RESUMO
Introdução: O processamento de alimentos orgânicos por pequenos produtores contribui para um sistema alimentar economicamente, socialmente e ambientalmente sustentável. É importante conhecer o perfil e as potenciais dificuldades dos processadores de alimentos orgânicos, organizados sob a modalidade do Sistema Participativo de Garantia da qualidade orgânica, devido ao seu crescimento e relevância social, para direcionamento de ações e políticas públicas com consequente fortalecimento da agricultura de bases agroecológica.
Objetivo: Descrever o perfil dos processadores de alimentos orgânicos do estado do Rio de Janeiro e identificar os principais desafios nas redes de produção e comercialização.
Método: Estudo exploratório e descritivo com delineamento transversal realizado por pesquisa documental aos planos de manejos, manual de boas práticas, atas do Sistema Participativo de Garantia, certificados emitidos pela Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro, assim como outros documentos de atualização de Organismos Participativos de Avaliação da Conformidade Orgânica em relação aos produtores credenciados.
Resultados: Observou-se que 60% dos processadores orgânicos no estado do Rio de Janeiro são vinculados ao Sistema Participativo de Garantia da qualidade orgânica. A unidade de processamento mais utilizada é a anexa ao domicílio. A maioria são agricultores ou microempreendedores familiares que recebem ajuda da família no processo produtivo e a atividade mais desenvolvida é a fabricação de conservas, geleias, molhos e doces. Menos de 70% possuíam alvará de funcionamento e licença sanitária, 97% tinham plano de manejo orgânico; 79% possuíam manual de boas práticas e 78%, plano de rastreabilidade. Das principais dificuldades, destacam-se: aquisição de matéria-prima, adequação às normas sanitárias e logística de distribuição.
Conclusões: O estudo desvelou a potencialidade do processamento de produtos orgânicos para o desenvolvimento socioeconômico regional e a necessidade de mais incentivos para viabilizar a inclusão produtiva de pequenos empreendimentos.
Palavras chave: Alimentos Orgânicos, Sistema Participativo de Garantia, Processamento de Alimentos, Legislação Sanitária, Inclusão Produtiva.
ABSTRACT
Introduction: Smallholder organic food processing contributes to an economically, socially and environmentally sustainable food system. It is important to know the profile and potential difficulties of organic food processors, organized under the modality of the Participatory Guarantee System of organic quality, due to their growth and social relevance for targeting actions and public policies with the consequent strengthening of agroecologically-based agriculture.
Objective: To describe the profile of organic food processors in the state of Rio de Janeiro and identify the main challenges in the production and commercialization schemes.
Method: This is an exploratory and descriptive study with transversal design developed by documental research of different documents: handling plans, good practices manual, minutes of the Participatory Guarantee System of organic quality, certificates issued by the Association of Biological Farmers of the State of Rio de Janeiro, and other updated documents from the Participatory Organic Compliance Assessment Bodies related to the registered producers.
Results: Sixty per cent of organic processors in the state of Rio de Janeiro were linked to the Participatory Guarantee System of organic quality . The processing unit mostly used is one adjoining their homes. Most of them are farmers or family micro-entrepreneurs that have assistance of family members in the production process and the main activity carried out is the production of canned foods, jams, sauces, and homemade desserts. Less than 70% of the producers had an operation permit and sanitary license, 97% had an organic handling plan; 79% had a good practices manual and 78% had a traceability plan. Among the main difficulties, there were: raw material acquisition, sanitary rules adequacy and distribution logistics.
Conclusions: The study demonstrated the potentiality of organic products processing for the local social and economic development, and the need of greater inducements to make a productive inclusion of small enterprises feasible.
Keywords: Organic Food, Participatory Guarantee System organic quality, Food Processing Quality, Sanitary Legislation, Productive Inclusion.
