RESUMO
Introdução: Acidentes com animais peçonhentos são classificados como doenças tropicais negligenciadas e são atualmente a mais frequente causa de intoxicação em humanos no Brasil. O único tratamento disponível é a rápida administração de antivenenos específicos e de qualidade garantida. Para assegurar a eficácia e a segurança desses produtos, são realizados ensaios de determinação da potência in vivo para veneno e antiveneno, desde as etapas de produção até sua liberação final. Apesar dos diversos estudos sobre métodos alternativos ao ensaio murino, nenhum método foi efetivamente validado.
Objetivo: Compilar os métodos alternativos desenvolvidos para os antivenenos botrópicos, avaliando sua disponibilidade, perspectivas e aplicações em laboratórios de produção e controle da qualidade.
Método: Foi realizada uma busca nas bases PubMed, BVS e Scopus entre novembro de 2021 e junho de 2022. Foram identificados 89 trabalhos, dos quais 31 foram selecionados de acordo com os critérios de elegibilidade.
Resultados: Nos métodos alternativos identificados, observamos a preferência de 42,80% dos estudos por metodologias que utilizem linhagens celulares como método alternativo aos ensaios murinos, sendo que a maioria destes trabalhos 58,30% optou pela linhagem celular Vero.
Conclusões: Pela diversidade das toxinas encontradas em cada gênero de serpentes, entende-se que é de extrema importância que o ensaio de potência dos antivenenos tenha como base a avaliação e a quantificação precisa da inibição da atividade biológica dos venenos. Ensaios de citotoxicidade são amplamente utilizados e têm acumulado evidências de sua adequação como importante ferramenta alternativa ao ensaio murino para o controle da qualidade de veneno e antiveneno antibotrópico.
Palavras chave: Métodos Alternativos, veneno Botrópico, antiveneno Botrópico, controle da Qualidade.
ABSTRACT
Introduction: Accidents with venomous animals are classified as neglected tropical diseases and are currently the most frequent cause of intoxication in humans in Brazil. The only available treatment is the rapid administration of specific, quality-assured antivenoms. To ensure the efficacy and safety of these products, in vivo potency determination tests for venom and antivenom are performed during the production stages, until final release. Despite several studies on alternative methods to the murine assay, no method has been effectively validated.
Objective: To compile alternative methods developed for Bothrops antivenoms, assessing the availability of the methods and the prospects and applications in Bothrops venom and antivenom production and quality control laboratories.
Method: A search was conducted in PubMed, BVS, and Scopus databases between November 2021 and June 2022. 89 articles were identified, of which 31 were selected according to the eligibility criteria.
Results: We observed in the alternative methods identified a preference of 42.80% of the studies for methodologies that use cell lines as an alternative method to the murine assays, and most of these works (58.30%) opted for a Vero cell line.
Conclusions: Due to the diversity of toxins found in each genus of snakes, it is understood that the potency assay for antivenoms should be based on the evaluation and precise quantification of the inhibition of biological activity of venoms. Cytotoxicity assays are widely used and have been accumulating evidence of their suitability as an important alternative tool to the murine assay for quality control for Bothrops venom and antivenom.
Keywords: Alternative Methods, bothrops Venom, bothrops Antivenom, quality Control.
REVISÃO
Métodos alternativos para determinação da potência de veneno e antiveneno botrópico: aplicações e perspectivas para o controle da qualidade
Alternative methods for potency evaluation for Bothrops venom and antivenom: applications and perspectives for quality control
Recepção: 29 Março 2022
Aprovação: 10 Agosto 2022
Serpentes de importância médica responsáveis pelos acidentes com envenenamento em humanos são encontradas em cerca de 160 países e observa-se uma incidência elevada, o que é um grave problema de saúde pública na África, Oriente Médio, Ásia, Oceania e América Latina1. Ocorrem no mundo anualmente cerca de 2,7 milhões de envenenamentos por picada de serpentes, acarretando de 81 mil a 138 mil mortes por ano. Quase 7.400 homens, mulheres e crianças são picados diariamente e, dentre os acidentados, cerca de 380 morrem2. Segundo os últimos dados disponíveis no Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas, acidentes com animais peçonhentos ultrapassaram as intoxicações por medicamentos e já são a primeira causa de intoxicação em seres humanos, com 35,25% dos casos notificados no Brasil3. O envenenamento por picadas de serpentes pode matar até seis vezes mais pessoas se comparado a outras doenças existentes nos países tropicais em desenvolvimento4. Atualmente os acidentes ofídicos continuam negligenciados ainda que as taxas de incidência e mortalidade sejam superiores às das outras doenças tropicais negligenciadas. Embora haja uma série de fatores contribuindo para a elevada incidência, somente em 2018 os acidentes por picadas de serpentes foram elevados para a Categoria A na lista de Doenças Tropicais Negligenciadas2. A ocorrência desses acidentes ofídicos predominantemente em países pobres soma-se com outros problemas de saúde pública como doenças endêmicas causadas por vetores, doenças parasitárias e tuberculose4.
Nos objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável5, é previsto fomentar esforços internacionais visando melhorar a disponibilidade e acessibilidade de antivenenos seguros e eficazes para todos. Nesse sentido, é imprescindível que a produção e a qualidade de antivenenos atendam aos padrões internacionalmente aceitos, através da cooperação entre academia, indústria, instituições públicas e privadas para inovação e modernização6,7,8.
