RESUMO
Introdução: As farmácias, no âmbito do SUS, devem cumprir as normas sanitárias, bem como seguir as diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Saúde, a fim de garantir o acesso a medicamentos seguros, efetivos e de qualidade.
Objetivo: Caracterizar a situação sanitária dos medicamentos na atenção primária no SUS, nas capitais do Brasil, segundo as regiões, no tocante a: requisitos técnico-sanitários, condições de armazenamento, itens de segurança contra incêndio e pane elétrica, condições ambientais, sistema de controle de estoque, fracionamento, gerenciamento de resíduos, regulação da publicidade/promoção de medicamentos, ações relacionadas à farmacovigilância e ao transporte.
Método: Estudo transversal, exploratório, abarcando 455 farmácias de serviços de atenção primária das capitais do Brasil que constituem uma subamostra da Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM). Utilizou-se um roteiro de observação e entrevistas com os responsáveis pela assistência farmacêutica (n = 24) e responsáveis pela entrega de medicamentos dos serviços (n = 108).
Resultados: Constatou-se o descumprimento de requisitos técnicos e sanitários que podem interferir na manutenção da sua estabilidade, qualidade, eficácia e segurança, indicando problemas de gestão, infraestrutura e qualidade dos serviços farmacêuticos, além de possível incremento de custos para o sistema devido a perdas. Condições sanitárias mais deficitárias foram encontradas nas capitais do Norte e Nordeste e mais favoráveis nas demais.
Conclusões: As farmácias enfrentam problemas de gestão, infraestrutura, organização e qualidade dos serviços farmacêuticos que podem comprometer a qualidade dos medicamentos oferecidos e incrementar custos para o sistema. O aprimoramento da gestão, os investimentos em infraestrutura e na qualificação dos recursos humanos e o aprimoramento da fiscalização da Vigilância Sanitária se fazem urgentes para que as políticas de medicamentos e de assistência farmacêutica sejam efetivas.
Palavras chave: Medicamentos para a Atenção Primária, Assistência Farmacêutica, Farmacovigilância, Sistema Único de Saúde, Vigilância Sanitária.
ABSTRACT
Introduction: Pharmacies, within the scope of the Unified Health System (SUS), must comply with health standards, as well as follow the guidelines established by the Ministry of Health to guarantee access to safe, effective and quality medicines.
Objective: To characterize the technical issues and conservation conditions of medicines of primary care in the Unified Health System, in the capitals of Brazil, grouped by regions, about technical-sanitary requirements, storage and environmental conditions, fire safety and electrical breakdown items, control system of inventory, fractionation, waste management, regulation of advertising/promotion of medicines, actions related to pharmacovigilance and transport.
Method: Cross-sectional, exploratory study, covering 455 pharmacies in primary care services in the capitals of Brazil, which constitute a subsample of the Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM). An observation guide and interviews were used with those responsible for pharmaceutical assistance (n = 24) and those responsible for delivering medicines to services (n = 108).
Results: Non-compliance with technical and sanitary conditions, which can interfere in maintaining stability, quality, efficacy, and safety, indicating management problems, infrastructure and quality of pharmaceutical services were identified, in addition to possible increased costs for the system due to losses. More deficient sanitary conditions in general were found in the capitals of the North and Northeast and better conditions in the capitals of other regions.
Conclusions: Pharmacies of the SUS primary health network face problems in management, infrastructure, organization, and quality of pharmaceutical services that can compromise the quality of the medicines offered, and increase costs for the system. Improvement of management, investments in infrastructure and in the qualification of human resources, and improvement of inspection and health surveillance are urgently needed for essential medicines and pharmaceutical assistance policies to be effective.
Keywords: Drugs for Primary Health Care, Pharmaceutical Services, Pharmacovigilance, Unified Health System, Health Surveillance.
ARTIGO
Situação sanitária dos medicamentos na atenção primária no Sistema Único de Saúde nas capitais do Brasil
Technical issues and conservation conditions of medicines in the Primary Care in the Unified Health System in the capitals of Brazil
Received: 31 August 2021
Accepted: 13 April 2022
Com a Constituição de 1988, o Brasil passou a reconhecer e a proteger o direito à saúde, entre outros direitos sociais 1 . Seguiu-se a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) com os objetivos de formular políticas de saúde e de prover ações de promoção, proteção e recuperação da saúde e ações assistenciais e preventivas integradas 2 . Incluem-se no SUS a vigilância sanitária e a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica.
