Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Buscar
Fuente


Caracterização e representatividade dos desvios da qualidade de medicamentos no âmbito da farmacovigilância: uma revisão narrativa
Characterization and representation of substandard drugs in the area of pharmacovigilance scope: a narrative review
Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência & Tecnologia, vol. 10, no. 2, pp. 93-102, 2022
INCQS-FIOCRUZ

REVISÃO


Received: 14 April 2021

Accepted: 15 March 2022

DOI: https://doi.org/10.22239/2317-269X.01922

RESUMO

Introdução: Os desvios da qualidade de medicamentos (DQM) apresentam grande relevância no âmbito da farmacovigilância, devendo ser investigados e monitorados, uma vez que podem levar a uma grande variedade de desfechos clínicos.

Objetivo: Discutir sobre a caracterização dos DQM no âmbito da farmacovigilância por meio de uma revisão narrativa da literatura.

Método: Foi realizada uma busca abrangente em bases de dados utilizando-se os descritores: “farmacovigilância”, “queixas técnicas (QT)”, “DQM” e “sistemas de notificação”, incluindo estudos relacionados diretamente ao tema proposto, realizados no Brasil e publicados no período de 2005 a 2020.

Resultados: Os DQM podem estar relacionados a alterações no próprio medicamento, ao conteúdo e integridade da embalagem e à rotulagem. Dos 18 estudos selecionados (14 artigos, dois capítulos de livro e duas dissertações) contendo notificações de DQM na forma de QT de medicamentos, dois avaliaram exclusivamente notificações de QT de medicamentos (100,0%), enquanto o restante apontou que estas representavam de 0,6% a 70,0% do total de notificações realizadas em estabelecimentos de saúde do país. Os principais DQM evidenciados foram alterações no aspecto do produto, ausência/redução na quantidade do medicamento e problemas nas embalagens.

Conclusões: Considera-se que as notificações envolvendo DQM representem um excelente indicador de qualidade dos medicamentos disponíveis no mercado, vindo a contribuir na qualificação de fornecedores e distribuição de produtos conformes à população.

Palavras chave: Farmacovigilância, Notificação, Controle de Qualidade, Preparações Farmacêuticas.

ABSTRACT

Introdução: Os desvios da qualidade de medicamentos (DQM) apresentam grande relevância no âmbito da farmacovigilância, devendo ser investigados e monitorados, uma vez que podem levar a uma grande variedade de desfechos clínicos.

Objetivo: Discutir sobre a caracterização dos DQM no âmbito da farmacovigilância por meio de uma revisão narrativa da literatura.

Método: Foi realizada uma busca abrangente em bases de dados utilizando-se os descritores: “farmacovigilância”, “queixas técnicas (QT)”, “DQM” e “sistemas de notificação”, incluindo estudos relacionados diretamente ao tema proposto, realizados no Brasil e publicados no período de 2005 a 2020.

Resultados: Os DQM podem estar relacionados a alterações no próprio medicamento, ao conteúdo e integridade da embalagem e à rotulagem. Dos 18 estudos selecionados (14 artigos, dois capítulos de livro e duas dissertações) contendo notificações de DQM na forma de QT de medicamentos, dois avaliaram exclusivamente notificações de QT de medicamentos (100,0%), enquanto o restante apontou que estas representavam de 0,6% a 70,0% do total de notificações realizadas em estabelecimentos de saúde do país. Os principais DQM evidenciados foram alterações no aspecto do produto, ausência/redução na quantidade do medicamento e problemas nas embalagens.

Conclusões: Considera-se que as notificações envolvendo DQM representem um excelente indicador de qualidade dos medicamentos disponíveis no mercado, vindo a contribuir na qualificação de fornecedores e distribuição de produtos conformes à população.

Keywords: Farmacovigilância, Notificação, Controle de Qualidade, Preparações Farmacêuticas.

INTRODUÇÃO

O monitoramento dos medicamentos disponíveis no mercado farmacêutico se faz por meio da farmacovigilância, objetivando a detecção, a avaliação, a compreensão e a prevenção não somente das reações adversas a medicamentos (RAM), mas também de quaisquer problemas relacionados a medicamentos (PRM). Considera-se como PRM qualquer resultado indesejável que esteja relacionado com o tratamento farmacoterapêutico, interferindo de modo real ou potencial nos resultados esperados para tal tratamento 1 .

