RESUMO
Introdução: O uso medicinal dos derivados da Cannabis divide opiniões na sociedade civil. Entretanto, para muitos pacientes que necessitam do tratamento, a regulamentação da importação e o uso desses produtos representam esperança e qualidade de vida.
Objetivo: Identificar os principais fatos e posicionamentos relacionados à regulamentação dos produtos medicinais à base de Cannabis no período de 2014 a 2021 por parte da Anvisa, do Ministério da Saúde, da Câmara dos Deputados e Conselhos Federais de Farmácia e de Medicina.
Método: Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de caso, resultado das análises dos fatos e posicionamentos identificados pelos distintos atores selecionados, considerando o recorte temporal de 2014 a 2021. A produção de dados incluiu fontes do banco de dados do eixo temático Políticas de Medicamentos, Sangue, Assistência Farmacêutica e Vigilância Sanitária, desenvolvido em parceria com pesquisadores da Universidade do Estado da Bahia. O eixo integra o Observatório de Análise Política em Saúde do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.
Resultados: Vários países como Argentina, México, Tailândia, Canadá, Israel e diversos estados dos EUA têm alterado sua legislação para que seja possível ampliar o uso de medicamentos à base de Cannabis. No Brasil, no entanto, este é um processo longo, que envolve várias divergências e posicionamentos de diferentes atores políticos.
Conclusões: O tema se mostra relevante, discussões e debates permitem que a sociedade seja informada sobre como o governo está conduzindo a regulamentação para permitir a produção de medicamentos à base de Cannabis como uma alternativa terapêutica para condições que ainda não contam com terapêuticas medicamentosas.
Palavras-chave: Maconha Medicinal, Regulação Governamental, Vigilância Sanitária.
ABSTRACT
Introduction: The medicinal use of Cannabis derivatives divides opinions in civil society. However, for many patients who need treatment, the regulation of the importation and use of these products represents hope and quality of life.
Objective: To identify the main facts and positions related to the regulation of medicinal products based on Cannabis from 2014 to 2021 by Anvisa, the Ministry of Health, the Chamber of Deputies and the Federal Councils of Pharmacy and Medicine.
Method: This is a case study resulting from the analysis of the facts and positions identified by different actors, selected considering a time frame from 2014 to 2021. The production of data included sources from the Thematic Axis database Medicines, Blood, Pharmaceutical Assistance and Health Surveillance Policies, developed in partnership with researchers from the State University of Bahia, which is part of the Observatory of Policy Analysis in Health of the Collective Health Institute of the Federal University of Bahia.
Results: Several countries, such as Argentina, Mexico, Thailand, Canada, Israel, and several states in the USA, have changed their legislation so that it is possible to expand the use of Cannabis-based drugs. In Brazil, however, this is a long process, which involves several divergences and positions of different political actors.
Conclusions: The topic is relevant; discussions and debates allow society to be informed about how the government is conducting the regulation to allow the production of Cannabis-based medicines as a therapeutic alternative for conditions that do not yet have drug therapies.
Keywords: Medical Marijuana, Government Regulation, Health Surveillance.
ARTIGO
Análise política sobre a regulamentação do uso medicinal dos produtos derivados da Cannabis spp. no Brasil (2014-2021)
Policy analysis on the regulation of the medicinal use of products derived from Cannabis spp. in Brazil (2014-2021)
Recepção: 14 Fevereiro 2022
Aprovação: 07 Novembro 2022
A Cannabis sativa L., popularmente conhecida como maconha, é uma planta da família das Moraceae que possui propriedades terapêuticas, havendo registros de seu uso desde a antiguidade para fins medicinais e recreativos. Destacam-se na C. sativa L. dois fitocanabinoides: o ∆9 – Tetra-hidrocanabinol (∆9 - THC), principal constituinte psicoativo, e o canabidiol (CBD), substância não psicoativa descrita na literatura científica como possuidora de propriedades anticonvulsivantes, antipsicóticas, anti-inflamatórias, antiepiléptica e ansiolítica1,2,3.
O CBD e o THC estão entre os canabinoides de interesse científico e terapêutico. Entretanto, apesar de a planta C. sativa L. constar na lista de plantas proscritas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas da Portaria da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde (SVS/MS) nº 344, de 12 de maio de 1998, e de o THC e o CBD até 2015 constarem na lista de substâncias proscritas desta resolução, tratados internacionais assinados pelo Brasil concediam como exceção o seu uso “para fins médicos e científicos, sob controle e supervisão direta do país membro” e “para fins científicos e propósitos médicos muito limitados”4,5.