Estabelecida com a Resolução n° 338, de 6 de maio de 2004, do Conselho Nacional de Saúde, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), parte integrante da Política Nacional de Saúde, determina que a assistência farmacêutica (AF) deve ser compreendida como uma política pública norteadora para a formulação de políticas setoriais, englobando um conjunto de ações voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde, tanto individual como coletiva, tendo o medicamento como insumo essencial e visando o acesso e uso racional 3 . Constitui-se como um dos eixos estratégicos da PNAF, a construção de uma Política de Vigilância Sanitária que garanta o acesso da população a serviços e produtos seguros, eficazes e com qualidade 3 .
A vigilância sanitária dos medicamentos é uma das áreas de atuação do SUS. A plena estruturação da vigilância sanitária é um dos requisitos fundamentais para a implementação do SUS, haja vista seu poder normativo e fiscalizador dos serviços de saúde e dos insumos terapêuticos neles utilizados; suas ações devem ter caráter prioritário pela natureza essencialmente preventiva 4 e exercidas sobre bens e serviços de saúde públicos e privados.
Os medicamentos são produtos sensíveis, elaborados com o objetivo de prevenir, diagnosticar, curar doenças ou controlar sintomas e devem ser produzidos, armazenados e distribuídos com alto rigor técnico, para assegurar qualidade, eficácia e segurança. São objetos científicos híbridos: um bem essencial com valor terapêutico e econômico, um instrumento de acumulação de poder e capital. O resultado esperado de sua utilização é o de prevenir doenças ou restabelecer a saúde, contudo, em determinadas condições, podem causar danos e, por comportar tal risco, devem ser submetidos à vigilância sanitária 5 .
As farmácias, no âmbito do SUS, devem cumprir as normas sanitárias, seguir as diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Saúde (MS) e dispor de infraestrutura física, recursos humanos e materiais que permitam a integração dos serviços e o desenvolvimento das ações de AF, possibilitando a garantia da qualidade dos medicamentos, o atendimento humanizado e a melhoria das condições de assistência à saúde 6 .
A garantia da segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos, uma importante diretriz já reconhecida através da Política Nacional de Medicamentos (PNM) publicada em 1998, representa um grande desafio aos sistemas regulatórios em todo o mundo. O controle sanitário dos medicamentos requer o cumprimento da regulamentação sanitária e atividades de inspeção e fiscalização para a verificação regular e sistemática dos requisitos técnico-legais para as atividades com medicamentos 3 . Com a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 1999 7 e consoante às diretrizes e eixos prioritários da PNM e da PNAF, diversas normas dirigidas à regulação sanitária dos medicamentos foram atualizadas ou elaboradas. A necessidade de avaliar a PNAF conduziu o MS a instituir a Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM). Realizada em parceria com 11 instituições acadêmicas, a pesquisa foi organizada em duas estratégias, um componente populacional e um componente serviço para avaliar aspectos relacionados ao acesso, à utilização e à promoção do uso racional de medicamentos.
O componente serviço da PNAUM teve por objetivo caracterizar a organização dos serviços de AF na atenção primária, com vistas ao acesso a medicamentos e à promoção do seu uso racional, mediante a seleção e investigação de um vasto conjunto de características e atributos das práticas e dos serviços. Trata-se de um estudo transversal, exploratório, de natureza avaliativa, realizado entre 2014 e 2015, com uma amostra de 600 municípios representativos das regiões do Brasil e 1.143 serviços de saúde de atenção primária/SUS 8 .
A pesquisa produziu um amplo conjunto de dados e informações sobre AF e acesso a medicamentos e sobre os serviços farmacêuticos, mediante entrevistas com secretários de saúde, farmacêuticos coordenadores da AF, usuários, médicos e responsáveis pela entrega de medicamentos nas farmácias/unidades de dispensação de medicamentos, além da observação dos serviços farmacêuticos nas unidades de atenção primária, conforme detalhamento metodológico em Álvares et al. 8 .
No Brasil, ainda são escassas as pesquisas sobre a situação sanitária dos medicamentos na esfera pública ou privada. O estudo mais abrangente 9 integrou a PNAUM – Componente Serviço.
Este estudo teve por objetivo caracterizar a situação sanitária dos medicamentos na atenção primária/SUS, nas capitais do Brasil, segundo as regiões, no que se refere a: requisitos técnico-sanitários, condições de armazenamento, itens de segurança contra incêndio e pane elétrica, condições ambientais, sistema de controle de estoque, fracionamento, gerenciamento de resíduos, regulação da publicidade/promoção de medicamentos, ações relacionadas à farmacovigilância e condições de transporte.
