RESUMO
Introdução: A internet é um dos principais meios para o compartilhamento de informações, além de ser uma plataforma com recursos para o comércio on-line. Recentemente tem-se observado um aumento no interesse e consumo de substâncias psicotrópicas de origem natural, seja em um contexto religioso, cultural ou hedonístico.
Objetivo: Avaliar se as informações sobre psicotrópicos de origem natural disponíveis em sites publicados em português estão embasadas na literatura científica, se apresentam conteúdo distorcido ou tendencioso de forma a estimular o consumo e se há indícios de que a página está sendo usada como plataforma de venda clandestina desses produtos.
Método: Foram realizadas buscas no Google utilizando os nomes populares das substâncias ou de plantas e preparações que as contêm (por exemplo: maconha, ayahuasca) e as informações disponíveis nas páginas visitadas foram classificadas e tabuladas.
Resultados: Dos 328 sites analisados, aproximadamente 55% foram classificados como páginas informativas e 60% do conteúdo analisado estava de acordo com a literatura científica, sendo considerado como confiável. Aproximadamente um quarto dos sites incentivavam o consumo dessas substâncias, seja direta ou indiretamente, e cerca de 25% apresentavam a comercialização de produtos contendo alguma das substâncias pesquisadas.
Conclusões: Os resultados sugerem que um usuário que busca de forma on-line por substâncias naturais psicotrópicas a partir de seus nomes populares é exposto predominantemente a informações que podem ser respaldadas pela literatura científica. Entretanto, a quantidade de sites que disponibilizam produtos que contêm essas substâncias para venda ou que compartilham métodos para o consumo também é significativa, muitas vezes sem apresentar advertências quanto ao uso incorreto dos produtos, caracterizando um risco à saúde do usuário.
Palavras-chave: Substâncias Psicotrópicas, Psicodélicos, Alucinógenos, Produtos Naturais, Internet.
ABSTRACT
Introduction: The internet is one of the main means for sharing information, besides being a platform with resources for online commerce. Recently, an increase interest and consumption of psychotropic substances of natural origin has been observed, whether in a religious, cultural, or hedonistic context.
Objective: To evaluate whether the information about psychotropic substances of natural origin, available on websites published in Portuguese, is based on scientific literature, whether it presents distorted or biased content in order to stimulate consumption, and whether there are indications that the page is being used as a platform for clandestine sale of these products.
Method: Google searches were conducted using the popular names of the substances or of plants and preparations that contain them (eg marijuana, ayahuasca, etc.), and the information available on the visited pages was classified and tabulated.
Results: Of the 328 websites analyzed, approximately 55% were classified as informative pages and 60% of the analyzed content was in agreement with the scientific literature and was considered to be reliable. Approximately a quarter of the websites encouraged directly or indirectly the consumption of these substances, and nearly 25% presented the commercialization of products containing some of the substances researched.
Conclusions: The results suggest that a user who searches online for natural psychotropic substances based on their popular names is predominantly exposed to information that can be supported by the scientific literature. However, the number of websites that offer products that contain these substances for sale or that share methods for consumption is also significant, often without presenting warnings about the incorrect use of such products, characterizing a risk to the user’s health.
Keywords: Psychotropic Substances, Psychedelics, Hallucinogens, Natural Products, Internet.
ARTIGO
Substâncias psicotrópicas de origem natural: o que os usuários encontram na internet?
Psychotropic substances of natural origin: What do users find on the internet?
Recepção: 29 Abril 2022
Aprovação: 21 Setembro 2022
As substâncias psicotrópicas são utilizadas pelo homem desde os primórdios, seja para o tratamento de enfermidades, seja para alterar a mente1. A maconha (Cannabis sativa L.) teve seu uso difundido tanto de forma medicinal quanto de forma recreativa e é possivelmente o psicotrópico natural mais consumido no mundo. Apesar de ser uma planta exótica, sua popularização se deu de forma rápida e, hoje, a maconha é a substância ilícita mais consumida no Brasil, de acordo com o 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira2.
Existem dezenas de plantas e fungos que contêm substâncias psicoativas utilizadas por povos indígenas ou em contextos ritualísticos. Um exemplo é o uso da bebida ayahuasca por grupos como Santo Daime e União do Vegetal, que recentemente migrou para os centros urbanos devido à busca por suas propriedades medicinais pelos usuários fora do contexto tradicional de uso3. A sálvia alucinógena (Salvia divinorum Epling & Játiva) é outro exemplo de planta psicoativa que ganhou popularidade no uso recreacional, principalmente por meio de vídeos publicados na plataforma YouTube por usuários em suas experimentações. A S. divinorum é uma erva perene natural da serra de Oaxaca, no México, que pode ser cultivada domesticamente em ambientes úmidos de clima semitropical, assim como a maconha, o que contribui para a acessibilidade da planta, principalmente sendo encontrada em sites varejistas de produtos gerais, como eBay.com4.
