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O vírus que parou o mundo – um panorama sobre a pandemia de COVID-19
Marcelo Albano Moret Simões Gonçalves; Thiago Barros Murari; Magda de Lima Lucio;
Marcelo Albano Moret Simões Gonçalves; Thiago Barros Murari; Magda de Lima Lucio; Tarcísio Marciano da Rocha Filho
O vírus que parou o mundo – um panorama sobre a pandemia de COVID-19
The virus that stopped the world – an overview of the COVID-19 pandemic
Vigilância Sanitária em Debate, vol. 10, núm. 4, pp. 44-51, 2022
INCQS-FIOCRUZ
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RESUMO

Introdução: A pandemia de COVID-19 continua a impactar a vida de milhões de pessoas, sob o ponto de vista sanitário, social e econômico, com forte impacto na seguridade social, na educação de jovens e adultos, e outras áreas que, combinadas, incidem diretamente na economia mundial.

Objetivo: Apresentar uma revisão de alguns trabalhos relevantes sobre a pandemia de COVID-19 no intuito de demonstrar ações efetivas de enfrentamento da pandemia e seu impacto na saúde pública.

Método: Análise bibliográfica de estudos de coorte transversal que utilizam dados oficiais do número de casos, número de óbitos e doses aplicadas segundo a idade, dose e tipo da vacina apoiado em modelos epidemiológicos.

Resultados: Apesar das mais de 460 milhões de doses aplicadas, ainda temos parcelas significativas da população sem o esquema vacinal completo, com real possibilidade de uma nova onda de COVID-19 até o final do ano de 2022.

Conclusões: O SARS-CoV-2 continua a circular fortemente pelo Brasil e no mundo, aumentando a possibilidade de surgirem novas variantes que resultariam em novas ondas da pandemia, que podem ser evitadas por medidas implementadas pelo poder público, como: intensificação das campanhas de vacinação, medidas não farmacêuticas e campanhas de informação da população.

Palavras-chave: COVID-19, SARS-CoV2, Modelo Epidemiológico.

ABSTRACT

Introduction: The COVID-19 pandemic continues to impact the lives of millions of people, from the health, social and economic point of view, with strong impact on social security, youth and adult education, and other areas that, combined, directly impact the world economy.

Objective: To present a review of some relevant works on the COVID-19 pandemic in order to demonstrate effective actions to face the pandemic and its impact on public health.

Method: Bibliographic analysis of cross-sectional cohort studies that use official data on the number of cases, number of deaths, and doses applied according to age, dose, and type of vaccine supported by epidemiological models.

Results: Despite the more than 460 million doses applied, we still have significant portions of the population without the complete vaccination schedule, with a real possibility of a new wave of COVID-19 by the end of the year 2022.

Conclusions: SARS-CoV-2 continues to circulate strongly throughout Brazil and the world, increasing the possibility of new variants that would result in new waves of the pandemic, which can be avoided by measures implemented by public authorities, such as intensified vaccination campaigns, non-pharmaceutical measures and public information campaigns.

Keywords: COVID-19, SARS-CoV2, Epidemiological Modeling.

Carátula del artículo

REVISÃO

O vírus que parou o mundo – um panorama sobre a pandemia de COVID-19

The virus that stopped the world – an overview of the COVID-19 pandemic

Marcelo Albano Moret Simões Gonçalves
SENAI, Brasil
Thiago Barros Murari
SENAI, Brasil
Magda de Lima Lucio
Universidade de Brasília, Brasil
Tarcísio Marciano da Rocha Filho
Universidade de Brasília, Brasil
Vigilância Sanitária em Debate, vol. 10, núm. 4, pp. 44-51, 2022
INCQS-FIOCRUZ

