ARTIGO
Received: 21 October 2021
Accepted: 13 April 2022
DOI: https://doi.org/10.22239/2317-269X.02007
RESUMO
Introdução: A leishmaniose visceral (LV) é considerada uma das zoonoses mais relevantes das Américas devido à acentuada magnitude, à ampla distribuição geográfica e à alta taxa de letalidade.
Objetivo: Avaliar a percepção dos profissionais de saúde quanto à ocorrência da LV em Uruguaiana (Rio Grande do Sul).
Método: Estudo observacional transversal empregando um questionário autoaplicável durante o período de dezembro de 2016 a janeiro de 2017.
Resultados: Participaram 183 profissionais de saúde, sendo 136 integrantes da Estratégia Saúde da Família, 20 agentes de controle de endemias e 27 veterinários. Identificaram-se deficiências de percepção dos profissionais de saúde a respeito da epidemiologia e da sintomatologia da doença.
Conclusões: Fragilidades na percepção dos profissionais de saúde quanto à epidemiologia e à sintomatologia da LV ficaram evidenciadas, o que poderá impactar na detecção precoce de casos da doença e, consequentemente, na execução das ações preconizadas para o controle e prevenção da doença. É necessário investir em estratégias de capacitação sobre a LV, visando corrigir lacunas no conhecimento e fomentar discussões que englobem a complexidade do tema.
Palavras chave: Leishmaniose, Saúde Única, Políticas Públicas em Saúde, Educação para a Saúde.
ABSTRACT
Introduction: Visceral leishmaniasis (VL) is considered one of the most relevant zoonoses in the Americas due to its high magnitude, wide geographic distribution, and high fatality rate.
Objective: Evaluate the perception of health professionals regarding the occurrence of VL in Uruguaiana (RS).
Method: A cross-sectional observational study was carried out using a self-administered questionnaire from December 2016 to January 2017.
Results: One hundred eighty-three health professionals participated in the study (one hundred thirty-six members of the Family Health Strategy, twenty endemic control agents and twenty-seven veterinarians). Health professionals’ perception deficiencies were identified regarding the epidemiology and symptomatology of the disease.
Conclusions: This study showed weaknesses in the knowledge of health professionals about the epidemiology and symptoms of VL, which may impact the early detection of cases and, consequently, their favorable resolution. It is necessary to invest in training strategies on VL, aiming to correct gaps in knowledge and foster discussion on the subject.
Keywords: Leishmaniasis, One Health, Public Health Policies, Health Education.
INTRODUÇÃO
A leishmaniose visceral (LV) é considerada uma das zoonoses mais relevantes das Américas devido à acentuada magnitude, à ampla distribuição geográfica e à alta taxa de letalidade. A redução das formas graves da doença pode ser alcançada pela realização do diagnóstico precoce, pelo tratamento adequado dos casos e pela redução do contato homem-vetor. Nas Américas, a letalidade, em 2019, alcançou o patamar de 7,7%, com uma ligeira queda quando comparada a 2018 (8,0%). O Brasil concentra 97,0% dos casos de LV do continente americano 1 .
O estado do Rio Grande do Sul (RS) era considerado indene para LV até 2008, ano em que ocorreu o primeiro caso autóctone de leishmaniose visceral canina (LVC) do estado no município de São Borja 2 , local onde também foi registrada a presença de Lutzomya longipalpis , vetor da enfermidade 3 . Em janeiro de 2009, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) do RS notificou o primeiro caso autóctone confirmado de leishmaniose visceral humana (LVH) no mesmo município 4 . No período compreendido de 2009 até setembro de 2021 (Semana Epidemiológica 38/2021), foram confirmados 43 casos no RS, distribuídos nos municípios de São Borja, Uruguaiana, Itaqui, Porto Alegre, Viamão e Santa Maria. Destes, 36 casos evoluíram para cura e sete para óbito 5 . Uruguaiana é classificada como área de transmissão para LV, por ter registros da presença do vetor, de casos humanos e de caninos autóctones da doença 6 . Entre 2009, ano da ocorrência do primeiro caso de LVC no município, até dezembro de 2019, foram confirmados, pela Vigilância Ambiental em Saúde de Uruguaiana, 1.478 casos de LVC por meio de notificação espontânea da população (sistema passivo de vigilância). Nos inquéritos sorológicos caninos, realizados para investigação de casos caninos e casos humanos, as prevalências de LVC encontradas foram de 1,0% (2009), 8,0% (2010), 25,0% (2011), 48,0% (2016) e 29,0% (2017). Com relação aos casos humanos, o município registrou três casos autóctones de LV, nos anos de 2011, 2016 e 2017 7 .