A internet é um dos principais meios para o compartilhamento e a consulta de informações, além de oferecer ferramentas para contato entre usuários e comercialização de produtos variados. Entretanto, os usuários ainda carecem de mecanismos que permitam avaliar se os conteúdos acessados são confiáveis, visto que todos os indivíduos podem transmitir conhecimentos pela rede de forma anônima, personalizada ou de caráter pessoal5, sendo a informação sobre os responsáveis pelas páginas e pelas operações realizadas na rede de difícil rastreabilidade.
Diversos estudos avaliaram a qualidade de informações médicas disponíveis na internet. Alguns autores identificaram como problemática a indução do uso off label de medicamentos a partir de uma estratégia discursiva apelativa com o uso de expressões como “pílula da inteligência” em páginas da internet que veiculam informações sobre medicamentos para melhoramento cognitivo6. Outras utilizavam estratégias semelhantes para a venda de produtos para perda de peso, combate à ansiedade e à depressão6. Dessa forma, nota-se que os usuários estão expostos ao estímulo do uso de substâncias por meio de relatos pessoais e informações distorcidas.
A disponibilidade para compra de produtos com compostos psicoativos na internet superficial (surface web) constitui outra problemática. Acredita-se que muitos sites se aproveitem de situações não contempladas nas diferentes normas para promover o comércio ilegal dos produtos naturais que alteram a consciência, o que também é facilitado devido à dificuldade de se fiscalizar os comércios on-line.
Considerando a importância de estudos que subsidiem ações de saúde e vigilância sanitária na área, o objetivo deste estudo foi realizar um levantamento sobre as características gerais dos conteúdos disponibilizados na internet sobre drogas psicotrópicas de origem natural a fim de demonstrar o teor dos conteúdos aos quais os usuários estão expostos quando fazem uma busca por este assunto.
Este trabalho consistiu em um estudo descritivo e exploratório com métodos mistos. O estudo avaliou sites com informações sobre substâncias psicotrópicas de origem natural (obtidas de plantas, animais ou cogumelos/fungos). Foram incluídos os alucinógenos mais conhecidos e com maior popularidade no Brasil, enquanto substâncias estimulantes e narcóticas de origem natural, como cocaína e morfina, não foram objeto do estudo. As seguintes substâncias foram selecionadas para realizar o levantamento das informações disponíveis na internet: dimetiltriptamina (DMT), bufotenina, 5-metoxi-dimetiltriptamina (5-MeO-DMT), psilocibina, ibogaína, mescalina, alcaloides de tropano (atropina e escopolamina), muscimol, ∆9-tetrahidrocanabinol (THC), salvinorina A e miristicina.
Como estas substâncias não costumam ser obtidas na forma pura, e sim em plantas ou preparações que as contêm, a pesquisa foi feita a partir dos nomes populares das espécies e preparações. Esta estratégia também teve o objetivo de aproximar o resultado ao de uma pesquisa realizada por um usuário real.
As substâncias foram pesquisadas individualmente no Google (www.google.com.br). O Google é um buscador hierárquico que classifica os resultados de acordo com a relevância e popularidade, comparando informações como o texto na página com a pesquisa feita pelo usuário, priorizando a exibição de acordo com a proximidade dos termos pesquisados7, além de ser um dos principais mecanismos de busca nacional e internacional8.
O Quadro contém todos os descritores (nomes populares) utilizados durante cada pesquisa. Como na maioria dos casos havia mais de um descritor por busca, foi utilizado o mecanismo de refinamento de pesquisa “OR” entre os termos para aquelas substâncias com mais de um descritor associado. Por exemplo, para pesquisas sobre a DMT, presente na preparação da bebida ayahuasca, foi realizada a seguinte busca: ‘Ayahuasca’ OR ‘chacrona’ OR ‘santo-daime’ OR ‘daime’ OR ‘hoasca’”.
O conteúdo dos 100 primeiros resultados gerados pelo Google para cada substância foi previamente avaliado e foram incluídos na pesquisa apenas aqueles que obedeciam aos seguintes critérios: (i) páginas em língua portuguesa e (ii) páginas com informações de pelo menos uma substância psicotrópica natural e/ou espécies que a contém.