Recepção: 31 Agosto 2022

Aprovação: 26 Setembro 2022

INTRODUÇÃO

Neste artigo apresentaremos uma revisão de alguns trabalhos de nosso grupo, escritos ao longo da pandemia de Coronavirus Disease 19 (COVID-19), demonstrando o impacto de diferentes medidas adotadas para sua mitigação, analisando acertos e desacertos ao longo dos mais de dois anos que transcorreram desde o primeiro caso. A COVID-19 é uma doença viral causada pelo vírus Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2), da classe dos coronavírus. O primeiro caso reportado ocorreu em Wuhan na China, em dezembro de 2019, e se alastrou rapidamente pelo mundo, causando repetidos surtos em todos os continentes, hoje presente em todos os países. No mundo, dados oficiais registram mais de 601 milhões de casos e mais de 6,4 milhões de mortes1. O primeiro caso foi registrado na cidade de São Paulo, em 26 de fevereiro de 2020, e se alastrou posteriormente para todos os municípios brasileiros. Após várias ondas, o país ainda hoje contabiliza números diários de casos e mortes por COVID-19 elevados, mas com um lento decréscimo.

Em virtude da vacinação, a proporção de mortos é significativamente inferior ao observado nas ondas anteriores, 2020 e 2021, com a maioria dos óbitos ocorrendo entre pessoas que não se vacinaram ou com vacinação incompleta. O Brasil ocupa hoje no mundo a 4a posição em número total de casos, com cerca de 34 milhões de notificações, e a 2a em número de mortos, cerca de 683 mil. Em termos proporcionais à população, ocupa a 17a posição em mortes por milhão de habitantes, 94a em casos por milhão e a 146a posição em testes por milhão de habitantes. É importante salientar que o número real de casos é altamente subestimado na grande maioria dos países, podendo ser até 18 vezes o montante oficial segundo o país2.

A atual pandemia guarda similaridades com o que foi enfrentado pelo mundo em 1918, com a pandemia da Influenza, que se espalhou rapidamente por todo o globo e em oito meses levou a óbito entre 50 a 100 milhões de pessoas. No Brasil, após pouco mais de um mês da chegada da gripe, cerca de 60% da população carioca estava infectada com o vírus e houve, ao menos, 35.000 mortes na cidade. Tal cenário foi acompanhado de comportamentos renitentes em relação às descobertas científicas e, ao mesmo tempo, um comportamento coletivo que buscava, em uma mistura de posicionamentos políticos e crenças populares, uma vinculação discursiva em que o poder estatal tramava contra a população e tinha interesses escusos mancomunado com “inimigos estrangeiros” que tentavam se imiscuir nas vidas privadas por meio da invenção de um vírus ou pelo comportamento inadequado de povos já estigmatizados3. Em suma, uma ausência de diálogo entre autoridades sanitárias e governamentais e a população, causando um desacerto tanto nas ações e políticas de enfrentamento quanto nas políticas de sustentação econômica necessárias a uma situação-limite como é uma pandemia. O mesmo pode ser dito com relação à atual pandemia de COVID-19, mais de um século depois da gripe espanhola.

Mesmo com informações disponíveis em tempo real, seja pela grande mídia ou por redes sociais, parte significativa da população foi capturada por uma retórica, por vezes de agentes de governo, que questionava ampla evidência científica sedimentada, com a disseminação de falsas informações, sem a devida comprovação científica, aliadas a preconceitos e pré-noções que apontavam para pretensos inimigos nacionais e internacionais como vilões.

De todos os comportamentos observados, elencamos as ações que podem ser caracterizadas como eugênicas, dentre elas a de que a imunidade de rebanho seria suficiente para resolver o problema da pandemia: alguns morrerão, mas todos ficarão imunes. Este foi um comportamento utilizado ao longo da história para o combate à varíola e é conhecido como variolização4, que consiste na

inoculação do material derivado das crostas da varíola em pessoas sãs, na tentativa de produzir doença mais branda que a natural. Baseava-se na observação de que os sobreviventes da doença não adoeciam novamente e de que pessoas infectadas por outras vias, como a cutânea, apresentavam doença mais branda. O método parece ter sido desenvolvido na China e na Índia, de forma independente, no século XI, disseminando-se pela Ásia (Egito - século XIII), Europa (século XVIII) e África4.