O Manual de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral do Ministério da Saúde (MS) apresenta normas e recomendações para a vigilância e o controle da enfermidade, tendo como principal objetivo a estruturação e a implementação de ações pelos municípios que visem reduzir a morbimortalidade da LV em nosso país. As medidas preconizadas estão centradas no diagnóstico e tratamento precoce dos casos humanos, na redução da população de flebotomíneos, na eliminação ou tratamento de reservatórios e nas atividades de educação em saúde 8 . No município de Uruguaiana (RS), o setor de Vigilância Ambiental em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) realiza o diagnóstico de triagem da LVC por meio do teste rápido Dual Path Platform (TR-DPP) de Bio-manguinhos. Já a confirmação do diagnóstico, pela técnica de Enzyme-Linked Immunosorbent Assay (ELISA), é executada no Laboratório Central de Saúde Pública (LACEN) do RS de Porto Alegre. Uma vez confirmado o caso de LVC, a recomendação é optar pelo tratamento ou eutanásia. A eutanásia era realizada como política pública municipal de controle após a confirmação do diagnóstico em animais enfermos pertencentes a tutores sem condições financeiras. A partir de 2017, houve descontinuidade dessa política pública por parte da gestão municipal. Na confirmação de caso humano, o município executa inquérito canino e borrifação para controle do vetor. Ações de comunicação e educação em saúde são continuamente realizadas por diversos veículos (redes sociais, página oficial da prefeitura e visitas dos agentes comunitários de saúde e de combate às endemias).
A educação em saúde é uma estratégia importante para o controle da LV e mitigação de seus efeitos, visando elaborar conceitos de ciclo e sintomatologia das zoonoses a partir dos hábitos e atitudes da população local 9 . A acentuada gravidade do problema demanda estratégias inovadoras em vigilância para avaliar a eficácia das medidas de controle no contexto urbano.
A situação atual de Uruguaiana como município com baixo risco de transmissão 10 requer que sejam adotadas medidas preventivas e de controle tanto pelos profissionais de saúde como também pela comunidade. A eficácia das ações é fortemente influenciada pela falta de conhecimento e de articulação entre os principais atores responsáveis pelo sucesso das intervenções preconizadas. Identificar a percepção dos profissionais de saúde torna-se fundamental para a construção de uma abordagem participativa e dialogada entre os diferentes atores nos cenários de saúde humana e animal, juntamente com a população assistida. Essa é uma etapa essencial para a elaboração de um Sistema de Vigilância de LV sob a perspectiva de Saúde Única.
O presente estudo tratou de uma proposta para mensurar a percepção dos profissionais de saúde atuantes na saúde pública (médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde, agentes de controle de endemias e médicos veterinários) a respeito da LV no município de Uruguaiana.
MÉTODO
O projeto de pesquisa foi autorizado pela SMS de Uruguaiana e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), sob o protocolo de nº CAAE 58534316.9.0000.5323.
