressalta-se a importância do comprometimento das instituições credenciadas na Rede Sentinela, com a proposta da Anvisa.
Neste estudo, pôde-se perceber a articulação entre a gerência de risco e o NUSEP, que desenvolvem ações conjuntas nas instituições estudadas. O foco inicial da Anvisa na pós-comercialização dos produtos para saúde teve expansão com a introdução de notificações de EA decorrentes da prestação dos serviços de saúde, notificações essas que são incorporadas ao Sistema Nacional de Vigilância Sanitária3.
A estrutura organizacional das gerências de risco estudadas era organizada de acordo com a estrutura (recursos humanos, estrutura física) disponibilizada institucionalmente. Vale ressaltar que a designação formal de um profissional para atuar como gerente de riscos é critério básico para o credenciamento na Rede Sentinela3. Percebeu-se que, quanto maior a estrutura fornecida (principalmente de recursos humanos), maior o número de ações desenvolvidas pela gerência de risco.
Um estudo enfatiza a atuação do gerente de risco como profissão e destaca a necessidade de esse gerente acompanhar sua produtividade com o objetivo de evidenciar o seu valor para o alcance das metas da instituição10.
O dimensionamento inadequado e a rotatividade de profissionais interferem na operacionalização das ações de gerenciamento de risco. Isso resulta em subnotificação, o que prejudica a implantação de melhorias, a análise dos riscos e dos eventos que ocorrem11, além de fragilizar a cultura de segurança na instituição12.
Salienta-se a dificuldade encontrada pelas instituições de saúde em alocar recursos para o gerenciamento de risco. Isso ocorre porque o setor é considerado tipicamente um departamento que não gera lucros para a instituição10. Entretanto, deve-se considerar que, quando os riscos institucionais são gerenciados de maneira eficaz, a gestão de risco contribui para reduzir a exposição dos profissionais, além de promover a qualidade e a segurança do atendimento prestado13.
As ações desenvolvidas pela gerência de risco dos casos estudados se assemelham, em parte, a estudos realizados em outros países. Nos Estados Unidos, os profissionais responsáveis pela gestão de riscos nos hospitais, além de desenvolverem e implementarem programas de gerenciamento de riscos, possuem o compromisso de criar e/ou revisar políticas e procedimentos relacionados à própria gestão13. Nesse mesmo país, outro estudo apresentou como atividades realizadas, a identificação e análise dos riscos, a prevenção de perdas, as atividades voltadas para a segurança do paciente, o fornecimento de feedback para funcionários, a capacitação da equipe e a revisão de contratos e políticas10.
A busca ativa, realizada pela maioria dos casos estudados, é destacada como uma maneira de conhecer a própria instituição. Esse fato corrobora o estudo que caracteriza a busca ativa como uma estratégia gerencial que permite conhecer as situações de risco14. Além do mais, realizar uma busca ativa de incidentes tem se mostrado uma estratégia gerencial, pois contribui para identificar situações de riscos em hospitais14.
O retorno ao notificador, ao setor e/ou ao profissional envolvido no evento notificado é realizado de diferentes maneiras nos casos estudados. O retorno estabelece um canal de comunicação, que permite que a instituição forneça um feedback sobre as condutas tomadas para a resolução do problema, além de repassar orientações e informações para os profissionais15.
Neste estudo, a gerência de risco entra em contato com o fornecedor e segue as orientações da Anvisa, arquivando as amostras dos produtos/medicamentos e as notificações, o que corrobora outro estudo, realizado em uma instituição credenciada à Rede Sentinela16. Dessa forma, enfatiza-se a importância da gestão de risco no monitoramento e no controle da qualidade dos produtos utilizados nos estabelecimentos de saúde, como também se enfatiza a importância de um sistema de pré-qualificação dos artigos médico-hospitalares que viabilize a seleção adequada dos produtos e que exija qualidade antes mesmo da aquisição17. Um estudo realizado na Tailândia demonstrou que os hospitais também realizavam gestão de risco dos produtos utilizados na assistência à saúde por meio da investigação de queixas, da vigilância da publicidade inadequada e do sustento das bases de dados da gestão de risco e vigilância18.
O envolvimento dos profissionais de saúde é fundamental para o sucesso das ações da gerência de risco. Esses profissionais contribuem na identificação, na análise e no tratamento dos riscos, o que resulta em uma diminuição dos incidentes na instituição. A sensibilização e as capacitações dos profissionais sobre essa temática fomentam a mudança da cultura organizacional e contribuem para o aumento do número de notificações19. No entanto, a análise de acidentes pode ser refinada com o uso de técnicas e teorias que auxiliem na identificação das causas do incidente, impedindo a simples atribuição de culpa aos profissionais envolvidos20.
O repasse de boletins informativos de Notificação de Eventos Adversos para os profissionais se mostrou relevante neste estudo, uma vez que estabelece um meio de comunicação sobre sua ocorrência e permite a criação de um banco de dados interno com as situações-problema e os riscos identificados. Ademais, os dados podem ser utilizados na educação continuada, com o objetivo de mitigar incidentes e, consequentemente, melhorar a qualidade da assistência prestada21.
Ressalta-se que gerenciar riscos nas instituições de saúde é uma função proativa que objetiva minimizar prejuízos financeiros por meio de medidas que busquem reduzir a frequência e a gravidade de incidentes, e de possíveis reivindicações legais, incluídas em um escopo de gestão de risco empresarial22.
Considera-se como limitação desta pesquisa que o estudo abranja somente instituições públicas credenciadas à Rede Sentinela, o que pode limitar a compreensão do fenômeno estudado no contexto de hospitais privados. Contudo, a metodologia utilizada possibilitou sistematizar evidências relevantes que demonstram as ações desenvolvidas pela gerência de risco, o que contribui positivamente para que a Anvisa alcance seu propósito na vigilância pós-comercialização.
As ações desenvolvidas pela gerência de risco hospitalar são desencadeadas a partir das notificações. Entre essas ações, destaca-se o encaminhamento das notificações para a Anvisa, via sistema Notivisa, ação essa que é fundamental para que a agência realize a vigilância sanitária dos produtos utilizados na assistência à saúde na fase pós-comercialização.
Ademais, a gerência de risco busca soluções para as falhas identificadas, tendo em vista que a maior parte dos problemas são solucionados pela mudança dos processos internos; a gerência de risco também identifica os produtos inadequados para o uso e realiza a capacitação dos profissionais. Tais ações promovem impactos positivos na segurança e na qualidade do atendimento prestado pelas instituições hospitalares.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio financeiro.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
Schmitt MD, Andrade SR - Concepção, planejamento (desenho do estudo), aquisição, análise, interpretação dos resultados e redação do trabalho. Todos os autores aprovaram a versão final do trabalho.
* E-mail: marciaschmitt@hotmail.com