Páginas de domínio governamental e páginas educativas como Info Escola e Mundo Educação foram excluídas da amostra, pois poderiam ocupar boa parte dos resultados e o foco deste estudo eram publicações não sujeitas à revisão. Também foram excluídas as páginas com notícias de apreensão, criminalização ou descriminalização de substâncias, páginas de artigos ou estudos científicos e sites com conteúdo duplicado, além de publicações somente sobre drogas sintéticas.
Para cada substância, foram incluídos para análise até 40 sites que se adequaram aos critérios estabelecidos, dentro dos 100 resultados previamente avaliados.
Para possibilitar a posterior tabulação e avaliação dos resultados, os sites incluídos foram analisados por categorias e classificados em subcategorias:
Quanto ao formato e conteúdo: páginas informativas, blogs institucionais, blogs pessoais, fóruns de bate-papo, redes sociais ou sites comerciais.
Páginas informativas foram consideradas como aquelas cujo conteúdo é meramente descritivo, como reportagens. Os blogs foram identificados como diários pessoais, periódicos ou empresariais disponíveis on-line. Os fóruns de bate-papo são espaços de interação virtual, onde frequentemente são promovidas discussões com perguntas e respostas. Já as redes sociais são plataformas que conectam pessoas ou organizações, com ferramentas como compartilhamento de conteúdo por meio de posts ou de mensagens privadas. Os sites classificados como comerciais foram aqueles que possuíam como objetivo principal a venda de produtos a outros usuários da rede.
Quanto ao incentivo ao consumo: incentiva o consumo diretamente, incentiva o consumo indiretamente, não incentiva o consumo ou não fica evidente se há incentivo ao consumo.
Uma página era classificada como “incentiva o consumo diretamente” quando havia a presença de depoimentos e/ou propaganda positiva sobre o uso de produtos psicoativos de origem natural, bem como o uso de linguagem apelativa ou tendenciosa sobre o consumo benéfico das substâncias. Já uma página classificada como “incentiva o consumo indiretamente” divulgava informações que podem ser consideradas como ferramentas facilitadoras para o uso, como métodos de cultivo de plantas psicotrópicas, formas de consumo, “receitas”, dosagens, dicas de uso e/ou para uma boa experiência.
Quanto ao grau de confiabilidade de informações técnicas: confiável, parcialmente confiável, não confiável ou informações ausentes.
O termo “confiabilidade” foi adotado para indicar se as informações divulgadas estão embasadas na literatura científica. No entanto, este trabalho se limitou a avaliar apenas as informações técnicas sobre as substâncias, como: características químicas, mecanismos de ação, efeitos colaterais, reações adversas do uso, riscos de dependência após o consumo, advertências ou riscos do uso, dada a impossibilidade de analisar relatos pessoais do ponto de vista científico.
Conteúdos considerados como “confiáveis” foram aqueles em que todas as informações técnicas disponíveis estavam embasadas na literatura científica consultada. “Parcialmente confiáveis” foram aqueles que disponibilizaram tanto informações corretas quanto incorretas ou parcialmente corretas, no mesmo texto. Conteúdos considerados como “não confiáveis” foram aqueles em que a maioria ou todas as informações técnicas disponíveis não estavam de acordo com a literatura científica consultada. Já as páginas que não veiculavam nenhuma informação técnica foram classificadas como “informações ausentes”.
Quanto ao país de domínio do site: Brasil, exterior ou não identificado.
O país de domínio de um site foi identificado utilizando o banco de dados WHOIS, hospedado na plataforma hostinger.com.br, inserindo o nome do domínio ou o internet protocol (IP) no campo de pesquisa. Plataformas como o Hostinger oferecem um recurso de privacidade, em que os dados pessoais são disfarçados e substituídos com os detalhes do servidor proxy. Quando um site possui um recurso de privacidade ativo, muitas vezes não é possível identificar o seu país de origem.
Por fim, também foi avaliado se os sites possuíam a identificação da autoria, seja pessoa ou entidade responsável pela publicação; se indicavam links de acesso ao comércio da substância abordada; e se divulgavam as estatísticas de acesso dos visitantes na página.
O conteúdo das páginas da internet que se adequavam aos critérios de inclusão estabelecidos foi analisado de acordo com a metodologia explicitada acima. O conteúdo de cada página foi avaliado pelos autores e cada categoria (formato/conteúdo, incentivo, confiabilidade etc.) foram registrados de acordo com a avaliação, adequando-se às subcategorias estabelecidas e descritas no item “Classificação dos sites e análise dos conteúdos”. A tabulação dos dados ocorreu tanto de forma quantitativa (tipo de conteúdo, confiabilidade das informações, país de domínio e presença de autoria, estatísticas e links para venda) como qualitativa (análise do incentivo ao consumo e a presença de indicativos de que as plataformas são utilizadas para venda ou fornecimento clandestino de substâncias psicoativas). Os resultados de cada pesquisa individual, por substância, foram agrupados em tabelas Excel com o endereço eletrônico (uniform resource locator – URL) e o título da página incluída, seguidos de colunas com a classificação para cada critério analisado.
