Resumo: Uma investigação das relações entre corpo e paisagem nos parques públicos de São Paulo –acrescida de uma análise da abordagem midiática sobre essas áreas verdes– nos leva a atentar para um aprendizado somático (aprendizado do corpo) como estratégia de geração de significado e vivência na metrópole. Levar esse aprendizado em consideração parece ser de fundamental importância nos últimos anos: uma cidade que restringe as possibilidades de encontros corpo-a-corpo e as possibilidades de aprendizado na interação entre corpos e entre corpos e paisagens é uma cidade fadada ao endurecimento e à falência enquanto local de bem-viver. Quando se desvenda como os parques em São Paulo configuram modos de ser característicos da cidade e se revela que esses modos de ser estão em parte ligados ao papel desempenhado pela mídia, revela-se o papel dos espaços públicos como laboratórios de ser e estar, identificando-se subsídios para a gestão e um possível enfrentamento da crise do espaço público na cidade. É nas áreas públicas e abertas que se encontram as chances de criação de uma cidade mais inclusiva, onde a horizontalidade, o convívio coletivo e o respeito à diversidade possam (talvez) superar as estruturas rígidas de um desenvolvimento vertical e excludente.
Palavras-chave: parques públicos, espaço público, sustentabilidade, sociossemiótica.
Resumen: Una investigación de las relaciones entre el cuerpo y el paisaje en los parques públicos de São Paulo, expansión de un análisis de enfoque mediático sobre esas áreas verdes, nos lleva a emprender para un aprendizaje somático (aprendizaje del cuerpo) como estrategia de generación de significado y vivencia en la metrópoli. Considerar ese aprendizaje parece ser de importancia fundamental en los últimos años: una ciudad que restringe las posibilidades de encuentros cuerpo a cuerpo y las posibilidades de aprendizaje en la interacción entre cuerpos y entre cuerpos y paisajes es una ciudad destinada al endurecimiento y la ruptura como lugar de bienestar. Cuando se desvela cómo los parques en São Paulo configuran modos de ser característicos de la ciudad y se revela que esos modos de estar se encuentran en parte ligados al papel desempeñado por los medios, se revela el papel de los espacios públicos como laboratorios de ser y estar, identificándose subsidios para la gestión y un posible enfrentamiento de la crisis del espacio público en la ciudad. Es en las áreas públicas y abiertas que se encuentran las oportunidades para la creación de una ciudad más inclusiva, donde la horizontalidad, la convivencia colectiva y el respeto a la diversidad puedan (quizás) superar las estructuras rígidas de un desarrollo vertical y excluyente.
Palabras clave: parques públicos, espacio público, sustentabilidad, sociosemiótica.
Abstract: A research on the relationships between body and landscape in public parks of São Paulo —an extended analysis of the media approach to these green areas— leads us to consider somatic learning (i.e. how the body learns and acts) as a way to create meaning and experience in big cities. Taking this learning into account seems to be of fundamental importance in recent years: a city that restricts the possibilities of face to face encounters and the learning possibilities in the interaction between bodies and between bodies and landscapes is a city whose destiny is the hardening and failure as a place of well-being. When the ways of living in the city are revealed in everyday activities developed in open green areas and said ways of living are partly linked to the role played by the media, the role of public spaces as city-living laboratories is revealed, and the means and strategies for the management and possible confrontation of the public space crisis in the city are identified. It is in the public and open areas that the chances of creating a more inclusive city are found, where horizontality, collective socializing and respect for diversity can (perhaps) overcome the rigid structures of vertical and exclusive development.
Keywords: public parks, public space, sustainability, sociosemiotics.