No caso do SARS-CoV-2, este procedimento jamais teria êxito, uma vez tratar-se de um vírus de RNA, com grande capacidade de mutação que tem lhe permitido driblar a imunidade adquirida.

No Brasil, a variante b.1.1.28 do vírus SARS-CoV2 surgiu durante a primeira onda de infecção no país, iniciada em fevereiro de 2020, e se tornou rapidamente predominante. Mutações posteriores a esta resultaram na variante Gama, identificada em outubro de 2020, e que se manteve como principal causa de contaminação por aproximadamente um ano. No segundo semestre de 2021, a variante Delta chegou ao Brasil e passou a ser dominante, causando reinfecções mais frequentes. A variante Omicron chegou ao país em dezembro de 2021 e ainda mais rapidamente se tornou dominante, causando reinfecções ainda mais frequentes. Estas ocorrem principalmente devido às mutações na proteína espícula (spike protein), principal via de ligação do SARS-CoV-2 com o receptor ACE2 nas células humanas, o que lhe permite utilizar a célula para se replicar. As principais mutações do SARS-CoV-2 ocorreram justamente na região da proteína que interage com esse receptor. Por sua vez, nosso sistema imunológico cria defesas para impedir essa ligação para as variantes com as quais teve contato, mas as mutações podem burlá-las, com uma probabilidade menor de o sistema imunológico reconhecer o vírus como invasor. Essa é uma das razões para as sucessivas ondas da pandemia causadas pelo aparecimento de novas variantes, tornando o conceito de imunidade de rebanho obsoleto e não aplicável para a presente situação5. Infelizmente a imunidade de rebanho tem sido defendida de forma contundente desde o início da pandemia, por setores que não se apoiam em conhecimentos científicos, como forma de controlar a pandemia de COVID-19.

É nesse cenário que nosso grupo de pesquisa, em esforço interdisciplinar, com pesquisadores de várias instituições do Brasil e exterior, buscou informar a população e os órgãos de saúde pública, procurando sempre que possível as informações corretas, com respostas diretas e efetivas, para assim contribuir com o enfrentamento desta pandemia, que ainda está presente no Brasil e no mundo6.

MÉTODO
Modelo epidemiológico

O modelo SEIAHRV (Susceptível, Exposto, Infectado, Assintomático, Hospitalizado, Recuperado e Vacinado) é uma extensão do modelo utilizado em Rocha Filho et al.7, com compartimentos para indivíduos vacinados com uma e duas doses, com possibilidade de diferentes vacinas com eficácias distintas, qualquer número de doses, em que se fornece o número de doses aplicadas para cada tipo por intervalos de tempo, podendo, assim, reproduzir as campanhas de vacinação já ocorridas e simular a evolução sob diferentes cenários futuros. O modelo também considera a possibilidade de falha de vacinação primária, assume uma mistura homogênea (campo médio) e diferentes grupos de faixas etárias, com suas respectivas características epidemiológicas, e uma estrutura de contatos entre as diferentes faixas etárias.

A decomposição dos compartimentos em grupos etários permite incorporar a estrutura de contatos estimada em uma dada população, aqui representada por uma matriz de contatos Ci,j que fornece o número médio de contatos por dia de um único indivíduo do j-ésimo grupo etário, com qualquer indivíduo da i-ésima faixa etária. Os autores desconhecem qualquer estimativa para a matriz de contato no Brasil. Esse problema foi contornado utilizando os resultados de Mossong et al.8 para oito países europeus obtidos por meio de um trabalho de campo, tomando a média das matrizes de contato de cada um dos oito países e, ao mesmo tempo, adaptando o resultado à distribuição etária de localidade considerada. Trata-se de uma suposição razoável devido às semelhanças culturais entre a Europa e o Brasil. As faixas etárias representadas no modelo são: 0 a 9, 10 a 19, 20 a 29, 30 a 39, 40 a 49, 50 a 59, 60 a 69, 70 a 79 e 80 anos e mais9. Além da matriz de contato, consideramos a probabilidade dependente do tempo Pc(t) de um indivíduo suscetível ser contaminado em um contato com um indivíduo infectado. O modelo é então ajustado a partir de dados reais prévios, determinando uma forma funcional para Pc(t). Os parâmetros epidemiológicos necessários são dados na literatura10,11,12,13,14,15 e sintetizados nas Tabelas 1 e 2 de Rocha Filho et al.9. O diagrama de transferência entre os compartimentos, as correspondentes equações diferenciais não lineares com atraso de tempo, a forma funcional para Pc(t), e sua determinação a partir dos dados empíricos estão descritas em Rocha Filho et al.9.

