RESUMO
Introdução: O SARS-CoV-2 é um novo tipo de coronavírus capaz de infectar humanos e causar a Coronavirus Disease (COVID-19), enfermidade que tem causado enormes impactos no Brasil e no mundo. A doença, devido às suas altas taxas de disseminação e letalidade, foi declarada pandêmica pela Organização Mundial da Saúde no primeiro semestre de 2020. Vários estudos têm frequentemente indicado a detecção de fragmentos de RNA do SARS-CoV-2 em amostras de redes de esgoto, estações de tratamento e águas naturais. A presença do SARS-CoV-2 nesses ambientes tem levantado a possibilidade de transmissão pelo contato com águas contaminadas e aerossóis gerados durante seus fluxos ou tratamentos.
Objetivo: Descrever relatos de detecção do novo coronavírus em amostras obtidas em redes de esgotos, em lodos residuais de plantas de tratamento e em corpos d’água naturais, e apresentar a viabilidade desse vírus quando inoculado artificialmente nesses ambientes.
Método: Revisão integrativa de literatura fundamentada em artigos científicos escritos em inglês ou português, indexados nas bases de dados do Web of Science, Scopus, PubMed, ScienceDirect, Google Scholar e MedRxiv .
Resultados: Foi possível destacar os riscos que o SARS-CoV-2 proporciona às populações de humanos e de animais selvagens quando presente nas águas residuais, estratégias cabíveis de serem utilizadas para limitar a propagação desse patógeno nas matrizes aquáticas, e a importância da implementação de sistemas de monitoramento epidemiológico nesses locais.
Conclusões: A fim de reduzir os riscos de surtos emergentes e reemergentes da COVID-19 por meio de matrizes aquosas, abordagens preventivas em relação à presença do SARS-CoV-2 nesses ambientes têm sido fortemente recomendadas.
Palavras chave: Monitoramento Epidemiológico, Surtos de Doenças, Águas Residuais, Recursos Hídricos, Medicina Preventiva.
ABSTRACT
Introduction: SARS-CoV-2 is a new type of coronavirus capable of infecting humans and cause the Coronavirus Disease (COVID-19), an illness that has causing enormous impacts in Brazil and worldwide. The disease, due to its high-level dissemination and lethality rates, was declared pandemic by the World Health Organization in the first half of 2020. Several studies have frequently indicated the detection of SARS-CoV-2 RNA fragments in samples from sewage networks, treatment plants and natural waters. The presence of SARS-CoV-2 in those environments has raised the possibility of transmission through the contact with contaminated waters and aerosols generated during their flow or treatment.
Objective: Describe detection reports of the new coronavius in samples obtained from sewage networks, from waste sludges of treatment plants and from natural water bodies, and present the viability of this virus when artificially inoculated in those environments.
Method: Integrative literature review based on scientific articles written in English or Portuguese, indexed in the Web of Science, Scopus, PubMed, ScienceDirect, Google Scholar and MedRxiv databases.
Results: It was possible to highlight the risks that the SARS-CoV-2 poses to human and wildlife populations when present in wastewater, appropriate strategies to be used to limit the spread of this pathogen in aquatic matrices, and the importance of implementing epidemiological monitoring systems in those places.
Conclusions: In order to reduce the risks of emerging and re-emerging outbreaks of COVID-19 through aqueous matrices, precautionary approaches regarding the presence of SARS-CoV-2 in those environments have been strongly recommended.
Keywords: Epidemiological Monitoring, Disease Outbreaks, Residual Waters, Water Resources, Preventive Medicine.
REVISÃO
Riscos associados à presença do SARS-CoV-2 em esgotos e possíveis abordagens para limitar sua propagação através de matrizes aquáticas
Risks associated with the presence of SARS-CoV-2 in sewage and possible approaches to limit its spread through aquatic matrices
Received: 28 July 2021
Accepted: 22 March 2022
O coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2 (SARS-CoV-2) é um novo tipo de coronavírus infeccioso aos humanos e causador da Coronavirus Disease (COVID-19), uma doença fatal, altamente transmissível, e responsável por enormes impactos sociais e econômicos em todo o planeta Terra 1 . A COVID-19, de acordo com estudos clínicos, tem sido responsável por causar manifestações em vários sistemas humanos, incluindo o cardiovascular, renal, musculoesquelético, neurológico, imunológico, visual, gastrointestinal e principalmente o respiratório 2 , 3 , 4 , 5 , 6 , 7 , 8 . Pacientes sintomáticos têm apresentado febre, fadiga, disfunções do paladar e olfato, rinorreia, letargia, tosse seca, dispneia, dor de cabeça, dores musculares, vômito, diarreia e pneumonia grave 9 , 10 . Segundo a Organização Mundial de Saúde, no ano de 2020, houve aproximadamente 81,5 milhões de casos e 1,8 milhão de óbitos ocasionados pela COVID-19 em cerca de 222 países, áreas e/ou territórios no mundo 11 .