Área de estudo e população
O município de Uruguaiana está localizado no extremo oeste do estado do RS, a 29º 46’ 55” de latitude Sul e 57º 02’ 18” de longitude Oeste, na fronteira com a Argentina. O clima é subtropical, com topografia de coxilha, vegetação de campos e a média anual de chuvas é de 1.650 mm. Possui altitude de 74 metros e temperatura média máxima de 25,8ºC e mínima de 9,7ºC 11 . Uruguaiana tem 125.435 habitantes, sendo que a população rural corresponde a 7% do total da população do município 12 . Uma ponte de 2,4 km sobre o Rio Uruguai liga a cidade a Paso de Los Libres, na Argentina, por isso, a cidade é considerada a principal porta de entrada de turistas para o RS, registrando mais de 100.000 turistas provenientes da Bacia do Prata, do Chile, do Paraguai e de outros países 11 .
Delineamento do estudo
Foi conduzido um estudo observacional transversal para avaliação da percepção dos profissionais de saúde em atividade no Programa Estratégia Saúde da Família (ESF) – médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde (ACS), agentes de controle de endemias (ACE) e médicos veterinários quanto à LV e à LVC, considerando os principais aspectos relacionados à epidemiologia, sinais clínicos, medidas de controle e prevenção preconizados nas normas técnicas 8 , 13 . Optou-se por avaliar os profissionais diretamente relacionados com as ações de notificação e investigação de LV, contemplando todos os bairros do município de Uruguaiana.
A coleta de dados foi realizada nos meses de dezembro de 2016 e janeiro de 2017 em 21 equipes de ESF, sendo que estavam registrados como atuantes 21 enfermeiros, 21 médicos e 150 ACS, correspondendo a uma cobertura de 61,45% da população 14 . Vinte e oito ACE integravam a Vigilância Ambiental em Saúde municipal. Quanto aos médicos veterinários, optou-se por elencar apenas aqueles que estavam cadastrados na Vigilância Sanitária do município, totalizando 28 profissionais autônomos. Os médicos veterinários vinculados ao setor público não foram entrevistados por estarem envolvidos na realização do estudo (dois atuantes na Vigilância Ambiental em Saúde e um na Vigilância Sanitária municipal). Como critério de exclusão, considerou-se a ausência dos profissionais do local de trabalho por motivo de férias, licença-saúde, licença-maternidade ou término de contrato.
Utilizou-se um questionário padronizado, semiestruturado e autoaplicável. Foram considerados os principais determinantes biológicos, sociais e ambientais reconhecidos na literatura pela importância na disseminação e perpetuação da LV 8 , 13 . O questionário também buscou avaliar as ações dos médicos veterinários com relação à LVC. Para validação, o questionário foi aplicado em cinco indivíduos (médico, enfermeiro, médico veterinário e ACS) atuantes na Policlínica Municipal e na Vigilância Sanitária municipal. O preenchimento do questionário ocorreu após leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Na compilação das informações, o somatório das alternativas assinaladas de forma correta recebeu o valor final de um ponto. Para fins de direcionar as fortalezas e fragilidades do Manual de Vigilância e Controle de Leishmaniose Visceral 8 , as perguntas foram agrupadas de acordo com quatro eixos de atuação destacados nas diretrizes relacionadas: 1 – aos seres humanos (nove perguntas; nove pontos), 2 – ao reservatório canino (cinco perguntas; cinco pontos), 3 – ao vetor (duas perguntas; dois pontos) e 4 – às ações de prevenção e controle (duas perguntas; dois pontos).
A codificação para integrar um banco de dados estruturado e a análise exploratória dos dados foram realizadas no Programa Microsoft Excel 2010. Já a comparação entre os profissionais de saúde foi realizada pelo teste não paramétrico de Kruscal-Wallis no pacote estatístico R versão 4.0.1 (R Core Team, 2020), supondo o nível de 5% de significância.