Pacientes portadores de epilepsia de difícil controle, doença de Alzheimer, doença de Parkinson, autismo, em tratamento oncológico, entre outras condições, a partir 2014 passaram a solicitar autorização judicial para garantir o acesso a produtos importados derivados de Cannabis como última alternativa terapêutica, esbarrando em restrições legais e econômicas para o acesso. Entretanto, devido ao alto custo do produto importado, casos de processos judiciais que solicitaram autorização para o cultivo da planta e extração do óleo começaram a surgir em todo o Brasil6.
Um estudo preliminar observou que, entre 2016 e 2019, no Brasil foram proferidas 17 sentenças pela Justiça Federal autorizando o cultivo da Cannabis para fins medicinais, relativas a 16 ações judiciais individuais para 17 pacientes e uma ação judicial coletiva que beneficiou 140 pacientes vinculados a uma organização social do estado da Paraíba. Nas ações individuais, os pacientes tinham diagnóstico de adenoma cerebral hipofisário, síndrome de Silver Russel, autismo, epilepsia, hérnia de disco, depressão, Parkinson, síndrome de West, síndrome de Dravet, retinose pigmentar e dor neuropática. Os beneficiários das ações foram nove pacientes com idade entre 4 e 16 anos, cinco com idade entre 32 e 60 anos e três com idade indeterminada. Os pacientes da ação judicial coletiva possuíam, em sua maioria, epilepsia, mas também Parkinson, Alzheimer e câncer. As sentenças foram proferidas pelos Tribunais Federais dos estados do Acre, Bahia, Ceará, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo e do Distrito Federal7.
O aumento na demanda pelo uso medicinal dos derivados da Cannabis decorre principalmente dos achados científicos observados a partir dos anos 90, sobre o chamado sistema canabinoide no organismo dos humanos, constituído por receptores canabinoides, os endocanabinoides e as enzimas que catalisam sua síntese e degradação, abrindo novos paradigmas no tratamento de diversas patologias. As solicitações que passam a ser demandadas são de produtos constituídos exclusivamente por CBD e por CBD+THC, em diversas concentrações, formas farmacêuticas (solução oleosa oral, gel oral, spray oral etc.), de variadas marcas/fabricantes, sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de procedência estrangeira e não disponíveis no mercado nacional8.
O processo de regulamentação do uso medicinal de produtos derivados da Cannabis spp. no Brasil é complexo e os desdobramentos desses fatos envolvem atores políticos e a sociedade civil, o que torna relevante compreender em que contexto essas decisões foram tomadas e como repercutiram. O objetivo deste artigo foi identificar os principais fatos e posicionamentos relacionados à regulamentação dos produtos medicinais à base de Cannabis no período de 2014 a 2021 por parte da Anvisa, do Ministério da Saúde, da Câmara dos Deputados e Conselhos Federais de Farmácia (CFF) e de Medicina (CFM).
Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de caso resultado das análises dos fatos e dos posicionamentos identificados pelos distintos atores selecionados considerando o recorte temporal de 2014 a 2021.
A produção de dados incluiu fontes do banco de dados do eixo temático Políticas de Medicamentos, Sangue, Assistência Farmacêutica e Vigilância Sanitária, desenvolvido em parceria com pesquisadores da Universidade do Estado da Bahia. Este eixo temático integra o Observatório de Análise Política em Saúde do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (OAPS ISC/UFBA).
Conforme a dinâmica do eixo, os dados são coletados mensalmente e os pesquisadores acompanham e discutem as notícias publicadas em sites institucionais definidos para classificar e selecionar aquelas com vistas ao potencial de constituírem fatos políticos e cujos conteúdos constituem um banco de dados do OAPS. Para identificar os fatos e o posicionamento dos atores, a produção dos dados deste estudo teve por base a seleção de informações obtidas, prioritariamente no link notícias relacionadas ao tema, disponíveis nos sítios eletrônicos de instituições selecionadas, entendidas como atores no processo de regulamentação dos derivados da Cannabis com finalidades terapêuticas, a saber: Anvisa, Ministério da Saúde, CFF, CFM e a produção normativa da Câmara dos Deputados. Adicionalmente, incluíram-se notícias produzidas por sites de representantes da sociedade civil, especializados e com interesse na temática.