Fontes de dados

Nossas análises são baseadas em dados oficiais atualizados, divulgados por cada Secretaria Estadual de Saúde, e disponibilizados pelo Ministério da Saúde16. Os dados diários coletados foram: (i) número de casos, (ii) número de óbitos, (iii) doses aplicadas segundo a idade, dose e tipo da vacina. Dados da população brasileira em cada município foram obtidos das estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 202017.

RESULTADOS
Taxa de ataque no Brasil

Como comentado acima, a subnotificação de casos é enorme em todo o mundo, sobretudo em locais com pouco acesso à saúde e poucos testes aplicados. O modelo compartimental proposto (SEIAHRV) pode ser ajustado a partir da série de óbitos, muito mais confiável do que a de casos. O modelo então fornece a série estimada de casos reais ocorridos no país, refletindo os dados conhecidos sobre o vírus. O número de casos estimados a cada dia, a partir dos dados até o dia 27 de junho de 2021, está apresentado na Figura 1 (para total de casos e casos por dia), assim como a previsão do modelo até 1o de maio de 2022. A previsão seria, então, do fim da pandemia, caso todas as condições epidemiológicas fossem mantidas. No entanto, alguns fatores foram alterados, modificando a dinâmica da pandemia: a possibilidade importante de reinfecção para indivíduos que já haviam contraído o vírus e, principalmente, a chegada da variante Omicron ao final de 2021, e posteriormente suas subvariantes, muito mais contagiosas e capazes de driblar mais eficazmente a imunidade adquirida. Isso fez com que novos surtos importantes ocorressem, demonstrando de forma bastante clara como a ideia, muitas vezes propalada explícita ou implicitamente, de esperar que a imunidade de rebanho (ou de grupo) venha a terminar a pandemia é completamente equivocada. As previsões do que virá a acontecer dependem de muitos fatores, sobre os quais não se tem controle, restando apenas a vacinação em massa e o desenvolvimento de tratamento realmente eficazes como políticas de enfrentamento viáveis.


Figura 1
Casos de COVID-19 no Brasil a partir do modelo SEIAHRV, ajustado com o número de mortes até o dia 27 de junho de 2021, e prognóstico a partir dessa data.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2022.(a) Total de casos; (b) Casos por dia.

Isolamento social

O grau de isolamento pode ser caracterizado de várias formas. Em Rocha Filho et al.18, os autores definiram uma métrica de isolamento social com base em dados de mobilidade de telefonia móvel, publicamente disponibilizados pela Google19, definindo um índice de isolamento como uma média ponderada dos valores (o peso é o número entre parêntesis) do percentual de variação do tempo de permanência em cada tipo de local, com relação à linha de base (de 3/1/2020 a 6/2/2020): locais de trabalho (−9/24), áreas residenciais (+12/24), varejo e lazer (−0, 5/24), mercados e farmácias (−1/24), parques (−0, 5/24), estações de transporte público (−1/24). Os resultados para todas as unidades da federação estão mostrados nos gráficos da Figura 2. Quanto maior o valor, maior o nível de isolamento, que, de modo geral, vem caindo sistematicamente desde o início da pandemia. Cabe ressaltar que em nenhum momento foram adotadas medidas de lockdown como em alguns países europeus ou na China, permitindo a livre circulação do vírus e uma perda desnecessária de vidas humanas.