Dosier
Parques públicos em São Paulo: aventura estética na cidade sem horizonte
Parques públicos en São Paulo: aventura estéticaen la ciudad sin horizonte
Public parks in São Paulo: an esthetic adventure in a city without horizon
Recepción: 28 Agosto 2018
Aprobación: 05 Noviembre 2018
Durante um recesso de final de ano, em meio a um dos verões mais quentes que já tivemos, precisei reorganizar minha biblioteca. Os livros acumulados ao longo de 20 anos mereciam limpeza e organização. E aquele clima silencioso que só os primeiros dias de janeiro oferecem parecia ideal para essa tarefa. Foi em meio aos panos de pó que redescobri um livro que havia escorregado para o canto de trás da estante. Publicado em 2001, A duração das cidades (Ascelrad, 2001), captou minha atenção. Nas primeiras páginas, o prefácio de Henrique Rattner, professor titular aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) trazia, de forma objetiva, temas que me interessavam. Dizia o autor:
No limiar do século XXI, quase todas as sociedades enfrentam a desanimadora perspectiva de uma infindável crise urbana, consequência de um modelo obsoleto e irracional da ocupação do espaço. Ademais, a acumulação de riquezas sem distribuição equitativa de benefícios sociais exacerbou contradições e conflitos, particularmente nas grandes aglomerações urbanas. A urbanização rápida e a intensa concentração de indústrias, serviços e, portanto, de seres humanos, têm transformado as cidades no oposto de sua razão de ser – um lugar para viver bem, nas palavras de Aristóteles. (Rattner, 2001, p. 7)
O parágrafo sintético e esclarecedor me levou a uma pausa na arrumação. Sentei-me no chão para reler um trecho obra. Segundo o economista, as decisões atuais sobre a organização do espaço e da vida social e cultural ultrapassam a problemática e a competência técnico-instrumental dos planejadores e tecnocratas. Para ele, essas situações exigem muito mais diálogo, comunicação e interação consciente de toda uma comunidade. Nesse sentido, a solução para problemas de uma cidade não pode ser concebida apenas em termos técnicos e financeiros. “O desafio apresentado aos planejadores e administradores urbanos é o de como implementar um novo conceito de poder político comunitário local” (Rattner, 2001, p. 8), o que, por sua vez, tenderia a promover um desenvolvimento mais humano e solidário.
Uma proposta como essa pode parecer tarefa difícil, se não impossível de se implementar numa cidade como São Paulo. Por um lado, a perda de identidade, do sentido de se pertencer a algum grupo, e a solidão existencial (muitas vezes características de grandes cidades), aliadas ainda ao grande poder financeiro e decisório que se encontra na mão de poucos, fazem com que as pessoas se tornem pouco colaborativas. Por outro lado, entretanto, a diversidade de pessoas e contextos que a grande cidade apresenta também pode revelar oportunidades de encontros e inovações capazes de superar essas dificuldades. Tendo então aspectos favoráveis e não tão favoráveis ao desenvolvimento de uma cidade mais colaborativa, o que impede que São Paulo se torne mais igualitária em seu desenvolvimento?
Com suas periferias excluídas, com a dificuldade de acesso a diversos serviços básicos, São Paulo revela o desafio de nossa civilização urbano-industrial: o de transformar uma estratégia de crescimento econômico que privilegia poucos em um modelo de sustentabilidade baseado no bem-estar da maioria. Segundo Rattner (2001, p. 10), isso se traduz na seguinte questão: “Como podemos substituir o princípio de competição por empregos, mercados, riqueza e poder – imposto a populações indefesas como condição de sobrevivência – pela cooperação, como pilar de sustentação dos municípios?”. Atentar para uma possível resposta nos leva a rever o processo de ocupação do espaço trilhado por cidades como São Paulo. Um processo que acabou sendo prejudicado por dois grandes impasses: pelos efeitos colaterais de um desenvolvimento econômico predatório e pela falácia do planejamento.
As megacidades dos países em desenvolvimento experimentaram crescimento explosivo depois da Segunda Guerra Mundial, com a incorporação dos países recentemente industrializados ao sistema capitalista de produção, comércio e finanças. A organização da produção em fábricas enormes, com milhares de trabalhadores atraiu e concentrou em espaços geográficos relativamente limitados enormes quantidades de capital, trabalho, energia e consumo de recursos naturais. O problema é que, em diversos casos, a infraestrutura das cidades não foi capaz de aguentar os milhões de migrantes. As consequências – especulação de terras, favelas, extrema pobreza e altas taxas de crimes e delinquência – são, de forma geral, efeitos colaterais dessa concentração urbana rápida e desregulada.