Diante disso, o escopo das atividades de farmacovigilância compreende: 1. suspeita de RAM; 2. eventos adversos por desvio da qualidade de medicamentos (DQM); 3. eventos adversos decorrentes do uso não aprovado de medicamentos (uso off-label ); 4. interações medicamentosas; 5. inefetividade terapêutica total ou parcial; 6. intoxicações relacionadas ao uso de medicamentos; 7. uso abusivo de medicamentos e 8. erros de medicação, potenciais e reais 1 , 2 .

Os PRM são frequentes em pacientes hospitalizados e podem resultar em prolongamento do período de internação, incapacidade, lesão e/ou óbito, acarretando o aumento do consumo dos recursos sanitários 3 , 4 . Ações visando a identificação rápida dos PRM para a prevenção, a minimização ou a eliminação dos riscos de danos à saúde dos pacientes tornam a farmacovigilância um importante meio de conexão entre a regulação de medicamentos e a prática clínica 3 , 5 . Salienta-se que essas ações ocorrem principalmente por meio de atividades de seguimento terapêutico 5 .

Embora as RAM sejam mais exploradas, a investigação de DQM apresenta grande relevância no âmbito da farmacovigilância 6 . Os DQM se definem pelo afastamento dos parâmetros de qualidade estabelecidos para o produto ou processo exigidos para seu registro e comercialização, podendo causar danos à saúde do paciente ou não 1 .

Desta forma, nem todo DQM leva a um desfecho clínico negativo, pois, se constatado antes da dispensação/administração do medicamento, não ocorrerá dano ao usuário, caracterizando-se, então, como queixa técnica (QT) 1 . Define-se como QT a suspeita de alteração ou irregularidade de um produto ou empresa relacionada a aspectos técnicos ou legais, tais como os problemas de não conformidade do medicamento associados ao seu desempenho, qualidade ou segurança 6 . No entanto, quando é possível estabelecer uma associação positiva entre o DQM e o dano ao paciente, tem-se, então, o evento adverso ao medicamento (EAM) 1 . De qualquer forma, as suspeitas de desvio da qualidade devem ser investigadas e monitoradas, pois podem levar a uma grande variedade de desfechos clínicos.

Este estudo se propôs a discutir sobre a caracterização dos DQM no âmbito da farmacovigilância por meio de uma revisão narrativa da literatura. Para tal, diversas fontes bibliográficas foram recuperadas tanto para a contextualização do assunto quanto para o levantamento da representatividade dos DQM em âmbito nacional.

MÉTODO

Estudo de revisão narrativa visando explorar a seguinte pergunta: Qual a representatividade dos DQM descrita em estudos científicos realizados no Brasil e como caracterizá-los a partir dos achados em questão?

Foi realizada uma busca abrangente nas bases de dados Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), utilizando-se os seguintes descritores: “Farmacovigilância”, “Queixa Técnica”, “Desvio da Qualidade de Medicamentos” e “Sistemas de Notificação”, nos idiomas português e inglês. Além disso, foi realizada uma busca suplementar nas referências dos estudos encontrados, utilizando-se também documentos oficiais de órgãos de Vigilância Sanitária, livros didáticos e dissertações acadêmicas. Foram incluídos conteúdos publicados no período de 2005 a 2020.

No total, foram recuperados 782 artigos nas duas bases. Após aplicação dos critérios de exclusão (período selecionado e idioma), 526 artigos foram excluídos. Foi feita uma leitura crítica do título/resumo dos 256 artigos restantes, excluindo-se os que não eram de interesse ao tema proposto por esta revisão, ou seja, que envolvessem a análise exclusiva de outros tipos de PRM ou realizados fora do território nacional, e aqueles repetidos entre as bases consultadas.

Por fim, a revisão foi baseada em 18 artigos, três livros, três dissertações e dez normas e documentos de órgãos oficiais, incluindo-se também estudos selecionados a partir das referências dos materiais previamente identificados, totalizando 36 referências. A representatividade dos DQM foi obtida utilizando-se o menor e o maior valor referentes às notificações de QT descritos nos artigos selecionados.

Os resultados e a discussão foram organizados de acordo com os seguintes tópicos: “Representatividade de desvios da qualidade de medicamentos na forma de queixas técnicas no cenário nacional”, “Caracterização dos desvios da qualidade de medicamentos”, “Vigilância dos desvios da qualidade de medicamentos” e “Desvios da qualidade de medicamentos e assistência farmacêutica”. Estes temas foram selecionados de modo a contextualizar o assunto central discutido, além de complementar a narrativa inserindo a discussão sobre DQM no âmbito da assistência farmacêutica.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Representatividade de desvios da qualidade de medicamentos na forma de queixas técnicas no cenário nacional

Todos os estudos encontrados (14 artigos, dois capítulos de livro e duas dissertações) abordando dados de notificações de DQM publicados no período descrito (2005–2020) e realizados em território nacional foram incluídos neste levantamento ( Quadro ).

