DEBATE
Nanotecnologias: regulação baseada em evidências
Nanotechnologies: evidence-based regulation
Nanotecnologias: regulação baseada em evidências
Vigilância Sanitária em Debate, vol. 12, e02260, 2024
INCQS-FIOCRUZ
Received: 26 September 2023
Accepted: 04 December 2023
RESUMO: O debate quanto às melhores práticas da regulação das nanotecnologias precisa ser aprofundado, pois ainda representa um desafio para a sociedade brasileira, autoridades políticas e regulatórias. Nos últimos anos, muito se fala na regulação das nanotecnologias, porém, como tecnologia disruptiva, pela complexidade, limitações na validação de metodologias de análise e escassas referências sobre nanopartículas e nanomateriais, ainda persistem expressivas assimetrias e dificuldades de compreensão sobre as melhores práticas regulatórias. Atualmente, pelas ainda limitadas evidências técnicas e científicas validadas, utilizam-se os modelos de regulação denominados de comando e controle e o princípio da precaução como meio de evitar o perigo concreto/abstrato, mas cuja ocorrência seja verossímil. Como alternativa ao atual modelo regulatório, no presente texto, discorre-se sobre o modelo regulatório, tratado como a melhor prática regulatória global e que se vale da ciência regulatória e da regulação baseada em evidências. Globalmente cresce a aceitação do uso de evidências técnicas e científicas validadas para auxiliar autoridades políticas e regulatórias na elaboração de diretrizes e normas regulatórias que consigam proteger os interesses públicos e maximizar os benefícios econômicos e sociais das novas tecnologias. Para além disso, evidências permitem antecipar possíveis riscos e permitem abordagens proativas para a regulação das nanotecnologias. E ao considerar essa perspectiva, é importante enfatizar que a implementação de um modelo de regulação baseada em evidências requer maturidade política, científica, técnica e regulatória, para que os benefícios sejam aproveitados de maneira a prover prosperidade, segurança e sustentabilidade pelo uso de tecnologias disruptivas.
Palavras-chave: Nanopartículas, Nanomateriais, Nanossegurança, Ciência Regulatória.
ABSTRACT: The debate on best practices for the regulation of nanotechnologies needs to be deepened, and this still represents a challenge for Brazilian society, political authorities, and regulatory bodies. In recent years, there has been much discussion about the regulation of nanotechnologies; however, as a disruptive technology due to its complexity, limitations in the validation of analysis methodologies, and the scarcity of references on nanoparticles and nanomaterials, significant asymmetries, and difficulties in understanding the best regulatory practices persist. Due to the limited technical and scientifically validated evidence, regulatory models known as “command and control”, and the precautionary principle prevent concrete/abstract but plausible dangers. As an alternative to the current regulatory model, this paper discusses the regulatory model considered the best global regulatory practice, which relies on regulatory science and evidence-based regulation. There is growing global acceptance of using technically and scientifically validated evidence to assist political and regulatory authorities in developing guidelines and regulatory standards to protect public interests and maximize new technologies’ economic and social benefits. Furthermore, evidence allows for anticipating potential risks and enables proactive approaches to nanotechnologies regulation. When considering this perspective, it is essential to emphasize that implementing an evidence-based regulatory model requires political, scientific, technical, and regulatory maturity to ensure that the benefits are harnessed to provide prosperity, safety, and sustainability through disruptive technologies.
Keywords: Nanoparticles, Nanomaterial, Nanosafety, Regulatory Science.
INTRODUÇÃO
As nanotecnologias estão na base das principais mudanças científicas e tecnológicas nos anos recentes, que abre um novo ciclo tecnológico denominado de “era das nanotecnologias” com reflexos importantes na sociedade, no trabalho, meio ambiente e outros domínios (como indústria bélica). Estas tecnologias possuem um caráter científico-tecnológico transversal, disruptivo e pervasivo, que requer a compreensão, a governança, o controle e a utilização segura e responsável das propriedades particulares da matéria em escala nanométrica1.