O SARS-CoV-2 pertence à família Coronaviridae e ao gênero Betacoronavirus . O vírus detém um genoma aproximado de 30 mil nucleotídeos de fita simples de RNA de sentido positivo, e é envolto por um frágil envelope lipídico que contém em sua superfície glicoproteínas denominadas spike , estrutura em forma de coroa de onde derivou seu nome (corona é a palavra latina para coroa) 12 , 13 ( Figura 1 ). O SARS-CoV-2 apresenta uma taxa de variação de sequência de aproximadamente 1,1 x 10 -3 sítios por ano, o que representa duas mutações por mês quando considerada a população mundial 14 , 15 . Embora a maioria das mutações ocasionadas no genoma desse vírus tenha provavelmente sido deletéria ou neutra, uma pequena proporção originou alterações significativas em sua infectividade e interação com os hospedeiros 15 . As variantes mais importantes, chamadas de variantes de interesse, foram classificadas como Alpha (B.1.1.7), Beta (B.1.351, B.1.351.2, B.1.351.3), Gamma (P.1, P.1.1, P.1.2) e Delta (B.1.617.2, AY.1, AY.2, AY.3) 16 .
A variante Alpha, descrita pela primeira vez no Reino Unido em dezembro de 2020, foi observada por apresentar 23 mutações, 17 alterações de aminoácidos e um aumento de 46% na transmissibilidade 16 , 17 . A variante Beta, relatada inicialmente na África do Sul em outubro de 2020, foi observada por apresentar 23 mutações, 17 alterações de aminoácidos e um aumento de 32% na transmissibilidade 16 , 17 . A variante Gamma, relatada pela primeira vez no Brasil em janeiro de 2021, foi observada por apresentar 35 mutações, 17 alterações de aminoácidos e um aumento de 43% na transmissibilidade 16 , 17 . Já a variante Delta, descrita inicialmente em fevereiro de 2021 na Índia, foi observada por apresentar aproximadamente 15 mutações, seis alterações de aminoácidos e um notável aumento de 60% na transmissibilidade em relação à variante Alpha 16 , 18 . Todas as variantes de interesse, Alpha, Beta, Gamma e Delta, demonstraram maiores propensões a causarem internações hospitalares 19 , 20 . A variante Delta, além disso, apresentou um significativo aumento na carga viral e maiores riscos de progressão da doença 21 , 22 .
O SARS-CoV-2 tem sido disseminado pelo contato direto com secreções contaminadas que são transportadas e dispersadas pelo ar, como gotículas respiratórias, saliva e partículas aerolizadas 23 , 24 . Além disso, relatos também têm indicado a possível transmissão viral por meio do contato indireto com superfícies contaminadas 25 . De acordo com estudos de persistência viral, partículas aerolizadas foram capazes de propiciar a infectividade do SARS-CoV-2 por até 16 horas 26 , enquanto superfícies como o plástico, aço inoxidável e máscara cirúrgica, por até 7 dias 27 , 28 . As melhores práticas para conter a transmissão da doença têm sido medidas de proteção, como higiene pessoal, uso de máscara facial, protetor ocular, distanciamento físico, ventilação adequada de espaços fechados, desinfecção de superfícies e imunização por vacinas 29 , 30 , 31 , 32 , 33 , 34 .
A eliminação de partículas virais do SARS-CoV-2 por meio da urina e de fezes foi comumente observada em pacientes com COVID-19, incluindo casos leves, pré-sintomáticos e assintomáticos 35 , 36 , 37 . A presença de partículas virais do novo coronavírus nessas amostras, infecciosas em alguns casos, tem evidenciado a possibilidade de transmissão viral pelo contato direto ou pelos aerossóis gerados pelas excretas de pacientes contaminados 38 , 39 , 40 , 41 . Além disso, a excreção do SARS-CoV-2 pelas fezes e urina de pacientes com COVID-19 também trouxe a importância do monitoramento viral em esgotos e em corpos d’agua naturais, que coletam e concentram os excrementos humanos, e acondicionam as águas utilizáveis para o abastecimento público, irrigação de plantações ou atividades recreativas 42 , 43 .