Quadro
Resumo dos estudos selecionados por meio do levantamento bibliográfico sobre a representatividade de desvios da qualidade de medicamentos na forma de queixas técnicas no cenário nacional.

DQM: desvio da qualidade de medicamentos; QT: Queixa técnica; RAM: Reações adversas a medicamentos; MG: Minas Gerais; CE: Ceará; SP: São Paulo; RS: Rio Grande do Sul; PB: Paraíba; GO: Goiás; PA: Pará; BA: Bahia.

Os estudos selecionados por meio do levantamento bibliográfico apontaram que as notificações de QT de medicamentos representam de 0,6% a 70,0% do total de notificações realizadas nos estabelecimentos de saúde descritos 9 , 10 , 11 , 12 , 13 , 14 , 15 , 16 , 17 , 18 , 19 , 20 , 21 , 22 , 23 , 24 . Foram contabilizados ainda dois estudos que analisaram exclusivamente notificações de QT de medicamentos (100,0%) 7 , 8 .

Dentre os outros tipos de notificações analisadas nos estudos, as notificações de RAM foram as mais comuns (90,6%) 21 , seguidas por erros de medicação (73,7%) 23 , QT de artigos médico-hospitalares (70%) 17 e inefetividade terapêutica (36,7%) 16 . Mais da metade dos estudos que mencionaram inefetividade terapêutica a considerou como um DQM 8 , 11 , 15 , 21 , 24 , enquanto o restante não 9 , 16 , 18 , 23 . Destaca-se ainda que as notificações de erros de medicação e inefetividade terapêutica possam ter como causa justamente um DQM não detectado antes da administração do medicamento ao paciente.

Os principais DQM evidenciados pelos estudos foram alterações no aspecto do produto 7 , 8 , 9 , 10 , 11 , 12 , 15 , 16 , 17 , 20 , 21 , ausência/redução na quantidade do medicamento 7 , 8 , 9 , 10 , 12 , 16 , 17 e problemas nas embalagens 7 , 8 , 10 , 12 , 14 , 15 , 17 , 20 .

Verifica-se que a maior parte dos profissionais notificadores são enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, farmacêuticos, técnicos e acadêmicos de farmácia e médicos 8 , 9 , 11 , 13 , 15 , 16 , 17 , 18 , 21 , 22 , 24 .

A maior parte dos estudos foi realizada em hospitais sentinela (66,7%), abrangendo igualmente as regiões Sul e Sudeste (50,0%) e Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país (50,0%). A Rede Sentinela, coordenada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em articulação com os entes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), atua na vigilância de eventos adversos e QT relativos a produtos sujeitos à vigilância sanitária utilizados no âmbito da saúde a fim de obtenção de dados para a avaliação dos riscos relacionados ao seu uso. As informações geradas subsidiam tomadas de decisão para eliminação/redução de riscos e minimização de danos decorrentes do uso destes produtos 1 , 5 .

Caracterização dos desvios da qualidade de medicamentos

DQM podem estar relacionados a alterações no próprio medicamento (alterações na coloração, dificuldade para reconstituição de suspensões, alteração do teor da substância ativa), ao conteúdo e à integridade da embalagem (lacre violado, conteúdo da embalagem incompleto, blister com alvéolo vazio) e à rotulagem (rótulo ilegível, ausência de rótulo ou informações) 5 .

No geral, os DQM podem acarretar consequências para o próprio produto (contaminação, perda de estabilidade e risco de falsificação ou adulteração) e para o paciente (erro de medicação, reação adversa, inefetividade terapêutica, intoxicação e administração de sub ou superdoses), além de interferir nas atividades de assistência farmacêutica, ao gerar erros de dispensação, perda da rastreabilidade do produto e acidentes de trabalho 5 .

Embora uma parte significativa dos DQM seja facilmente detectada antes mesmo da dispensação/administração do medicamento ao paciente, não implicando, então, em EAM, alguns são mais críticos e potencialmente prejudiciais ao paciente, tal como ausência da substância ativa, teor da substância ativa abaixo da especificação e dissolução insuficiente de formas farmacêuticas sólidas quando em meio líquido. Estes tipos de DQM podem levar à inefetividade terapêutica – definida como redução ou ausência de resposta terapêutica esperada após administração do medicamento de acordo com a prescrição ou indicação em bula 1 .