Os antivenenos são classificados como produtos biológicos por serem produzidos a partir das imunoglobulinas obtidas de animais hiperimunizados com antígenos específicos de uma ou mais espécies de serpente. Consequentemente, estes produtos podem apresentar variações que tornam imprescindível a análise de cada lote produzido9. Em relação ao gênero Bothrops, cada mililitro do antiveneno deve conter imunoglobulinas suficientes para neutralizar 5 mg do veneno. No Brasil, o Instituto Butantan (IB) em São Paulo, o Instituto Vital Brazil (IVB) em Niterói/Rio de Janeiro, a Fundação Ezequiel Dias (Funed) em Belo Horizonte (MG) e o Centro de Produção e Pesquisa de Imunobiológicos (CCPI) do Paraná são os laboratórios públicos responsáveis pela produção de antivenenos, dentre outros imunobiológicos. Já o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (INCQS – Fiocruz) no Rio de Janeiro é o laboratório público de referência nacional responsável pelo controle da qualidade dos antivenenos e produtos sujeitos a vigilância sanitária10,11,12.
Em todas as etapas da produção de veneno até a liberação dos lotes de antivenenos, são utilizados animais, tanto pelos produtores como pelo controle da qualidade oficial: serpentes para extração de veneno, roedores para alimentação destas serpentes, animais de grande porte como cavalos para produção das imunoglobulinas e camundongos para a testagem de Dose Letal 50% (DL50) e Dose Efetiva 50% (DE50). Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), é incontestável a necessidade de mudança e a implantação de métodos 3Rs visando o bem-estar animal5,13. Importantes questões ligadas à experimentação animal incluem também: (i) a variabilidade genética apresentada pelas espécies de animais experimentais em relação à espécie humana; (ii) as determinações referentes à ética na experimentação animal; (iii) o desenvolvimento de novas alternativas para substituir o uso de animais em ensaios toxicológicos; e (iv) a segurança de fármacos. Nesse contexto, vários métodos in vivo deverão ser substituídos por modelos in vitro ou in silico, e na impossibilidade de exclusão de modelos animais, tem-se buscado utilizar uma quantidade menor de animais ou até mesmo utilizar os mesmos animais para diferentes ensaios (procedimento não permitido para ensaios com venenos)8,13.
Desde 2001, a OMS recomenda o desenvolvimento de métodos alternativos ao modelo de letalidade murina DL50 e DE50. É consenso que os ensaios murinos in vivo causam sofrimento aos animais, são onerosos e apresentam pequena ou nenhuma correlação com o envenenamento e terapia em humanos. Assim, o Comitê de Padronização Biológica da OMS considera que “esforços devem ser direcionados para o desenvolvimento de métodos alternativos para a substituição de ensaios em roedores para a determinação da potência de antivenenos”14.
Há décadas, existem apelos, tanto por parte da comunidade científica quanto por parte de entidades ligadas ao bem-estar animal, para o desenvolvimento de ensaios alternativos capazes de substituir os métodos oficiais de DL50 e DE50. Porém, existem controvérsias entre os benefícios dos ensaios animais, frente ao impacto da experimentação animal (morte, dor e sofrimento). Atualmente existem métodos alternativos capazes de reduzir o número de animais ou que utilizam sistemas in vitro em substituição ao ensaio de letalidade murina para a determinação da potência de antivenenos. Infelizmente, estes sistemas não são ainda oficialmente validados como substitutos aos ensaios murinos15,16. Deve-se, no entanto, considerar que ensaios in vivo ou in vitro apresentam limitações técnicas inerentes. Os protocolos de inoculação de veneno e veneno/antiveneno por via intraperitoneal em camundongos não reproduzem a situação natural. Os acidentes atingem os membros inferiores em 80% dos casos, além de envolverem inoculação por via intradérmica e/ou intramuscular, enquanto nos camundongos, o ensaio é realizado pela via intraperitoneal ou endovenosa17. Portanto, cuidados devem ser tomados para evitar extrapolações simplistas destes ensaios para a situação clínica. Além disso, a resposta fisiológica de roedores ao envenenamento e terapia pode diferir significativamente do ocorrido em humanos. Estas limitações fazem com que o modelo murino reproduza o envenenamento e o tratamento em humanos aquém do ideal18. Entretanto, os ensaios de DL50 e de DE50 permanecem os métodos oficiais para a determinação da potência sendo ainda amplamente utilizados por serem os únicos ensaios descritos na Farmacopeia Brasileira11,15,16,19e em vários estudos clínicos demonstraram que a DE50 é bastante útil, porém não infalível ao predizer a eficácia dos antivenenos na prática clínica.
O desenvolvimento de métodos alternativos ao uso de animais na avaliação da potência dos antivenenos deve ser encorajado, fazendo-se necessário que as potenciais alternativas sejam cuidadosamente avaliadas para garantir a validade dos resultados. Pesquisas devem ser realizadas para o desenvolvimento tanto do refinamento dos protocolos dos ensaios in vivo quanto das alternativas in vitro. Os resultados de qualquer modificação nos protocolos ou protocolos alternativos devem ser rigorosamente comparados com os resultados dos métodos oficiais, para garantir a validade estatística dos métodos propostos16.
Ainda que não tenham ocorrido iniciativas coordenadas e padronizadas de validação dos testes in vitro para a substituição do uso de animais em antivenenos botrópicos, a literatura científica apresenta diversos estudos independentes, apresentando avaliações de diferentes métodos. Conhecer essas evidências pode trazer uma maior compreensão sobre sua adequabilidade, eficácia e limitações, apontando caminhos para futuros estudos de validação. Nesse contexto, esta revisão pretendeu compilar os métodos alternativos desenvolvidos para os antivenenos botrópicos, avaliando a disponibilidade dos métodos, as suas perspectivas e aplicações no controle da qualidade de veneno e antiveneno botrópico.