Trata-se de um estudo transversal, exploratório, de natureza avaliativa, com utilização de uma subamostra da PNAUM, constituída pelas capitais do Brasil agrupadas por regiões. A PNAUM foi realizada entre 2014 e 2015 e os dados foram produzidos mediante observação direta dos serviços farmacêuticos de uma amostra de serviços de atenção primária e de entrevistas com informantes chaves. Na verificação das farmácias/unidades dispensadoras de medicamentos, locais de armazenamento e entrega de medicamentos, utilizou-se um roteiro de observação e pessoal treinado, para verificar: a documentação técnico-sanitária, as condições de armazenamento e entrega de medicamentos, o registro das atividades, a disponibilidade de medicamentos selecionados, os medicamentos vencidos e o local para armazenagem dos medicamentos impróprios ao uso. Esse roteiro foi estruturado com base nas Diretrizes para Estruturação de Farmácias no âmbito do SUS 6 que seguem as normas sanitárias.
O observador foi acompanhado por um profissional da unidade de saúde, que conhecia os locais, preenchendo os itens do roteiro conforme a observação e as informações do acompanhante. As entrevistas foram realizadas por pessoal treinado, utilizando-se um questionário específico para cada categoria de entrevistado, de modo presencial com os farmacêuticos responsáveis pela entrega de medicamentos e por telefone com os coordenadores da AF.
As condições sanitárias dos medicamentos foram investigadas com base nos dados da observação. Os dados sobre controle da propaganda de medicamentos, farmacovigilância, controle de estoque e gerenciamento de resíduos foram produzidos mediante as entrevistas com os farmacêuticos responsáveis pela entrega de medicamentos, e os dados sobre transporte de medicamentos originaram-se das entrevistas com os coordenadores da AF. Na análise dos dados utilizou-se o software SPSS, versão 22, módulo de análise para amostras complexas e o Teste do Qui-quadrado para análise de associação estatística, com nível de significância de p < 0,05.
A PNAUM foi aprovada pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa, Parecer nº 398.131/2013, prestando-se esclarecimentos dos objetivos da pesquisa aos entrevistados e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).
Foram observadas 455 farmácias/unidades dispensadoras de medicamentos da amostra de serviços de saúde na atenção primária das 26 capitais do Brasil, entrevistados 108 farmacêuticos responsáveis pela entrega de medicamentos e 24 coordenadores da AF.
A Tabela 1 apresenta as condições sanitárias dos medicamentos na atenção primária nas capitais e revela desigualdades entre as regiões. Em geral, havia condições sanitárias mais deficitárias nas regiões Norte e Nordeste e mais favoráveis nas demais.
A documentação técnico-sanitária mostrou-se deficiente, com diferenças estatísticas significativas entre as regiões. Encontrou-se o menor percentual de licença de localização e funcionamento no Centro-Oeste (36,4%) e o maior no Sul (68,8%). Essa licença é concedida pelo órgão municipal responsável pelo controle do uso e ordenamento do solo para atividades de uso não habitacional em seu território.
Quanto à licença sanitária, apenas 12,1% das farmácias/unidades de dispensação de medicamentos no Sudeste a possuíam; na região Sul, 68,8%. Esse documento é expedido pela Vigilância Sanitária municipal, se verificado o cumprimento de requisitos técnico-sanitários nas farmácias públicas ou privadas. A licença do Corpo de Bombeiros, exigência legal para o funcionamento de farmácias, foi encontrada em pouco mais de um terço (36,1%) dos serviços investigados: a menor taxa foi na região Norte (23,9%) e a maior, no Sudeste (65,6%).
O Certificado de Responsabilidade Técnica (CRT), emitido pelo Conselho Regional de Farmácia e obrigatório nas farmácias/unidades de dispensação de medicamentos, que devem ter um farmacêutico na direção ou como responsável pelos serviços técnico-farmacêuticos, foi encontrado em apenas 20,3% dos estabelecimentos: o menor percentual no Nordeste (9,8%) e o maior no Sul (55,9%). No conjunto das capitais, encontrou-se mais estabelecimentos com licença de localização e funcionamento (44,3%) do que com licença sanitária (21,3%) ou CRT (20,3%).
Nas capitais, o farmacêutico é responsável por 59,2% das farmácias/unidades dispensadoras, encontrando índice bem menor no Nordeste (35,9%) e bem mais alto no Sudeste (90,0%), com diferenças estatísticas significativas. Identificou-se outros profissionais de saúde de nível superior nessa função, em uma taxa menor no Sudeste (3,0%) e maior no Sul (17,2%) e Centro-Oeste (17,0%).