Nesse contexto, esta revisão teve o objetivo de descrever relatos de detecção do SARS-CoV-2 em amostras obtidas em redes de esgotos, lodos de plantas de tratamento e em corpos d’água naturais, e a infectividade que esse vírus apresenta quando inoculado artificialmente nesses ambientes. A revisão destacou os riscos que o SARS-CoV-2 proporciona aos seres humanos e a animais selvagens quando presente nos esgotos, e abordagens cabíveis de serem aplicadas como forma de limitar a disseminação desse patógeno através de matrizes aquáticas, incluindo a implementação de estratégias de monitoramento epidemiológico nesses ambientes.
A revisão integrativa de literatura foi fundamentada em artigos científicos escritos em inglês ou português e disponibilizados em repositórios virtuais de acesso público ou acessados através de instituições acadêmicas. O procedimento metodológico foi feito, primeiramente, conduzindo pesquisas eletrônicas entre os dias 22 de julho de 2020 a 21 de setembro de 2021 nas bases de dados do Web of Science, Scopus, PubMed, ScienceDirect, Google Scholar e MedRxiv . Nessa etapa, as pesquisas, quando procedidas em português, foram feitas utilizando a combinação dos seguintes termos: “SARS-CoV-2”, “presença”, “detecção”, “água residual”, “esgoto”, “tratado”, “água natural”, “água de rio”, “infectividade”, “viabilidade”, “variantes”, “risco ambiental”, “vigilância” e “monitoramento”. Quando procedidas em inglês, as pesquisas foram feitas mediante a combinação dos termos: “SARS-CoV-2”, “presence”, “detection”, “wastewater”, “sewage”, “treated”, “natural water”, “river water”, “infectivity”, “viability”, “variants”, “environmental risk”, “surveillance” and “monitoring”.
Após a obtenção dos documentos, eles foram triados quanto aos seus títulos e resumos, a fim de constatar se atendiam ao tema proposto e de eliminar os duplicados. Em seguida, os trabalhos foram classificados de acordo com os seguintes temas: (i) presença e detecção do SARS-CoV-2 em águas residuais ou naturais, (ii) infectividade e viabilidade do SARS-CoV-2 em águas residuais ou naturais, (iii) riscos associados à presença do SARS-CoV-2 em águas residuais ou naturais, (iv) abordagens para limitar a propagação do SARS-CoV-2 através de matrizes aquáticas e (v) monitoramento epidemiológico do SARS-CoV-2 e de suas variantes em águas residuais e naturais. Após a classificação, os artigos foram lidos na íntegra e refinados mediante aos critérios citados abaixo com o intuito de determinar a possibilidade de inclusão como referencial teórico na construção deste trabalho:
As amostras utilizadas nos estudos foram coletadas a partir de matrizes aquáticas ou em etapas de processos de tratamento de esgoto;
Os estudos apresentavam descrições detalhadas referentes ao local de origem das amostras e à data da coleta das amostragens;
Os estudos apresentavam descrições detalhadas sobre os procedimentos utilizados para determinar a viabilidade do SARS-CoV-2 e detectar e/ou quantificar fragmentos do material genético desse vírus;
Os estudos de quantificação do material genético do SARS-CoV-2 estavam com os valores expressos na forma de “cópias por volume de amostra”;
As revisões sistemáticas, narrativas ou integrativas abordavam pesquisas inéditas e discussões relevantes referentes ao tema deste artigo.
A revisão integrativa, após busca nas bases de dados mediante a combinação das palavras-chave citadas no tópico anterior, localizou o total de 445 trabalhos científicos. Após a triagem inicial, constatou-se que 221 artigos apresentavam aderência quanto ao tema proposto nesta revisão e que 224 não apresentavam aderência ou eram duplicados. Dos 221 artigos que continham conteúdos relevantes: 110 foram classificados como pertencentes ao tema (i); nove como pertencentes ao tema (ii); 24, ao tema (iii); nove, ao tema (iv); e 69, ao tema (v). Após o refinamento dos trabalhos, feito a partir dos critérios de inclusão descritos anteriormente, 118 artigos científicos foram escolhidos para serem utilizados como base teórica na elaboração deste trabalho, enquanto 103 foram excluídos. Dos 118 trabalhos selecionados e incluídos nas referências desta revisão, 53 tratavam-se de investigações inéditas, 42 eram revisões de literatura e 23 eram preprints . O percurso metodológico utilizado na construção desta revisão foi ilustrado na Figura 2 .