ARTIGO
Perfil e desafios da produção e da comercialização de alimentos orgânicos processados no estado do Rio de Janeiro
Profile and challenges of the production and commercialization of processed organic foods in the state of Rio de Janeiro
Received: 18 July 2021
Accepted: 06 April 2022
A alimentação adequada e saudável deve ser proveniente de um sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável, por isso, é importante considerar o impacto das formas de produção e da distribuição dos alimentos e a integridade no ambiente. Assim, deve-se preferir obter alimentos de produtores e comerciantes que vendem seus alimentos in natura ou minimamente processados e, mais ainda, daqueles que comercializam alimentos orgânicos e de base agroecológica 1 .
Em geral, a produção, o processamento e a distribuição de alimentos orgânicos e de bases agroecológicas permanecem no entorno de núcleos urbanos pequenos e médios, muitas vezes conectados a circuitos regionais, com relações de proximidade entre produção e consumo. Os circuitos curtos de comercialização (CCC) são caracterizados, principalmente, pela interação entre produtor e consumidor, o que permite que o consumidor tenha informações sobre o local de produção, quem produziu e o sistema de produção em detrimento ao modelo padronizado de abastecimento industrial de alimentos 2 . Os CCC – feiras do produtor, entrega de cestas, pequenas lojas de produtores, venda no estabelecimento rural (agroturismo, venda para os mercados institucionais), alimentação escolar, outras compras governamentais, entre outras formas de venda direta – envolvem uma grande diversidade de pessoas e produtos alimentares que expressam identidades culturais, guardam relação com a base de recursos naturais e a biodiversidade local e garantem segurança alimentar e nutricional (SAN) 3 . A proximidade, a escala de produção e o consumo fazem com que os alimentos cheguem mais frescos aos consumidores e com mínimo teor de aditivos químicos, estando, portanto, em consonância com o Guia Alimentar para a População Brasileira 3 .
A demanda nacional e internacional por produtos orgânicos tende a ascender continuamente ao longo dos próximos anos, uma vez que esses produtos têm sido progressivamente associados a: menores impactos ambientais, menores riscos à saúde, valores éticos no processo produtivo e no abastecimento, valorização dos produtores e dos trabalhadores rurais etc. 4 , 5 . De 2000 a 2017, a área agricultável mundial destinada a cultivos orgânicos aumentou 365%, quase 10% ao ano. Em termos absolutos, a agricultura orgânica saltou de 15 milhões de hectares de terras para 69,8 milhões de hectares nesse período 5 . Para o acompanhamento da produção, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) disponibiliza no site do governo federal o Cadastro Nacional da Produção Orgânica (CNPO), sendo esse a principal fonte de informações da produção orgânica no Brasil. Segundo o MAPA, em 2012, havia no Brasil quase 5,9 mil produtores registrados e, em dezembro de 2019, cerca de 21 mil 6 , 7 . Houve também o aumento do número de unidades de produção orgânica, saindo de 5,4 mil unidades registradas em 2010 para mais de 22 mil em 2018, variação de mais de 300% 6 .
Considera-se sistema orgânico de produção todo aquele em que se adotam técnicas específicas, mediante a otimização do uso dos recursos naturais e socioeconômicos disponíveis e o respeito à integridade cultural das comunidades rurais, tendo por objetivos: a sustentabilidade econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais, a proteção do meio ambiente, a minimização da dependência de energia não renovável, empregando, sempre que possível, métodos culturais, biológicos e mecânicos, em contraposição ao uso de materiais sintéticos, e a eliminação do uso de organismos geneticamente modificados e radiações ionizantes, em qualquer fase do processo de produção, processamento, armazenamento, distribuição e comercialização. O produto da agricultura orgânica ou produto orgânico, seja ele in natura ou processado é aquele obtido em sistema orgânico de produção agropecuário ou oriundo de atividade extrativista sustentável e não prejudicial ao ecossistema local 8 . Para fins de comercialização, o alimento só poderá ser denominado como orgânico se for submetido à avaliação da conformidade orgânica pelos organismos credenciados pelo MAPA. Já às Organizações de Controle Social (OCS), que são destinadas aos agricultores familiares para venda direta, a certificação é dispensada. No entanto, estes agricultores não podem utilizar o selo do Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade Orgânica (SisOrg) 9 , 10 , 11 .
