ARTIGO
Recepção: 04 Setembro 2021
Aprovação: 11 Julho 2022
DOI: https://doi.org/10.22239/2317-269X.01996
RESUMO
Introdução: Medicamento manipulado é a preparação farmacêutica obtido por procedimento farmacotécnico a partir de uma prescrição de profissional habilitado destinada a um paciente individualizado ou cuja fórmula esteja inscrita no Formulário Nacional ou Internacional.
Objetivo: Descrever o perfil das notificações relacionadas aos medicamentos manipulados, reportadas ao Sistema Nacional de Notificação em Vigilância Sanitária (Notivisa).
Método: Estudo exploratório descritivo, retrospectivo ao período de 2006-2016 das notificações de medicamentos manipulados reportadas ao Notivisa. Os dados foram registrados e analisados no programa Excel versão para Windows 3.5.4.
Resultados: De um total de 108.400 notificações referentes a medicamentos no período estudado, 335 (0,32%) foram relacionadas a notificações de medicamentos manipulados. As queixas técnicas (QT) obtiveram 90,40% das notificações, enquanto os eventos adversos (EA) obtiveram 9,60%. A Região Sudeste foi a principal notificadora (66,00%) e o estado de São Paulo, responsável por 54,00% do total das notificações. Os hospitais foram as instituições com maior frequência de notificação (81,00%). Foi possível avaliar os motivos que geraram as notificações, das quais as alterações relacionadas ao aspecto da preparação farmacêutica foram as predominantes dentre as QT, enquanto para os EA destacaram-se as reações adversas a medicamentos.
Conclusões: As ocorrências observadas na farmacovigilância de medicamentos manipulados são próprias de cada produto com suas particularidades, embora o que se busque seja um padrão. Desta forma, tal observação poderá prevenir a ocorrência de danos à população exposta a situações semelhantes, se for devidamente notificada e amplamente divulgada.
Palavras chave: Farmacovigilância, medicamento Manipulado, farmácia de Manipulação.
ABSTRACT
Introduction: Compounded drug is a pharmaceutical preparation obtained by a pharmacotechnical procedure from a prescription of a qualified professional intended for an individualized patient, or whose formula is registered in the National or International Form.
Objective: To describe the profile of notifications related to compounded drugs, reported to the National Health Surveillance Notification System (Notivisa).
Method: Descriptive exploratory study, retrospective to the period 2006-2016, of the notifications of compounded drugs reported to Notivisa. Data were recorded and analyzed using the Excel program, version for Windows 3.5.4.
Results: Of a total of 108,400 notifications referring to medicines in the studied period, 335 (0.32%) were related to reports of compounded drugs. Technical complaints (QT) obtained 90.40% of the notifications, while adverse events (AE) obtained 9.60%. The Southeast region was the main notifier (66.00%), and the state of São Paulo was responsible for 54.00% of the total notifications. Hospitals were the institutions with the highest frequency of notification (81.00%). It was possible to evaluate the reasons that generated the notifications, of which the changes related to the aspect of the pharmaceutical preparation were the predominant among the QT, while for the AEs, the adverse drug reactions stood out.
Conclusions: The occurrences observed in the pharmacovigilance of compounded drugs are specific to each product with its particularities, although, what is sought is a pattern. In this way, such observation can prevent the occurrence of damages to the population exposed to similar situations, if it is duly notified and widely disseminated.
Keywords: Pharmacovigilance, compounded Drug, pharmaceutical Compounding Service.
INTRODUÇÃO
Os medicamentos manipulados são preparações farmacêuticas obtidas a partir de uma prescrição de profissional habilitado, destinada a um paciente individualizado, e que estabeleçam em detalhes sua composição, forma farmacêutica, posologia e modo de usar1,2,3. É denominado de preparação oficinal quando é preparado a partir de fórmula descrita no Formulário Nacional ou em Formulários Internacionais reconhecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Esse tipo de medicamento pode também compreender um produto obtido da transformação de uma especialidade farmacêutica, em caráter excepcional quando da indisponibilidade da matéria-prima no mercado e pela ausência da especialidade na dose, concentração ou forma farmacêutica compatível com as condições clínicas do paciente, de forma a adequá-la à prescrição4.