Os resultados foram descritos em número absoluto (quantidade de sites de cada subcategoria) e a frequência foi calculada em porcentagem (relação entre o número absoluto e o número total de sites incluídos por amostra individual das substâncias).
Ao todo, 328 páginas da internet foram incluídas no estudo, sendo que apenas três substâncias apresentaram pelo menos 40 sites que se adequavam aos critérios de inclusão, sendo elas: ibogaína, psilocibina e salvinorina A. Para miristicina, foram incluídas 39 páginas na análise, 35 para o THC, 33 para o muscimol, enquanto as demais substâncias tiveram menos de 30 páginas incluídas nos resultados analisados.
A maioria dos sites foi classificada como página informativa, seguida de sites comerciais e blogs pessoais ou institucionais (Figura 1a). Embora muitas páginas divulguem apenas informações superficiais sobre as substâncias citadas, a análise também revelou que a maioria possui conteúdo confiável (Figura 1b) e que mais da metade não incentiva o consumo (Figura 1c). Também foi observado que 87,2% das páginas identificavam a autoria, seja o responsável pelo site ou o autor do texto, e que 63,1% tinham domínio no Brasil, com 5,2% divulgando algum link para página externa. Por outro lado, 75,9% não apresentavam nenhuma referência sobre as informações veiculadas e apenas 3,0% divulgavam estatísticas de acesso dos visitantes.
A maioria das buscas por substância retornou páginas informativas (Tabela 1), cujo conteúdo era meramente descritivo, como reportagens e divulgação de estudos científicos voltados ao público “leigo”. A dimetiltriptamina foi a substância que apresentou maior número de páginas nessa categoria (85,7%), que abordavam principalmente o uso histórico e ritualístico da ayahuasca. No caso do THC, 77,1% das páginas possuíam conteúdo informativo, frequentemente divulgando informações sobre a liberação do uso medicinal da maconha, descrevendo seus efeitos terapêuticos e/ou diferenças entre o canabidiol (CBD) e o THC. Similarmente, a busca pela ibogaína retornou predominantemente informações sobre uso terapêutico, juntamente a plataformas on-line de clínicas de reabilitação que oferecem a substância como método de intervenção para a dependência química.
No que se refere à bufotenina, a substância psicoativa do sapo Bufo alvarius Girard In Baird [sin. Incilius alvarius (Girard, 1859)], o conteúdo analisado dividiu-se em dois grupos: o primeiro com informações científicas acerca do potencial terapêutico da bufotenina e o outro predominantemente comercial, com a oferta da “medicina do sapo”.
Já a busca pela mescalina trouxe como resultado sites comerciais em sua maioria (44,0%), entre eles: sites de jardinagem (ou com departamento específico de plantas ornamentais) comercializando o cacto peiote [Lophophora williamsii (Lem. Ex Salm-Dyck)], smartshops (estabelecimentos virtuais especializados na venda de psicoativos, geralmente hospedados em países onde as substâncias são legais), e sites de cunho espiritual, comercializando “plantas sagradas”. Também foram encontradas diversas publicações acerca do uso ritualístico do peiote, tanto em páginas informativas quanto em blogs, abordando sua história, aparência e efeitos, bem como modos de uso, doses recomendadas e relatos com experiências pessoais sobre o consumo do cacto em um contexto religioso. Destaca-se que apenas um blog analisado advertiu os usuários sobre os riscos da ingestão da tocha peruana [Trichocereus peruvianus Britton & Rose ou Echinopsis peruviana (Britton & Rose)] e as instruções em casos de intoxicação.
Metade das páginas analisadas sobre a psilocibina era informativa, enquanto 32,5% apresentavam a comercialização de produtos que contêm a substância. Entre as páginas informativas, havia diversas citações de estudos científicos acerca de seus efeitos terapêuticos, além da divulgação de um levantamento feito pela Global Drug Survey em 2016 acompanhado do jargão de que a psilocibina seria “a droga ilegal mais segura do mundo”. O mercado que comercializa espécies e preparações contendo psilocibina é caracterizado pela diversificação. A internet disponibiliza a venda de diferentes porções em gramas de Psilocybe cubensis (Earle) Singer desidratado, carimbos de esporos, cultura líquida de esporos, microdoses de psilocibina, trufas mágicas, kits de cultivo de cogumelos mágicos, ferramentas de laboratório para cultivo e suplementos smart. Dos 13 sites que realizavam a venda de algum dos artigos citados acima, nove fizeram alertas como: “este produto não é vendido para consumo humano, apenas para fins de pesquisa e coleção; sendo da inteira responsabilidade do usuário qualquer outro fim que der ao mesmo”. Ademais, foi identificado que blogs e fóruns divulgam conteúdos extensos para a cultura “psiconauta”, como guias de identificação de cogumelos Psilocybe e Amanita na natureza, técnicas de cultivo indoor e o compartilhamento entre os usuários de links de sites que ofereciam a venda destes cogumelos.