Os produtores orgânicos que podem usar o selo do SisOrg estão vinculados aos Sistemas Participativos de Garantia (SPG) da qualidade orgânica e Organismos Participativos de Avaliação da Conformidade Orgânica (OPAC) ou são clientes de certificadoras, organismos de avaliação da conformidade credenciados no MAPA para operar o SisOrg.
A regulamentação brasileira da produção orgânica reconhece três mecanismos de certificação: por auditoria, pelos SPG da qualidade orgânica e por OCS. O SPG da qualidade orgânica, além de um sistema de garantia, é também um instrumento que contribui para a construção de uma agricultura ecológica, democrática, inclusiva e acessível a todos os produtores e consumidores 9 , 10 . O SPG da qualidade orgânica permitiu que, no Brasil, os pequenos agricultores ingressassem no crescente mercado de produtos orgânicos 12 .
O SPG da qualidade orgânica é responsável pela avaliação de aproximadamente 30% dos produtores orgânicos brasileiros, sendo composto pelos membros fornecedores (produtores, processadores, comercializadores, transportadores, distribuidores e armazenadores) e pelos membros colaboradores (consumidores, técnicos e organizações públicas ou privadas que atuam na rede de produção orgânica) e por um OPAC credenciado pelo MAPA 13 , 7 . A verificação da conformidade nas unidades produtoras é realizada por uma comissão formada pelos membros e decidida de forma participativa e coletiva pelo cumprimento e atestado de Conformidade Orgânica. Sendo assim, todos os membros do SPG da qualidade orgânica são responsáveis pela garantia da qualidade orgânica e o certificado é emitido pelo OPAC, responsável legal pelo processo perante os órgãos oficiais e perante a sociedade 9 , 10 , 13 .
No estado do Rio de Janeiro, desde o ano de 2009, a Associação dos Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (ABIO RJ) é credenciada junto ao MAPA como OPAC. Em maio de 2020, a ABIO RJ possuía 665 produtores por ela certificados, sendo aproximadamente: 91% em produção primária vegetal, 1,8% em produção primária animal, 3,5% em processamento vegetal, 1,3% em cogumelos comestíveis, 1,8% em processamento de origem animal e 0,5% em produção de sementes e mudas 14 .
Desta forma, faz-se necessário conhecer o perfil dos produtores orgânicos, assim como as dificuldades encontradas desde a produção até a comercialização, destacando os desafios e oportunidades, uma vez que são de grande relevância para direcionamento de ações e políticas públicas com consequente fortalecimento da agricultura de bases agroecológica. Diante do exposto, o presente trabalho teve como objetivo descrever o perfil dos produtores e da produção de alimentos orgânicos processados no estado do Rio de Janeiro e identificar os principais desafios na cadeia produtiva.
Trata-se de um estudo exploratório e descritivo com delineamento transversal aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, atendendo à Resolução do Conselho Nacional de Saúde n° 466, 12 de dezembro de 2012, sob o nº CAAE: 72021717.7.0000.5257 (BRASIL, 2012), contemplado no projeto intitulado “Desenvolvimento de instrumento de avaliação da qualidade de alimentos orgânicos processados: elaboração e validação de aparência, conteúdo e confiabilidade interavaliadores” 15 .
Para a caracterização da produção de alimentos orgânicos processados, foi realizada pesquisa documental e foi utilizado o banco de dados da ABIO RJ, OPAC credenciada ao MAPA. Foram analisados os seguintes documentos: planos de manejos, manual de boas práticas (MBP), atas de reuniões dos grupos de SPG da qualidade orgânica, certificados emitidos pela ABIO RJ, assim como outros documentos de atualização do OPAC em relação aos produtores credenciados. As informações foram coletadas no cadastro de cada unidade processadora de alimentos orgânicos entre abril e maio de 2019. Ressalta-se que a ABIO RJ é a única OPAC operando no estado do Rio de Janeiro, sendo responsável, em dezembro de 2019, por mais de 80% dos produtores orgânicos do estado do Rio de Janeiro registrados no CNPO/MAPA.