Uma pesquisa foi realizada entre novembro de 2021 e junho de 2022 nas bases de dados: PubMed (Medline), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Scopus. Durante a busca eletrônica, os seguintes termos livres foram usados: “Bothrops”, “Bothrops jararaca”, “antivenom”, “in vitro”, “cell based”, “potency”, “potency evaluation” e “neutralizing potency”, gerando as seguintes chaves de busca:
PubMed: (Bothrops jararaca or Bothrops or jararaca) [tiab] AND (in vitro or cell based) [tiab] AND (potency or neutralizing potency) [tiab];
BVS: (Bothrops jararaca or Bothrops or jararaca) AND
(in vitro or cell based) AND (potency or neutralizing potency);
Scopus: (Bothrops AND “in vitro” AND neutralizing potency).
Os critérios de elegibilidade para inclusão de estudos abrangeram artigos em inglês, espanhol ou português, de acordo com os critérios modificados de PIO, em que: P (população) = cultura de células, plasma, ovos; I (intervenção) = testes in vitro; O (desfecho) = determinação da potência de antiveneno botrópico.
Os seguintes critérios de exclusão foram aplicados aos estudos: estudos sobre o efeito do veneno em outros organismos, estudos nos quais o ensaio in vitro consistia apenas de pré-incubação para o ensaio in vivo, estudos nos quais a finalidade era avaliação de moléculas, mediadores de inflamação, efeito de um componente do veneno e alvos terapêuticos, estudos de refinamento do método in vivo, além de artigos fora de tópico.
Todos os títulos e resumos dos artigos foram avaliados e selecionados de acordo com os critérios de elegibilidade. As duplicatas foram excluídas usando o gerenciador de referências Zotero® que compara os títulos, o International Standard Book Number (ISBN) e o Digital Object Identifier (DOI). Em seguida, os artigos que não foram excluídos durante a avaliação dos resumos foram lidos e julgados de acordo com os critérios de elegibilidade, tipo de metodologia realizada, principais resultados obtidos e perspectivas para implantação. Para extração de dados, itens de informação científica e técnica foram tabulados e analisados no Microsoft Office Excel 2013. Os dados extraídos incluíram o ano de estudo de publicação, autor, matrizes biológicas, países de origem das serpentes, metodologia utilizada, finalidade do estudo e desfechos dos estudos.
A busca eletrônica encontrou 89 trabalhos científicos. Um registro de patente foi encontrado em outra fonte de pesquisa e incluído manualmente nos artigos selecionados. Após a exclusão das duplicatas, um total de 69 trabalhos foi avaliado para elegibilidade aplicando os critérios de exclusão. Destes, 24 não atenderam aos critérios definidos previamente e 45 trabalhos foram posteriormente analisados. Após a leitura completa, 31 trabalhos foram selecionados. Portanto, 58 foram excluídos do estudo porque não atenderam aos critérios de elegibilidade (Figura 1).
No Quadro, encontram-se descritas as características dos estudos incluídos, como: autor, ano de publicação, objetivo do estudo e os principais achados.
Analisando os 31 artigos selecionados, três deles são de revisão7,9,49, portanto 28 efetivamente utilizaram matrizes biológicas em testes. Observamos a preferência de 42,80% dos estudos por metodologias que utilizem linhagens celulares como método alternativo aos ensaios em murinos (12 de 28 artigos)13,21,22,23,24,25,26,27,28,29,30,31, 25,00% utilizaram plasma32,33,34,35,36,37,38, 14,28% utilizaram venômica42,43,44,49, 10,70% utilizaram gelatina39,40,41, 7,10% utilizaram enzimas45,46, enquanto um único estudo (3,50%) utilizou anticorpos47 e outro utilizou sangue em papel filtro48.
Outra abordagem são os ensaios encontrados que medem a coagulação sanguínea32,33,34,35,38. Destes, quatro estudos utilizaram plasma humano32,33,35,38, um estudo utilizou plasma aviário34 e um trabalho de plasma humano realizou em paralelo um ensaio com fibrinogênio bovino33. Outros três ensaios mediram o diâmetro do halo hemolítico na degradação de gel de agarose39,40,41. Encontramos ensaios comparando dois métodos24,25,48e até três métodos34,45,47.
No entanto, novas técnicas de venômica estão sendo investigadas buscando elucidar a complexidade na composição dos venenos, na identificação das variações interespécies e intra-espécies observadas a partir da origem geográfica e do estágio de desenvolvimento das serpentes42,43,44. O estudo das proteínas e peptídeos do veneno bruto chama-se proteômica e, aliados a essa técnica, estão os bancos de dados e algoritmos facilitando o mapeamento da composição de cada veneno49.
Convém destacar que a maioria dos autores realizou estudos de citotoxicidade, por meio do qual avaliaram a função metabólica ou a integridade da membrana em células viáveis expostas previamente ao veneno botrópico, enquanto outros trabalhos abordaram a quantidade de células vivas após a exposição. Foram utilizadas linhagens de células musculares (C2C12), mimetizando a ação do veneno nos músculos; linhagens de células renais (Vero) que podem simular os efeitos tóxicos dos venenos botrópicos; células de macrófagos murinos obtidas da cavidade peritoneal (RAW 264.7) sabidamente envolvidas nos processos inflamatórios e de necrose, células endoteliais de camundongo que formam o epitélio de revestimento interno de veias e do coração (tEND), células tumorais (MGS0-3), além de células já padronizadas em estudos de viabilidade como HeLa.