Figura 2
Índice de isolamento18 em cada unidade da Federação.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2022.AC: Acre; AL: Alagoas; AP: Amapá; AM: Amazonas; BA: Bahia; CE: Ceará; DF: Distrito Federal; ES: Espírito Santo; GO: Goiás; MA: Maranhão; MT: Mato Grosso; MS: Mato Grosso do Sul; MG: Minas Gerais; PA: Pará; PB: Paraíba; PR: Paraná; PE: Pernambuco; PI: Piauí; RR: Roraima; RO: Rondônia; RJ: Rio de Janeiro; RN: Rio Grande do Norte; RS: Rio Grande do Sul; SC: Santa Catarina; SP: São Paulo; SE: Sergipe; TO: Tocantins.

Na mesma referência18, é apresentada uma análise estatística dos dados da COVID-19 de diferentes países europeus, dos Estados Unidos e do Brasil, e no caso destes dois últimos para seus respectivos estados. Os resultados demonstram a eficácia do isolamento social no controle da propagação do vírus, assim como a da obrigatoriedade do uso de máscaras, medidas que, infelizmente, muitas vezes são contestadas pelas autoridades que deveriam defendê-las.

Vacinação

Os dados da vacinação no Brasil estão disponíveis no Ministério da Saúde20. Nas Figuras 3 e 4 mostramos o percentual da população já vacinada em cada uma das faixas etárias considerada no modelo SEIAHRV para a vacinação completa (duas doses ou dose única), primeira e segunda dose de reforço (terceira e quarta doses), até 10 de julho de 2022. O primeiro fato a ser explicado é que, em certas faixas etárias e em particular em alguns estados, a população vacinada na faixa etária de 60 a 69 anos ultrapassou 100%. Isso significa que as estimativas do IBGE, baseadas em extrapolações do censo de 2010, possuem um erro importante, que deverá ser corrigido com o censo de 2022. A cobertura vacinal para as duas primeiras doses pode ser considerada boa, mas já falha nas faixas etárias mais jovens para a terceira dose, e é muito ruim para a segunda dose de reforço. Isso reflete certo descaso da população com relação à pandemia, que desapareceu dos noticiários, apesar do ainda elevado número de casos e mortes, e também em decorrência de uma normalização da doença, influenciada pela ausência de campanhas de informação mais efetivas e presentes, e do discurso insistentemente negacionista de algumas autoridades públicas com relação à eficácia e segurança das vacinas disponíveis.


Figura 3
Percentual da população já vacinada por faixa etária com (a) duas doses ou dose única; (b) dose de reforço (terceira dose) e (c) segunda dose de reforço (quarta dose). Dados de 20 de julho de 2022.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2022.


Figura 4
Interesse pelo termo “pandemia” no Brasil obtido no Google Trends com relação à data de 5 de setembro de 2021 a 27 de agosto de 2022.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2022.

Hospitalização

Um estudo de coorte retrospectivo de hospitalização por COVID-19 no sistema público de saúde brasileiro, realizado por nosso grupo, considerou mais de 950 mil pacientes infectados por SARS-CoV-2 de um banco de dados multicêntrico nacional, para o período de 1º de janeiro de 2021 a 23 de março de 202221. Nele foi testado se a variante Omicron apresentou gravidade reduzida em desfechos diferentes das variantes Gamma e Delta, utilizando o estado vacinal documentado em pacientes hospitalizados e idade. O desfecho mortalidade de pacientes hospitalizados foi examinado na janela de tempo citada, concluindo que a variante Omicron reduziu de forma estatisticamente significante a eficácia da dose de reforço para as vacinas CoronaVaC, Ad26.COV2.S e AZD1222, e que a ampla maioria dos óbitos ocorreu em pacientes não completamente vacinados21.