Pela manufatura da matéria em escala nanométrica e molecular obtém-se a produção de nanopartículas que, por sua vez, compõem os nanomateriais (NM), que podem apresentar propriedades distintas do material de origem. Por longos anos, as discussões sobre nanopartículas consideravam mais o tamanho do que as suas propriedades, porém, atualmente, entende-se que esta definição não é específica o suficiente. É notável que ao tratar de nanoescala não se refere apenas ao tamanho, mas principalmente às propriedades físicas, químicas, biológicas e ópticas únicas que surgem naturalmente em nanopartículas ou à capacidade de modular tais efeitos. As propriedades específicas dos NM, por sua vez, são de grande interesse para impulsionar a inovação e ofertar produtos inovadores, embora, tais propriedades possam também ser responsáveis pelos efeitos adversos ou por suscitar toxicidade dos NM. Por isso, são necessários procedimentos de avaliação diferenciados quanto à sua segurança, para não repetir a danosa história global do amianto, assim como o uso ético das tecnologias, razão pela qual as nanotecnologias requerem regulamentação específica2,3.
É interessante ressaltar ainda que a comercialização de produtos manufaturados contendo NM (produzidos com nanopartículas manufaturadas) está crescendo de forma célere (Figura 1). De acordo com registros na base de dados StatNano, em 2023, já são encontrados mais de 11.000 produtos de consumo no mercado contendo NM, incluindo produtos farmacêuticos, cosméticos, saneantes, tecidos, tintas, biocidas, produtos esportivos, produtos eletrônicos, produtos de conversão de energia, materiais de construção, partículas com aplicações em ciências biológicas, células solares, catálise e novos compostos, para citar apenas alguns4.
E ainda em relação aos produtos de consumo no mercado contendo NM, vale mencionar que têm um enorme potencial para novas soluções tecnológicas considerando os desafios atuais que a sociedade enfrenta. No entanto, a celeridade da inovação e o desenvolvimento das nanotecnologias criaram assimetrias entre produtos inovadores e a capacidade de governança dos potenciais riscos associados por parte das autoridades regulatórias. Esta assimetria é agravada pela necessidade de desenvolver novos padrões de referência e metodologias analíticas específicas para nanotecnologias. Contudo, embora tenha havido avanços na capacidade analítica, há cogente necessidade de aprimorar as metodologias analíticas, assim como, os mecanismos regulatórios em âmbito nacional e internacional, como forma de prover a qualidade e a segurança das nanotecnologias5.
Voltando às concepções iniciais, percebe-se que, apesar de diversas iniciativas com aumento da pesquisa, os debates regulatórios sobre segurança das nanotecnologias são primários e ainda há limitados conhecimentos e informações validadas. Isso sugere uma necessidade urgente de ação na produção de evidências técnicas e científicas que considerem a interação com as células, o comportamento das nanopartículas e dos NM sobre a saúde dos consumidores e trabalhadores, bem como o comportamento ambiental e os efeitos toxicológicos, especialmente porque os testes descritos na literatura internacional são muitas vezes realizados no início do processo de desenvolvimento do produto, e o NM, no produto final, pode comportar-se de forma diferente6,7,8.
Assim, tendo consciência dessa complexidade, é importante ressaltar que, no Brasil, há ainda uma limitada disponibilidade de diretrizes técnicas, normativas e ausência de regulação específica para nanotecnologias9. Neste cenário, considerando a complexidade técnica da regulação das nanotecnologias, além de um restrito engajamento no debate sobre modelos regulatórios, o objetivo do presente artigo é apresentar conceitos, o significado e debater a importância da ciência regulatória para o modelo de regulação baseada em evidências como forma de aprimorar o processo regulatório e ampliar a assertividade na elaboração de diretrizes e normas regulatórias pelas autoridades responsáveis.
Ciência regulatória
Atualmente a ciência regulatória recebe cada vez mais atenção, e é uma área do conhecimento que se centra na aplicação de princípios científicos e evidências técnicas para auxiliar na definição de mecanismos para elaboração, implementação e avaliação de diretrizes e normas regulatórias pelas autoridades competentes. Além disso, é a ciência do desenvolvimento de novas ferramentas, padrões com abordagem científica e interdisciplinar para avaliar a segurança, qualidade e a eficácia de produtos, processos e serviços regulados, como, por exemplo, as nanotecnologias10.