As metodologias utilizadas foram: I) Método de redução MTT (brometo de 3- (4,5-dimetiltiazol-2-il) 2,5-difeniltetrazólio) no qual o corante é reduzido a formazan apenas nas células vivas; II) Método azul de tripan que avalia o número de células viáveis; III) Medição da liberação de lactato desidrogenase (LDH), enzima esta que é liberada quando ocorre dano à membrana plasmática; IV) Método de conversão de resazurina em resorufina por células vivas; V) Técnica de quantificação de células com corante Azul Brilhante de Coomassie (CBB R-250) que cora proteínas e lipídios celulares.
Dentre os 28 trabalhos, 18 compararam métodos in vitro com o método in vivo13,21,22,23,24,26,29,30,31,33,34,35,37,39,40,41,47,48(Figura 2). A maioria dos trabalhos apresentou boa correlação entre o método in vitro e in vivo, entretanto, Maria et al.41 não obtiveram correlação para antivenenos botrópicos brasileiros, apesar da alta correlação entre os títulos de Elisa (ensaio imunoenzimático) e a neutralização da letalidade ao usar a fração tóxica para revestir as placas. De acordo com Oliveira et al.23, há uma correlação significativa entre a dose citotóxica (CT50) e a dose letal mediana (DL50) por injeção intravenosa, exceto para venenos de Bothrops neuwieddi mattogrossensis e Lachesis muta. Analisando a correlação entre CT50 e a DL50 por via intraperitoneal ou entre CT50 e a dose proteolítica mínima (MPD) também foi encontrada uma correlação positiva, porém duas espécies não se ajustaram em ambos os casos: Bothrops atrox e Bothrops sp. Esses resultados são corroborados pelos trabalhos23,35,39que reforçam a especificidade dos venenos e a necessidade de ensaios diferenciados.
Mora-Obando et al.29 observaram que o efeito tóxico de duas miotoxinas do veneno causou um aumento significativo do efeito citotóxico em mioblastos, miotubos e em camundongos em comparação ao efeito de qualquer uma das toxinas isoladamente. Este trabalho defende que seja analisada não apenas a ação de toxinas purificadas, mas também o sinergismo que ocorre entre as diferentes toxinas do veneno potencializando seu efeito tóxico.
Dos 31 trabalhos apresentados neste estudo, 17 trabalhos utilizaram exclusivamente o veneno bruto, o pool de venenos ou as frações do veneno de uma única espécie de serpente13,21,22,24,25,26,32,33,35,36,39,40,41,45,46,47,48, 12 trabalhos foram feitos com serpentes da espécie Bothrops jararaca13,23,26,30,33,34,38,40,41,42,46,48, seis trabalhos, com serpentes da espécie Bothrops asper21,22,29,35,39,44. Alguns autores utilizaram mais de uma espécie no mesmo trabalho. Apenas 11 dos 31 trabalhos realizaram estudos com antivenenos13,21,23,24,25,26,27,28,38,42,44. Três trabalhos foram realizados com anticorpos de cavalos hiperimunizados36,37,48(Figura 3).
Podemos observar que, dos 31 trabalhos selecionados, 15 trabalhos utilizaram veneno de serpentes do Brasil13,23,24,25,26,28,33,34,38,40,41,42,46,47,48e um trabalho utilizou veneno de Bothrops jararaca como controle31, seis trabalhos utilizaram veneno de serpentes da Costa Rica21,22,35,39,44,29, sete trabalhos foram realizados com veneno de serpentes do Peru23,27,28,31,38,44,45. Três trabalhos foram realizados com veneno de serpentes de diferentes países da América Latina: Argentina, Peru, Brasil e Bolívia23, Peru e Bolívia38 e Colômbia44.
Dos 31 trabalhos relacionados, 15 são de desenvolvimento de métodos alternativos21,22,24,25,27,28,29,31,32,33,36,38,42,43,44, 12 trabalhos selecionados têm como objetivo a substituição do ensaio com animais na produção/indústria23,26,30,34,35,37,39,40,41,45,46,47. A maioria destes trabalhos sugeriu a substituição parcial apenas durante as primeiras etapas de produção de antivenenos: na imunização de cavalos e nos processos de fracionamento do plasma. Sugeriram ainda que o ensaio de DL50 permaneça nas últimas etapas da produção do antiveneno e para o controle da qualidade do produto final35, e ainda recomendaram o ensaio em camundongos para liberação de lotes de antivenenos41. Apenas dois trabalhos tiveram como objetivo a substituição para o controle da qualidade13,34(Figura 4).
Os métodos alternativos para potência de antivenenos encontrados nessa seleção avaliaram os anticorpos específicos contra as toxinas do veneno ou as toxinas que mostraram uma correlação entre o acidente botrópico, a atividade de neutralização in vivo e os resultados in vitro. A maioria dos testes in vitro foi realizada em triplicata intraensaios, exceto por: Maria et al.41,Guerra-Duarte et al.31 e Rodrigues et al.28, que fizeram apenas duplicatas intraensaios. Outra exceção foi a utilização da fórmula da Farmacopeia Europeia50 por Heneine40 enquanto o ensaio padrão in vivo utiliza a Farmacopeia Brasileira11. Foi observada uma grande variedade de controles negativos utilizados nos estudos: salina, solução salina tamponada com fosfato (PBS), água, soro não imune e antivenenos.