Interesse popular pelo termo pandemia

A Figura 4 mostra o índice de buscas no sítio da Google pelo termo “pandemia”, obtido no “Google Trends”22, para o período de 5 de setembro de 2021 a 27 de agosto de 2022, e aponta uma forte tendência de perda de interesse pelo tema ao longo do tempo, acompanhada por um esforço contundente para ignorar os fatos relacionados, desprezando as informações científicas de que o perigo ainda é presente, como demonstrado pela quantidade ainda crescente de casos, internações e óbitos.

DISCUSSÃO

Uma terceira onda da pandemia no Brasil, a maior em número de casos até o momento, ocorreu de dezembro de 2021 até final de abril de 2022, seguida por uma quarta onda em fase descendente no momento que este artigo é escrito (final de agosto de 2022), causadas pela variante Omicron e subvariantes. Apesar do número ainda significativo de mortes, esta teria atingido patamares muito maiores não fosse o número de doses da vacina contra o vírus aplicadas no Brasil. Apesar disso, ainda temos parcelas significativas da população com esquema vacinal incompleto, o que infelizmente resulta na ampla maioria do ainda elevado número de mortes diárias por COVID-19 que ocorrem no Brasil, com uma média móvel sobre sete dias de 135 em 30 de agosto de 2022. O Brasil como um todo já ultrapassou o pico da quarta onda, mas não há nenhuma base científica para afirmar que o atual estágio é um contexto de pós-pandemia, com o vírus continuando a circular e a possibilidade do surgimento de novas variantes.

O Brasil possui uma longa tradição de campanhas de imunizações de larga escala, com velocidade e eficiência, conquistadas graças a um sistema público de saúde sólido, o Sistema Único de Saúde (SUS), exemplo para muitos países. Este poderia ter sido um cenário virtuoso para o país construir oportunidades de disseminação de boas práticas, sob o ponto de vista sanitário, conquistadas por décadas de experiências de sucesso no controle e prevenção de diversas epidemias, que poderia ter trazido visibilidade positiva para a nação. No entanto, o que ocorreu foi a transformação deste ambiente pelas autoridades públicas em uma coletânea de decisões erráticas e confusas. Por este motivo, hoje temos uma cobertura vacinal deficiente, com parcela significativa da população ainda não totalmente vacinada (considerando as respectivas doses de reforço), principalmente entre os adultos jovens e crianças, como podemos ver na Figura 3. A baixíssima adesão à quarta dose da vacina apenas reforça o argumento acima e aponta um descuido na manutenção da proteção, agravado pelo país sequer ter iniciado a vacinação de crianças a partir de 6 meses de idade, como já autorizado pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) estadunidense. Tal quadro é, portanto, preocupante, agravado pela ausência de campanhas de informação, que reforcem o papel central da vacinação para o controle da pandemia, e informando as consequências de contrair o vírus.

Como discutido acima, podemos ter ainda dias difíceis pela frente, com possíveis novas ondas, ou surtos, evidenciando mais um aspecto da ineficiência sob o ponto de vista do planejamento, da gestão e do controle da situação no seu conjunto. Para completar um quadro já bastante complexo, o retorno às aulas presenciais em todo o país, sem as mudanças de infraestrutura necessárias, sem as condições objetivas para um distanciamento social consistente e perene, sem informações corretas para professores, pais e alunos, transformaram os locais de ensino em centros de propagação do vírus, facilitando sua circulação não apenas entre crianças e jovens, mas também para suas famílias e o restante da sociedade.

Os cuidados não farmacêuticos, como a obrigatoriedade do uso de máscaras, vêm sendo cada vez menos utilizados como estratégias de contenção da ainda persistente pandemia, ao contrário do que foi proposto por estados e municípios, mas não pelo Governo Federal, no início da pandemia23. Cabe ressaltar que a obrigatoriedade da vacinação sobretudo entre crianças, demonizada pelo governo central, poderia ter resultado em uma redução significativa de casos e mortes. A contínua inexistência de campanhas de conscientização e de orientação para toda a população, desde o início da pandemia, resultou em perdas de vidas que poderiam ter sido evitadas com algumas medidas de fácil implementação18. O que se viu, e ainda segue, é uma disputa permeada por frases de efeitos e propagação de discursos calcados no senso comum, esvaziado de sentido e profundidade, utilizando canais de comunicação para construir uma resistência inconsequente e irresponsável no que tange à vacinação e à utilização de máscaras, assim como de outros procedimentos.