O objetivo da ciência regulatória é desenvolver e qualificar os mecanismos regulatórios que orientam o desenvolvimento, a produção, o uso e a comercialização de produtos e serviços, sempre com foco em promover a proteção da saúde, segurança e bem-estar da sociedade, bem como a proteção do meio ambiente. A ciência regulatória é aplicável nas mais diversas áreas, como: saúde, segurança alimentar, segurança do trabalho e ambiental, para produtos químicos, medicamentos, dispositivos médicos, energia, telecomunicações11.
Os cientistas regulatórios desempenham um papel fundamental na medida em que utilizam métodos científicos e abordagens analíticas para avaliar riscos, definir limites e estabelecer padrões de conformidade. Realizam experimentos, estabelecem padrões, análises de dados, estudos epidemiológicos, revisões sistemáticas da literatura entre outros métodos científicos para embasar a fundamentação para a tomada de decisões regulatórias12.
Outro aspecto que vale ser destacado é que a ciência regulatória deve considerar a interação e a colaboração entre governos, legislativo, judiciário, agências reguladoras, especialistas acadêmicos, indústria, sociedade civil, trabalhadores, consumidores e outras partes interessadas13. Além da ênfase em ciência regulatória, a participação da sociedade é cada vez mais importante por meio de consulta pública. Neste contexto, o Conselho sobre Política Regulatória e Governança da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)14 estabeleceu 12 recomendações para os países-membros, algumas delas específicas, como, por exemplo: análise do impacto regulatório, com ênfase na necessidade de consulta pública13. No Brasil, 90% das agências regulatórias realizam consultas públicas antes de publicar novos regulamentos15. Esta interação permite acelerar a difusão, a troca de informações e sedimentar conhecimentos para fundamentar a tomada de decisões baseadas em evidências, o que as torna mais eficazes e assertivas.
Por fim, a ciência regulatória desempenha um papel crucial na proteção da sociedade e do meio ambiente, equilibrando os interesses de diferentes partes envolvidas e promovendo a segurança, a qualidade e a conformidade em diversos setores regulados, considerando as melhores práticas e conhecimentos técnicos e científicos.
Regulação baseada em evidências
A regulação baseada em evidências (RBE) é um princípio que busca embasar as decisões regulatórias nas melhores evidências científicas disponíveis e validadas. Dados e informações são a força vital da regulação moderna. Este processo envolve a coleta, análise e interpretação de dados e informações (evidências) científicas relevantes para avaliar os riscos e benefícios de determinados produtos, tecnologia ou processo que é regulado. A ciência regulatória desempenha um papel fundamental na implementação da RBE, pois envolve a utilização de dados e informações científicas para informar e embasar a tomada de decisões regulatórias10,16.
Acrescenta-se, ainda, que a RBE segue uma abordagem semelhante que busca embasar as intervenções e decisões profissionais em evidências técnicas e científicas. Para ilustrar essa abordagem, nas áreas da saúde, como a medicina, a enfermagem e a psicologia, busca-se tomar decisões clínicas e de cuidado de saúde com base nas melhores evidências técnicas e científicas disponíveis. O mesmo princípio se aplica na RBE, na qual a utilização de dados e informações científicas são a base para as decisões regulatórias, tendo sido pré-definida a ênfase na segurança, na qualidade e na eficácia dos produtos e tecnologias reguladas10,17.
Porém, se por um lado a RBE parece ser importante e representar um avanço no sentido de qualificar os mecanismos regulatórios, por outro lado, há uma pressão crescente para tratar a RBE como uma melhor prática global, com claros interesses políticos, na esperança de superar barreiras e frear o “estado regulador, organismos reguladores, e mecanismos multilaterais”, além de limitações técnicas, como no caso das tecnologias inovadoras, nas quais há falta de referências técnicas e de metodologias validadas para o pleno uso da RBE.
Tais considerações apontam que na atualidade a RBE ainda tem limitações de aplicação e existem certas condições sob as quais provavelmente essa prática de tomada de decisão será menos viável que o modelo comando e controle ou a própria aplicação do princípio da precaução. A Tabela 1 resume as principais condições limitantes que impactam a viabilidade da RBE. Essas condições estão presentes em formas variadas, com maior ou menor complexidade em âmbito nacional e transnacional, com efeitos que se acentuam em países economicamente menos favorecidos16.