O SARS-CoV-2, frequentemente presente em fluídos corpóreos expectorados, vômitos, fezes e urina de indivíduos com COVID-19, tem entrado nos sistemas de esgoto pelo lançamento de águas residuais provindas de hospitais, centros de isolamento e residências habitadas ou frequentadas por pessoas infectadas 44 , 45 , 46 . Através de vazamentos ocasionados por falhas na infraestrutura e/ou lançamentos de águas residuais sem tratamento, o SARS-CoV-2 tem sido capaz de contaminar corpos d’água receptores, como: córregos, rios, lagoas, estuários, lagos e lençóis freáticos 47 , 48 , 49 , 50 . Além disso, transbordamentos de esgotos combinados, geralmente devido às precipitações pluviométricas, têm aumentado a possibilidade da entrada do SARS-CoV-2 nos sistemas de águas naturais 12 , 46 . A Figura 3 ilustra os possíveis caminhos que o novo coronavírus pode percorrer até atingir o esgoto e as águas naturais.
A detecção do SARS-CoV-2 em amostras provindas desses ambientes tem sido feita por meio de procedimentos de biologia molecular, baseados na técnica de Transcrição Reversa seguida de Reação em Cadeia da Polimerase em Tempo Real (RT-qPCR). Os métodos, também chamados de PCR quantitativos, têm propiciado a cópia e a quantificação da presença de fragmentos de material genético do vírus através de replicações in vitro51 . Os métodos de RT-qPCR têm sido considerados como padrão ouro na detecção de baixas quantidades de material genético de forma sensível e específica em diferentes tipos de matrizes 52 . Relatos indicaram que a técnica foi capaz de determinar com sucesso a diversidade e a abundância de vários patógenos virais em amostras de águas residuárias e naturais, incluindo os da Hepatite A e E, Poliomavírus, Papilomavírus, Enterovírus, Rotavírus, Adenovírus, Parechovírus, Salivírus, Astrovírus e Zika 53 , 54 , 55 , 56 , 57 , 58 .
As análises, embora altamente influenciáveis por diversos parâmetros físico-químico-biológicos e metodológicos, foram capazes de detectar concentrações que variaram de 5,6 x 10 a 4,6 x 10 8 partículas do genoma viral do SARS-CoV-2 por litro de água residual não tratada 59 , 60 . Quando procedidas em amostras oriundas de águas residuais tratadas, ou seja, a partir do efluente gerado por plantas de tratamento de esgoto (ETE), foram detectadas quantidades aproximadas de até 1,09 x 10 6 partículas gênicas virais do novo coronavírus por litro 61 . Em águas naturais, como águas de rios e de córregos, os métodos analíticos foram capazes de detectar concentrações de até 3,28 x 10 6 partículas do genoma do SARS-CoV-2 por litro de amostra 62 . A Tabela 1 sumariza estudos que detectaram partículas do genoma viral do SARS-CoV-2 em diferentes amostras de ambientes aquáticos.
Métodos aplicados em virologia, baseados em técnicas de cultura de células in vitro , têm sido utilizados para fornecer estimativas referentes ao potencial infeccioso, ou viabilidade, que o vírus SARS-CoV-2 apresenta quando presente em águas residuais ou naturais 96 . Os protocolos têm sido feitos por meio de técnicas e reagentes que não interferem com a integridade da bicamada lipídica que envolve o SARS-CoV-2 97 . Esses estudos têm sido utilizados para avaliar os potenciais riscos que águas residuais e naturais contaminadas apresentam aos humanos, principalmente quanto à possíveis transmissões por aerossóis e/ou via fecal-oral 46 .