Na dimensão “condições da área de armazenamento”, na maioria das variáveis encontrou-se diferenças estatísticas significativas entre as regiões. Áreas de armazenamento de medicamentos das farmácias/unidades de dispensação de medicamentos da rede de atenção primária das capitais do Norte e Nordeste geralmente apresentaram as condições mais deficitárias. Dos estabelecimentos investigados, 55,3% possuíam aparelhos para climatização do ambiente; no Sudeste menos de 50,0% e no Sul menos de 25,0%. Das unidades que dispensam medicamentos psicotrópicos, cerca de 50,0% cumprem o requisito legal do armário com chave; no Nordeste, apenas 37,0%.
Em cerca de 20,0% das farmácias/unidades de dispensação encontrou-se medicamentos em contato direto com o chão ou paredes e em 16,0% constatou-se existência de medicamentos vencidos no estoque, não havendo diferenças estatísticas significativas entre as regiões.
Quanto à prevenção de sinistros, as farmácias das capitais do Sul alcançaram o maior índice (71,0%) de existência de equipamentos de prevenção contra incêndios e os menores índices concentraram-se no Norte (13,0%) e no Nordeste (15,2%). Foram raras as unidades de saúde com gerador de energia elétrica, portanto a margem da legislação 19 .
A Tabela 2 apresenta as condições ambientais e de fracionamento de medicamentos nas farmácias/unidades de dispensação de medicamentos, indicando condições mais favoráveis no Sudeste e Sul. Identificou-se controle de temperatura em apenas 47,2% delas, com índices menores no Norte (27,2%) e Nordeste (23,9%). O controle de umidade era ainda menor: em 10,2% no Centro-Oeste, 16,3% no Nordeste e 17,4% no Norte, região onde, adicionalmente, somente 25,0% dos estabelecimentos tinham área específica para armazenar medicamentos impróprios para o uso.
Encontrou-se no Centro-Oeste, no momento da observação para coleta de dados, temperaturas acima de 30°C em 6,8% dos serviços. No Nordeste, 48,9% dos estabelecimentos não possuíam termômetro ou não foi possível verificar a temperatura; na região Sul esse índice foi de 37,6%. Observou-se incidência de luz solar direta sobre os medicamentos em 4,8% das farmácias/unidades de dispensação de medicamentos das capitais do Brasil; o maior percentual foi no Sul (9,7%) e o menor no Nordeste (3,3%). Indícios da presença de roedores e insetos foram encontrados em 10,9%, elevando-se para 19,6% no Norte e 22,6% no Sul, além de mofo ou infiltrações nas instalações – importante fator de alteração da estabilidade de medicamentos – em mais de 17,0% dos estabelecimentos. O menor índice foi no Sudeste (10,1%) e o maior, no Centro-Oeste (26,1%).
As condições ambientais especificamente da área de dispensação mostraram-se igualmente deficitárias. Em pouco mais da metade (51,9%) dos estabelecimentos, o controle de temperatura era realizado e em menos de 30,0%, o controle da umidade. Nessa área, verificou-se incidência de luz solar direta sobre os medicamentos em mais de 5,0% da amostra, ultrapassando 10,0% na região Sul; encontrou-se indícios da presença de roedores e insetos nessas áreas em mais de 11,0% dos estabelecimentos, com maior percentual no Sul (25,8%) e menor no Sudeste (4,0%). A presença de mofo ou infiltrações na área de dispensação foi encontrada em mais de 18,0% dos estabelecimentos, com maior índice na região Nordeste (26,1%) e menor no Sudeste (9,1%).
Quanto ao fracionamento de medicamentos, dos 255 estabelecimentos que o realizavam, apenas 11,2% tinha área própria para esse fim, encontrando-se diferenças estatísticas significativas entre as regiões, sendo o maior percentual no Centro-Oeste (29,6%) e o menor (1,7%) no Norte. Havia bancada revestida de material liso e resistente em 18,7% dos serviços investigados, o maior percentual no Centro-Oeste (38,0%) e o menor no Sul (6,0%); e material e equipamento de embalagem e rotulagem em apenas 14,8% deles, com taxas de 37,8% no Sudeste e de 1,7% no Norte.
No tocante a problemas no transporte, segundo os coordenadores da AF entrevistados, em mais da metade das capitais existem problemas de insuficiência e inadequação no transporte dos medicamentos ( Figura ).