Assim, ao considerar as referidas condições limitantes, é importante ressaltar que o modelo da RBE tem por objetivo tomar decisões informadas com base em informações técnicas e científicas validadas. Diante de tal concepção, é necessário lembrar que a RBE não pode representar uma imposição revestida de “melhor prática regulatória e harmonização global” pelo domínio econômico.
Regulação Baseada em Evidências em nanotecnologias
A RBE em nanotecnologias envolve tomar decisões regulatórias com base em dados, padrões e informações científicas validadas para nanopartículas e NM. Porém, como esta tecnologia tem características disruptivas, complexas, limitações na validação de metodologias de análise e escassas referências sobre nanopartículas e NM, ainda há desafios expressivos para aplicação da RBE. Neste sentido, em muitos casos, ainda são utilizados o modelo de comando e controle e o princípio da precaução para evitar o perigo concreto/abstrato, mas cuja ocorrência seja verossímil. Essa prática ainda é importante com vistas à segurança e à eficácia dos produtos que contém nanotecnologias, na ausência de evidências validadas16,18.
Ao considerar os referidos aspectos, é importante ressaltar ainda que, em relação a RBE para as nanotecnologias, se faz necessário preencher alguns requisitos básicos, destacados na Tabela 2.
Evolução regulatória global das nanotecnologias
A regulamentação das nanotecnologias é uma questão complexa que exige uma política regulatória centrada nos produtos e sua aplicação, fundamentada em evidências científicas que comprovem a segurança, norteados por princípios éticos e legais. A abordagem regulatória deve se apoiar na melhor ciência disponível e assegurar vias regulatórias transparentes e previsíveis19. Existe um debate significativo sobre a responsabilidade e o alcance da regulamentação da nanotecnologia e, atualmente, os modelos regulatórios em todo o mundo buscam avaliar a segurança de novas substâncias ou produtos manufaturados caso a caso antes de permitir sua entrada no mercado20.
Tendo consciência dessa complexidade, embora ainda persista uma série de condições limitantes, as agências reguladoras em todo o mundo buscam seguir boas práticas regulatórias na medida que estabelecem diretrizes e normas baseadas nas melhores evidências científicas disponíveis, visando aferir a segurança dos produtos nanotecnológicos. É importante enfatizar o exemplo dado pelo governo dos Estados Unidos que, por meio da Iniciativa Nacional de Nanotecnologia dos Estados Unidos (NNI), financia diversas pesquisas para compreender as implicações econômicas, éticas, sociais, legais e culturais do uso da nanotecnologia21. Este exemplo é seguido por alguns outros governos, incluindo a preocupação do uso destas tecnologias para fins bélicos.
E ainda em relação à evolução do regulatório, vale mencionar que agências reguladoras como a U.S. Food and Drug Administration (FDA) regulam esses produtos de acordo com normas específicas que se aplicam a cada tipo de produto sob sua jurisdição19, enquanto a Administração de Segurança e Saúde Ocupacional (OSHA) estabeleceu alguns padrões aplicáveis para atividades com nanotecnologia na indústria em geral22. Já, na União Europeia, as normas existentes tratam essencialmente dos NM, com normas específicas para produtos, incluindo a avaliação de segurança destes materiais e a obrigação de rotulagem, ou seja, seguem um princípio regulatório de segurança que se aplica a todos os produtos químicos e misturas que são os regulamentos para Registration, Evaluation, Authorisation and Restriction of Chemicals (REACH) e Classification, Labelling and Packaging (CLP)23. Na Austrália, sete organismos distintos regulam a nanotecnologia e o uso de NM em produtos comerciais24. A China investe em padrões e materiais de referência e os primeiros regulamentos relacionados à utilização laboratorial de NM foram publicados pelo Chemical Abstracts Service (CAS) em 200725,26.