RESULTADOS
Dos 248 profissionais previstos para serem entrevistados nesse estudo, 183 (73,79%) responderam ao questionário, 65 (26,21%) preencheram os critérios de exclusão por estarem em férias, afastados por laudos de saúde ou por término de contrato e um (0,40%) se recusou a responder o instrumento da pesquisa. As exclusões ocorreram nos ACS (56), nos ACE (oito) e em um médico veterinário (uma). O maior número de ACS que não estavam em atividade no momento da aplicação do questionário deveu-se ao fato de que o período de aplicação coincidiu com o término de contrato desses profissionais, realizado via processo seletivo público por tempo limitado. Assim, entre os 183 participantes, 94 eram ACS, 21 enfermeiros, 21 médicos, 20 ACE e 27 médicos veterinários.
A maioria dos entrevistados (79,03%) era do sexo feminino, na faixa etária de 31 a 40 anos (41,71%), com curso superior (52,69%). A renda variou de acordo com as categorias profissionais avaliadas. Os médicos e enfermeiros apresentaram a maior renda média, com valor acima de três salários-mínimos (81,00%). Os ACS e ACE apresentaram as menores rendas médias, sendo que 74,00% e 81,80% informaram ter renda média de um a dois salários-mínimos, respectivamente.
De acordo com os eixos de atuação presentes no Manual de Vigilância e Controle de Leishmaniose Visceral, os ACE apresentaram os melhores desempenhos nas perguntas relacionadas aos seres humanos e ao vetor (primeiro lugar). Os médicos apresentaram ótimo desempenho nas perguntas relacionadas aos seres humanos (segundo lugar) e ao controle e à prevenção da doença (primeiro lugar). Já os médicos veterinários foram melhores nas perguntas referentes aos reservatórios caninos (primeiro lugar) e naquelas que remetiam estratégias de controle e prevenção (segundo lugar). Os demais profissionais entrevistados não se destacaram em nenhum dos eixos ( Quadro ).
Ao considerar as nove perguntas que integram o eixo “humanos”, os médicos obtiveram a segunda maior pontuação pelos elevados escores obtidos nas questões relativas às formas de apresentação, transmissão e tratamento da LV. Entretanto, quando são analisados os escores obtidos em duas questões relevantes para o diagnóstico precoce de casos de LV (ocorrência de casos e forma de apresentação em Uruguaiana), o desempenho dessa categoria profissional evidenciou deficiências na percepção da LV, uma vez que, dos 21 médicos, nove (42,86%) não sabiam sobre a ocorrência de casos no município e 15 (71,43%) não apontaram a forma visceral como a incidente. Os ACS e enfermeiros também tiveram menores escores nestas duas questões, sendo que 47 ACS (50,00%) e 11 enfermeiros (52,38%) não sabiam dos casos humanos de LV no município e 59 (62,76%) ACS e 16 (76,19%) enfermeiros não identificaram corretamente a forma da enfermidade que ocorre em Uruguaiana. Os ACE (100,00%) e os médicos veterinários (92,59%) tiveram melhor nível de informação sobre a ocorrência de casos de LVH em Uruguaiana. Considerando todos os profissionais entrevistados, 58,70% afirmaram saber da ocorrência de casos de LVH no município.
Dentro do eixo vetor, 122 (66,66%) entrevistados tiveram escore igual ou menor que 0,5 na questão que abordava a percepção sobre características do vetor como tamanho, local de multiplicação das formas imaturas e horário de atividade do inseto.
Na avaliação das respostas às perguntas dirigidas somente aos veterinários, a pesquisa revelou que 17 (62,96%) acharam adequada a realização do tratamento da LVC, mesmo que 24 (88,89%) entrevistados tenham afirmado que o tratamento não levaria à cura. Seis veterinários (22,22%) consideraram a eutanásia como medida de controle da LV e nove (33,33%) assinalaram o tratamento. Ainda nessa questão, sete (25,92%) veterinários marcaram somente medidas voltadas para o vetor ou para as pessoas e cinco (18,52%) veterinários optaram por não responder à pergunta.
Nas questões sobre atitudes preventivas voltadas para os cães, todos os veterinários afirmaram indicar a coleira repelente para prevenção da LVC. Com relação à vacinação, 17 profissionais (62,96%) realizavam a vacinação em seus estabelecimentos veterinários. Outras medidas também foram marcadas como: produto spot on (66,66%); utilização de repelente (85,18%) e limpeza do pátio (92,59%).