No Centro-Oeste, o transporte é totalmente insuficiente e inadequado, enquanto no Sudeste esse problema foi equacionado. No Sul, o grande problema é a insuficiência (66,7%); no Nordeste há problemas de insuficiência e/ou inadequação (77,7%); em 50,0% das capitais do Norte há inadequação.
Observam-se na Tabela 3 os achados sobre regulação da propaganda de medicamentos, iniciativas em farmacovigilância e gerenciamento de resíduos. A existência de regulação da visita de representantes de laboratórios e de distribuidoras de medicamentos e da entrada de materiais de propaganda e de amostras grátis na rede pública diferiu entre as regiões. Os maiores percentuais foram no Centro-Oeste (90,0%) e Sudeste (87,9%); o menor, no Norte (30,0%). Identificou-se distribuição de amostras grátis – que estimula a automedicação e pode caracterizar-se como promoção abusiva de medicamentos – em 43,3%, dos serviços na região Norte e em 30,0% no Centro-Oeste, contrastando com 1,7% no Sudeste.
No item farmacovigilância, os índices de existência de mecanismos para notificação de queixa técnica e eventos adversos por medicamentos foram mais elevados nas capitais do Sudeste (84,5%) e Sul (80,0%) e bem menores nas demais regiões. A notificação de queixas técnicas/eventos adversos pelos farmacêuticos responsáveis pela dispensação de medicamentos alcançou 42,5% no Brasil, por conta do Sudeste e Nordeste; não houve referências a notificações nas demais regiões, embora os serviços possuíssem mecanismos. Os destinatários das notificações enviadas variaram entre as regiões, com diferenças estatísticas significativas. No geral, predominou a coordenação municipal de AF (35,2%), em seguida a Vigilância Sanitária (22,7%). Em 12,6% das capitais referiu-se não ser dado nenhum encaminhamento para as notificações de eventos adversos.
Sobre os sistemas de controle de estoque, encontrou-se diferenças estatísticas significativas entre as regiões. Apesar do predomínio do sistema de controle informatizado (80,5%), no Norte e Nordeste boa parte dos serviços conta com sistemas manuais (43,2% e 50,0% respectivamente) e existem serviços que não dispõem de nenhum sistema de controle.
Quanto ao Plano de Gerenciamento de Resíduos de Serviços de Saúde (PGRSS), observaram-se diferenças estatísticas significantes entre as regiões, na maioria dos itens: as regiões Norte e Nordeste são as mais deficitárias, 33,0% têm o plano; o Sudeste alcança 77,6%.
Relativamente à existência de local específico e de acordo com as normas sanitárias para armazenar medicamentos impróprios ao uso até que sejam recolhidos, o menor índice foi observado na região Centro-Oeste (20,0%) e o maior, no Sudeste (70,7%). Sobre os serviços de recolhimento de resíduos de medicamentos, os resultados foram mais favoráveis, em todas as regiões ultrapassaram 80,0%. No conjunto das capitais, 91,2% dispõem desse serviço, mas não foi possível investigar o local de deposição.
A situação sanitária dos medicamentos nas capitais apresentou, no geral, melhores indicadores que os referentes à situação sanitária dos medicamentos nas farmácias/unidades de dispensação de medicamentos na atenção primária no Brasil como um todo, conforme Costa et al. 9 , cujo estudo revelou as inadequadas condições sanitárias a que os medicamentos estão sujeitos e o descumprimento de requisitos imprescindíveis à preservação de sua qualidade 9 .
A maioria das farmácias das unidades de atenção primária das capitais dos estados do Brasil descumpre a legislação sanitária e de uso do solo, o que pode significar que essas instalações não sofreram inspeções sanitárias pelos órgãos competentes. Também pode significar o pouco poder da Vigilância Sanitária municipal no sentido de fazer cumprir os requisitos necessários às atividades com medicamentos nos serviços públicos de saúde.
Os resultados corroboram outros trabalhos sobre AF na atenção primária no Brasil no que se refere às condições sanitárias das farmácias/unidades de dispensação de medicamentos. Um estudo do Banco Mundial 10 constatou que, das unidades públicas de saúde que possuem área de almoxarifado própria, 23,0% não apresentavam condições adequadas de estocagem, identificando: falta de espaço, poeira, infiltração e móveis inadequados. O gerenciamento da logística de medicamentos absorvia cerca de 20,0% dos recursos financeiros da saúde, o que pode ser causa de ineficiência e perda; 70,0% dos municípios brasileiros não tinham controle de estoque ou apresentavam controle deficiente 10 . O estudo de Barreto e Guimarães 11 avaliou a gestão da AF em municípios baianos e revelou que apesar de avanços, os espaços físicos destinados ao armazenamento e dispensação de medicamentos nas unidades de saúde continuavam sendo os mais reduzidos em área física e não contavam com requisitos essenciais à preservação da qualidade dos medicamentos.