O medicamento manipulado, assim como todos os medicamentos, deve oferecer qualidade e segurança no seu uso. Desta forma, a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) no 67, de 8 de outubro de 2007, da Anvisa3,5, estabelece as boas práticas de fabricação (BPF) e orienta as ações de monitoramento sanitário destes produtos no mercado, desde sua produção, comercialização e utilização por meio do controle sanitário e farmacovigilância.
As atividades relativas à detecção, à avaliação, à compreensão e à prevenção de efeitos adversos ou quaisquer outros possíveis problemas relacionados a medicamentos consistem na farmacovigilância. Esta possibilita reconhecer o padrão de ocorrências por meio das notificações e, assim, prevenir danos e agravos que possam ocorrer. Dentre as ocorrências de interesse da farmacovigilância, encontram-se os eventos adversos (EA) e as queixas técnicas (QT), que podem ser provocadas por todo medicamento6.
O desvio de qualidade é o afastamento dos parâmetros de qualidade estabelecidos para um produto ou processo. Estes podem estar relacionados com alterações físicas, químicas, físico-químicas ou microbiológicas. Estão incluídas ainda alterações gerais como: presença de partículas estranhas, falta de informação no rótulo, problemas de registro, troca de rótulo ou de conteúdo, rachaduras e bolhas no material de acondicionamento7,8.
Já o EA é definido como a ocorrência de qualquer efeito não desejado em seres humanos, decorrente da utilização de produtos sob vigilância sanitária, podendo ser evitável ou não7,8.
Para o trâmite das notificações de EA e QT é utilizado o Sistema de Notificações em Vigilância Sanitária (Notivisa), implantado na plataforma web desde 2006.
As informações geradas pela farmacovigilância auxiliam nas ações de regulação sanitária visando à minimização de riscos e problemas relacionados aos produtos, que, muitas vezes, só são identificados apenas no momento da utilização. Assim, conhecer o perfil de notificações relacionadas a medicamentos manipulados contribui para reconhecer o padrão de problemas relacionados para então elaborar políticas preventivas de controle, desde a obtenção do produto até a sua utilização9,10.
O objetivo deste trabalho foi identificar, quantificar e categorizar as ocorrências de notificações de EA e QT relacionadas aos medicamentos manipulados recebidas pelo Notivisa.
MÉTODO
Foi realizado um estudo observacional exploratório descritivo no período de janeiro de 2006 a agosto de 2016, com abordagem quantitativa. As informações foram obtidas das notificações de medicamentos manipulados registrados no banco de dados do Notivisa.
Para o presente estudo, foram extraídas as notificações relativas a produtos manipulados. Inicialmente foi realizado o levantamento dos cadastros nacionais das pessoas jurídicas (CNPJ) registrados, buscando pelo código da atividade econômica número 47.71-7-02, que faz referência ao “Comércio varejista de produtos farmacêuticos, com manipulação de fórmulas”. Dos 1.111 CNPJ registrados, foram encontrados 99 CNPJ com a descrição de farmácia com manipulação, totalizando 332 notificações. Além disso, foi realizada a busca, nas notificações sem CNPJ, na coluna de nome fantasia da empresa pelas seguintes palavras: manipulação(ões), manipulada(s), manipulado(s), magistral(is) e oficinal(is) e foram encontradas mais 15 notificações. Pela soma das pesquisas realizadas, foram encontradas 347 notificações, que se tornaram o objeto de estudo deste trabalho (Figura 1).
As variáveis selecionadas para realização do presente estudo foram: ano da notificação (2006-2016); unidade da federação (UF) da notificação; descrição detalhada das notificações e dos produtos notificados; nome técnico do produto notificado; instituição notificadora e CNPJ da empresa notificada. Para uma análise mais detalhada dos dados foram criadas as variáveis: região, categoria da notificação, motivo da ocorrência e forma física do medicamento.
Foram incluídas no estudo todas as notificações relativas a medicamentos manipulados no período do estudo. Foram excluídas as notificações de produtos não relacionados a medicamentos manipulados.