No caso da sálvia alucinógena, foi verificado que existe a possibilidade de um contato privado com vendedores em redes sociais, assim como a presença de smartshops estrangeiras que disponibilizam extratos potencializados, folhas secas e mudas, além da sálvia em pó.
De toda a amostra, a pesquisa pela 5-MeO-DMT foi a que retornou o maior número de sites voltados à comercialização (71,4%). Foram encontrados quatro sites varejistas de produtos gerais e mais 14 com produtos classificados como “esotéricos” ou “xamânicos” que vendiam espécies ou preparações contendo 5-MeO-DMT. Há destaque também para as redes sociais, como o Gramho (visualizador do Instagram), que atuavam como ferramentas de divulgação da venda de uma preparação de rapé contendo essa substância.
O estudo identificou que um quarto das páginas analisadas incentiva o consumo de substâncias naturais psicotrópicas, seja direta ou indiretamente (Figura 2). Dentre aquelas que apresentaram incentivo direto ao consumo, foram encontrados relatos pessoais considerados positivos e encorajadores sobre o uso do cacto peiote, de cogumelos Psilocybe, da S. divinorum e da secreção do B. alvarius. O uso de linguagem apelativa e/ou tendenciosa também estava presente em blogs e anúncios, como na descrição: “O santo graal, comida dos deuses, chave para hiperconsciência Amanita muscaria. Sinta-se na mente de Deus, a energia é fluida, é gloriosa, vibrante, extrema!”, que acompanha a venda de cogumelos Amanita muscaria (L.) Lam.
Sites classificados dentro da categoria de incentivo indireto ao consumo geralmente divulgavam técnicas e métodos de consumo das substâncias pesquisadas. Houve a veiculação de uma “receita da mata”, com todos os passos de preparação da bebida ayahuasca; informações sobre os métodos de uso da raiz de iboga em rituais africanos; como identificar na natureza, preparar, consumir e cultivar cogumelos alucinógenos (Psilocybe ssp., Panaeolus ssp. e Amanita ssp.); formas de uso diferentes da S. divinorum para efeitos de intensidade baixa, moderada e alta, além de dosagens específicas, como quantidade de folhas usadas, gotas consumidas e quantidade de “fumadas”; e até mesmo um tutorial detalhado para produção de haxixe caseiro. Muitas páginas também instruíam os usuários com dicas para uma “boa experiência”.
Dentre aqueles em que não fica evidente se há incentivo ao consumo, existem sites comerciais e redes sociais cujo conteúdo é voltado para o esoterismo/xamanismo. É importante ressaltar que algumas páginas possuíam algum dos indicadores de incentivo selecionados, entretanto não induziam ao uso recreacional, e sim ao uso médico. A pesquisa sobre a ibogaína, por exemplo, resultou em dez sites que estimulavam seu uso (de forma direta ou indireta) para o tratamento da dependência química, com mais quatro casos em que não ficava evidente. O incentivo ao consumo para obtenção de efeitos medicinais das substâncias também foi observado na busca pelo 5-MeO-DMT (7,1%), pela miristicina (12,8%) e pelo THC (2,9%) (Figura 2).
Mais da metade do conteúdo analisado foi classificado como confiável (Figura 1b). A salvinorina A, a ibogaína e os alcaloides de tropano apresentaram os maiores índices nesta categoria (Tabela 2).
Pode-se observar que houve casos em que conteúdos parcialmente confiáveis constituíam a maior parcela dos sites analisados, como na busca pela mescalina; ou com informações técnicas ausentes, como na busca pelo 5-MeO-DMT e dimetiltriptamina. Embora muitas páginas tenham apresentado informações embasadas na literatura científica, a maioria não indicou as referências ou a bibliografia consultada. A busca pela bufotenina foi a única que gerou resultados em que pelo menos metade das páginas (50,0%) apresentava referências.
De toda a amostra, apenas um site foi classificado como não confiável. Este divulgava que a ibogaína não causa risco à saúde do usuário e não veiculava nenhuma outra informação técnica que pudesse ser analisada.
