CARTA PARA OS EDITORES
Interpretação da distribuição de valores de concentração de fluoreto requer cuidado
Recepção: 16 Dezembro 2021
Aprovação: 14 Julho 2022
Prezado Senhor Editor,
Desde 2013, quando do seu lançamento, acompanhamos com bastante interesse a revista “Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência e Tecnologia” (Visa em Debate), pelo seu potencial para servir de referência acadêmica para a diversidade de temas que abrangem o campo da vigilância sanitária e para a tomada de decisão na proteção à saúde e no controle dos riscos à saúde da população.
No fascículo 4, do volume 9 (2021), foi publicado o artigo intitulado “Análise de dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua) no estado do Amazonas, 2016-2020”2. O trabalho despertou imediatamente nosso interesse, pois atuamos nessa área. Frustramo-nos, todavia, ao detectar uma falha na análise dos resultados e, como pesquisadores, nos sentimos no dever de apresentar as considerações que seguem, com vistas a colaborar para o aprimoramento dos procedimentos editoriais adotados na Visa em Debate.
O referido artigo apresenta um conjunto de informações de grande relevância para a gestão da vigilância da qualidade da água no estado do Amazonas. Entretanto, a interpretação dos dados relativos ao teor de fluoreto exige algumas ressalvas do ponto de vista analítico que podem, inclusive, ser úteis para o juízo crítico de outros parâmetros, como o cloro residual livre.
Os autores calcularam o valor mediano correspondente à distribuição de valores de concentração de fluoreto presente nas amostras de água dos municípios da microrregião do interior e daqueles da microrregião da capital do estado, para cada ano, dentro do período de 2016 a 2020; e classificaram esses valores em três categorias: (i) abaixo do recomendado, para valores inferiores a 0,6 mg/L; (ii) faixa ideal recomendada, correspondendo a valores entre 0,6 mg/L e 1,5 mg/L; (iii) acima do recomendado, considerando os valores acima de 1,5 mg/L.
A opção pelo valor mediano não é consistente com as exigências de proteção à saúde e leva a interpretações equivocadas. Recomendamos consultar literatura especializada1,4. Do total de registros de fluoreto, apenas 2,3% referem-se às microrregiões do interior e os dados apresentados não autorizam afirmar que “Observa-se concentrações de flúor em todas as amostras analisadas nas microrregiões do interior do estado em 2018 e 2019” (p. 31). Há importantes diferenças entre as microrregiões do interior e as da capital que não foram destacadas pelos autores. Acresce que a classificação dos valores medianos, adotada para a análise dos dados, não é preconizada pela literatura científica especializada. Além disso, as citações indiretas sustentadas nos estudos indicados pelas fontes Rebelo et al.3 e Frazão et al.4 contêm erros de interpretação que levam a um juízo equivocado pelos leitores.
Ressaltamos ainda que não existe um “sistema Vigifluor do Sisagua”, como foi enunciado pelos autores. Em termos de política pública, o que existe é o Programa Nacional de Vigilância em Saúde Ambiental relacionada à Qualidade da Água para Consumo Humano, que tem no Sisagua o seu correspondente sistema de informações, cujos dados têm organização interna ao sistema relacionados às fontes de abastecimento e à qualidade da água oferecida e consumida. Cabe enfatizar que, enquanto o Sisagua é um sistema oficial de registro de dados, o “Sistema Vigifluor” é um recurso tecnológico, compatível e complementar ao Sisagua, disponível no site do Centro Colaborador do Ministério da Saúde em Vigilância da Saúde Bucal da Universidade de São Paulo (CECOL/USP) e derivado de uma investigação científica financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)5 para aprimorar o modelo de vigilância em relação ao parâmetro fluoreto. Além disso, o Sistema Vigifluor adota, como referência para a organização dos dados que disponibiliza ao público, a “Classificação de Águas de Abastecimento Público segundo o Teor de Flúor”, um Documento de Consenso Técnico produzido por pesquisadores brasileiros com publicações científicas sobre o assunto, reunidos pelo CECOL/USP em dois “Seminários sobre Vigilância da Fluoretação de Águas”, realizados em 2009 e 2011 (http://www.cecol.fsp.usp.br/noticias/mostrar/245). A partir dessa classificação, são sugeridos indicadores para propiciar o monitoramento longitudinal da fluoretação da água como uma política pública, por meio de uma plataforma desenvolvida para apoiar a disseminação dessas informações aos interessados4. O acesso a esses dados pode ser feito acessando-se a área “Fluoretação da Água no Brasil”, no site do CECOL/USP (http://www.cecol.fsp.usp.br).
Por fim, Senhor Editor, cumpre-nos alertar que o significado atribuído à variação anual, mostrado nas Tabelas 3 e 4, é inconsistente e denota fragilidade teórica da análise empreendida pelos autores. Por sua relevância, recomendamos alertar sobre esses aspectos os leitores da Visa em Debate, pois um número de pontos muito reduzido tende a diminuir o poder estatístico e a dificultar a identificação de uma tendência significante, crescente ou decrescente, e o valor mediano não é um indica dor apropriado para essa finalidade.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: pafrazao@usp.br