Ainda sob a falta de gestão da pandemia, podemos verificar que prédios e estruturas físicas não foram devidamente alterados, de forma minimamente responsável, para um retorno presencial de atividades educacionais, profissionais, comerciais e de lazer, dentre outras. Temos, portanto, um quadro crítico, sob o ponto de vista da organização dos espaços públicos e, sobretudo, das atitudes daqueles que estão imbuídos constitucionalmente da missão de proteger e promover o bem-estar da população24.

CONCLUSÕES

Pouco se sabe ainda sobre as sequelas e consequências deixadas pela COVID-19, tanto sob o ponto de vista sanitário, como social e econômico. Mesmo as descobertas que já existem ainda não circulam de modo corrente entre a população e na própria estrutura do aparelho estatal, mostrando uma lacuna sobre a exata compreensão do impacto que se terá na seguridade social, na educação de jovens e adultos, e em outras áreas, que combinadas, incidirão diretamente na produtividade do país, no aumento dos gastos com saúde, seja pública ou privada. Este contexto não aponta para um quadro alvissareiro para a competitividade do país, que de acordo com rankings internacionais, é baixa e precisa imediatamente de ações que possam contribuir para mitigar este desempenho.

Diferentes medidas podem ser adotadas, sem significativo impacto negativo na economia do país, uma constante preocupação25, desde que os agentes públicos reconheçam a real situação sanitária do país. Concluímos reforçando que a pandemia está longe de encerrada, o vírus ainda circula fortemente no Brasil e no mundo e há a possibilidade de surgirem novas variantes, que podem ser menos perigosas ou mais mortíferas26,27, uma loteria que não deveríamos estar jogando.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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Notas
Contribuição dos Autores
Gonçalves MAMS, Murari TB, Lucio ML, Rocha Filho TM Concepção, planejamento (desenho do estudo), aquisição, análise, interpretação dos dados e redação do trabalho. Todos os autores aprovaram a versão final do trabalho
Declaração de interesses
Conflito de Interesse

Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.

Autor notes

* E-mail: mamoret@gmail.com


Figura 1
Casos de COVID-19 no Brasil a partir do modelo SEIAHRV, ajustado com o número de mortes até o dia 27 de junho de 2021, e prognóstico a partir dessa data.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2022.(a) Total de casos; (b) Casos por dia.

Figura 2
Índice de isolamento18 em cada unidade da Federação.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2022.AC: Acre; AL: Alagoas; AP: Amapá; AM: Amazonas; BA: Bahia; CE: Ceará; DF: Distrito Federal; ES: Espírito Santo; GO: Goiás; MA: Maranhão; MT: Mato Grosso; MS: Mato Grosso do Sul; MG: Minas Gerais; PA: Pará; PB: Paraíba; PR: Paraná; PE: Pernambuco; PI: Piauí; RR: Roraima; RO: Rondônia; RJ: Rio de Janeiro; RN: Rio Grande do Norte; RS: Rio Grande do Sul; SC: Santa Catarina; SP: São Paulo; SE: Sergipe; TO: Tocantins.

Figura 3
Percentual da população já vacinada por faixa etária com (a) duas doses ou dose única; (b) dose de reforço (terceira dose) e (c) segunda dose de reforço (quarta dose). Dados de 20 de julho de 2022.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2022.

Figura 4
Interesse pelo termo “pandemia” no Brasil obtido no Google Trends com relação à data de 5 de setembro de 2021 a 27 de agosto de 2022.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2022.
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