Por outro lado, teores acima da especificação podem levar ao aparecimento de efeitos tóxicos, principalmente no caso de medicamentos contendo substâncias de baixo índice terapêutico. Neste sentido, qualquer desvio associado a falhas no processo de fabricação do medicamento é potencialmente danoso, pois sua detecção geralmente ocorre após a manifestação do EAM.

Além disso, as QT associadas à identificação do medicamento podem levar a erros de medicação. Ausência de rótulo, ilegibilidade/ausência de dados variáveis (número de lote, fabricação/validade) e ausência/ambiguidade em informações relacionadas ao preparo do medicamento e via de administração podem acarretar EAM, se não constatadas antes da administração ao paciente 5 .

Desta forma, a determinação do risco associado ao DQM apresenta grande relevância. A Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 55, de 17 de março de 2005, traz a classificação de risco relativo à saúde a que uma população se expõe pelo uso de um medicamento com desvio da qualidade comprovado ou com indícios suficientes. Os riscos são classificados em três categorias 7 , 25:

  • Classe I: maior risco; situação de alta probabilidade de que o uso/a exposição ao medicamento possa causar risco à saúde com morte, ameaça à vida ou danos permanentes.

  • Classe II: risco médio; situação de alta probabilidade de que o uso/a exposição ao medicamento possa causar agravo temporário ou reversível por tratamento medicamentoso.

  • Classe III: menor risco; situação de baixa probabilidade de que o uso/a exposição ao medicamento possa causar consequências adversas à saúde.

A Figura apresenta os diversos tipos de DQM observados na prática distribuídos de acordo com a classificação de risco relativo à saúde.


Figura
Tipos de desvios da qualidade de medicamentos (categorizados por alteração no medicamento, conteúdo/integridade da embalagem e rotulagem) e risco relativo à saúde inerente a cada categoria.
Fonte: Classificação dos desvios de qualidade dos medicamentos nas categorias de risco relativo à saúde de acordo com a RDC nº 55, de 17 de março de 2005 25 , conforme proposto por Bitencourt, 2018 7 .

Os DQM observados em diferentes lotes de um mesmo medicamento ou em medicamentos diferentes de um mesmo fabricante são indicativos de problemas relacionados ao processo produtivo e não cumprimento das Boas Práticas de Fabricação 7 .

Vigilância dos desvios da qualidade de medicamentos

A notificação espontânea é a principal fonte para captação de informações em farmacovigilância. Diversas vantagens são inerentes a esta atividade, tais como: identificação de um amplo espectro de PRM; capacidade de identificação de EAM que não foram evidenciados durante o estudo do medicamento, previamente à sua comercialização; e rapidez, uma vez que após a identificação do PRM e realização do relato, este é encaminhado continuamente para os órgãos de Vigilância Sanitária 1 . Entende-se que o Sistema Único de Saúde (SUS) seja um ambiente propício para o desenvolvimento deste tipo de atividade, uma vez que possui profissionais capacitados em todos os níveis de atenção à saúde 5 .

Entretanto, algumas desvantagens podem ser apontadas, como redução da sensibilidade do método e atraso das notificações devido: ao preenchimento inadequado do formulário; à dificuldade do monitoramento dos pacientes se não houver contato com o notificador, uma vez que os relatos são pontuais; e principalmente, à subnotificação dos PRM, uma vez que os profissionais de saúde por muitas vezes não os notificam 1 .

As investigações em farmacovigilância devem ser realizadas visando melhorar a segurança do paciente. No nosso país, as atividades relacionadas à farmacovigilância são realizadas pelas Vigilâncias Sanitárias de todas as esferas (municipal, estadual e federal), cada qual com competências específicas 4 .

A vigilância pós-comercialização de QT ganhou maior importância após o ano de 2002, quando um conceito mais amplo de farmacovigilância foi apresentado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), abrangendo diversos PRM 5 .

A criação de formulários eletrônicos para o registro de notificações relacionadas a produtos sob vigilância sanitária, nos quais os notificadores notificam os casos confirmados ou suspeitos, se caracteriza como uma evolução do sistema de farmacovigilância 5 .