A avaliação dos riscos que uma amostra apresenta a hospedeiros humanos e também a animais, assim como a compreensão detalhada de como um vírus animal ultrapassou os limites das espécies para infectar humanos, como ressaltado por Andersen et al. 98 , tem propiciado subsídios a estudos voltados para a prevenção de eventos zoonóticos futuros. Além disso, as pesquisas, com o intuito de fomentar modelos epidemiológicos com maiores precisões, têm considerado a influência que diversos fatores físico-químico-biológicos apresentam sobre a sobrevivência do SARS-CoV-2 em ambientes aquáticos, como a temperatura, o pH, o tempo de retenção, a quantidade de matéria orgânica, os reagentes químicos e a presença de microrganismos antagonistas 52 , 99 , 100 .
Embora até o momento não haja estudos que tenham comprovado a existência de partículas infectantes do SARS-CoV-2 em amostras provindas de esgotos, estudos reportados na literatura indicaram que o novo coronavírus, quando inoculado artificialmente, foi capaz de permanecer viável por até 4 dias nesse ambiente na temperatura de 24°C e 17,5 dias na temperatura de 4°C 101 . Em águas naturais, foi visto que o SARS-CoV-2 foi capaz de permanecer ativo e infeccioso por até 6,4 dias em água de rio a 24°C e 18,7 dias a 4°C 101 . Além disso, a transmissão do novo coronavírus através de esgoto contaminado foi evidenciada em uma pesquisa conduzida em uma comunidade de baixa renda na China 102 . A Tabela 2 sumariza a viabilidade que partículas infecciosas do SARS-CoV-2 podem apresentar quando inoculadas de forma artificial em diferentes matrizes aquosas.
A presença de fragmentos do genoma viral do SARS-CoV-2 em esgotos e águas naturais tem gerado grande preocupação por parte dos pesquisadores devido aos possíveis riscos da transmissão indireta da COVID-19 via rota fecal-oral 102 , 106 . Os pesquisadores têm enfatizado a possibilidade de infecção do SARS-CoV-2 por meio do contato direto com esgotos ou águas contaminadas, aerossóis gerados nos sistemas de drenagem e tratamento, na descarga de vasos sanitários e também por conexões defeituosas de ralos e canos de esgoto em residências e edifícios 34 , 39 , 46 . A transmissão por essa rota, inclusive, foi evidenciada durante o surto de SARS-CoV-1 de 2003, no qual, estudos indicaram que gotículas aerolizadas de água contaminada com fezes foram responsáveis pela disseminação do vírus em um prédio residencial em Hong Kong 45 , 107 .
A presença de partículas do genoma do SARS-CoV-2 em águas naturais, como em lagos, em rios, em mananciais e em córregos, também tem indicado a possibilidade de disseminação do novo coronavírus em humanos através de atividades de recreação e de pesca, como frequentemente ocorrido por outras doenças transmitidas por patógenos virais entéricos 42 , 49 , 108 . A ocorrência do vírus nesses ambientes também tem levantado a possibilidade da disseminação do SARS-CoV-2 em animais domésticos e selvagens, novos hospedeiros que tenderiam a propiciar a propagação, o ressurgimento e a adaptação evolutiva do patógeno em surtos futuros por meio de infecções cruzadas 109 , 110 , 111 , 112 , 113 . Além disso, a disseminação do SARS-CoV-2 por meio de águas residuárias não tratadas tem demonstrado grande potencial em gerar consequências devastadoras em populações de espécies suscetíveis, como mamíferos terrestres e marinhos 114 , 115 .
A reutilização da água tratada e do lodo ativado provindo das estações de tratamento, como na irrigação e fertilização de plantações e espaços verdes urbanos, na recarga de águas subterrâneas e na utilização em processos industriais, também tem sido considerada preocupante 12 , 116 , 117 , 118 , 119 . Estudos, embora até o momento não tenham fornecido dados suficientes para determinar os riscos relacionados à propagação do SARS-CoV-2 por essas vias, evidenciaram a existência de partículas do genoma viral do novo coronavírus em águas residuais tratadas e no lodo ativado gerado em plantas de tratamento, ressaltando possíveis riscos associados à sua reutilização 83 , 88 . Vírus semelhantes, como o Coronavírus humano 229E (CoV229E) e o Coronavírus bovino (BCoV), inclusive, foram capazes de permanecer infectantes por até quatro e 14 dias em folhas de alface ( Lactuca sativa ), respectivamente 120 , 121 .