Ficou constatado que os veterinários adotavam vários métodos de diagnóstico da LVC. Em todos os casos, o diagnóstico sorológico era utilizado, podendo ser realizado: no próprio consultório (51,85%), em laboratório veterinário (33,33%), em laboratório humano (33,33%) e em laboratório oficial (29,63%). Dentre os 27 médicos veterinários avaliados, nove (33,33%) realizavam o diagnóstico parasitológico associado a alguma técnica sorológica de diagnóstico.
DISCUSSÃO
O viés de seleção foi considerado como um dos potenciais erros deste estudo, uma vez que os indivíduos que participaram provavelmente diferiam daqueles que preencheram os critérios de exclusão. Para diminuir as perdas, várias visitas às unidades básicas de saúde foram realizadas para acessar os profissionais que não haviam participado das reuniões nas quais os questionários foram aplicados.
O desconhecimento de 41,30% dos entrevistados sobre a ocorrência de casos humanos em Uruguaiana pode ser explicado pela baixa notificação de casos humanos até a data de realização deste estudo, com apenas dois casos confirmados de LV no município (em 2011 e em 2016). Contudo, como o segundo caso foi notificado para a Vigilância Epidemiológica municipal apenas dois meses antes da aplicação do questionário, era esperado que os profissionais de saúde estivessem melhor informados sobre a ocorrência do mesmo.
A hipótese de subnotificação de casos humanos na população deve ser considerada. Os resultados encontrados nas questões que obtiveram baixa taxa de acertos refletem a falta de percepção sobre a forma de leishmaniose e sintomas sugestivos, o que justifica essa possibilidade. A subnotificação da enfermidade é preocupante, pois as medidas preventivas e de controle dependem da classificação epidemiológica da área que é estabelecida por um índice composto utilizado pelo Programa de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral (PVC-LV) do MS, que contempla a média de casos e incidência da LV nos últimos três anos 10 . Por se tratar de um município com casos confirmados, os serviços de vigilância epidemiológica devem buscar alternativas para melhorar as investigações de casos suspeitos considerando a subnotificação como um potencial problema a ser averiguado, uma vez que a sintomatologia da LV é inespecífica 15 .
As prevalências de LVC encontradas nos inquéritos sorológicos e nos exames solicitados por demanda espontânea dos tutores de cães revelam a elevada ocorrência e ampla distribuição da enfermidade canina na área urbana de Uruguaiana 7 . Muitos estudos demonstraram que casos caninos de LV precedem a ocorrência de casos humanos em uma determinada área 16 , 17 , 18 . Neste contexto, a capacitação dos profissionais de saúde para identificação de casos suspeitos de LV pode contribuir significativamente para a sensibilidade dos serviços de saúde na detecção de casos novos e na mensuração da intensidade da transmissão da LV no município. Além disso, o diagnóstico precoce é uma ação imprescindível para o sucesso no controle da enfermidade, sendo considerado um dos principais fatores associados à redução da letalidade da LV 8 .
Ao analisar as respostas dos profissionais de saúde quanto ao tratamento para LV, observou-se que um em cada cinco profissionais desconhecia o tratamento disponível. É muito importante que os profissionais estejam informados e atualizados quanto à possibilidade de tratamento para LV, já que o tratamento precoce é uma das medidas de controle fundamentais para a redução da letalidade 20 . O conhecimento sobre a eficácia do tratamento da LVC também é importante, pois os cães tratados não têm cura parasitológica e continuam como reservatórios da enfermidade e, portanto, as medidas de repelência do vetor devem ser mantidas continuamente nos cães enfermos 19 .
Outra questão que merece ênfase nas capacitações refere-se às características do vetor. É fundamental que os profissionais de saúde conheçam os hábitos da Lu. longipalpis para que possam recomendar corretamente as medidas preventivas relacionadas à repelência do inseto para a população, sem confundir com as medidas já recomendadas para o controle de Aedes aegypti8 .