Nos documentos e bancos de dados foram pesquisadas informações relacionadas aos produtores certificados no escopo de processamento de origem vegetal (POV), processamento de origem animal (POA) e cogumelos comestíveis.
As informações coletadas foram: município da unidade produtiva, mecanismos de controle, escopos produtivos, alimentos/produtos processados, tipo de unidade de processamento; origem da matéria-prima utilizada no processamento; formas de comercialização e mercado alcançado; força de trabalho; logística de distribuição; existência de produção paralela; planos de rastreabilidade dos produtos, Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), alvará de funcionamento, licença sanitária, plano de manejo orgânico (PMO), MBP e selo do serviço de inspeção agropecuária federal, estadual ou municipal para produtos de origem animal.
Para complementar e/ou asseverar as informações foram utilizados os dados do CNPO de dezembro de 2019, disponíveis no site do MAPA 7 .
Os dados coletados foram categorizados com auxílio do software Microsoft Excel ® e, para isso, foram utilizadas as medidas de frequência absoluta e relativa para a estatística descritiva.
Para a identificação e avaliação dos principais desafios enfrentados por processadores de alimentos orgânicos, foi utilizado o método de análise de conteúdo proposto por Bardin 16 e foram adotados três procedimentos sistemáticos: pré-análise; exploração do material e inferências; e interpretações 16 . O propósito da análise de conteúdo é oferecer ao leitor o máximo de informações (aspecto quantitativo) com o máximo de pertinência (aspecto qualitativo).
Para a fase de pré-análise foi realizada a chamada “leitura flutuante”, que permitiu conhecer os documentos, fazer anotações e obter algumas impressões. Após essa leitura, os documentos foram relidos atentamente, procurando-se frases, trechos ou conjunto de ideias que fizessem alusão com os objetivos específicos desta pesquisa.
Na etapa de exploração do material foi realizada a categorização semântica das informações, para isso, foram identificadas as expressões e palavras-chave reincidentes e representativas nos documentos, as quais foram organizadas de acordo com uma ideia central apresentada pelas mensagens.
A última etapa compreendeu o tratamento dos resultados obtidos e as interpretações. Os dados categorizados foram submetidos a uma análise estatística-descritiva utilizando o software Microsoft Excel ®, a fim de facilitar a visualização e a interpretação dos resultados.
De acordo com o CNPO, em dezembro de 2019, no estado do Rio de Janeiro, havia 102 processadores de alimentos orgânicos, sendo 42% vinculados a certificadoras e 60%, ao SPG da qualidade orgânica.
O perfil dos processadores de alimentos orgânicos pertencentes ao SPG da qualidade orgânica da ABIO RJ pode ser observado na Tabela 1 .
O tipo de unidade mais frequentemente utilizada para o processamento dos alimentos orgânicos é a anexa ao domicílio, ou seja, apesar de serem instalações modestas, elas são separadas da cozinha doméstica utilizada pelos membros da família. Além disso, a maioria é formada por agricultores ou microempreendedores familiares que recebem ajuda de membros da família no processo produtivo. Ambas são características de uma produção de pequeno porte com o uso mínimo de maquinários e mão de obra. Por isso, é importante que a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nº 49, de 31 de outubro de 2013, seja regulamentada no estado do Rio de Janeiro ou nos municípios 17 . Em relação aos documentos exigidos para o funcionamento da unidade produtiva, verificou-se que 68% possuíam alvará de funcionamento e 58% tinham a licença sanitária. Dentre os processadores de produtos de origem animal (n = 12; 31%), estavam disponíveis na documentação consultada oito (67%) registros de inspeção federal, estadual e/ou municipal ( Tabela 1 ).