O saneamento inadequado e o lançamento de esgoto não tratado diretamente para as águas superficiais têm sido considerados possíveis fontes de contaminação das águas e solos pelo SARS-CoV-2 12 , 106 , 122 . Consequentemente, tem sido hipotetizada a possível propagação da COVID-19 na população humana e de animais, domésticos ou selvagens, que tenham tido contato com as águas contaminadas 45 , 123 . A possibilidade de transmissão secundária do SARS-CoV-2 via esgoto ou águas naturais contaminadas tem sido majoritariamente preocupante em países com poucos recursos financeiros, que frequentemente possuem infraestruturas de saneamento e saúde insatisfatórias 124 , 125 . Nesses locais, onde comprovadamente tem havido uma maior chance da transmissão de patógenos de veiculação hídrica 115 , é altamente recomendada a adequação da infraestrutura de tratamento de água e esgoto existente.
Visando reduzir a carga viral e limitar a transmissão secundária, os pesquisadores têm recomendado que o tratamento de inativação do SARS-CoV-2 em águas residuais seja feito de forma descentralizada, especialmente em pontos críticos que tendem a apresentar maiores probabilidades de receber o novo coronavírus, como hospitais, clínicas comunitárias e lares de idosos 45 , 50 . As estações de tratamento de águas residuais, que convencionalmente não garantem a inativação do SARS-CoV-2, têm sido recomendadas a implementarem sistemas de desinfecção eficazes, que garantam que o vírus não se espalhe por meio de descarte de águas residuais ou esquemas de reutilização 12 , 117 , 123 .
Diante do risco relativamente alto de infecção do SARS-CoV-2 através da exposição aos aerossóis contaminados, também tem sido amplamente recomentado que os trabalhadores das ETE sigam procedimentos de precaução e segurança contra a exposição viral, como a utilização de equipamento de proteção individual (EPI) apropriados, higienizações pessoais e instalacionais constantes, e treinamentos operacionais regulares 118 , 126 , 127 , 128 , 129 . Além disso, tem sido enfatizada a necessidade de se investigar o impacto da presença de SARS-CoV-2 na comunidade microbiana que realiza a degradação biológica dos contaminantes nas águas residuais, incluindo a possibilidade da ocorrência de eventuais transferências horizontais de genes para hospedeiros microbianos 45 , 123 , 130 .
Os pesquisadores, considerando os estudos procedidos até o momento, têm defendido uma abordagem de precaução e vigilância relacionada à disseminação do SARS-CoV-2 e de suas variantes através do esgoto e água natural contaminados. O monitoramento ambiental, considerado como uma medida econômica e eficaz na avaliação da circulação de patógenos em uma comunidade, poderia ser utilizado como uma ferramenta de diagnóstico da disseminação das partículas virais do SARS-CoV-2 em amostras coletadas em esgotos e águas naturais 122 , 131 . A estratégia, chamada de Epidemiologia Baseada em Águas Residuais (EBAR), poderia ser utilizada como uma ferramenta não invasiva para alertar as comunidades sobre novas infecções por COVID-19 e, assim, promover a aplicação de melhores medidas para conter a propagação viral 132 , 133 , 134 .
A abordagem possibilitaria a enumeração de casos leves, pré-sintomáticos e assintomáticos, de pessoas que não têm acesso aos cuidados de saúde, que frequentemente não são detectadas por diagnósticos clínicos, mas que ainda podem disseminar a COVID-19 135 , 136 , 137 , 138 . Dessa forma, as estratégias voltadas para a vigilância epidemiológica em esgotos poderiam ser utilizadas para inferir com maior precisão o número real de pessoas infectadas com SARS-CoV-2 nas comunidades e fomentar melhores práticas para coordenar esforços, alocar recursos de saúde e administrar a vacinação 139 , 140 , 141 , 142 .
O monitoramento dos esgotos também poderia ser utilizado para detectar de forma rápida e simplificada as variantes virais do SARS-CoV-2 de interesse que estão circulando nas comunidades, e avaliar a dinâmica da propagação dessas variantes nas populações 71 , 80 , 86 , 127 , 143 , 144 , 145 , 146 , 147 . Essas análises, por exemplo, foram capazes de monitorar o espectro mutacional e as tendências evolucionárias das variantes Alpha, Beta, Gamma e Delta do SARS-CoV-2 em diferentes bairros de cidades na França e nos Estados Unidos 148 , 149 . Pesquisas desse tipo, mais ainda, têm demonstrado a propensão de serem procedidas em amostras de águas residuárias previamente congeladas e arquivadas e, assim, promover futuros estudos voltados para a compreensão da ancestralidade do SARS-CoV-2 150 .