Em relação às medidas preventivas e de controle da LVC, os resultados da pesquisa revelaram que 100,00% dos veterinários recomendavam o uso da coleira repelente e 62,96% veterinários realizavam a vacinação contra LVC. Em Cuiabá, Igarashi et al. 21 encontraram resultados diferentes, sendo a vacinação a medida mais utilizada (71,64%), seguida pela recomendação das coleiras repelentes (58,20%). Na província de Lleida, Espanha, Ballart et al. 22 também constataram que 100,00% dos veterinários entrevistados recomendavam coleiras repelentes. Já Le Rutte et al. 23 , em pesquisa realizada com 459 veterinários da Espanha e do norte da França, constataram que 88,00% dos profissionais recomendavam o uso de repelentes nos cães e 45,00% indicavam a vacinação contra LVC. As coleiras impregnadas com deltametrina têm um potente efeito repelente e inseticida contra Lu. longipalpis e podem reduzir o risco de infecções 24 . Todavia, o impacto dessa estratégia na comunidade depende da cobertura da distribuição e da baixa taxa de perda das coleiras 25 . Além disso, essa prática não é comum entre os tutores de cães pelo alto custo financeiro. Nesse sentido, o MS incorporou a distribuição de coleiras impregnadas com inseticida (deltametrina a 4%) para o controle da LV em municípios prioritários 26 . Entretanto, Uruguaiana é considerada área de baixo risco para transmissão da LV 10 e não se enquadra nesse projeto do MS para o fornecimento de coleiras repelentes.
Houve divergência entre os veterinários entrevistados quanto às medidas de controle para o cão, com marcações tanto para eutanásia quanto para o tratamento dos animais. Vários estudos colocaram em dúvida a eficácia da eutanásia na redução da incidência de LV 27 , 28 . Questões éticas e econômicas também dificultam a adoção da eutanásia como método de controle da LV 29 . Contudo, a eutanásia ainda aparece como medida de controle da enfermidade recomendada nas normas técnicas do MS, bem como no guia do Conselho Federal de Medicina Veterinária 8 , 30 . Quando o tratamento da LVC foi abordado especificamente com os veterinários, ficou constatado que 62,96% consideraram essa medida adequada. Em Cuiabá, um número menor de clínicos veterinários (38,80%) não considerou o tratamento proibido 21 . A menor porcentagem de veterinários que recomendavam o tratamento em Cuiabá pode dever-se à data de realização da pesquisa, já que, em 2014, ainda não havia um medicamento aprovado para o tratamento de cães. A terapia com drogas leishmanicidas pode levar à cura clínica e não à cura parasitológica, ou seja, os cães continuam infectantes para o vetor 31 . O MS brasileiro autorizou o tratamento com a miltefosina (milteforan) registrado no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento 19 , mas ressaltou que essa não é uma medida de saúde pública por se tratar de uma iniciativa de caráter individual, sem garantir a cura parasitológica.
Os veterinários afirmaram usar diferentes métodos para diagnóstico da LVC, sem a devida padronização na confirmação do diagnóstico. O emprego de diversas técnicas sorológicas dificulta a comparação dos resultados, uma vez que tanto os parâmetros inerentes ao teste (sensibilidade e especificidade) quanto os relacionados ao reservatório (prevalência de casos caninos, sintomatologia presente ou ausente) podem exercer influência nos resultados encontrados 32 . Em um estudo conduzido por Ballart et al. 22 , na província de Lleida, Espanha, os 32 veterinários entrevistados também relataram diversos métodos de diagnóstico sorológico, sendo 78,1% dos exames realizados em laboratórios privados e 65,6% em laboratórios próprios. O emprego de vários testes que mensuram diferentes respostas e parâmetros pode acarretar falsas percepções acerca da real situação epidemiológica do município. A padronização dos critérios laboratoriais de confirmação da LVC reduziria o risco de erros, consequentemente aumentando a acurácia do diagnóstico.