Em 63,1% dos sites incluídos para análise, foi identificado o Brasil como país de domínio. Sites de domínio brasileiro foram predominantes para quase todas as substâncias, exceto para a mescalina e salvinorina A. A análise mostrou que 23,8% dos sites estavam hospedados em outros países e que, em 13,1% dos casos, não foi possível identificar o país de domínio.
Foi realizado um cruzamento dos dados entre as variáveis a fim de aprofundar a análise. Dentre as páginas com domínio no Brasil, 19,8% incentivavam o consumo direta ou indiretamente. Esse número aumenta dentre aquelas com domínio no exterior, com 29,5% apresentando incentivo direto ou indireto, e mais do que dobra dentre aqueles sites que não tiveram seu domínio identificado (53,5%).
A busca pela salvinorina A foi a que mais retornou sites sem autoria (45,0%), já todas as outras substâncias apresentaram menos de 25% de conteúdo sem indicação de autor.
Foi observada a indicação de links que direcionavam a páginas de comercialização de produtos psicoativos para quase todas as substâncias, com exceção das páginas sobre o 5-MeO-DMT, alcaloides de tropano e dimetiltriptamina.
Por fim, apenas 3,0% dos sites visitados deixaram visível o recurso de estatística de acesso dos visitantes, encontrados nas buscas pelo 5-MeO-DMT, bufotenina, ibogaína, mescalina, muscimol e salvinorina A. Destes, a maioria apresentava uma quantidade alta de acessos por página. Um site que comercializava a venda de sementes de Tabernanthe iboga Baill possuía 7.623 visualizações e 60 comentários, um informativo sobre “cogumelos mágicos” apresentou 16.161 visualizações e um registro sobre a S. divinorum em um blog pessoal chegou a 232.618 views no momento da análise.
O presente estudo procurou avaliar as características gerais dos conteúdos disponibilizados na internet sobre drogas psicotrópicas de origem natural, em especial quanto ao tipo de site, grau de confiabilidade das informações veiculadas e se as páginas fazem o incentivo direto ou indireto ao uso dessas substâncias.
De forma geral, os resultados obtidos apontaram que os sites pesquisados eram em sua maioria páginas informativas, embora tenham sido encontrados diversos sites comerciais. Majoritariamente, o conteúdo das páginas analisadas se mostrou confiável e o incentivo ao consumo foi observado com certa frequência, seja de forma direta ou indireta. Apesar de alguns sites terem sido classificadas como comerciais, nem sempre a venda de tais produtos era anunciada de forma explícita, e em muitos casos foram utilizados artifícios para, possivelmente, burlar a legislação vigente.
Dentro do contexto da legislação sanitária, destaca-se a Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 19989, que aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, estabelecendo os requisitos gerais para comércio, transporte, prescrição, guarda, controle e fiscalização de substâncias controladas. Substâncias controladas (ou sujeitas a controle especial) são as com ação no sistema nervoso central e capazes de causar dependência física ou psíquica, substâncias que podem originar psicotrópicos, insumos utilizados na fabricação de entorpecentes e psicotrópicos, plantas utilizadas na fabricação de entorpecentes, entre outras. As substâncias e os medicamentos especiais estão dispostos em listas que são publicadas por meio das atualizações do Anexo I da Portaria, sendo a mais atual a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 607, de 23 de fevereiro de 202210.
A lista E descreve plantas proscritas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas e a lista F, as substâncias de uso proscrito no Brasil. Incluídas na lista E estão algumas das espécies que contêm substâncias psicotrópicas que foram objetos desse estudo: Cannabis sativa, Datura suaveolens Willd. [sin. Brugmansia suaveolens (Wild.) Bercht. & J. Presl], Lophophora williamsii e Salvia divinorum, sendo que para as substâncias desta lista ficam proibidos a importação, a exportação, o comércio, a manipulação e o uso delas10. Já na lista F2 constam algumas das substâncias psicotrópicas propriamente ditas, dentre as quais estão: psilocibina, psilocina, DMT, mescalina, salvinorina A e 5-MeO-DMT10. Existem algumas exceções previstas na norma, como quando um medicamento é aprovado contendo essas substâncias ou acerca dos produtos de Cannabis autorizados no Brasil que contenham THC.
Todas as plantas e substâncias proscritas citadas foram encontradas sendo comercializadas em sites brasileiros e/ou estrangeiros em língua portuguesa. Destaca-se que a importação de substâncias e plantas sujeitas a controle especial somente é autorizada por meio da solicitação de uma Autorização de Importação (AI) e o não cumprimento dessa exigência constitui infração sanitária (art. 4º, inciso II e art. 70)11.