O Projeto Inclusão Produtiva com Segurança Sanitária (PIPSS) da Anvisa tem como objetivo contribuir para maior integração das ações do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) junto aos empreendimentos exercidos pela população de baixa renda, contribuindo para criar oportunidades de desenvolvimento local garantindo a segurança sanitária 18 . Esse projeto foi substituído, em 2017, pelo Programa para Inclusão Produtiva e Segurança Sanitária (PRAISSAN), através da Portaria nº 523, de 29 de março de 2017 19 .
Neste contexto, um dos principais desdobramentos da PIPSS foi a RDC/Anvisa nº 49/2013, que trata da regularização para o exercício de atividades de interesse sanitário dos microempreendedores individuais (MEI), empreendimentos familiares rurais (EFR) e empreendimento da economia solidária (EECS), incluindo a produção de alimentos. Entre suas diretrizes estão: razoabilidade quanto às exigências aplicadas, proteção à produção artesanal a fim de preservar costumes, hábitos e conhecimentos; fomento de políticas públicas e programas de capacitação como forma de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e promover a segurança sanitária além de favorecer e facilitar a solicitação e processo de obtenção da licença sanitária, que ainda hoje é um importante gargalo para a regularização de unidades processadoras de alimentos artesanais e/ou de pequeno porte 17 .
No entanto, apesar do avanço na legislação sanitária visando à simplificação e desburocratização das normas para favorecer a regularização das atividades produtivas de pequenos empreendimentos, as instâncias de regulação e fiscalização descumprem ou desconhecem o conteúdo da RDC/Anvisa nº 49/2013. A legislação sanitária não leva em conta na análise de risco as realidades locais/regionais e não diferenciam escalas de produção permanecendo baseada em um modelo de produção agroindustrial em larga escala, padronizado e com uso intensivo de insumos químicos tornando-se uma barreira para regularização de pequenos empreendimentos 20 , 21 .
Sem a formalização do empreendimento não é possível obter e/ou renovar a certificação orgânica, nem tão pouco participar de licitações, pregões e concorrências públicas, em especial do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da agricultura familiar e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que buscam incluir nas compras governamentais alimentos produzidos pela agricultura familiar e de circuitos locais ou regionais, além de resolver as dificuldades de acesso a crédito junto à instituições financeiras e programas do Estado 18 , 22 .
Em relação a alguns documentos obrigatórios, quase todos os produtores tinham PMO (97%). Aqueles que não tinham, possuíam o certificado de produtor orgânico inválido e aproximadamente 80% possuíam MBP e plano de rastreabilidade e 87% possuíam o certificado de produtor orgânico válido ( Tabela 1 ).
O PMO é um instrumento gerencial que possibilita o controle e a melhoria das atividades que envolvem os diferentes tipos de produção e o extrativismo sustentável, ele deve contemplar os procedimentos para pós-produção, envase, armazenamento, processamento, transporte e comercialização; as inter-relações ambientais, econômicas e sociais; entre outros. Dentro do PMO há o plano de rastreabilidade que é fundamental para garantir a qualidade orgânica. Além desse documento, é necessário ter um MBP com a descrição de todos os métodos adotados para atender aos requisitos higiênico-sanitários estabelecidos na legislação sanitária vigente 23 , 24 .
O Decreto nº 6.323, de 27 de dezembro de 2007, permite que na mesma unidade de produção haja a coleta, o cultivo, a criação ou o processamento de produtos orgânicos e não orgânicos (denominado de produção paralela). Mas é necessário que aconteçam em espaços isolados ou em momentos distintos, sendo necessária a descrição de todo processo produtivo no PMO 9 . Neste estudo apenas 13% dos processadores realizavam produção paralela ( Tabela 1 ).