O material foi organizado em planilhas de Excel® padronizadas e individualizadas para cada sítio de consulta, selecionando-se as notícias que apresentavam possibilidade de constituírem-se em um fato político9. Ademais, para os efeitos da identificação e análise do posicionamento político dos atores e instituições do Estado e da sociedade civil, tomou-se por base as reflexões que vêm sendo desenvolvidas no âmbito do OAPS10que foram organizadas em algumas publicações. A análise política em saúde no OAPS toma o poder como categoria central, tendo por referência o setor saúde e, desse modo, como o poder é apropriado, acumulado, distribuído e utilizado neste setor e no societário. A partir deste referencial e conforme o objetivo do estudo, buscou-se agrupar os fatos políticos, os atores e seus posicionamentos relacionados à regulamentação dos produtos medicinais à base de Cannabis com fins medicinais em uma linha do tempo.
Para complementar o estudo realizou-se revisão da literatura para identificar artigos nas bases científicas Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação (Capes/MEC), com os descritores “Cannabis medicinal”, “canabinoides”, “canabidiol”, “THC”, “regulamentação” e “políticas de saúde”.
Os resultados apresentados na linha do tempo (Figura) sintetizam os principais fatos políticos identificados no período de 2014 a 2021. Ressalte-se que não foram identificados fatos relevantes no ano de 2018, conforme dados analisados.
As discussões sobre o uso medicinal dos derivados canabinoides no Brasil se tornaram mais frequentes em 2014 em decorrência da autorização de importação do óleo de CBD para um paciente com epilepsia grave sem resposta a outros tratamentos11. A Cannabis e seus derivados ainda eram considerados substâncias proscritas no país à época. Este fato dá início a vários pedidos de autorização de importação à justiça por pacientes.
Em decorrência desses fatos, a categoria médica, por meio do CFM publicou a Resolução nº 2.113, de 16 de dezembro de 2014, que aprovou o uso compassivo do CBD exclusivo às especialidades de neurologia, neurocirurgia, psiquiatria e apenas para o tratamento de epilepsia em crianças e adolescentes refratários aos tratamentos convencionais. A Resolução do CFM estabeleceu que tanto prescritores quanto pacientes tivessem cadastro no sistema Conselho Regional de Medicina (CRM)/CFM para monitoramento de segurança e eventos adversos12.
Em 2015, a Anvisa publicou regulamentação simplificando critérios e procedimentos para importação de produtos derivados de Cannabis para utilização medicinal, em caráter excepcional, por pessoa física e mediante prescrição médica. Essa regulação dos produtos à base de CBD em associação com outros canabinoides foi um fato relevante, pois, embora estes produtos, à época, fossem proibidos no Brasil, o crescente tensionamento dos pacientes com condições clínicas graves e refratárias a outros tratamentos de algumas doenças contribuiu para que a normativa fosse adequada. A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n° 17, de 6 de maio de 2015, possibilitou maior agilidade ao processo de importação com regras específicas relacionadas ao produto para pacientes que necessitavam do tratamento, cadastrados junto à Anvisa13.
Nesse mesmo ano de 2015, o CBD foi reclassificado como substância controlada, e passou a ser enquadrada na lista C1 da Portaria SVS/MS nº 344/1998, deixando então de ser uma substância proscrita, facilitando as importações e possibilitando as pesquisas dos efeitos do CBD e uso terapêutico no país14. Com outra medida, no mês de agosto de 2015, a Anvisa passou a autorizar a compra excepcional do produto não apenas para pacientes com epilepsia, mas para diversas patologias, a exemplo de dor crônica e doença de Parkinson. Adicionalmente, em 2016, uma atualização das listas da Portaria SVS/MS nº 344/1998 abriu a possibilidade para o uso medicinal do THC15.
Em decorrência da atuação de organizações da sociedade interessadas no uso terapêutico desses produtos, em 2016, a Anvisa, em cumprimento a uma decisão judicial, publicou a RDC n° 66, de 6 de maio de 2016, permitindo a prescrição médica e a importação, por pessoa física, de produtos contendo as substâncias CBD e THC em sua formulação, exclusivamente para uso próprio e para tratamento de saúde. A Anvisa adotou medidas para derrubar a decisão judicial, face aos problemas que essa decisão poderia acarretar, uma vez que tais substâncias, ao não possuir registros no Brasil, não teriam segurança e eficácia comprovadas16.