Os dados foram processados por meio do programa Excel versão para Windows 3.5.4, tratados por meio de estatística descritiva e apresentados como frequências absolutas e relativas, média e desvio-padrão. Para um maior detalhamento dos dados, foram realizadas análises por cruzamento de variáveis, sendo os resultados encontrados organizados em tabelas e gráficos.
Aspectos éticos
O estudo foi baseado na análise dos dados secundários do banco do Notivisa, não envolvendo diretamente seres humanos. A avaliação restringiu-se à análise agregada das variáveis mantendo anônimos os sujeitos relacionados às notificações e à identificação do notificador, do paciente e/ou da empresa, situação na qual é dispensada a apreciação por comitê de ética em pesquisa. Foram observadas as recomendações do Conselho Nacional de Saúde (CNS) em sua resolução nº 510, de 07 de abril de 2016.
Limitações do estudo
A base de dados do Notivisa apresenta grandes limitações, visto que é notória a carência de informações específicas para caracterização dos medicamentos manipulados. Outrossim, nem toda notificação ou empresa de medicamentos manipulados apresentou em sua descrição as palavras buscadas. Além disso, houve uma restrição em relação à procura de descritores em ciências da saúde nas bases eletrônicas utilizadas, uma vez que não há descritores específicos para farmácia com manipulação, apenas para farmacovigilância, os quais estão bem descritos.
RESULTADOS
Foi recebido pelo Notivisa, no período de janeiro de 2006 a junho de 2016, o total de 108.052 notificações de medicamentos, das quais 335 eram referentes a medicamentos manipulados, o que corresponde a 0,31% do total de notificações. De acordo com o critério de inclusão empregado, 335 notificações fizeram parte do estudo. Dentre elas, foram obtidos 32 EA e 303 QT. A amplitude variou de 0 a 82 notificações no período, com média anual de 31,54 notificações e desvio-padrão de 23,34.
A Figura 2 apresenta a distribuição anual das notificações estratificadas pelo tipo de notificação. Os dados indicaram que as QT para medicamentos manipulados tiveram um crescimento gradativo, passando de nove, em 2007, para 76 em 2015, com uma média de 27,55 notificações anuais. Em 2016, não houve uma frequência considerável, uma vez que o Notivisa foi descontinuado para sua adequação ao World Health Organization (WHO), no Uppsala Monitoring Centre (UPP), para a criação de um novo sistema chamado VigiMed. Já os EA não seguiram o crescimento semelhante ao verificado nas QT e variaram entre uma notificação, em 2007, até seis notificações, em 2013, com uma média de 2,91 notificações anuais.
Na distribuição das notificações por regiões do Brasil, observou-se que o Sudeste apresentou a maior frequência (66,00%) das notificações, seguida das regiões Nordeste (14,00%), Sul (14,00%) e Centro-oeste (6,00%). A Região Norte não apresentou notificações para o período estudado (Tabela 1).
Foi possível analisar a natureza das instituições notificadoras (Tabela 2) e verificou-se que os hospitais realizaram 271 (81,00%) notificações; a Anvisa realizou 30 (9,00%); as Vigilâncias Sanitárias municipais e estaduais fizeram 16 (5,00%); as farmácias de manipulação realizaram cinco notificações (3,00%); as universidades notificaram seis eventos (2,00%); outros com quatro notificações (1,00%) e secretarias de saúde, três notificações (1,00%).
Quanto às características das ocorrências relacionadas aos tipos de notificação (QT e EA), foi utilizado o manual do usuário do Notivisa, classificando as QT em quatro categorias: alterações no aspecto, embalagem, funcionalidade e registro. Já os EA foram divididos em duas categorias: ausência/redução do efeito e reações adversas a medicamentos (EAM) (Tabela 3).
Das 303 notificações correspondentes às QT, 109 (36,00%) estavam relacionadas a alterações no aspecto do produto, sendo 19,00% causados por presença de partículas ou corpo estranho no produto. Em seguida, as QT mais frequentes foram de problemas relacionados à embalagem em 84 (27,80%), à funcionalidade em 66 (21,80%) e ao registro em 44 (14,50%). Quanto aos EA (32), a ineficácia foi descrita em 81,00% das notificações e as EAM em 19,00%.