Destaca-se que o MBP, o plano de rastreabilidade e o PMO são instrumentos que auxiliam na identificação e correção das não conformidades e ajudam na implementação das boas práticas de fabricação, além de assegurarem a qualidade orgânica e a rastreabilidade dos produtos. A elaboração desses documentos não é simples e, em alguns casos, há necessidade de assistência técnica, principalmente quando há baixo nível de escolaridade ou analfabetos. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, no estado do RJ, cerca de 10% dos produtores disseram nunca ter frequentado escola, 29% frequentaram somente o ensino primário e 25%, somente o ensino fundamental 25 .
A ABIO RJ mantém uma equipe técnica remunerada para apoiar a organização, a implantação e o funcionamento dos grupos, para acompanhar as visitas de verificação às unidades de produção e prestar assistência técnica para a adequação das não conformidades e o aperfeiçoamento dos sistemas de produção 13 . Porém, com o maior acesso de produtores ao sistema, há maior necessidade de assistência técnica especializada, que nem sempre está disponível nos órgãos de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), ressaltando-se que a assistência técnica do SPG da qualidade orgânica não exclui a necessidade e a importância de outras formas de prestação desse serviço e nem exime o Estado de suas funções e atribuições 26 .
É importante ressaltar que para acessar programas governamentais é necessário ter a Declaração de Aptidão ao Pronaf. Esse instrumento permite identificar os agricultores familiares e/ou suas formas associativas organizadas em pessoas jurídicas que beneficiam, processam ou comercializam produtos agropecuários. A Declaração de Aptidão pode ser um dos gargalos para acesso às políticas públicas por eles não se enquadrarem em todos os critérios estabelecidos pelo programa 27 . A ATER pública também pode auxiliar na legalização do empreendimento e adaptação de tecnologias e apresentar alternativas adequadas à realidade de cada produtor para sanar possíveis inconformidades 28 .
A maior parte dos processadores de alimentos orgânicos está localizada na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro, conforme pode ser observado na Figura 1 .
As formas de comercialização dos produtos orgânicos estão apresentadas na Figura 2 , sendo as feiras orgânicas permanentes os principais meios de comercialização utilizados pelos processadores.
Segundo os dados do CNPO, o POV (75%) se destaca em relação ao POA e as atividades mais desenvolvidas são: fabricação de conservas, e/ou geleias, e/ou molhos e/ou doces à base de frutas, legumes ou verduras, produção de grãos e farinhas, panificação e confeitaria ( Figura 3 ).
A ABIO RJ coordena 13 feiras orgânicas, sendo 12 pertencentes ao Circuito Carioca de Feiras Orgânicas (CCFO), no município do Rio de Janeiro, distribuídas da seguinte forma: 54% na Zona Sul, 23% na Zona Oeste e 15% Zona Norte, além de uma feira no município de Niterói 30 . Nessas feiras, a maioria dos alimentos comercializados são in natura , mas há também produtos processados manualmente ou em pequenas agroindústrias, como bolos, biscoitos, produtos sem glúten, doces e compotas, estimando-se uma média de 30% a 40% das barracas vendendo produtos processados em cada feira 31 .
Diante dos resultados obtidos a partir da análise de conteúdo 16 , os principais desafios para a produção e comercialização dos produtos orgânicos foram identificados e categorizados em: dificuldades de processamento, com cinco categorias, e dificuldades de comercialização, com oito categorias, conforme pode ser observado na Tabela 2 .
Com relação à dificuldade de processamento, a mais evidente estava relacionada à aquisição da matéria-prima, pois o sistema orgânico de produção respeita a capacidade de produção natural dos alimentos de acordo com a sazonalidade e características climáticas das regiões. Além disso, há limitada oferta de matérias-primas orgânicas em determinados períodos do ano, o que dificulta a produção de produtos mais elaborados 32 . Além disso, os ingredientes culinários orgânicos têm preços mais elevados que os similares convencionais, o que pode tornar os alimentos orgânicos processados menos competitivos. A seguir estão descritas as dificuldades apontadas pelos processadores nos documentos avaliados: “[...] disponibilidade, acesso à matéria-prima in natura ”; “[...] disponibilidade de matéria prima in natura e não conseguir fazer compra em volume por produzir pouco, nesse caso o custo da matéria-prima para mim fica mais caro porque compro pequenas quantidades’’; “[...] às vezes, falta de fornecedores’’ e “[...] compra de insumos no RJ (capital)”.