Vale destacar ainda as iniciativas e esforços da International Organization for Standardization (ISO) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no estabelecimento de referenciais para o avanço da da RBE para nanotecnologias. A complementaridade de iniciativas em nanotecnologias entre a ISO e OCDE pode ser verificada pelos referenciais e documentos técnicos para os NM que, na prática, são importantes referências para as autoridades regulatórias com foco em RBE.
Uma síntese da evolução normativa global está representada na Figura 2, na qual se observa que, entre os anos de 2019 e 2023, foram publicadas 1.465 normas. Porém, já existem 3.683 diretrizes e normas publicadas por 56 autoridades reguladoras ou organizações em 44 países, segundo levantamento realizado na plataforma StatNano em setembro de 20234. Estas estatísticas apontam para uma evolução significativa do quantitativo de diretrizes e normas nos últimos 5 anos, sem, no entanto, ser possível fazer quaisquer inferências quanto à qualidade e à eficácia destes instrumentos regulatórios. Em nossa avaliação, é uma evolução positiva, considerando que as autoridades regulatórias e organismos nacionais e internacionais estão aprofundando o debate, com vistas à superação de condições limitantes e com crescente olhar para a RBE3,4.
No Brasil, a evolução regulatória de nanotecnologias é lenta, pontual e ainda bastante restrita a um círculo limitado de autoridades9. Algumas iniciativas, como a colaboração entre o Brasil e a União Europeia, visam o estabelecimento de padrões de segurança para nanotecnologias, com destaque para o consórcio NANoREG27. Em publicação recente, Oliveira Figueiredo e Assis Figueiredo28 analisaram o arcabouço legal da nanotecnologia no Brasil e enfatizaram a necessidade de se adotar políticas de governança e estratégias regulatórias em linha com a sustentabilidade ambiental, responsabilidade econômica, ética e social, considerando ainda a proteção dos profissionais envolvidos na cadeia produtiva.
Em resumo, a regulamentação das nanotecnologias, seja no Brasil ou globalmente, requer uma abordagem regulatória abrangente e complexa que garanta a segurança e uso ético, considerando as melhores evidências técnicas, científicas disponíveis. Porém, apesar dos esforços, a atual regulamentação das nanotecnologias é insuficiente. É importante questionar se as regulamentações existentes são capazes de prevenir contra danos à saúde e meio ambiente, a exemplo do amianto e microplásticos. Além disso, não há regulamentação que impeça líderes, Estados e/ou outros grupos de usar nanopartículas ou nanorobôs com finalidade intencionalmente destrutiva, a exemplo do uso de armas químicas e biológicas.
Desafios relativos à Regulação Baseada em Evidências
Embora os produtos derivados de nanotecnologias e NM já tenham chegado ao mercado global, ainda existe a necessidade de compreender os impactos e os efeitos dos NM ao longo do ciclo de vida, incluindo resíduos no ambiente, em suas variadas aplicações tecnológicas. Há muitos esforços entre autoridades reguladoras e organizações em todo o mundo trabalhando na avaliação da segurança dos NM, como é o caso das iniciativas de estabelecer processos de validação e padronização pela ISO e OCDE. Apesar das múltiplas iniciativas e esforços internacionais em torno do tema, por pesquisas realizadas por grupos de trabalho específicos, como, por exemplo, a OCDE29, ainda há muitos desafios a superar para uma efetiva adoção da RBE sumarizados na Tabela 3.
Como advertência sobre a decisão da adoção ou não de regulamentação baseada em evidências, deve-se levar em consideração diversos fatores que não foram aprofundados neste artigo. E ainda em relação à RBE, vale mencionar que a regulamentação de tecnologias estratégicas e negócios transnacionais estão associados a variados interesses econômicos e de domínio tecnológico e ilustram a dificuldade de estabelecer este modelo de regulação, assim como, a plena harmonização regulatória global beneficiam somente as economias mais privilegiadas. Como resultado, é necessária uma reflexão cuidadosa sobre se, e como, usar a ciência regulatória em oposição ao modelo comando e controle na tomada de decisões sobre regulamentação, assumindo que o objetivo é maximizar a eficácia regulatória e a proteção de possíveis impactos desfavoráveis.