O formulário de notificação do Notivisa possui campos relacionados aos seguintes tópicos: 1. QT (descrição detalhada da QT, data da identificação do problema, dados referentes ao local do ocorrido); 2. produto e empresa (número de registro na Anvisa, Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica – CNPJ do fabricante ou importador); 3. dados do produto (nome comercial do medicamento, apresentação, forma farmacêutica, substância ativa, número do lote, datas de fabricação e validade, se o produto é importado); 4. dados do fabricante ou importador (nome/razão social, endereço completo, telefone/Serviço de Atendimento ao Consumidor – SAC) e 5. outras informações importantes (se houve utilização seguindo as instruções do fabricante, local de aquisição; se há nota fiscal da compra; se houve comunicação à indústria/distribuidor; se foram adotadas outras providências; se existem amostras íntegras para coleta e quantas; se existem rótulos para coleta, observações de livre preenchimento) 26 .

Os DQM deverão ser notificados como QT no Notivisa quando – até o momento da notificação – o problema observado no produto não estiver associado a nenhum evento adverso, ou seja, não tiver causado dano à saúde do paciente 5 . No entanto, os DQM associados a eventos adversos, tais como inefetividade terapêutica, intoxicações e erros de medicação, deverão ser reclassificados como tais e notificados no VigiMed, visto a possibilidade de relação causal entre ambos 5 , 27 , 28 , 29 .

O formulário de notificação do VigiMed apresenta tópicos relacionados à informação da notificação (data de recebimento, tipo de notificação, qualificação do notificador); paciente (iniciais do paciente ou sexo ou data de nascimento ou idade no início da reação ou grupo de idade ou se a notificação é Parent Child ); narrativa do caso e outras informações; história médica e medicamentosa; reação (reação/evento conforme relatado); medicamento (indicação de pelo menos um medicamento suspeito ou dois medicamentos em interação, nome do medicamento); testes e procedimentos e avaliação da causalidade 30 .

As notificações recebidas pela Vigilância Sanitária são analisadas de acordo com a gravidade, previsibilidade, relação causal do evento descrito x medicamento e risco à saúde associado ao EAM/QT. Notoriamente, nem todas as notificações irão gerar intervenções sanitárias individuais e imediatas; as notificações podem ser agrupadas e ficar no aguardo de mais informações – ou até mesmo de maior número de notificações – para serem então avaliadas 5 .

Destaca-se que a investigação da causalidade do evento não é um processo simples, uma vez que diversos fatores podem contribuir para a ocorrência do DQM, devendo-se, então, cercar várias hipóteses na tentativa de sua elucidação.

A determinação do risco à saúde associado ao DQM é um dos aspectos mais importantes durante a análise de uma QT. Entretanto, esse tipo de análise é, por vezes, complexo, e deve levar em consideração as características do medicamento e o dano em potencial que o DQM pode gerar 31 . Considera-se como grave uma QT com potencial de causar eventos adversos, como: presença de corpo estranho no produto, suspeita de contaminação e alterações de coloração. Já as QT consideradas não graves são aquelas que não apresentam tal implicação diretamente, como, por exemplo: a falta de uma unidade no alvéolo do blister ou a dificuldade de abertura do frasco. Esta classificação é importante para a decisão da tomada de ações imediatas em âmbito hospitalar e sanitário 5 .

Sempre que a Vigilância Sanitária detectar a necessidade de aprofundamento da problemática trazida pela notificação, ocorrerá a abertura de um processo de investigação, incluindo ações como inspeção nos estabelecimentos e coleta de amostras para análise na modalidade fiscal, de acordo com as leis nº 6.360, de 23 de setembro de 1976, e nº 6.437, de 20 de agosto de 1977 4 , 5 , 32 , 33 . A análise laboratorial do medicamento associado ao potencial DQM pode vir a confirmar as suspeitas/hipóteses levantadas durante a investigação, sendo assim, as amostras devem ser coletadas e enviadas para análise o mais rápido possível 4 . Potenciais DQM são tecnicamente comprovados por meio da análise do medicamento nos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacen), via Vigilância Sanitária.

Preconiza-se a análise por métodos oficiais (farmacopeicos), de maneira com que sejam avaliados o aspecto do produto, a identificação e o doseamento do teor da substância ativa, a uniformidade de doses unitárias e dissolução, sendo aplicados os ensaios de acordo com a forma farmacêutica em questão. Se o laudo analítico referente à análise fiscal evidenciar um resultado insatisfatório, torna-se indispensável a investigação de possíveis causas do desvio da qualidade exposto 4 .

Diversas medidas podem ser tomadas após a investigação das notificações, como: emissão de informes e alertas, alteração de bulas/rótulos, restrição de uso ou comercialização, interdição de lote ou até mesmo cancelamento do registro 5 , 34 .