A análise das questões respondidas corretamente destacou a posição dos ACE com um desempenho mais consistente quando considerados os quatro eixos avaliados. Provavelmente esse achado indica a importância dos treinamentos contínuos realizados em Uruguaiana para atualização de estratégias de controle e prevenção de doenças, uma vez que este profissional, ao visitar as residências, atua na veiculação de informações referentes aos principais problemas relevantes no município. Já quanto aos médicos veterinários, a maior frequência de acertos no eixo relacionado ao reservatório pode ser atribuída à elevada casuística de LVC nas clínicas veterinárias.
Os médicos veterinários afirmaram recomendar medidas preventivas da enfermidade. Contudo, demonstraram ter conhecimento insuficiente sobre a LV e sobre as características do vetor, além de divergirem quanto às medidas de controle e de diagnóstico da LVC. As ações de enfrentamento e combate à LV deveriam considerar os médicos veterinários como importantes aliados no controle da enfermidade, devendo inclusive inseri-los nas capacitações, discussões e planejamento das medidas. A complexidade da LV demanda uma abordagem multiprofissional, inter e transdisciplinar, capaz de incorporar todos os fatores que de alguma forma possam comprometer as estratégias de controle e prevenção preconizadas.
A elaboração do questionário para obtenção de indicadores referentes aos quatro eixos componentes do programa de LV demonstrou ser uma ferramenta adequada e simples para a avaliação da percepção dos profissionais da ESF, tanto por ter evidenciado os principais aspectos a serem melhorados na prevenção e no controle da enfermidade quanto por propiciar visibilidade às diferentes fortalezas e fragilidades de cada categoria profissional. Instrumentos alternativos de diagnóstico situacional são oportunos para que a temática seja compreendida sob diferentes perspectivas e olhares, considerando a complexidade e a abrangência do problema.
Além disso, a relevância da participação do médico veterinário nas equipes multidisciplinares envolvidas no enfrentamento da LV deve ser enfatizada, uma vez que não há estratégia de controle, mitigação e prevenção adequada que não considere a interconectividade entre a saúde humana, animal e ambiental como uma questão central. Considerando que o indicador proposto pelo MS para classificação de risco dos municípios quanto à LV considere a incidência de casos humanos como único parâmetro, o método apresentado neste estudo poderá ser adotado em locais considerados de baixo risco por apresentar poucos casos humanos incidentes e que, por este motivo, permanecerão desassistidos pelas políticas públicas de controle e prevenção da doença.
CONCLUSÕES
Este estudo evidenciou fragilidades na percepção dos profissionais de saúde a respeito da epidemiologia e da sintomatologia da LV, o que poderá impactar na detecção precoce de casos e, consequentemente, na resolução favorável desses casos. O desconhecimento sobre as características do vetor da enfermidade foi alto, situação que, provavelmente, dificultará a adoção de medidas preventivas adotadas frente à LV e à LVC. Observou-se, ainda, que os profissionais detêm pouca informação a respeito das medidas de controle da LV e que não há consenso sobre as medidas de controle voltadas para o reservatório canino.
Os resultados enfatizam a necessidade premente de investimento em estratégias de capacitação sobre a LV, visando ampliar o conhecimento e as discussões sobre o tema, o que propiciará maior embasamento para a elaboração de políticas públicas que incorporem uma abordagem ampla e não dissociativa acerca da saúde humana, animal e ambiental nos programas e planos de controle da enfermidade.
É fundamental que se constituam nos municípios espaços para ampla discussão e organização de ações intersetoriais de combate à LV, capazes de incorporar a complexidade inerente à enfermidade nas estratégias de controle e prevenção. Apenas com ações de gestão de risco colaborativas e de governança assertiva, o sucesso na contenção da LV poderá ser alcançado.
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Author notes
* E-mail: deborapellegrini@unipampa.edu.br
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