Ainda em 2016, a Anvisa atualizou o anexo I da Portaria SVS/MS nº 344/1998 e incluiu, na lista A3, medicamentos derivados da C. sativa, em concentração de no máximo 30 mg de THC por mililitro e 30 mg de CBD por mililitro. Tal atualização tem relação com o processo de registro do medicamento Mevatyl®. Além dessa medida, foi divulgada a atualização da lista de produtos com CBD com autorização simplificada para a importação, através da RDC nº 128, de 2 de dezembro de 201617.
Como resultado de um movimento de segmentos sociais interessados, em 2017, a C. sativa L. foi incluída na lista das Denominações Comuns Brasileiras (DCB)18. Todas estas mudanças nos regulamentos sanitários permitiram que em 2017 o medicamento Mevatyl® obtivesse registro sanitário. O Mevatyl® foi o primeiro medicamento derivado de Cannabis registrado no país, porém ele já era aprovado em 28 países, com indicação em bula para o tratamento sintomático da espasticidade moderada a grave, relacionada à esclerose múltipla8.
Neste mesmo ano, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia (Conitec) do Ministério da Saúde realizou uma síntese de evidências e concluiu que não haviam sido encontrados estudos com comparadores ativos, não garantindo robustez das evidências até então disponíveis sobre este medicamento. Além disso, destacou que uma avaliação internacional não demonstrou custo efetividade no tratamento do Mevatyl para espasticidade moderada a grave relacionada à esclerose múltipla8.
A Anvisa abriu duas Consultas Públicas (CP n° 654 e CP n° 655) em 2019, para conhecer a opinião pública em relação ao uso medicinal da Cannabis e autorização de pesquisa sobre o seu uso no Brasil e discutir requisitos técnicos e administrativos para o cultivo da planta Cannabis spp. para fins medicinais e científicos com destaque para a ampla participação de instituições, da indústria farmacêutica e de usuários destes produtos. No final de 2019, a Anvisa, por meio da publicação da RDC nº 327, de 9 de dezembro de 2019, regulamentou a fabricação, importação, comercialização, monitoramento, fiscalização, prescrição e dispensação de produtos industrializados contendo como ativos derivados vegetais ou fitofármacos da C. sativa para fins medicinais19. Contudo, a proposta que tratava do plantio foi arquivada, decisão considerada restritiva e insuficiente por especialistas, associações e pacientes que necessitam dos produtos de Cannabis20.
A Anvisa considerou que as evidências científicas disponíveis a respeito do CBD em terapêutica clínica ainda apresentavam fragilidades e, por esta razão, os produtos derivados da Cannabis não foram classificados como medicamentos. A Anvisa criou uma nova categoria, a de produtos derivados da Cannabis para fins medicinais, sendo concedida a estes uma licença sanitária em vez de um registro, seguindo uma tendência de outras agências reguladoras. As agências reguladoras em diversos países têm ressaltado a necessidade de mais evidências em relação à eficácia e à segurança desses produtos considerando a abordagem da medicina baseada em evidências (MBE) na tomada de decisão. Existe uma escassez de estudos como revisões sistemáticas e ensaios clínicos randomizados, evidências importantes para fundamentar as decisões nos sistemas regulatórios nos países21,22.
Em março de 2020, a RDC n° 327/2019 entrou em vigor possibilitando que empresas interessadas em comercializar os produtos derivados de Cannabis no Brasil solicitassem registro à Anvisa. A norma não autorizou o plantio e determinou que os produtos de Cannabis fossem prescritos na condição de resposta refratária a outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro, e que as formulações deveriam conter como ativos exclusivamente derivados vegetais ou fitofármacos da C. sativa, predominantemente, CBD e não mais que 0,2% de THC, excetuados os produtos destinados a cuidados paliativos exclusivamente para pacientes sem outras alternativas terapêuticas e em situações clínicas irreversíveis ou terminais. Os produtos tiveram a apresentação restringida para uso oral ou nasal e não poderiam ser utilizados por crianças menores de 2 anos de idade23.