DISCUSSÃO
Os dados obtidos mostraram que as notificações de medicamentos manipulados contribuíram com menos de 0,50% de todas as notificações registradas no Notivisa. Resultado semelhante foi encontrado por Lima et al.12, que analisaram o perfil das notificações de produtos à base de espécies vegetais e encontraram uma frequência menor que 1,00% para estes produtos. Não foi possível comparar este resultado com dados internacionais, entretanto indicaram um baixo número de notificações, comparado aos outros perfis de notificações de medicamentos encontrados em estudos brasileiros11,12.
A distribuição histórica demonstrou grandes diferenças entre os números de notificações nos anos estudados, não reproduzindo um padrão de distribuição homogêneo, cuja dispersão se verifica pela proximidade do desvio-padrão em relação à média de notificações no período. Entretanto, foi possível notar um crescimento gradativo do número de notificações no período, com exceção do ano de 2016, que contribuiu com apenas metade do ano para a análise.
Este resultado corrobora com outros estudos que analisaram o perfil de notificações de medicamentos fitoterápicos12, de medicamentos em ambiente hospitalar11e de produtos para saúde, sob o escopo da tecnovigilância13 e da cosmetovigilância14. O aumento do número de notificações enviadas para o Notivisa pode denotar maior organização do sistema nacional, assim como maior sensibilização do notificador para a necessidade de comunicar à vigilância sanitária tais ocorrências. Há também a possibilidade de que algumas ocorrências tenham sido investigadas e concluídas por órgãos de Vigilância Sanitária estaduais ou municipais para serem incluídas no sistema Notivisa15.
Foi verificado neste trabalho, uma predominância da QT em detrimento dos EA. Este resultado é muito semelhante ao obtido no trabalho realizado por Lima et al.16, que desenvolveram um estudo em um hospital sentinela, cuja maioria das notificações (70,00%) estavam relacionadas às QT relativas a desvios de qualidade e 9,00% aos EA. Estes dados também estão de acordo com o estudo realizado por Bezerra et al.17, no qual se observou que 55,00% das notificações foram relacionadas às QT a medicamentos e 8,00% aos EAM. É provável que a facilidade de visualização do desvio de qualidade antes da utilização do medicamento pelo paciente favoreça a detecção e, por conseguinte, a notificação. Já os EA são de difícil identificação, seja por fatores relacionados somente ao paciente, ou pelo fármaco, e sua interferência no organismo16.
Quanto à distribuição das notificações por regiões, foi verificado que a Região Sudeste concentrou a maior quantidade de notificações de QT e EA, sendo que esta também é a região onde estão acumulados 48,90% dos hospitais associados à Rede Sentinela. Além disso, no estado de São Paulo estão situados 28,20% dos hospitais da rede, o que mostra a importância da participação ativa dos hospitais não só em farmacovigilância como também na tecnovigilância13.
Os hospitais sentinela foram criados como uma estratégia para a implantação da farmacovigilância no âmbito hospitalar. Desta forma, estas instituições possuem infraestrutura organizada e profissional responsável pela gerência de risco de tecnologias em saúde utilizadas no ambiente do hospital11. Tal fato poderia explicar o maior número de registros de QT oriundas destes hospitais, visto que estes precisam realizar a notificação para que o medicamento seja trocado pela farmácia de manipulação, com objetivo de não comprometer o orçamento hospitalar, e que o emprego de produtos com desvio de qualidade reflete também no ônus hospitalar impactando no orçamento geral da instituição18.
Por outro lado, as farmácias com manipulação foram as instituições notificadoras com menor frequência observada.Tal resultado indica uma participação muito tímida desse segmento profissional, sendo necessária provavelmente a sensibilização dos profissionais notificadores com vistas a melhorar o monitoramento destes produtos. Ressalta-se que a RDC n° 67/20073 estabelece a competência e obrigação do farmacêutico que atua na farmácia de manipulação para a realização de farmacovigilância no ambiente magistral.