Os primeiros dados compilados pela OMS sobre mortalidade mundial devido ao envenenamento por picada de serpentes foram publicados em 1954, com estimativa de 30 mil a 40 mil mortes por ano no mundo. Daquela época até os dias atuais, sabe-se que o número de casos é bem maior, porque muitos dados são subnotificados51. Somente 55 anos depois da primeira publicação51foi dada a devida importância aos envenenamentos por picadas de serpentes, sendo estes incluídos pela OMS na lista de doenças tropicais negligenciadas. Em 2010, a OMS definiu antivenenos como medicamentos essenciais e publicou as diretrizes para sua respectiva produção.A partir desta publicação, surgiram as primeiras orientações acerca da necessidade de se melhorar a qualidade, a segurança e a regulamentação dos antivenenos – único tratamento disponível para envenenamento por picadas de serpentes. Nela, há uma ênfase para os esforços realizados por vários grupos na implantação do conceito dos 3Rs no desenvolvimento e controle da qualidade de antivenenos e, em 2017, houve uma revisão dessa publicação1,2,6,16.
A primeira vez que a OMS citou a importância dos métodos alternativos para substituição de roedores nos ensaios para determinação da potência de antivenenos foi em 200114. Embora o objetivo almejado seja a substituição dos animais, enquanto as validações ocorrem, esforços devem ser feitos para garantir o refinamento da técnica e a redução do número de animais nesses ensaios. Ainda em 2017, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA)52 publicou um Guia para aceitação regulatória de ensaios com abordagens dos 3Rs no controle em processo para medicamentos humanos e veterinários. Esta publicação teve como objetivo orientar e incentivar o desenvolvimento de testes baseados na substituição, redução e refinamento da experimentação animal. Neste documento são elencados os critérios para aceitação regulatória de adaptações em ensaios já existentes em compêndios oficiais ou novos ensaios desde que um dos 3Rs seja aplicado. Mesmo assim, é necessário atestar a metodologia através de protocolos padronizados com parâmetros cientificamente aceitos, demonstrar a precisão e relevância do método, ou seja, o método deve ser efetivo para a finalidade biológica que o ensaio se propõe a comprovar. Em seguida, deve-se ratificar a metodologia como confiável, robusta e reprodutível por meio de estudos interlaboratoriais e, finalmente, comprovar que o método é útil para o propósito criado, sendo tão bom ou melhor do que a metodologia vigente atual na predição dos efeitos testados. Apesar da grande diversidade de artigos encontrados, nenhum destes métodos foi submetido a um estudo interlaboratorial ou de validação frente à metodologia oficial vigente (modelo letal murino) para a determinação da potência de antiveneno botrópico. Os estudos selecionados foram apenas até os estágios de desenvolvimento, padronização ou pré-validação. Atualmente, o desafio é realizar um estudo de validação adequado para conseguir sua aceitação regulatória.
Desde então a OMS tem demonstrado uma grande preocupação com este problema de saúde pública, tanto que convocou especialistas da área para desenvolver estratégias a serem implantadas nos próximos anos até 2030. Dentre todas as definições está a redução de 50% das mortes e sequelas incapacitantes através da disponibilidade de antivenenos seguros e eficazes que são garantidos pelo controle da qualidade 2,5.
Nesta revisão, foi possível identificar que existem trabalhos publicados sobre métodos alternativos para antivenenos com resultados promissores: apresentando uma correlação significativa entre a atividade biológica do veneno estudado e a neutralização da atividade in vitro13,23,27,30,31,35,37,39,40,41,47,48. Porém, devido à especificidade dos venenos de cada gênero de serpentes e da sua importância médica relacionada à sua localização geográfica, foram realizados estudos com várias metodologias, utilizando controles distintos e tempo de exposição heterogêneos. Esta diversidade possibilita identificar os eventos chaves e dessa forma sugerir uma estratégia de testes integrados. Além das publicações, observa-se a existência de muitos grupos de trabalho em diferentes instituições de pesquisa e ensino ampliando as possibilidades de parcerias para preencher as lacunas desse grande desafio.
Gutiérrez et al.8 trouxeram uma importante revisão sobre a complexidade relacionada aos testes in vitro quanto à finalidade e à eficácia pré-clínica de antivenenos. A fisiopatologia do envenenamento botrópico ocorre pela ação das toxinas isoladas ou sinergicamente na qual seu efeito tóxico é potencializado. Existem ainda duas vias de ação das toxinas: no local da picada (edema firme, dor, sangramento, necrose) e/ou sistêmico (hemorragia, hipotensão, insuficiência renal). Além disso, após a inoculação do veneno, cada organismo reage à introdução do veneno com uma cascata de reações inflamatórias. Já para ensaios para controle da qualidade em processo são recomendados os ensaios in vitro tanto para as etapas de produção de anticorpos em equinos quanto para análise quantitativa de anticorpos neutralizantes durante o fracionamento do plasma.
As descobertas dos mecanismos de imunidade para soros datam de 1890, quando Behring e Kitasato publicaram o primeiro trabalho sobre o desenvolvimento da imunidade à difteria e ao tétano em animais. Apenas dois anos após esta publicação foi realizado o primeiro ensaio em humanos com soro antidifitérico53,54,55. Na prática, a utilização do soro antitetânico foi consolidada em 1914 devido à necessidade de administração em soldados feridos na Primeira Guerra Mundial56. O método de inibição da ligação entre toxina e antitoxina (ToBI) é um exemplo bem-sucedido de método alternativo validado e incluído na Farmacopeia Europeia tanto para as etapas de produção de vacinas antitetânicas como para o controle da qualidade57,58. O INCQS e o IB validaram o teste de potência para soro antirrábico (RFFIT)11,59.
Soros hiperimunes são produtos biológicos que, por consequência, sofrem variações a cada lote produzido. Nas últimas décadas foram desenvolvidos vários métodos alternativos ao uso de animais baseados nos conceitos dos 3Rs. Já para os antivenenos, embora tenham sido desenvolvidos vários métodos, nenhum conseguiu finalizar o processo de validação.