A indicação terapêutica e as orientações quanto à dose e à forma de uso dos produtos derivados de Cannabis são de responsabilidade restrita aos médicos e devem ser dispensados exclusivamente por profissional farmacêutico em drogarias. A prescrição deve ser acompanhada da Notificação de Receita “B” e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado pelo paciente ou seu representante legal, nos termos da Portaria SVS/MS nº 344/1998 e suas atualizações23. O uso não medicinal da Cannabis spp. mantém-se criminalizado no país, assim como o uso medicinal para condições sem evidências clínicas reconhecidas20.
Em 2019, não foi identificado nenhum posicionamento oficial do Ministério da Saúde ou notícia relacionada à regulamentação do uso medicinal de produtos derivados da Cannabis spp. Verificou-se apenas o posicionamento do ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, que declarou à imprensa que o CBD poderia ser incluído no Sistema Único de Saúde (SUS)24.
De acordo com a revista Radis, a aprovação da Anvisa foi apenas o primeiro passo na aceitação do uso da Cannabis como medicamento no Brasil, considerando-se que ainda há a proibição de cultivo da espécie no Brasil. Desse modo, o uso da substância só é possível mediante importação dos produtos derivados. Na opinião de organizações não governamentais (ONG) que produzem derivados de Cannabis com autorização judicial, o regulamento inviabiliza o acesso a esses produtos, que chegam com preços muito elevados ao Brasil25.
O CFF acompanhou acompanhou em 2019 as discussões em CP sobre a regulamentação de uso dos produtos à base de Cannabis e demonstrou posicionamento institucional favorável ao uso medicinal. O CFM evidenciou no debate questões técnicas e éticas do uso terapêutico deste e de outros produtos derivados de Cannabis26,27.
Observaram-se movimentações no legislativo federal sobre o tema. Entre as produções da Câmara de Deputados Federal sobre a Cannabis, identificaram-se requerimentos de audiência pública para discutir o tema de cultivo, produção e registro de medicamentos à base de Cannabis spp. no Brasil. Notou-se que alguns destes requerimentos eram de deputados de diversos partidos políticos de centro e direita. Identificaram-se poucos requerimentos de audiência pública sobre a Cannabis que buscaram incluir no debate convidados representantes de associações de cultivo de Cannabis, pesquisadores e usuários de Cannabis com fins medicinais28.
A discussão sobre a regulamentação do cultivo da Cannabis spp. ressurgiu no Congresso Nacional através da retomada do Projeto de Lei (PL) n° 399 de 2015 de autoria do Deputado Federal Fábio Mitidieri (PSD/SE). O PL pretendeu alterar o art. 2º da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, que proíbe no território nacional o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas. De acordo com a justificativa apresentada no PL, o objetivo seria viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta C. sativa em sua formulação. Um texto substitutivo ao projeto original foi entregue em agosto de 2020 para a presidência da Câmara dos Deputados28,29.
Após intensa mobilização de diversos parlamentares de diferentes partidos que realizaram requerimentos de audiências com especialistas da área no Brasil e de outros países, representantes de categorias médica e farmacêutica, instituições não governamentais, juristas, representantes de instituições de segurança pública e órgãos reguladores, o PL n° 399/2015 recebeu parecer favorável do relator Deputado Luciano Ducci (PSB-PR) em abril de 2021 e foi finalmente aprovado pela comissão especial criada para debater a matéria no dia 8 de junho de 202128.
A votação do substitutivo do relator Luciano Ducci (PSB-PR) teve empate e a aprovação se deu pelo voto de minerva do relator. O texto aprovado permite a realização das atividades de cultivo, processamento, pesquisa, transporte, produção, industrialização, manipulação, comercialização, importação e exportação de produtos à base de Cannabis para fins medicinais, cosméticos e têxteis. Essa proposta amplia o texto original de autoria de Fábio Mitidieri, que propunha a permissão do cultivo da Cannabis apenas por pessoas jurídicas, como: empresas, associações de pacientes e ONG28.
Após a aprovação do PL, distintos posicionamentos dos parlamentares foram observados. O relator do projeto ressaltou que o foco do projeto está apenas relacionado ao uso medicinal da Cannabis e negou que o parecer que elaborou não tem nenhuma questão que trata da liberação do uso recreativo da maconha. Observou-se ainda destaques controversos de parlamentares opositores à proposta, a exemplo do destaque feito ao art. 3º do texto aprovado. O artigo trata da articulação e coordenação das atividades que previnem o uso indevido e repressão de produção não autorizada entre outras ao Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Deputados ressaltaram surpresa como destaque realizado por considerarem que a supressão dessa medida possibilita que o cultivo seja realizado irrestritamente sem os requisitos que foram colocados pelo relator30.