Cabe destacar que um alerta é definido como uma informação relacionada a um medicamento referente a determinado evento grave, demandando divulgação rápida e ampla. Já um informe é definido como uma informação relacionada a um medicamento referente a um evento que demanda divulgação ampla, mas não urgente. A urgência com que um comunicado deve ser publicado é o que diferencia as duas modalidades de comunicação 3 .

Desvios da qualidade de medicamentos e assistência farmacêutica

A ausência de acompanhamento farmacoterapêutico realizado pelo farmacêutico clínico na esfera ambulatorial faz com que diversos PRM passem de forma despercebida, podendo resultar em desfechos desfavoráveis para o paciente. Desta forma, os serviços de atenção farmacêutica constituem-se como um meio para diminuir a subnotificação dos PRM e fortalecer a relação paciente-profissional da saúde 1 .

Conforme discutido anteriormente, a subnotificação é a principal fragilidade do método baseado na notificação voluntária, presumindo-se, então, que os registros realizados não refletem a realidade total dos PRM 5 .

Os DQM impactam financeira e clinicamente na assistência farmacêutica. Sem um programa de farmacovigilância estabelecido, a devolução/substituição de unidades impróprias para consumo pode não ser realizada. Além disso, no caso de DQM muito frequentes para um mesmo produto ou de adoção de medidas sanitárias que retirem o medicamento de circulação – mesmo que temporariamente –, o abastecimento da rede pode ser comprometido, sendo prejudicial principalmente para o SUS 5 .

Embora os DQM representem um risco potencialmente grande à saúde do paciente, são, por vezes, subestimados por profissionais da saúde frente às RAM e outros PRM 5 , 35 . No entanto, enfatiza-se que as notificações relacionadas a DQM são tão importantes quanto as notificações de RAM na esfera da farmacovigilância 6 , uma vez que os DQM não identificados antes da dispensação/administração do medicamento podem resultar em EAM graves como: inefetividade terapêutica e intoxicações 5 .

Sendo assim, a prática de notificação espontânea deve ser encorajada por meio da promoção de intervenções educacionais focadas na discussão da importância dessa ação. É preciso enfatizar o que deve ser notificado, quem pode notificar e quais são os benefícios de retorno à sociedade (segurança do paciente), estabelecimentos de saúde (redução de custos desnecessários) e mercado farmacêutico (controle e regulação) 36 .

CONCLUSÕES

A farmacovigilância dos DQM contribui de forma direta para a prevenção dos riscos relativos à saúde do paciente. Os estudos que compõem esta revisão apontam para uma representatividade significativa dos DQM nos estabelecimentos de saúde do país, evidenciando a importância da discussão em torno do tema.

É imprescindível que os profissionais de saúde realizem notificações envolvendo potenciais casos de DQM independentemente do risco à saúde associado, uma vez que um dos critérios utilizados pela Vigilância Sanitária no processo de análise das notificações é justamente a reincidência dos relatos.

Por fim, considera-se que as notificações envolvendo DQM representam um excelente indicador de qualidade dos medicamentos disponíveis no mercado, vindo a contribuir na qualificação de fornecedores e distribuição de produtos conformes à população.

REFERÊNCIAS

Mastroianni P, Varallo FR, organizadores. Farmacovigilância para promoção do uso correto de medicamentos. Porto Alegre: Artmed; 2013.

Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Resolução RDC Nº 406, de 22 de julho de 2020. Dispõe sobre as boas práticas de farmacovigilância para detentores de registro de medicamento de uso humano e dá outras providências. Diário Oficial União. 29 jul 2020.

Capucho H. Processos investigativos em farmacovigilância. Pharm Bras. 2008;67:1-12.

Mota DM. Investigação em farmacoepidemiologia de campo: uma proposta para as ações de farmacovigilância no Brasil. Rev Bras Epidemiol. 2011;14(4):565-79. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2011000400004

Bitencourt CR. Farmacovigilância dos desvios de qualidade na rede pública de saúde [dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2017.

Silva PL, Cornélio RAC, Araújo ALA. Farmacovigilância: conhecimento e ação dos profissionais frente a desvios de qualidade de medicamentos. Rev Bras Farm Hosp Serv Saúde. 2014;5(1):33-7.