Os estudos relacionados abaixo podem ser divididos em duas áreas: (i) a área de pesquisa, com a visão clínica e o desenvolvimento de medicamentos para outros fins e (ii) estudos relacionados com uma visão regulatória, como estudos pré-clínicos para o registro de novos produtos para o controle da qualidade em processo nas etapas de produção de antivenenos e liberação de lotes.
Para o controle da qualidade, foi encontrado um depósito de patente número PI 1004449-3 A246 referente a um kit para determinação da potência in vitro. Este kit consiste em placas semeadas com a enzima L-aminoácido oxidase (LAAO) do veneno da serpente B. jararaca responsável por efeitos tóxicos do veneno como: hemorragia, inflamação e edema. Esta enzima foi utilizada como antígeno para sensibilizar placas de Elisa e determinar a potência neutralizante dos antivenenos botrópicos.
Seels desenvolveu um ensaio em ovos embrionados com seis dias de incubação, ou seja, no período inicial de desenvolvimento embrionário que é sabidamente um período em que os embriões não sentem dor. Este teste é amplamente estudado para outros desfechos como método alternativo para irritação ocular e aceito pelas Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUA) se realizado até o 9º dia de incubação. O ensaio é realizado pela inoculação da mistura de veneno e antivenenos na região vascularizada do saco vitelino. A vantagem desse método é a observação do efeito hemorrágico nos discos contendo veneno e a neutralização do efeito hemorrágico pelo disco contendo antiveneno. Além da visualização dos efeitos tóxicos do veneno, esse método proporciona a gravação para posterior análise e comparação. Como os ovos embrionados estão no período antes do desenvolvimento neurológico não se pode testar venenos neurotóxicos15,60,61.
Chacon et al.35, em concordância com Pornmuttakun e Ratanabanangkoon62 e Oguiura et al.34, descreveram como a neutralização dos efeitos coagulantes tem correlação com a potência de antivenenos. Estes estudos levam em consideração que o extravasamento induzido por metaloproteases parece ser o principal fator por trás do efeito letal do veneno de Bothrops asper, por consequência os anticorpos contra metaloproteases hemorrágicas também seriam eficazes contra esta enzima pró-coagulante. Embora tenham observado a correlação entre neutralização dos efeitos coagulantes in vitro e atividade letal para o veneno de B. asper, esse efeito poderá não acontecer para todos os venenos. Portanto, deve-se realizar os ensaios para cada veneno/antiveneno respeitando sua especificidade intrínseca.
Algumas técnicas já foram desenvolvidas pelos laboratórios que trabalham com venenos e antivenenos para substituição dos animais no controle da qualidade nos processos de produção, tais como métodos imunoquímicos (antivenômica e Elisa) para rastrear antivenenos e avaliar anticorpos em cavalos hiperimunizados, além de métodos in vitro que avaliem as atividades tóxicas dos venenos que apresentem boa correlação com métodos in vivo (atividades enzimáticas, cultura de células, teste de coagulação, ligação de receptores e preparação neuromuscular)4,63,64,65. Apesar da variedade de atividades fisiopatológicas presentes nos venenos de Bothrops e Lachesis, foi demonstrado que existe uma correlação, para alguns venenos, entre a CT50 e a DL50 e CT50 e a DPM24,66.
Chacon et al.35 correlacionaram o ensaio in vivo com o ensaio in vitro de atividade coagulante de plasma humano. Esta inovação quando colocada em prática também possibilitará uma redução do número de animais para controle da qualidade nas etapas de produção. As técnicas para redução devem ser encorajadas e validadas enquanto buscamos a substituição por métodos in vitro.
Guerra-Duarte et al.31 testaram a viabilidade celular utilizando o reagente Alamar Blue® em três linhagens celulares (Vero, MGSO3, HeLa) após exposição a dosagens seriadas de venenos. Os resultados demonstraram que cada veneno apresentou um padrão específico de toxicidade com curvas dose-reposta apresentando formato semelhante para todas as linhagens testadas. Desde os anos 1990 se observou os primeiros estudos alternativos para veneno em cultura de células, mas, a partir da década de 2000, ocorreu o ressurgimento dessa abordagem demonstrando ser uma metodologia promissora. Alguns fatores podem contribuir para essa abordagem tanto pelo custo baixo como por serem metodologias já amplamente utilizadas no controle da qualidade. Como exemplo temos o fato de vacinas contra dengue, HPV, febre amarela e tríplice viral serem analisadas em células13.
Lopes-Souza et al.30realizaram ensaio de citotoxicidade em células MGSO3 com o veneno das cinco principais espécies de Bothrops brasileiras. A atividade proteolítica dos venenos foi testada in vitro e correlacionada com dados in vivo previamente publicados67; assim como Nundes13 correlacionou o estudo de citotoxicidade em células Vero com estudo in vivo de Araújo et al.66,68. Rodrigues et al.27 compararam os resultados obtidos com estudos anteriores que utilizaram a mesma metodologia27,31. A utilização de dados pré-existentes fazendo-se uma análise retrospectiva dos dados in vivo parece ser uma forte tendência para evitar a realização de mais ensaios com animais.
Foram utilizados métodos estatísticos para determinação dos resultados de ensaios tais como: análise de regressão linear de curva dose-resposta13,23,24,26,30,31,34,47 ou transformação de Probitos35,37,41.
A maioria dos autores fez a análise estatística pela determinação das precisões, intra e interensaios, por meio do cálculo da variância (coeficiente de variação geométrico), da concordância entre os resultados dos métodos in vivo e in vitro, e da sensibilidade do método proposto. Alguns estudos compararam os grupos tratados com controles positivos e negativos por análise de variância (ANOVA)24,26,30,34,35, teste de comparação Newman-Keuls24,34, teste t de Student’s26,35, teste de Bonferroni’s26, Teste t Pareado33, Teste de Tukey35e coeficiente de correlação de Pearson’s37,47.