Em abril de 2020, o laboratório detentor do registro do medicamento Mevatyl® solicitou avaliação para incorporação no SUS, porém, a Conitec não recomendou a incorporação do medicamento ao tratamento sintomático da espasticidade moderada a grave relacionada à esclerose múltipla. O medicamento foi considerado seguro, porém, o nível de evidência dos desfechos de eficácia foi considerado de baixa qualidade31. Assim, o único medicamento constituído por derivados canabinoides registrado no país, permanece não incorporado ao SUS e sua aquisição só sendo possível por meio de desembolso direto. O elevado custo de aquisição deste medicamento é um dos fatores que levam pacientes ou seus representantes a solicitarem o acesso através da judicialização.
No mês de maio de 2020, após concessão de licença sanitária pela Anvisa, um laboratório farmacêutico nacional (Prati Donaduzzi) lançou no mercado o fitofármaco derivado de Cannabis constituído por 200 mg/mL de CBD. Diferentemente do medicamento Mevatyl®, que tem indicação específica para o tratamento de espasticidade, o produto brasileiro foi registrado como um fitofármaco (fármaco de origem vegetal), sem indicação clínica pré-definida. Isso significa que ele pode ser receitado para qualquer condição em que o CBD seja considerado potencialmente benéfico para o paciente32.
A Conitec disponibilizou relatório técnico em fevereiro de 2021, com o objetivo de avaliar a eficácia, a segurança, o custo-efetividade e o impacto orçamentário do CBD, diante do pedido de incorporação do CBD 200 mg/mL da farmacêutica Prati Donaduzzi para o tratamento de crianças e adolescentes com epilepsia refratária a medicamentos antiepilépticos ao SUS, pelo Ministério da Saúde33.
O relatório da Conitec subsidiou uma CP, aberta e encerrada no mês de março de 2021, com a recomendação preliminar não favorável da inclusão do fitofármaco na relação de medicamentos do SUS, por entender que as evidências clínicas disponíveis quanto ao risco e benefício do medicamento são questionáveis e apresentaram resultados de custo-efetividade e impacto orçamentário elevados33. Em maio de 2021, um novo relatório foi publicado pela Conitec, que mais uma vez deliberou, por unanimidade, recomendar a não incorporação do CBD para crianças e adolescentes com epilepsia refratária a medicamentos antiepilépticos no SUS, pelas mesmas razões manifestadas anteriormente34.
Apesar de mais uma rejeição da proposta de incorporação de medicamentos à base de derivados da Cannabis no SUS, o desenvolvimento de novos produtos parece ainda interessar ao setor produtivo. Em abril de 2021, registraram-se produtos, nas concentrações de 17,18 e 34,36 mg/mL, com até 0,2% de THC através da Resolução RE no 1.525, de 14 de abril de 202135,36.
A publicação da RDC n° 327/2019 da Anvisa, em 2019, foi um fato histórico e sanitário importante para possibilitar a fabricação e a importação de produtos derivados da Cannabis no Brasil, deixando, entretanto, uma lacuna no acesso aos medicamentos quando não foi autorizado o cultivo da Cannabis para fins medicinais e de pesquisa. Dado o alto custo de importação de insumos e dos medicamentos já registrados, pacientes e ONG encontram na judicialização o caminho para o acesso legal a estes produtos20.
Segundo o Portal Sechat37, existem no Brasil 51 pacientes autorizados a cultivar a Cannabis em casa, além de uma associação que atende mais de 2 mil pessoas na Paraíba, a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace). A Abrace ajuizou uma ação judicial em 2017 (nº 0800333-82.2017.4.05.8200/PB) em que obteve autorização para cultivar a Cannabis para fins medicinais e, em consequência, para produzir e distribuir óleos terapêuticos derivados da planta a seus associados38.
Em fevereiro de 2021, a Abrace publicou que a Anvisa impetrou pedido de suspensão dos direitos da Abrace de plantar, colher, manusear e produzir produtos à base de CBD no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), iniciando uma grande mobilização social por apoio a continuidade das suas atividades39.