O monitoramento do SARS-CoV-2 em esgotos também poderia ser utilizado para avaliar os impactos ambientais e os riscos à saúde pública associados à transmissibilidade viral através de corpos d’água, chorume, biossólidos, partículas aerossolizadas e hospedeiros animais 116 , 151 , 152 , 153 . Os estudos poderiam ser realizados para determinar a eficiência dos sistemas de desinfecção e promover estratégias quanto à adequação de estações de tratamento de água e esgoto, incluindo os procedimentos de transporte e descarga dos resíduos 91 , 119 . As pesquisas, além disso, também possibilitariam a avaliação dos riscos associados às águas naturais e reaproveitadas, por exemplo, em atividades recreativas, pesca, irrigação de lavouras e áreas urbanas, recarga de lençóis freáticos e em processos industriais 12 , 42 , 88 , 118 .
Sobretudo, o monitoramento regular de esgotos e águas naturais, como ilustrado na Figura 4 , possibilitaria avaliar de forma aprimorada a propagação do SARS-CoV-2 no ciclo hidrológico, seu impacto no meio ambiente e na saúde dos seres humanos 45 , 96 , 127 . Os programas de monitoramento poderiam apoiar repositórios colaborativos internacionais de vigilância do novo coronavírus em águas residuais (www.covid19wbec.org) 154 para, de tal modo, propiciar a comparação dos resultados de detecção em escalas globais e aprimorar os métodos de vigilância epidemiológica nesses ambientes 52 , 123 , 155 . Os esforços de detecção, juntamente com outros modelos epidemiológicos, como: dados sorológicos, diagnósticos rinofaríngeos, registros clínicos e internações hospitalares, poderiam ser utilizados para proporcionar maior eficácia de futuras intervenções de saúde pública 156 , 157 . A abordagem tem se demonstrado uma ferramenta valiosa para as autoridades avaliarem e agirem rapidamente frente a surtos epidêmicos, seja pelo SARS-CoV-2 ou por qualquer outro patógeno no futuro 158 , 159 , 160 .
Embora ainda sem comprovação científica, a possível transmissão do SARS-CoV-2 através do contato direto ou pelos aerossóis gerados durante o escoamento e tratamento de esgotos, manuseio dos lodos residuais, e também por águas naturais contaminadas com o novo coronavírus, tem gerado grande repercussão por parte dos pesquisadores. A possibilidade de haver contaminações cruzadas do novo coronavírus por meio de hospedeiros intermediários, selvagens ou domésticos, tem aumentado ainda mais a atenção relacionada à presença desse patógeno viral e de suas variantes nesses ambientes. A situação tende a se agravar em países com baixas disponibilidades de recursos, que notoriamente possuem infraestruturas de saneamento precárias.
Sendo assim, com o intuito de reduzir os riscos de surtos emergentes e reemergentes do SARS-CoV-2 através de matrizes aquáticas, têm sido fortemente recomendadas abordagens de precaução quanto à presença do novo coronavírus nesses locais. Nesse âmbito, tem sido enfatizada a importância da definição de novas políticas públicas na área de saneamento, principalmente em países com altos índices de infecções relacionadas às doenças de veiculação hídrica.
As recomendações, em especial, têm visado:
Finalmente, considerando o enorme potencial prejudicial que doenças pandêmicas como a COVID-19 podem causar, e que três surtos de coronavírus já ocorreram e que possivelmente ocorrerão outros em um futuro próximo, têm sido extremamente necessários maiores investimentos nas áreas de saneamento, recursos hídricos e monitoramento ambiental. Os investimentos em água, saneamento e afins, como enfatizado por Melo et al. 161 , além de terem a capacidade de gerar uma ação impulsionadora da economia e de reestabelecer padrões de produção globalmente recomendados, têm sido capazes de impactar diretamente a saúde pública e a qualidade de vida dos seres humanos.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Os autores agradecem à CAPES pelo auxílio financeiro e à Universidade Estadual Paulista (Unesp) pelo suporte. O autor Pedro Henrique agradece à Camila, à Gabriela, à Carmem Tomotani e ao José Francisco Mainardi pela incondicional colaboração e pelo suporte.
* E-mail: pedro.h.mainardi@unesp.br