Para calcular as precisões foram utilizados os programas GraphPad Prism13,24,26, 30,31,34, SigmaStat40 para a regressão e a análise estatística e CombiStats13.
Com base em todos os resultados encontrados, foram avaliadas as precisões intraensaios, ou seja, avaliação da concordância entre os resultados de um mesmo analista, no mesmo dia e em um ensaio. Também foi calculada a precisão interensaios através da avaliação dos resultados executados em dias diferentes. Para ensaios biológicos um coeficiente de variação de até 20% como em Elisa é um valor aceitável69. Sendo assim, é imprescindível a realização de uma próxima etapa para avaliação da reprodutibilidade interlaboratorial.
Os métodos mais usados para comparar duas medidas da mesma variável são: o gráfico de Bland-Altman, a Regressão de Deming e o coeficiente de correlação de concordância de Lin (CCC). Isso é especialmente importante se o objetivo for introduzir um novo método de medição que tenha algumas vantagens (redução de custos ou por biossegurança) em relação a uma técnica de medição existente (o “padrão ouro”).
Uma abordagem moderna para comparação de ensaios é o entendimento de que o método substituto não deve ser obrigado a ter uma correlação significativa com o método de referência, uma vez que tanto o ensaio in vivo como os ensaios in vitro possuem variabilidade inerente. O novo teste deve estar em concordância de resultados com a potência in vivo e deve ser capaz de discriminar entre lotes potentes e subpotentes (verdadeiro-negativo). É por isso que alguns autores se referem à “concordância” em vez de “correlação”70,71.
Os três pilares essenciais para garantir a segurança e a eficácia de um produto são: estudos pré-clínicos, boas práticas de fabricação e controle da qualidade. Para validar um método, é imprescindível seguir com o estudo interlaboratorial comparativo à metodologia oficial vigente neste momento, neste caso, o ensaio in vivo descrito na Farmacopeia e realizado por laboratórios produtores e de controle da qualidade. Para que o processo de validação deixe de ser uma intenção e vire realidade são necessários: investimento, padrões de referência e atuação integrada entre os profissionais de laboratório até as autoridades regulatórias. É necessário separar a finalidade do ensaio (pré-clínico, desenvolvimento, controle de qualidade) para avançarmos. Isto fica bem evidente no importante projeto colaborativo entre National Centre for the Replacement, Refinement and Reduction of Animals in Research (NC3Rs) e OMS sobre o porquê de usar um grupo tão grande de animais para controle da qualidade de produtos já licenciados72. Em contrapartida, nos ensaios pré-clínicos, se um único ensaio não é capaz de mimetizar os efeitos em um organismo completo como se fosse um ser vivo, deve-se avaliar a possibilidade de usar uma estratégia integrada de mais de um ensaio in vitro em substituição ao ensaio in vivo10. A venômica, ou seja, o estudo da proteômica dos venenos pode contribuir na identificação das principais toxinas do veneno e a relação com a fisiopatologia dos envenenamentos. Enquanto a antivenômica detecta quais toxinas do veneno se ligam ao antiveneno42,43,44. Devido à grande diversidade mundial de venenos é necessário realizar testes singulares para cada país ou localização geográfica, tanto para ensaios pré-clínicos como para desenvolvimento de métodos alternativos43.
O ensaio in vivo não representa com fidelidade o que ocorre nos acidentes ofídicos. A principal diferença está no fato de que no ensaio in vivo é feita uma pré-incubação de veneno e antiveneno para inoculação intraperitoneal, enquanto nos acidentes a inoculação precede a soroterapia e a maioria das pessoas é acometida nos membros inferiores, mas a mistura veneno e antiveneno é administrada pela via endovenosa ou intraperitoneal de camundongos. A variabilidade genética e biológica dos animais, além da influência de fatores externos como ambiente e estresse é um problema de qualidade que pode influenciar diretamente nos resultados. Para ensaios in vitro, o processo de controle dos parâmetros de ambiente, temperatura, espaço físico, treinamento de pessoal e reprodutibilidade é uma grande vantagem, pois têm resultados liberados em menos tempo e são menos onerosos do que os ensaios com animais. Ainda assim, ensaios in vitro, de modo geral, necessitam passar por um processo longo e de custo elevado como a validação que compreende cinco etapas e pode levar cerca de 15 anos para ser concluído. Hartung63 evidencia alguns problemas que precisam ser levados em consideração em cultivos celulares, porém o principal ponto é a implantação nos laboratórios de boas práticas em cultivo celular.
O INCQS tem sistema de garantia da qualidade implantado com base na norma ABNT NBR ISO/IEC 17.025:201773 visando obter resultados confiáveis e precisos. A implementação desta norma na rotina mitiga grande parte dos problemas citados por Hartung63. Portanto, é imprescindível que os laboratórios implantem um sistema de Garantia da Qualidade, realizando a calibração dos equipamentos, fazendo o monitoramento ambiental e mantendo equipe capacitada, tudo rigorosamente registrado e com fácil rastreabilidade. Ainda que o ensaio não seja credenciado, é recomendável a implementação de sistemas de acreditação de laboratórios de análise, com base na norma ABNT NBR ISO/IEC 17.025:201773.