A Anvisa emitiu nota pública negando ter ingressado com qualquer ação judicial para suspender decisões favoráveis à Abrace, porém, afirma que a autorização dada à associação foi condicionada ao cumprimento de determinados requisitos sanitários, que segundo a Anvisa, não estão sendo observados, o que obrigou a Agência, a informar a situação ao TRF-540. Alguns dos requisitos exigidos pela Anvisa referem-se à adequação sanitária de laboratório e entrega de documentações para receber a Autorização de Funcionamento de Empresa (AFE) e o Certificado de Boas Práticas de Fabricação (CBPF), por exemplo.
Em março do mesmo ano, após vistoria na sede da Abrace junto a representantes da Anvisa, o desembargador federal Cid Marconi decidiu revogar sua decisão e manteve o funcionamento da Abrace, entretanto impôs prazos para que a Abrace se adeque a determinações judiciais e sanitárias41. Para muitos defensores do cultivo da Cannabis, a decisão da Anvisa não reflete apenas uma regulação sanitária, e sim uma posição política que vai contra a posição de isenção que cabe às agências reguladoras42. Enquanto isto, a Abrace segue tentando cumprir com as determinações no tempo estabelecido para continuar a atender os pacientes associados no fornecimento de óleo de CBD.
A Anvisa já havia recorrido em outras situações à justiça para suspender as atividades de associações que produzem óleo medicinal com CBD. Ainda em 2020, a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) conseguiu autorização provisória da Anvisa para pesquisar, cultivar, manipular, transportar, extrair óleo, acondicionar, embalar e distribuir aos associados atuais, conforme relação nominal, laudos, requisições e receituários médicos, após ação judicial movida pela associação no mesmo ano. A Anvisa recorreu da decisão proferida e a liminar foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), perdendo a Apepi o direito de plantar, manipular e distribuir óleo com derivado da Cannabis43,44.
A definição dos marcos regulatórios no Brasil que assegurem o acesso de pacientes a produtos e a medicamentos de Cannabis, assim como em outros países, está relacionada a aspectos culturais e históricos próprios. Uma revisão integrativa45 avaliou regulamentos sobre o uso medicinal da Cannabis no Reino Unido, Alemanha, Itália, Holanda, Canadá, Israel e Austrália. O estudo conclui que globalmente, os países adotam regulamentos com distintas abordagens como resultado de fatores históricos e culturais.
Entretanto, apesar das diferenças em suas abordagens regulatórias, todos os países concordam sobre a necessidade de educação continuada para médicos e outros profissionais de saúde. Outro aspecto identificado em sua análise ressalta a necessidade de simplificar a formulação de políticas e estabelecer comunicação efetiva entre médicos, pacientes e formuladores de políticas. A construção de redes colaborativas com interesse de ampliar o acesso à Cannabis para fins medicinais pode mobilizar instituições internacionais capazes de avaliar e regular o uso da Cannabis medicinal, superando as dificuldades enfrentadas.
Observando as experiências alhures, o estudo constatou que os regulamentos com melhores resultados foram desenvolvidos de maneira oportuna e eficiente. Negligenciar estas oportunidades para avançar na criação e estabelecimento dos regulamentos pode criar vácuos regulatórios que, em geral, são preenchidos por outros grupos de interesse, como a indústria e grupos de lobby.
Nos EUA, apesar de cerca de nove entre 10 adultos, em todo o país, apoiarem a legalização da Cannabis para fins terapêuticos e cerca de dois terços da população residir em localidades onde o uso de Cannabis medicinal é legal, contraditoriamente o que se observa é que a Cannabis permanece classificada como uma droga de Classe I de acordo com o e Federal Controlled Substances Act, ou seja, o cultivo, a distribuição e o uso de Cannabis permanecem proibidos e cada estado americano define seus próprios regramentos46.
A falta de um sistema regulatório, juntamente com o marketing agressivo da indústria nos EUA passou a ideia para a população de um tipo de cenário em que a Cannabis seria acessível para todos, essa percepção não contribui para o desenvolvimento de evidências científicas e o desenvolvimento de regulamentos uniformes muito menos para que, aqueles que necessitem da Cannabis como recurso terapêutico se sintam confortáveis com o uso dos produtos45.
O controle do uso da Cannabis medicinal foi outro aspecto observado nos países analisados no estudo. A supervisão das atividades das farmácias responsáveis pela dispensação desses medicamentos é relevante, mas os achados chamaram a atenção para regulamentações sobre a fiscalização muito conservadoras e os autores chamam a atenção para o risco de alimentar o mercado ilícito. É importante assegurar mecanismos reguladores que sejam desenvolvidos e aperfeiçoados de acordo com desenvolvimentos políticos e científicos. Há que se compatibilizar a necessidade de desenvolver diretrizes e regulamentos sobre o uso da Cannabis medicinal que assegurem um controle que não seja nem muito rígido nem muito amplo45.