De acordo com a Instrução Normativa Conjunta do MAPA e do Ministério da Saúde nº 18, de 28 de maio de 2009, que trata dos processamentos de alimentos orgânicos, para ter informação no rótulo e uso do selo do SisOrg, este só pode apresentar no máximo 5% de matérias-primas não orgânicas em sua composição 33 . Neste estudo, os processadores produziam sua matéria-prima e/ou compravam de terceiros ( Tabela 1 ). O processamento é uma forma de aumentar a vida de prateleira e renda, agregar valor e evitar desperdício para aqueles que possuem produção primária vegetal e/ou animal 34 .
A segunda maior dificuldade de processamento estava relacionada à adequação às normas sanitárias, conforme pode ser observado nos comentários dos processadores: “Conseguir alvará, pois a prefeitura não reconhece o produtor rural que processa sua produção pela RDC nº 49/2013”; “Adequa-se agroindústria às exigências sanitárias. Não por serem exageradas as exigências, mas pelo investimento necessário e dificuldade financeira para aquisição de equipamentos maiores e mais eficientes (fornos, embaladoras a vácuo) também é limitante”.
A regulação sanitária de produtos alimentícios no Brasil é complexa e se encontra dispersa entre a política agrícola e a política de saúde. A inspeção sanitária dos produtos de origem animal durante o processo produtivo é de responsabilidade no âmbito federal do MAPA através do Serviço de Inspeção Federal (SIF) e no âmbito estadual, do Distrito Federal e municipal das Secretarias de Agricultura dos Estados e Municípios por meio do Serviço de Inspeção Estadual (SIE) e Municipal (SIM), respectivamente. Na política de saúde, a Anvisa e a Secretaria de Vigilância Sanitária de estados, Distrito Federal e municípios são os órgãos responsáveis pela fiscalização dos estabelecimentos de produtos de origem vegetal (exceto inspeção bebidas em geral e classificação de produtos vegetais que são de responsabilidade do MAPA) 3 , 35 . Sendo assim, para regularizar o empreendimento é necessário se reportar a esses órgãos.
Desde 2006, um novo sistema de inspeção para produtos de origem animal vem sendo implantado no Brasil, o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (Suasa) com o objetivo de reorganização do sistema de inspeção de forma descentralizada e integrada 36 . O MAPA é a instância central e coordena todo o sistema. Os serviços de inspeção dos estados e dos municípios precisam solicitar a adesão, que é voluntária. A adesão pode ser individual ou os municípios podem formar consórcios. Os produtos de agroindústrias inspecionados por um serviço de inspeção integrante do Suasa podem ser comercializados em todo o território nacional 36 .
Entretanto, segundo o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) 3 , o Suasa permanece complexo, com uma multiplicidade de normativas e competências. Os estados e municípios encontram dificuldades para estruturar seus SIM e atender as exigências feitas pelo MAPA, e sem o SIM o município e/ou consórcio não pode aderir ao Suasa. Algumas dificuldades apontadas para adesão são: falta de recursos financeiros para adequar o SIM às normas do Suasa, falta de apoio técnico do MAPA, escassez de recursos humanos, legislação do município não atende às exigências do sistema, entre outras. A não adesão dos municípios ao Suasa representa um gargalo para a inclusão dos produtos da agricultura familiar e dos pequenos produtores (rurais, periurbanos e urbanos) no mercado, pois as instâncias do MAPA responsáveis pelo serviço de inspeção animal não conseguem estar presentes em todos os municípios 3 .