Com relação às causas que motivaram as notificações, cerca de 70,00% das QT foram relativas a alterações detectadas visualmente, do aspecto, da embalagem e da funcionalidade, que poderiam prejudicar o desempenho correto do medicamento manipulado. Visto que, em geral, tais alterações não refletem negativamente a competência do profissional ou da instituição notificadora, tal fato pode ter favorecido o maior envio das notificações, especialmente por remeter à responsabilidade diretamente para a farmácia de manipulação que produziu o medicamento16,17,18.
Considerando os motivos atribuídos aos aspectos dos medicamentos, foram reportados: presença de corpo estranho, partículas ou precipitados, materiais insolúveis em solução, precipitados de texturas diferentes e indícios de crescimento microbiológico. Nesse grupo, foram observados aspectos sensoriais, como: odores que não eram característicos dos produtos, manchas de cores variadas, alterações de cor do produto, como escurecimento, ou clareamento da cor do medicamento, ou até cores não inerentes.
Segundo Andrade et al.19, as notificações sobre alterações de cor, manchas e cheiros podem ocorrer devido a alterações microbiológicas. Por isso, deve-se ressaltar que a carga microbiana elevada pode comprometer a estabilidade, levando à perda de eficácia devido à degradação do princípio ativo ou por alteração de parâmetros físico-químicos dos medicamentos, o que pode comprometer a aceitação pelo consumidor e até mesmo acarretar problemas de biodisponibilidade das preparações magistrais.
Nessa categoria ainda foram verificadas notificações relativas à alteração da textura ou da forma farmacêutica, somadas àquelas atribuídas a erros de manipulação ou ausência de BPF (9,10%), dentre as quais: manipulação de volume maior do que o prescrito, manipulação de concentração diferente do prescrito pela equipe médica, falta de insumo no produto por falha na manipulação.
Destaca-se que o erro de concentração do ativo pode exacerbar efeitos adversos, assim como ausência de ativo produzir a inefetividade do produto, no qual em ambas as situações significam prejuízos terapêuticos ao paciente20,21,22. Um exemplo de desfecho fatal ilustrativo deste tipo de situação, foi descrita por Yano et al.20, que relataram a superdosagem, cerca de 20 vezes maior que a dose máxima recomendada do fármaco colchicina em cápsulas manipuladas por farmácias com manipulação na cidade de São Paulo. Neste episódio, os pacientes, após a utilização dos medicamentos, apresentaram hemorragia digestiva aguda provocada pela superdosagem deste ativo, culminando em óbito, uma vez que este possui estreito índice terapêutico, sendo a dose terapêutica muito próxima da dose tóxica.
Já as notificações relativas às alterações nas embalagens e nos rótulos contribuíram para 18,80% do total das QT, dentre as quais foram verificadas: falta de informação no rótulo (validade, lote, nome do paciente, princípio ativo, concentração, posologia e indicação de uso) ou informação errada no rótulo/embalagem (forma farmacêutica, nome do paciente, indicação de uso).
Yano et al.22 analisaram seis rótulos de medicamentos manipulados e verificaram que em 100% deles havia pelo menos um item em desacordo com as legislações quanto aos dizeres, verificando-se: dois endereços, falta do nome do paciente, falta do nome do prescritor, falta da via de administração, frases inapropriadas para posologia, nome de fármacos abreviados, nome comum de planta sem o nome científico, falta do CNPJ da empresa, entre outros.
Tanto os defeitos nas embalagens quanto às alterações descritas para a rotulagem dos medicamentos afetam indiretamente a qualidade do medicamento, podendo comprometer o tratamento do paciente, devido à falta de informações bem como pela falta de funcionalidade da embalagem.
Com relação à funcionalidade, foi verificada uma grande porcentagem (12,90%) de relatos de vazamento na embalagem primária, expondo o medicamento com o meio externo, alterando sua função parcial, pela perda do volume ou quantidade do produto. Em alguns casos, a perda de função do medicamento pode ser atribuída à degradação do ativo pelo contato com meio exterior (temperatura, umidade, luminosidade, oxigênio) ou à contaminação microbiológica.