Vieira 12 , ao investigar a qualificação dos serviços farmacêuticos de municípios brasileiros, constatou que em 81,0% dos casos o controle de estoque era ausente ou deficiente e em 47,0% dos casos as condições de armazenamento eram inadequadas. Órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria Geral da União (CGU) vêm apontando diversos problemas relacionados ao manejo e conservação dos medicamentos no SUS, nas esferas municipal e estadual. O Relatório de Auditoria Operacional: Farmácia Básica do TCU 2011, constatou condições inadequadas de armazenagem e inexistência de controles no fluxo dos estoques dos medicamentos em diversas Centrais de Abastecimento Farmacêutico (CAF) municipais. Os principais problemas foram a falta de controle de temperatura e umidade, a exposição a agentes contaminantes, poeira e poluição ambiental e entrada de insetos, pássaros e roedores, entre outros 13 .
Em 2017, a CGU publicou o Relatório de Avaliação da Execução de Programa de Governo nº 71: Apoio Financeiro para Aquisição e Distribuição de Medicamentos do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) e revelou inadequações no armazenamento de pelo menos um medicamento em 36,0% das CAF dos estados; divergências entre o estoque físico e sistemas de controle de estoque em 56,0% das CAF e descarte de medicamentos devido à expiração do prazo de validade ou das más condições de armazenagem em 44,0% 14 .
No presente estudo, a questão da temperatura nos serviços observados e do controle da umidade desperta preocupações: temperaturas superiores a 30°C, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, ocorrem em grande parte do ano e nelas, o controle da temperatura nem alcançou 28,0% dos estabelecimentos, em bem menor proporção, o controle de umidade. A exposição dos medicamentos a temperaturas superiores a essa pode ocasionar desestabilização da formulação e deterioração. No conjunto das capitais, mais de 28,0% dos serviços não possuíam termômetro ou não foi possível observar a temperatura, sendo quase 50,0% dos estabelecimentos no Nordeste. Esta situação se mostrou mais desfavorável na atenção primária no Brasil como um todo, pois segundo Costa et al. 9 , em torno de 46,0% das farmácias/unidades dispensadoras não tinham termômetro ou não foi possível observar a temperatura, sendo mais de 71,0% no Nordeste. O controle de umidade não alcançou 12,0% 9 .
Sobre o fracionamento de medicamentos, que ocorre em cerca da metade das farmácias/unidades de dispensação de medicamentos das capitais, as condições mostraram-se bastante deficitárias, desde a área específica, existente apenas em um pequeno percentual dos estabelecimentos em todas as regiões, assim como bancada revestida de material liso e resistente; material e equipamento para rotulagem e embalagem; a exceção resumiu-se aos instrumentos cortantes.
A Anvisa regulamentou esta atividade com resoluções que estabelecem as necessárias condições técnicas e operacionais e os requisitos para a manipulação de medicamentos. O medicamento somente pode ser fracionado a partir de embalagem original fracionável e deve ser realizado por farmacêutico, em estabelecimento regularizado na Vigilância Sanitária, com recursos humanos, infraestrutura física, equipamentos e procedimentos operacionais que atendam aos requisitos. Observe-se que apenas cerca de 59,0% das farmácias/unidades dispensadoras das capitais do Brasil têm farmacêutico como responsável. Se a oferta de medicamentos fracionados promove racionalidade e economia, quando realizada de modo inadequado e com medicamentos em embalagens não fracionáveis expõe o produto a condições de armazenamento em embalagem na qual sua estabilidade não foi testada 15 ; o fracionamento inadequado pode alterar a estabilidade dos medicamentos e, em consequência, representar riscos à saúde dos usuários 16 .