Bitencourt CR, Pádua CAM, Drummond PLM, Perini E. Farmacovigilância de desvios de qualidade na rede pública de saúde. Rev Bras Farm Hosp Serv Saúde. 2018;9(4):1-7. https://doi.org/10.30968/rbfhss.2018.094.004

Chaves EF, Guimarães JA, Mororó AM, Martins BC, Teixeira AF. Desvios de qualidade de medicamentos: notificações em um hospital sentinela do Ceará. Rev Bras Farm Hosp Serv Saúde. 2020;11(3):1-8. https://doi.org/10.30968/rbfhss.2020.113.0489

Lima PF, Cavassini ACM, Silva FAT, Kron MR, Gonçalves SF, Spadotto A et al. Queixas técnicas e eventos adversos a medicamentos notificados em um hospital sentinela do interior de São Paulo, 2009-2010. Epidemiol Serv Saúde. 2013;22(4):679-86. https://doi.org/10.5123/S1679-49742013000400014

Caon S, Feiden IR, Santos MA. Desvios de qualidade de medicamentos em ambiente hospitalar: identificação e avaliação das ocorrências. Rev Bras Farm Hosp Serv Saúde. 2012:3(1):23-6.

Duarte ML, Batista LM, Albuquerque PMS. Notificações de farmacovigilância em um hospital oncológico sentinela da Paraíba. Rev Bras Farm Hosp Serv Saúde. 2014;5(1):7-11.

Visacri MB, Souza CM, Sato CM, Granja S, Marialva M, Mazzola PG et al. Adverse drug reactions and quality deviations monitored by spontaneous reports. Saudi Pharm J. 2015;23(2):130-7. https://doi.org/10.1016/j.jsps.2014.06.008

Bezerra ALQ, Camargo, Silva AEB, Branquinho NCSS, Paranaguá TTB. Análise de queixas técnicas e eventos adversos notificados em um hospital sentinela. Rev Enferm UERJ. 2009;17(4):467-72.

Sobreira ALC, Roseno DA, Freitas IC, Pedrosa RS, Leal AAF. Análise de notificações de queixa técnica e evento adverso de medicamentos e material médico hospitalar em um hospital sentinela. In: Costa EM, organizadora. Bases conceituais da saúde 6. Ponta Grossa: Atena; 2019. p. 63-75.

Mahmud SDP, Martinbiancho JK, Zuckermann J, Jacoby TS, Santos L, Silva D. Assistência farmacêutica: ações de apoio à qualidade assistencial. Infarma. 2006;18(7/8):24-8.

Basile LC, Santos A, Stelzer LB, Alves RC, Fontes CMB, Borgato MH et al. Análise das ocorrências de incidentes relacionados aos medicamentos potencialmente perigosos dispensados em hospital de ensino. Rev Gaúcha Enferm. 2019;40(esp):1-9. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20180220

Azulino ACO, Costa MHA, Carvalho MN, Moreira AS, Oliveira AF, Pinto ACG et al. Queixas técnicas realizadas pelos profissionais da saúde, relacionadas aos produtos utilizados em hospital sentinela de Belém, Pará. Rev Bras Farm Hosp Serv Saúde. 2013;4(3):13-6.

Furini ACA. Notificação de eventos adversos: caracterização dos eventos ocorridos em um hospital universitário [dissertação]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2018.

Cavalcante VN, Passos ACB, Silva PRM, Francelino EV, Arruda KCO, Sekiguch CHWS et al. Farmacovigilância: análise do monitoramento de incidentes em um hospital do Ceará. In: Pessoa DLR, organizadora. Farmácia na atenção e assistência à saúde. Ponta Grossa: Atena; 2020. p. 139-46.

Oliveira AM, Rodrigues VAV, Passerini JP, Pedreiro PBZ, Minto BA. Queixas técnicas e reações adversas a medicamentos notificadas em um hospital regional no Brasil: um estudo transversal. ABCS Health Sci. 2018;43(1):25-9. https://doi.org/10.7322/abcshs.v43i1.1015

Francelino EV. Centro de farmacovigilância do Ceará: análise do perfil de reação adversa a medicamento e queixa técnica [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2007.

Ribas MA, Chaves GA, Almeida PHRF, Lemos GS. Eventos adversos e queixas técnicas notificados a um núcleo de segurança do paciente. Rev Atenção Saúde. 2019;17(62):71-80. https://doi.org/10.13037/ras.vol17n62.6184

Rodrigues BLM, Lima VLA, Gomes JS, Moia LJM, Pimentel IMS, Pires CFP. Avaliação de eventos adversos relacionados a medicamentos como indicador de implantação de um centro de informações sobre medicamentos. Rev Eletrônica Acervo Saúde. 2019;11(7):1-8. https://doi.org/10.25248/reas.e614.2019

Santos L, Oliveira FR, Martinbiancho J, Jacoby T, Mahmud SDP, Fin MC et al. Descrição das notificações de queixas técnicas de medicamentos recebidas pela farmacovigilância do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Rev HCPA. 2012;32(4):490-5.

Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Resolução RDC Nº 55, de 17 de março de 2005. Fica estabelecidos, por meio do presente regulamento, os requisitos mínimos relativos à obrigatoriedade, por parte das empresas detentoras de registros (fabricantes ou importadores), de comunicação às autoridades sanitárias competentes e aos consumidores. Diário Oficial União. 21 mar 2005.

Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Manual do usuário: Notivisa: Sistema Nacional de Notificações para a Vigilância Sanitária. Brasília: 2021[acesso 15 jan 2021]. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/fiscalizacao-e-monitoramento/notificacoes/medicamentos-e-vacinas/arquivos/8206json-file-1

Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo – CRF-SP. Farmacovigilância: a importância das notificações de eventos adversos e queixas técnicas de desvio de qualidade de medicamentos pelo farmacêutico. São Paulo: Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo; 2020[acesso 09 dez 2020]. Disponível em: http://www.crfsp.org.br/orienta%C3%A7%C3%A3o-farmac%C3%AAutica/641-fiscalizacao-parceira/farm%C3%A1cia/11493-fiscaliza%C3%A7%C3%A3o-orientativa55.html

Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Orientações para notificação no sistema VigiMed. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2019[acesso 9 dez 2020]. Disponível em: http://antigo.anvisa.gov.br/informacoes-tecnicas13/-/asset_publisher/WvKKx2fhdjM2/content/orientacoes-para-solicitacao-de-cadastro-ao-sistema-vigimed/33868?inheritRedirect=false

Cruz ER. Sistema de vigilância pós comercialização e pós uso de produtos, Vigipós. Goiânia; Secretaria de Saúde do Estado de Goiás; 2012[acesso 9 dez 2020]. Disponível em: http://www.sgc.goias.gov.br/upload/links/arq_737_6.pdf

Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. VigiMed: sistema de notificação de eventos adversos no uso de medicamentos: perguntas e respostas versão 1.0. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2019[acesso 15 jan 2021]. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/fiscalizacao-e-monitoramento/notificacoes/vigimed/arquivos/vigimed-perguntas-e-respostas.pdf/@@download/file/VigiMed%20-%20Perguntas%20e%20respostas.pdf

Carter A. Improving the drug quality and safety net. J Diabetes Sci Technol. 2014;8(4):898-9. https://doi.org/10.1177/1932296814531100

Brasil. Lei Nº 6.360, de 23 de setembro de 1976. Dispõe sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, cosméticos, saneantes e outros produtos, e dá outras providências. Diário Oficial União. 24 set 1976.

Brasil. Lei Nº 6.437, de 20 de agosto de 1977. Configura infrações à legislação sanitária federal e estabelece as sanções respectivas. Diário Oficial União. 24 ago 1977.

Gasparotto FS. A qualidade das notificações de eventos adversos no Brasil perante a OMS. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2018[acesso 8 dez 2020]. Disponível em: http://antigo.anvisa.gov.br/documents/33868/5240917/3-+A+qualidade+das+notifica%C3%A7%C3%B5es+de+Eventos+Adversos+no+Brasil+perante+a+OMS__FERNANDA+SOMIONI.pdf/8590ce7a-6164-41fa-b963-a99e3a0a63ee

Zimmermann A, Flis A, Gaworska-Krzemińska A, Cohen MN. Drug-safety reporting in Polish nursing practice-Cross sectional surveys. PLoS One. 2020;15(10):1-13. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0241377

Varallo FR, Guimarães SOP, Abjaude SAR, Mastroianni PC. Causes for the underreporting of adverse drug events by health professionals: a systematic review. Rev Esc Enferm USP. 2014;48(4):739-47. https://doi.org/10.1590/S0080-623420140000400023

Author notes

Contribuição do Autor

Concepção, planejamento do estudo (desenho do estudo), aquisição, análise, interpretação dos dados e redação do trabalho. O autor aprovou a versão final do trabalho.

* E-mail: jaqueline.eserian@ial.sp.gov.br

Conflict of interest declaration

Conflito de Interesse Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.


Buscar:
Ir a la Página
IR
Scientific article viewer generated from XML JATS by