Estudos anteriores relacionados à coleta e análise de dados de páginas da internet sobre produtos psicoativos identificaram a presença de avisos, em sites comerciais, de que os produtos “não são destinados ao consumo humano”12,13,14 ou que são vendidos em sacos plásticos etiquetados com frases como “somente para uso em laboratório”12. Um caso frequente observado em nossa análise foi a venda de cogumelos P. cubensis, em gramas ou esporos, sob o título de que teria exclusivamente “fins de pesquisa, coleção ou amostra etnobotânica”, ainda que seja obrigatória a solicitação de Autorização Especial Simplificada para Instituição de Ensino e Pesquisa (AEP) para tal utilização (art. 53)11. Esse tipo de indicação pode ser enquadrado no que será chamado de “estratégias de comercialização”, visto que tal ato visa transferir a responsabilidade do consumo para o comprador, com o objetivo de isentar o responsável pela venda de possíveis medidas punitivas. É importante ressaltar que, mesmo assim, tal atividade permanece ilegal, tanto para quem compra como para quem vende, conforme a legislação sanitária supramencionada.
Outra estratégia observada foi a comercialização de plantas sob o pretexto de serem destinadas à jardinagem, constatada em sites com venda de cactos peiote, San Pedro e Tocha peruana. Apesar de serem, de fato, espécies exóticas com agregado valor paisagístico, a legislação sanitária vigente supracitada proíbe seu comércio e uso. A disponibilização de produtos psicoativos em lojas virtuais esotéricas/xamânicas também parece ser outro método de venda adotado, visto que essas páginas são frequentemente utilizadas por usuários reais para fins recreativos. A fim de exemplificar, dentro de blogs e fóruns existe o compartilhamento de links entre os usuários, tendo sido citadas plataformas como “natureza divina” para obtenção de salvinorina A e “sites alternativos da natureza por aí” para compra de A. muscaria.
Estudos sobre o tráfico ilegal de drogas pela internet, com foco em medicamentos de controle especial, observaram o uso do Instagram e Facebook com posts de promoção de venda ou com informações de contato do suposto vendedor15,16. O presente estudo também encontrou posts em redes sociais que direcionavam a páginas de comercialização ou que disponibilizavam o contato para etapas de venda de alucinógenos de origem natural. A promoção do consumo de produtos pelas redes sociais é notória quando analisado o impacto causado pelos influenciadores digitais no marketing digital, que realizam um papel importante na decisão de compra dos consumidores, influenciando o comportamento e a opinião dos seguidores por meio das mídias digitais17. Portanto, além da hipótese de que as redes sociais atuam como veículo de venda de substâncias ilegais, assim como os sites propriamente comerciais, existe a possibilidade de que a influência ao consumo e/ou compra desses produtos seja potencializada quando divulgadas por meio dessas ferramentas, visto que já são utilizadas atualmente para esses fins. É provável também que outros meios tecnológicos sejam usados para esse propósito, como aplicativos de bate papo (como o WhatsApp), visto que tais aplicativos possibilitam alcançar inúmeras pessoas simultaneamente, em tempo real e com tecnologia criptografada.
Conjuntamente à disponibilidade de compra de produtos psicoativos, há o compartilhamento de métodos de consumo dessas substâncias, dado que foi verificado principalmente nas buscas pela salvinorina A, psilocibina e muscimol. Como a metodologia de busca não utilizou nenhum descritor específico de compra, é possível supor que até mesmo os indivíduos que realizam pesquisas sobre tais substâncias por “curiosidade” podem ser influenciados a fazer o uso delas, principalmente se levada em consideração a presença de relatos de usuários sobre experiências pessoais positivas com drogas naturais.
A análise do domínio dos sites também abre espaço para discussão. Páginas que induzem ao consumo muitas vezes possuem fatores de proteção de dados ativos, dificultando o rastreamento dos responsáveis pelo conteúdo, e lojas virtuais de domínio estrangeiro podem alegar que estão sob a legislação de outro país – geralmente um que permite a venda de uma substância considerada ilegal no Brasil. É importante mencionar que no Brasil existem mecanismos para denúncia de venda ilegal de produtos, como a Fala.BR – Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação18.
O conhecimento tácito e errôneo de que “o que é natural não faz mal” estimula o uso dessa classe de substâncias. Entretanto, é importante lembrar que plantas e fungos psicoativos, em geral, apresentam alta toxicidade. As reações adversas que podem ser sentidas vão desde euforia e excitação agressiva até convulsões, coma e morte19,20,21,22. São relatados casos de intoxicações graves de forma acidental, devido a tentativas errôneas de coleta de A. muscaria23, o que caracteriza um alerta, se considerado que se pode aprender a como cultivar, identificar na natureza e preparar espécies psicotrópicas por meio da internet. Ademais, os produtos disponíveis on-line, muitas vezes de origem desconhecida, podem conter contaminantes ou serem adulterados24, dificultando a previsão de possíveis efeitos colaterais e reações adversas.