A distribuição e a logística dos alimentos processados foram as maiores dificuldades encontradas para comercialização dos produtos. Podemos também observar que se adequar às normas sanitárias também dificulta a comercialização dos produtos, pois sem a legalização do empreendimento não é possível vender para redes de supermercados, programas institucionais e ter acesso a mais clientes, ou seja, dificulta o escoamento da produção. Algumas das dificuldades encontradas relacionada à distribuição e logística: “Logística. Estradas precárias. Distância”; “Longo caminho até as feiras no Rio”; “Deslocamento para o Rio”.
A distribuição é realizada na maioria dos casos em carro próprio, seguido de transporte terceirizado e transporte público ( Tabela 1 ).
Em estudo realizado por Valença 31 com produtores do CCFO foi apontado que, com a ajuda de crédito do Pronaf, alguns produtores conseguiram comprar um veículo e outros formaram grupos para compartilhar o próprio carro ou o aluguel do transporte do local da produção até as feiras 31 .
Tem-se como desafios a criação de estruturas para o apoio à distribuição e à comercialização nas feiras, com suporte institucional e financeiro, e a criação de novas feiras em diferentes municípios e bairros, pois a venda em CCC por pequenos empreendimentos está relacionada ao conceito de SAN na medida em que promovem a geração de renda, emprego, trabalho, inclusão social e desenvolvimento socioeconômico local/regional 37 , 38 .
O custo elevado do processo produtivo e consequentemente o valor elevado do produto final em comparação ao convencional são dificuldades importantes para a comercialização dos produtos orgânicos e, nesta comparação, o produto orgânico não se demonstra competitivo 39 . Por sua vez, o consumidor está cada vez mais exigente, preocupado não somente com a qualidade dos produtos consumidos, mas também com sua procedência. Para esse consumidor, interessa saber as condições em que o alimento foi produzido, isto é, se foi de forma sustentável, sem agressão ao meio ambiente. Essa mudança de comportamento abre possibilidades para novas frentes de mercado, com a consequente valorização de produtos orgânicos e saudáveis 40 .
A partir da caracterização da produção de alimentos orgânicos processados no estado do Rio de Janeiro foi possível observar que grande parte é realizada por agricultores ou microempreendedores familiares que recebem ajuda de membros da família no processo produtivo e produzem seus produtos em cozinhas anexas ao domicílio. As feiras orgânicas são os principais meios de comercialização desses produtos e os principais produtos são a fabricação de conservas, e/ou geleias, e/ou molhos e/ou doces à base de frutas seguida da produção de grãos e farinhas e produtos da panificação e confeitaria. Há necessidade de esclarecer os gestores estaduais e municipais sobre a RDC n° 49/2013 e de regulamentá-la para possibilitar a inclusão produtiva.
Um dos principais desafios encontrados foi a adequação às normas sanitárias, pois, apesar da existência do PRAISSAN, os pequenos empreendedores ainda enfrentam desafios para a legalização sanitária que dificultam a comercialização de seus produtos. Além disso, observou-se que a maioria dos produtores não possui a Declaração de Aptidão ao Pronaf, o que dificulta o acesso aos mercados institucionais tais como o PAA e o PNAE. Ressalta-se a importância dos serviços de ATER no auxílio da legalização do empreendimento, adaptação de tecnologias e alternativas à realidade de cada produtor.
No estado do Rio de Janeiro, o processamento de produtos orgânicos é uma oportunidade de aumentar a vida de prateleira, agregar valor aos produtos, diminuir desperdício e promover o desenvolvimento socioeconômico regional, geração de trabalho e renda, desde que sejam oferecidos mais incentivos para viabilizar a inclusão produtiva de pequenos empreendimentos. Percebe-se a necessidade de estimular a profissionalização/qualificação, a capacitação e a formação de multiplicadores, a partir das instituições de assistência técnica e de ensino, além do acesso a crédito e a tecnologias para facilitar o acesso a canais de venda direta e indireta.
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