CONCLUSÕES
Nos últimos anos, muito se fala na necessidade de aprimorar a regulamentação das nanotecnologias, porém, como tecnologia inovadora, disruptiva, complexa e com limitações na validação de metodologias de análise e escassas referências sobre nanopartículas e NM, ainda há desafios regulatórios expressivos. Para governança das nanotecnologias, informações de segurança ao longo de todo o ciclo de vida do nano são vitais.
A aplicação do princípio da precaução deve ser devidamente conjugada, de forma dinâmica à evidência científica, com uma alimentação recíproca, mútua e interdependente. Na verdade, toda a pesquisa se coloca como uma construção científica coletiva, e visa exatamente eliminar riscos e incertezas, de forma contínua, sempre surgindo novos cenários e aplicações, que demandam contínuas avaliações do risco.
Por outro lado, no modelo de RBE, os reguladores valem-se de evidências técnicas e científicas validadas para elaborar diretrizes e normas. Esse modelo parte de um racional técnico e científico, focando na análise de risco, em vez de impor regras genéricas e nem sempre contemplativas para o controle efetivo do risco. A RBE requer pesquisa, vigilância contínua e dinâmica para ajustar as diretrizes e normas de acordo com os avanços partindo das melhores evidências disponíveis.
Por fim, é importante ressaltar que a implementação de um modelo de RBE requer maturidade política, científica, técnica e regulatória. Requer fomento em ciência regulatória, desenvolvimento de padrões, metodologias analíticas, caracterização e análise da segurança dos NM, de maneira que o modelo resulte em decisões fundamentadas com a avaliação dos riscos para que os benefícios sejam aproveitados de maneira segura e sustentável. Sem, no entanto, renunciar à soberania e ao princípio da autodeterminação regulatória que confere ao país o direito de decidir livremente os critérios técnicos validados a serem adotados na elaboração de diretrizes e normas regulatórias para as nanotecnologias.
REFERÊNCIAS
Gottardo S, Alessandrelli M, Amenta V, Atluri R, Barberio G, Bekker C et al. NANoREG framework for the safety assessment of nanomaterials. Luxembourg: Publications Office of the European Union; 2017.
Rai M, Nguyen TA. Nanomaterials recycling. Amsterdam: Elsevier; 2021.
Hubert R, Vikram K, Kirsten R, Thomas L, Elzbieta S. Guidance on the implementation of the commission recommendation 2022/C 229/01 on the definition of nanomaterial. Luxembourg: Publications Office of the European Union; 2023.
StatNano. StatNano database. Lund: StatNano; 2023[acesso 23 set 2023]. Disponível em: https://statnano.com
Okuda H. Safe by design: creating nanomaterials of tomorrow. In: Global Summit on Regulatory Science; Lago Maggiore, Italia. Brussels: European Commission; 2019.
von Hohendorff R, Engelmann W. Nanotecnologias aplicadas aos agroquímicos no Brasil: a gestão dos riscos a partir do diálogo entre as fontes do Direito. Curitiba: Juruá; 2014.
Devasahayam S. Nanotechnology and nanomedicine in market: a global perspective on regulatory issues. In: Mohapatra SS, Ranjan S, Dasgupta N, Mishra RK, Thomas S, editors. Characterization and biology of nanomaterials for drug delivery: nanoscience and nanotechnology in drug delivery micro and nano technologies. Amsterdam: Elsevier; 2019. p. 477-522.
Binsfeld P. Nanotecnologia: a interação célula e nanopartículas. In: Ministério da Saúde (BR), editor. Inovação em temas estratégicos de saúde pública volume I. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. p. 90-101.
Agencia Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Avaliação de segurança biológica de materiais de uso em saúde de base nanotecnológica, guia 63/2023. Brasília: Agencia Nacional de Vigilância Sanitária; 2023.