Vale ressaltar que existem outras metodologias desenvolvidas68 e pré-validadas13 que continuam atualmente em fase de validação. Apesar de não terem sido publicadas, se baseiam na propriedade do veneno botrópico provocar efeito citotóxico em células Vero e na propriedade do soro antibotrópico inibir essa citotoxicidade. Este método visa ser validado para o controle da qualidade em processo e para fins regulatórios. Os critérios definidos para aceitação do ensaio como válido são o controle do veneno e o controle de células; o efeito citotóxico deve apresentar uma relação linear, ou seja, ser proporcional às concentrações de veneno em pelo menos três diluições consecutivas.
A aplicabilidade da metodologia da potência relativa in vivo foi avaliada em um estudo colaborativo com a participação de todos os laboratórios produtores nacionais. Foi proposto que a potência do soro antibotrópico seja expressa em unidades neutralizantes (UN) e que cada UN corresponda à capacidade de 1 mL de soro antibotrópico neutralizar 1 mg de veneno botrópico.
Como a metodologia in vitro é mais sensível, utiliza uma quantidade menor de soro antibotrópico comparado ao utilizado in vivo, sendo assim, para fazermos a equivalência dos valores entre as metodologias devemos converter os valores para UN13,14,68. Portanto, como a potência mínima para a liberação de lote do soro antibotrópico segundo a Farmacopeia Brasileira é de 5 mg/mL, este limite passaria a ser considerado como o mínimo de 5 UN, tanto no sistema murino (in vivo) quanto no sistema de inibição da citotoxicidade (in vitro). Conforme Araújo et al.66 demonstraram em 2017, o melhor caminho para correlacionar dois métodos é através do uso de padrões de referência bem estabelecidos e preferencialmente validados. Para ensaios com veneno vale destacar que uma das vantagens do método in vitro é justamente a economia de veneno e soro de referência.
Como parte do processo de validação do ensaio de citotoxicidade em células Vero, foi realizado um ensaio in vitro com inibidores enzimáticos74. A ortofenantrolina (O-PHE) inibiu as metaloproteases, enquanto o brometo de p-bromofenacila (p-BPB) foi capaz de inibir as fosfolipases A2, comprovando que houve inibição das atividades citotóxica das principais enzimas presentes no veneno botrópico responsáveis tanto pela toxicidade em humanos como pela letalidade em camundongos.
É importante destacar que, devido às características do envenenamento ofídico, é necessária a avaliação do efeito biológico tanto do veneno quanto do antiveneno. Vale ressaltar que não fez parte desta pesquisa a avaliação in vitro dos efeitos neurotóxicos, o que, a princípio, limita essa proposta às serpentes que não tenham neurotoxicidade. Além disso, devido à complexidade da composição dos venenos ofídicos, são fundamentais a correlação estatística e a comprovação da habilidade de quantificar o efeito biológico tanto dos venenos quanto dos antivenenos para a aceitação dos métodos propostos.
Dos 31 trabalhos selecionados nesta revisão, 15 foram realizados utilizando venenos de serpentes do Brasil, demonstrando que pesquisadores brasileiros estão engajados na busca por métodos alternativos. Apesar dos números expressivos, é necessária uma intensa atuação e colaboração entre as diversas instituições, tais como: laboratórios acadêmicos, de pesquisa, produção e controle a fim de promover os avanços necessários para validação desses estudos. Além de serem escassos, os estudos referentes aos métodos alternativos ao uso de animais encontram-se muito segmentados. Atualmente há uma grande dificuldade para encontrarmos os dados referentes às metodologias, os compêndios oficiais e os avanços nessa área, uma vez que não existe uma compilação dos mesmos em sites oficiais75,76.
Através de uma parceria com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foi criado, em 2012, o Centro Brasileiro de Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM), pioneiro na América Latina e que tem como objetivo validar métodos alternativos ao uso de animais na experimentação e na educação. A criação do BraCVAM representa para a comunidade científica brasileira uma oportunidade de orientação e apoio para a validação de métodos alternativos. Em se tratando de antivenenos que são específicos em cada país e por consequência requerem testes diferenciados, esse protagonismo é imprescindível para que novas metodologias tenham credibilidade e possam ser aceitas mundialmente.
Revisões são necessárias para sumarizar os dados existentes na área, refinar hipóteses e definir estratégias para inovação e implantação de metodologias alternativas. Apesar de termos feito uma busca incessante de artigos, provavelmente não foram encontrados todos os artigos relacionados ao tema.
Os resultados deste estudo quando considerados em conjunto com as vantagens do ensaio in vitro (redução do tempo para liberação de lotes de antiveneno, redução de custos, reprodutibilidade e robustez) e sua utilidade em testes de eficácia de antiveneno apresentam-se como um forte candidato para seu uso como uma alternativa para o ensaio de letalidade em murinos.
Pode-se concluir que as metodologias identificadas na revisão se baseiam nas propriedades tóxicas dos venenos correlacionadas aos efeitos nos acidentes botrópicos. Pela diversidade das toxinas encontradas em cada gênero de serpentes, entende-se que é de extrema importância que o ensaio de potência dos antivenenos tenha como base a avaliação e a quantificação precisa da inibição da atividade biológica dos venenos. Outra questão importante ao propor um método substituto é o ponto de corte que deve ser considerado na aprovação do lote.
Os métodos que são baseados em citotoxicidade devem ser priorizados dentro da estratégia de métodos alternativos, justamente porque ensaios de citotoxicidade para análise de produtos biológicos são metodologias simples, de baixo custo e com exemplos exitosos de implantação nos laboratórios de controle da qualidade para fins regulatórios. No entanto, ainda é necessário que esforços sejam realizados em ensaios interlaboratoriais de validação, permitindo o uso regulatório e a permeabilização destes testes na pesquisa e produção de antivenenos botrópicos.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: renata.nundes@incqs.fiocruz.br