Normas para regular a visita de representantes de laboratórios e distribuidoras de medicamentos e distribuição de propaganda têm elevada frequência em algumas regiões, mas é bem limitada no Nordeste e Norte, uma das regiões onde a distribuição de amostras grátis de medicamentos teve alta frequência, juntamente com o Centro-Oeste. Para fomentar o consumo de medicamentos, estratégias de marketing são vastamente implementadas, incluindo a distribuição de amostras grátis. Quando toma a saúde como objeto de consumo, a propaganda de medicamentos estimula a automedicação e muitas vezes o uso irracional de medicamentos 17 , 18 . A automedicação aumenta os riscos diretos e indiretos do uso de medicamentos, inibe condutas de prevenção de doenças, desvia recursos que poderiam ser direcionados para a alimentação e moradia e contrapõe-se ao conceito de uso racional de medicamentos 19 . Pesquisa de monitoramento de propaganda de medicamentos, realizada pela Anvisa, demonstra que mais de 90% das peças publicitárias apresentam informações irregulares e contribuem para a desinformação de profissionais e consumidores 20 .
Sobre farmacovigilância, os achados indicam a baixa organização dessas ações na atenção primária. Constatou-se mecanismos para a notificação de queixa técnica/eventos adversos por medicamentos distribuídos pelas regiões, mas também grande diversidade na destinação das notificações e percentuais relevantes de referência, pelos farmacêuticos, de não notificarem eventos adversos observados.
O incidente com a talidomida, na década de 60, um dos casos mais marcantes na história da saúde mundial, impulsionou a farmacovigilância 21 . No Brasil, a criação da Anvisa, em 1999, desencadeou a construção do Sistema Nacional de Farmacovigilância, contudo, passados 20 anos este sistema ainda não se consolidou e recentemente passou por uma reformulação 22 . Considerando a importância dessa prática nos sistemas de saúde, em 2011 a Organização Pan-Americana de Saúde elaborou o Documento Técnico nº 5 que trata das Boas Práticas de Farmacovigilância para as Américas 23 .
Outro indicador deste estudo revelou deficiências e até ausência de controle de estoque, já que altos percentuais de sistema informatizado existiam apenas em duas regiões, sendo ainda frequente o controle manual de estoque e até mesmo a inexistência de qualquer controle, que evidencia grande déficit de investimentos em equipamentos e infraestrutura, o que contribui para o aumento dos custos dos medicamentos, pois a falta de controle favorece as perdas.
O gerenciamento de resíduos de saúde também desperta preocupações, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, embora no conjunto das capitais apenas um pouco mais de 60,0% contavam com PGRSS, item obrigatório conforme norma 24 .
Resíduos de medicamentos, cosméticos e produtos para a saúde têm sido detectados em águas superficiais, subterrâneas, de consumo humano e em solos, com deposição de lodo de esgoto. Estudos sobre os efeitos toxicológicos da exposição ambiental de fármacos ainda não são conclusivos, mas sabe-se que esses compostos podem interferir no metabolismo de organismos aquáticos. Um estudo nos Estados Unidos constatou que 24 áreas metropolitanas estavam abastecidas com água potável contaminada por produtos farmacêuticos, tais como antibióticos, anticonvulsivantes, estabilizadores de humor e hormônios 25 . Resíduos hormonais têm produzido sérios efeitos ambientais como a efeminização de peixes, e os antibióticos descartados no meio ambiente despertam grande preocupação pelo potencial de promover resistência bacteriana 26 .
Outra questão relevante é o transporte dos medicamentos, etapa importante do ciclo que influencia a qualidade. As normas sanitárias estabelecem que o transporte deve levar em consideração as características dos medicamentos, utilizando-se equipamentos que possibilitem acondicionamento e conservação capazes de assegurar os requisitos de pureza, segurança e eficácia do produto e condições de desinfecção e higiene necessárias à preservação da saúde. Conforme documento do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo, a atividade de transporte de produtos é elemento-chave na cadeia de abastecimento, por sua importância econômica, política e para a integração social 27 .
Em mais da metade das capitais do Brasil foram referidos problemas de insuficiência e inadequação no transporte de medicamentos. A logística de transporte constitui grande problema por apresentar um sistema complexo que demanda tempo, treinamento de pessoal, roteirização, dimensionamento de frota de veículos e localização 28 . Um conjunto de fatores pode interferir diretamente na perda de eficácia dos produtos.
Dimensões investigadas neste estudo relacionam-se com a institucionalização da AF, que, por seu lado tem relação com o acesso a medicamentos. Souza et al. 29 investigaram a estrutura, o financiamento e o investimento em qualificação da AF nas regiões, cujos resultados revelaram que apenas 54,8% dos responsáveis pela AF afirmaram ter havido gastos com a estruturação e somente 11,9%, com a qualificação de pessoal.
Barros et al. 30 identificaram forte nexo entre aspectos da institucionalização da AF e o acesso a medicamentos. O acesso total foi maior quando existia sistema informatizado para a gestão da AF, protocolos para armazenamento, distribuição e entrega de medicamentos e algum tipo de qualificação ou capacitação dos profissionais da AF 30 .