As QT de funcionalidade foram demonstradas em outro estudo semelhante. Pissatto et al.23 verificaram grande variação na qualidade de cápsulas de fluoxetina manipuladas quanto ao peso médio, ao teor e à uniformidade de conteúdo, sendo que todas as amostras se apresentaram fora dos limites farmacopeicos para uniformidade de conteúdo. O presente estudo identificou ainda relatos de suspeita de irregularidade no registro em 14,50% das notificações arroladas. Dentre estas, houve notificações de substâncias proibidas no país, dispensação de medicamentos controlados sem receita especial e de medicamentos sem comprovação de eficácia.
Enfatiza-se aqui a importância de garantir que todas as matérias-primas, assim como os produtos industrializados que entram no processo de produção de medicamento manipulados, contenham autorização de registro junto ao órgão sanitário do Brasil, assim como do laudo de análise de qualidade do laboratório fabricante, com vistas a garantir a adequada rastreabilidade do produto final manipulado3. À Anvisa compete monitorar o perfil de segurança do uso dos medicamentos, intervir e aplicar medidas sanitárias como suspensão, proibição, interdição, e o recolhimento dos medicamentos com irregularidades que estão disponíveis no mercado3.
Os EA também foram observados no total de notificações estudadas, com representação de aproximadamente 10,00% dos registros de medicamentos manipulados, dentre os quais destacam-se: a inefetividade terapêutica ou redução do efeito farmacológico e as reações adversas ao medicamento (RAM).
A inefetividade pode ocorrer por redução ou por ausência do efeito farmacológico esperado, causada por problemas com a qualidade do medicamento ou também por interações medicamentosas, uso inadequado, resistência ou tolerância do paciente ao medicamento7. Já as RAM são definidas como efeitos prejudiciais ou indesejados que ocorrem após a administração de doses dos medicamentos normalmente utilizadas no homem para profilaxia, diagnóstico ou tratamento de enfermidade7.
No presente estudo as inefetividades terapêuticas foram mais frequentes que as RAM. Tal resultado difere dos achados de outros estudos semelhantes que verificaram dentre os EA, que foram as RAM mais prevalentes em ambiente hospitalar12,13,24. É importante ressaltar que as RAM são inerentes ao uso terapêutico dos medicamentos7. Desta forma, é esperado que estas reações adversas ocorram em maior volume que os outros problemas relacionados aos medicamentos, o que não foi observado neste estudo, fato que também pode denotar subnotificação deste tipo de EAM.
CONCLUSÕES
Os dados sobre medicamentos manipulados apresentaram-se escassos e difíceis de serem extraídos, contudo, foi possível identificar, categorizar e quantificar os registros das notificações de QT e de EA desses produtos, a partir de registros do Notivisa.
O número de notificações foi se elevando gradativamente no período estudado, sendo a Região Sudeste do Brasil a que mais contribuiu com notificações ao Sistema, destacando-se o hospital sentinela como principal instituição notificadora.
Dentre os principais motivos que geraram as notificações foram predominantes as alterações relacionadas ao aspecto da preparação farmacêutica para as QT, enquanto para as reações adversas destacaram-se os EAM.
Considerando que os medicamentos manipulados podem ser em sua maioria preparações farmacotécnicas personalizadas, a regulação sanitária tem sido duramente estabelecida, uma vez que tais medicamentos não passam por testes clínicos e biofarmacêuticos. Desta forma, embora cada preparação seja única, diferindo de outras em sua composição, o padrão de resposta que se busca na farmacovigilância está relacionada não apenas aos ativos individuais, mas, a sua associação a outros fármacos e veículos utilizados, assim como seus excipientes, que podem alterar em cada formulação e gerar um EA inesperado, não descrito e importante do ponto de vista clínico. Tal observação, se notificada e amplamente divulgada, poderá prevenir a ocorrência de danos à população exposta a situações semelhantes.
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Autor notes
* E-mail: marciapassos@pharma.ufrj.br
Declaração de interesses
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.