Em contrapartida, a internet também se mostrou como uma fonte de informações sobre o uso terapêutico de substâncias psicotrópicas naturais, muitas vezes associados à divulgação de estudos científicos na área. Resultados de uma análise avaliando a eficácia do uso da raiz de iboga em usuários de drogas25 foram comumente associados a informações sobre clínicas de reabilitação no Brasil que oferecem a ibogaína como opção de tratamento. Também foram encontrados conteúdos em linguagem acessível ao público leigo relatando estudos científicos sobre o uso da secreção do sapo B. alvarius para melhora da cognição e afeto26, sobre o potencial terapêutico da bebida ayahuasca para o tratamento de doenças psiquiátricas e neurológicas27,28 e sobre o uso da psilocibina para o tratamento de depressão29.
Existem algumas limitações inerentes à análise realizada e aos resultados obtidos que devem ser reconhecidas. A principal delas refere-se à natureza mutável da internet: o conteúdo disponível na rede está em constante mudança e esses resultados refletem apenas um ponto no tempo: de janeiro a junho de 2021. A utilização dos nomes populares e nomes de rua das substâncias na pesquisa realizada pode caracterizar outra possível limitação. Tal estratégia foi utilizada a fim de simular como seria a busca na internet por um usuário leigo, sem conhecimento dos nomes científicos das plantas psicotrópicas ou de suas substâncias psicoativas. No entanto, em alguns casos, o nome da substância química alucinógena presente em plantas, animais ou fungos/cogumelos é amplamente utilizado entre leigos, como é o caso da DMT, do THC e da psilocibina. Também é importante enfatizar que não foram utilizados descritores específicos de compra, pois o interesse era avaliar o conteúdo de páginas que seriam encontradas em uma busca simples usando nomes populares de substâncias ou de plantas que as contêm. Além disso, ressalta-se que a análise do conteúdo dos sites avaliados estava sujeita a certa subjetividade, devido ao uso de termos e expressões com diferentes conotações. Esse foi um fator limitante para a categoria de incentivo, portanto, casos em que não era possível afirmar que os autores incentivavam o consumo, foi optado por representar com a classificação “não fica evidente”.
Por fim, a escolha do navegador, bem como suas configurações, histórico pessoal e localização geográfica também podem influenciar nos resultados, ou seja, indivíduos que já fizeram anteriormente a compra desses produtos na internet possivelmente teriam mais sites comerciais como resultado, ainda que utilizando os mesmos descritores empregados neste estudo.
Conclui-se que a internet pode ser uma aliada na busca de informações confiáveis sobre psicotrópicos naturais, já que a maioria do conteúdo disponibilizado na rede apresentou-se de acordo com a literatura científica consultada. Conteúdos de divulgação científica acerca do potencial terapêutico de substâncias psicoativas, voltados ao público leigo, também são facilmente acessíveis. Entretanto, uma parcela dos resultados demonstra que os usuários também estão expostos a um teor parcial e a relatos pessoais a respeito do consumo dessas substâncias, muitas vezes incentivando o uso, direta ou indiretamente.
Dos 82 sites identificados como comerciais, 51 oferecem substâncias cujo uso é proibido no Brasil. Além do poder de compra, os usuários podem facilmente encontrar guias sobre “como usar” esses produtos em sua própria casa, considerando que existe o compartilhamento de métodos de uso e cultivo em páginas informativas, blogs e fóruns, majoritariamente sem o acompanhamento de advertências sobre os riscos inerentes. Portanto, o estudo indica a necessidade de monitoramento e fiscalização de sites brasileiros cujo conteúdo é voltado a substâncias psicotrópicas de origem natural e/ou plantas que as contêm. As redes sociais também devem ser monitoradas, visto que atuam como ferramentas facilitadoras para o comércio ilegal on-line.
A análise da conotação de publicações também se mostra necessária, já que foi demonstrado que existem estratégias de comercialização adotadas pelos responsáveis de plataformas virtuais no intuito de contornar a legislação, transferindo a responsabilidade do uso para o comprador, embora o comércio seja proibido no país para qualquer finalidade não regulamentada.
Agradecemos à Ana Cecília Bezerra Carvalho, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pela revisão do texto e valiosos comentários, bem como à Universidade Federal do ABC (UFABC) pela bolsa concedida à Lopes JP.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: fulviorm@hotmail.com