Honig P, Zhang L. Regulation and innovation: role of regulatory science in facilitating pharmaceutical innovation. Clin Pharmacol Ther. 2019;105(4):778-81. https://doi.org/10.1002/cpt.1367
Anklam E, Bahl MI, Ball R, Beger RD, Cohen J, Fitzpatrick S et al. Emerging technologies and their impact on regulatory science. Exp Biol Med (Maywood). 2022;247(1):1-75. https://doi.org/10.1177/15353702211052280
Starokozhko V, Kallio M, Kumlin Howell A, Makinen Salmi A, Andrew-Nielsen G, Goldammer M et al. Strengthening regulatory science in academia: STARS, an EU initiative to bridge the translational gap. Drug Discov Today. 2021;26(2):283-8. https://doi.org/10.1016/j.drudis.2020.10.017
Gabardo E, Graner MD. A importância da participação popular na análise de impacto regulatório pelas agências reguladoras federais brasileiras. Rev Dir Adm. 2020;279(3):275-300. https://doi.org/10.12660/rda.v279.2020.82965
Organisation for Economic Cooperation and Development - OCDE. Recomendação do Conselho sobre política regulatória e governança. Paris: Organisation for Economic Cooperation and Development; 2012.
Ramalho PIS, Lopes AV. Reformando a reforma regulatória: lei geral das agências independentes no Brasil. Rev Adm Pública. 2022;56(4):550-61. https://doi.org/10.1590/0034-761220220056
Davis KE. The limits of evidence-based regulation: the case of anti-bribery law. NYU Law and Economics Research Paper No. 19-42. 2019.
Baicker K, Chandra A. Evidence-based health policy. N Engl J Med. 2017;377(25):2413-5. https://doi.org/10.1056/NEJMp1709816
Bowman D, Chaudhry Q, Gergely A. Evidence-based regulation of food nanotechnologies: a perspective from the European Union and United States. In: Sabliov CM, Chen H, Yada RY, editors. Nanotechnology and functional foods: effective delivery of bioactive ingredients. Hoboken: John Wiley & Sons; 2015. p. 358-74.
US Food and Drug Administration - FDA. FDA's approach to regulation of nanotechnology products. Silver Spring: US Food and Drug Administration; 2018[acesso 23 set 2023]. Disponível em: https://www.fda.gov/science-research/nanotechnology-programs-fda/fdas-approach-regulation-nanotechnology-products
Picecchi D. Tiny things with a huge impact: the international regulation of nanomaterials. Michigan J Envtl Admin Law. 2017;7(2):447-78.
Medical Advisory Secretariat. Nanotechnology: an evidence-based analysis. Ont Health Technol Assess Ser. 2006;6(19):1-43.
Occupational Safety and Health Administration - OSHA. Nanotechnology. Washington: Occupational Safety and Health Administration; 2023[acesso 23 set 2023]. Disponível em: https://www.osha.gov/nanotechnology
European Union Observatory for Nanomaterials - EUON. Regulation. Helsinki: European Chemicals Agency; 2023[acesso 23 set 2023]. Disponível em: https://euon.echa.europa.eu/regulation.
Australian Academy of Science - ACS. Nanotechnology Regulation in Australia. Camberra: Australian Academy of Science; 2023[acesso 23 set 2023]. Disponível em: https://www.science.org.au/curious/technology-future/nanotechnology-regulation-australia
Jarvis DS, Richmond N. Regulation and governance of nanotechnology in China: Regulatory challenges and effectiveness. Eur J Law Technol. 2011;2(3):1-11.
Zhu Q. Technocracy, public optimism, and national progress: constructing ethical guidelines for responsible nano research and development in China. In: Laas K, Davis M, Hildt E, editores. Codes of ethics and ethical guidelines: emerging technologies, changing fields. Berlin: Springer; 2022. p. 161-73.
Ministério da Ciência Tecnologia (BR). Nanotecnologia. Brasília: Ministério da Ciência Tecnologia; 2023[acesso 19 dez 2023]. Disponível em: https://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/tecnologia/tecnologias_convergentes/paginas/nanotecnologia/NANOTECNOLOGIA.html#
Figueiredo AO, Figueiredo GA. Sustainable development and health: the regulation of nanomaterials in Brazil. Ann Bioethics Clin App. 2021;4(4):1-3.
Organisation for Economic Cooperation and Development - OCDE. Moving towards a safe(r) innovation approach (SIA) for more sustainable nanomaterials and nano-enabled products. Paris: Organisation for Economic Cooperation and Development; 2020.
Author notes
* E-mail: jmgranjeiro@inmetro.gov.br
Conflict of interest declaration
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.