Constata-se que, na experiência observada no Reino Unido, Canadá, Austrália, Alemanha, Itália, Holanda, Canadá e Israel45, o contexto político e as pesquisas relacionadas à Cannabis medicinal têm se desenvolvido rapidamente e em consonância com as mudanças de atitude da população. Contudo, os marcos regulatórios sobre o tema enfrentam desafios que se centram nas questões que envolvem a escassez e as incertezas nas evidências científicas necessárias à tomada de decisão sobre a Cannabis medicinal. Além disso, a existência de marcos regulatórios em um país não é garantia de que os procedimentos sejam seguidos ou mesmo que isso resulte em acesso à maconha medicinal aos pacientes necessitados ampliando a pesquisa clínica e gerando assim as evidências científicas que permitam às agências reguladoras tomarem decisões mais seguras.
Recentemente, repercutiu a notícia sobre o julgamento do habeas corpus de dois casos pelo Superior Tribunal de Justiça que decidiu, por unanimidade, autorizar o plantio da Cannabis com fins medicinais. Tal decisão foi comemorada pelo movimento social em prol do uso medicinal da planta47.
Ressalte-se a recente decisão proferida pelo CFM através da Resolução nº 2.324, de 11 de outubro de 2022, que restringiu a prescrição dos derivados da Cannabis apenas ao CBD e para duas condições de epilepsia grave e refratária. Tal decisão provocou diversas manifestações por parte da indústria farmacêutica, associações de pacientes e da categoria médica. As críticas incluíram alegações de restrições à autonomia médica, prejuízos para realização de estudos e apreensões sobre restrições ao acesso de pacientes ao tratamento, além de acusações de uso político do tema. A medida foi controversa e, após grande repercussão, o CFM submeteu a referida resolução à nova consulta pública e o Ministério Público Federal instaurou procedimento para avaliar se a resolução fere o direito à saúde, previsto na Constituição Federal48.
Vários países, na América Latina e no mundo, independentemente de suas posições sobre repressão às drogas, têm alterado sua legislação e regulamentos internos para permitir – e até mesmo estimular – a produção de medicamentos à base de Cannabis; é o caso de Peru, Chile, Colômbia, Argentina, México, Tailândia, Canadá, Israel, além da União Europeia e de diversos estados dos EUA.
O uso medicinal dos derivados da Cannabis divide opiniões na sociedade civil; o fato de a Cannabis ser associada ao uso ilícito da maconha estimula a contrariedade para uso dos produtos medicinais dela derivados. Entretanto, para muitos pacientes que necessitam de tratamento, a regulamentação da importação e o uso desses produtos representam esperança e qualidade de vida.
O tema se mostra relevante, discussões e debates permitem que a sociedade seja informada sobre como o governo está conduzindo a regulamentação para permitir a produção de medicamentos à base de Cannabis como uma alternativa terapêutica para determinadas condições que ainda não contam com terapêuticas medicamentosas.
Uma Resolução editada pela Anvisa (RDC n° 327/2019) possibilita que empresas e instituições de pesquisa importem a matéria-prima para estudos e desenvolvimento de medicamentos, mas o custo é elevado e se reflete no produto final, além de existirem barreiras à incorporação destes novos produtos, o que impacta diretamente no acesso à população. A possibilidade de autorização do cultivo pode tornar a matéria-prima menos dispendiosa e o Brasil menos dependente da importação desses insumos. O novo texto do PL n° 399/2015 traz de volta este debate.
Enquanto isso, ONG e associações de pacientes continuam acionando a justiça para ter o direito ao plantio, produção de óleo à base de CBD e distribuição entre pacientes cadastrados, mas também encontram alguns entraves relacionados à autorização e às adequações sanitárias.
Ao compreender as aprendizagens de outros países e implementá-las na formulação de políticas, espera-se que a introdução da Cannabis medicinal no Brasil possa finalmente prosseguir de uma forma que maximize a pesquisa clínica e o benefício do paciente para que se amplie o acesso a esses produtos às pessoas que necessitam.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: psaraujo@uneb.br