Apresentam-se algumas limitações deste estudo tais como o fato de que foram investigadas somente as farmácias/unidades de dispensação de medicamentos do nível primário da assistência à saúde, nas quais são ofertados os medicamentos do Componente Básico e parte do Componente Estratégico, como os esquemas de tratamento de tuberculose, hanseníase e toxoplasmose. As condições sanitárias dos medicamentos da AF especializada e de outros medicamentos do Componente Estratégico, tais como aqueles para HIV/Aids e hepatite C, geralmente ofertados em farmácias de serviços de referência, não foram investigadas. Também não foi possível estudar a situação sanitária dos medicamentos nas centrais farmacêuticas estaduais, importante local onde insumos dos três componentes da AF são recebidos, armazenados e distribuídos.
Outras limitações relacionam-se com a natureza exploratória da pesquisa, tais como: não foram investigados os determinantes da situação sanitária encontrada e suas deficiências, tampouco como foram equacionados os problemas de transporte de medicamentos no Sudeste e maior detalhamento das iniciativas em relação à farmacovigilância. O estudo exploratório busca uma aproximação à realidade do objeto de investigação que ainda não conta com muita informação. Segundo Triviños 31 , possibilita ao pesquisador aumentar sua experiência sobre um determinado problema ou fenômeno, contribuindo para que outros problemas de pesquisa sobre o tema sejam levantados e, assim, a realização de pesquisa futura mais precisa. A PNAUM teve o propósito de constituir uma linha de base para pesquisas futuras.
Os achados deste estudo despertam preocupação: pode-se considerar que indiretamente avaliam a Vigilância Sanitária e indicam fragilidades na atuação deste componente do SUS nos serviços de atenção primária no Brasil. Revelou deficiências em todas as dimensões estudadas: déficit de profissionais farmacêuticos; condições ambientais precárias das farmácias; incipiente adoção de procedimentos técnicos para a conservação, manuseio e distribuição dos medicamentos; debilidades nas ações de farmacovigilância e de gerenciamento de resíduos, entre outros.
Os resultados corroboram outros trabalhos que apontam lacunas entre a AF da rede de atenção primária, legalmente estabelecida, e a AF real nos serviços, onde foram observados problemas que vão desde a má conservação dos medicamentos no processo de armazenamento até o desabastecimento de medicamentos essenciais, e a ausência de orientação para a utilização correta pelos usuários.
Os resultados deste estudo indicam que as farmácias/unidades de dispensação de medicamentos enfrentam problemas de gestão, infraestrutura, organização e qualidade dos serviços farmacêuticos, os quais podem comprometer a qualidade dos insumos (medicamentos e produtos de saúde) oferecidos pelo SUS, além de incrementar custos para o sistema público. As variáveis estudadas podem subsidiar o aprimoramento das políticas de saúde relacionadas à AF no SUS. Pelos resultados, observam-se avanços, embora ainda aquém do necessário, especialmente nas capitais das regiões Norte e Nordeste, que se mostraram mais deficitárias. Nesse sentido, o aprimoramento da gestão deve ser somado aos investimentos para qualificação dos recursos humanos e ao incremento na transferência de recursos, como o Programa QUALIFAR-SUS, voltado para a melhoria do armazenamento de medicamentos termolábeis e para a informatização da AF da atenção primária, bem como à expansão de programas como “Farmácia de Todos”, em Minas Gerais, e “Farmácias da Bahia”, que se fazem urgentes para que as políticas de medicamentos e de AF sejam efetivas.
A Anvisa vem desempenhando seu papel, enquanto coordenadora do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), ao elaborar e aprimorar a regulamentação dos medicamentos. Todavia, nas farmácias públicas na atenção primária, as normas sanitárias vigentes, concebidas para prevenir os riscos de alteração das formulações farmacêuticas e com isso proteger a saúde da população, vêm sendo descumpridas, em maior ou menor grau, a depender da região analisada. Além de as ações de fiscalização sanitária – incumbência das instâncias subnacionais do SNVS –, que não devem distinguir serviços farmacêuticos públicos e privados, ainda se mostrarem pouco efetivas. Conhecer em que situação sanitária se encontram os medicamentos dos demais níveis da assistência é tema relevante, tanto nas farmácias dos serviços de referência quanto nas centrais farmacêuticas estaduais, razão pela qual é recomendável a realização de outras pesquisas com esse fim.
* E-mail: marcelo.tavares@ufba.br