Na América Latina, esse processo produziu ainda efeitos paradoxais: enquanto o crescimento econômico ofereceu benefícios ilimitados e prosperidade, ao mesmo tempo produziu custos ambientais e sociais dificilmente visíveis no início, mas desastrosos no longo prazo. Os resultados incluem uma deterioração constante da qualidade de vida, custos mais altos de investimentos em infraestrutura, perda de eficiência da economia metropolitana, degradação dos valores estéticos e, acima de tudo, o clima intolerável do desvio social, violência e perda da solidariedade (Rattner, 2001, p. 12).
Diante desse quadro, o planejamento urbano deixou de conquistar importantes avanços nas últimas décadas. Isso porque, segundo o autor, predominou, entre outros problemas, a falha em se perceber que aspirações e interesses contraditórios acabam por criar gargalos políticos ou desvios em relação aos planos. Em outras palavras, a demanda por um plano urbano (seja ele local, regional ou nacional) pressupõe a existência de um consenso previamente estabelecido sobre as prioridades. Na ausência de um acordo político prévio entre os diversos atores sociais, o planejamento torna-se exercício puramente acadêmico, sem maiores impactos práticos. Ficamos, durante décadas, praticamente na mesma: São Paulo é regida por uma racionalidade funcional (prejudicial a diversos outros aspectos da vida social), regida por pressões de grandes grupos de interesse financeiro e econômico.
Diante do que parecem impasses, o autor sugere que o planejamento pode ser transformado em instrumento de democratização no processo de administração e expansão das cidades, em vez de ser um processo decisório tecnocrático e autoritário. Para isso, seria necessário reduzir a distância que separa a esfera técnica do planejamento de a esfera política da administração, o que necessariamente envolve uma participação da sociedade.
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Quando li esses parágrafos em meio à limpeza das estantes de livros, foi impossível não pensar na pesquisa que estava desenvolvendo sobre os parques públicos em São Paulo junto ao Centro de Pesquisas Sociossemióticas (CPS/PUC-SP). A pesquisa estava vinculada ao Projeto Temático “Práticas de vida e produção de sentido na metrópole São Paulo: regimes de visibilidade, regimes de interação e regimes de reescritura”, projeto esse financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e coordenado por Ana Claudia de Oliveira (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: COS/CPS) e Eric Landowski (CEVIPOF-CNRS, França). Em poucas palavras, o projeto temático tinha como objetivo analisar formas de sociabilidade características da metrópole, investigando tanto as relações entre sujeitos e lugares, em suas mais variadas manifestações (na gastronomia, na imigração, nos esportes, nos museus), quanto as diferentes formas que esse viver é projetado nas mídias, criando assim uma cidade que se dá a ver e que muitas vezes difere da cidade vivida.
Nesse sentido, a investigação sobre os parques públicos teve um duplo objetivo: identificar como esses espaços promovem práticas de vida que configuram formas de sociabilidade tipicamente paulistanas e compreender como os parques são apresentados pela mídia impressa, reforçando ou não as formas de sociabilidade características da metrópole. Para tanto, foram analisados 15 parques na cidade a partir de uma estratégia de investigação sociossemiótica (levando em consideração histórico, contexto, localização, plástica-topológica, práticas de vida que abarcam essas áreas verdes, bem como sua relação com o poder público); também se analisou uma série de reportagens sobre os parques publicadas por veículos da mídia impressa, sobretudo entre 2012 e 2014 (com uma atualização de matérias publicadas entre 2017 e 2018).
O resultado da pesquisa criou uma tipologia dos parques urbanos e de seus usuários a partir das formas de sociabilidade, além de culminar na ideia de ‘projeto de paisagem’, conceito inicialmente desenvolvido por diferentes pesquisadores ligados ao planejamento urbano e regional e especialmente trabalhado pelo arquiteto paisagista e semioticista italiano Franco Zagari (2010). Os resultados da pesquisa expandiram o conceito de ‘projeto de paisagem’ oferecendo, assim, subsídios para a gestão e para um possível enfrentamento da crise do espaço público na cidade.
O texto aqui apresentado extrai parte das conclusões adquiridas na investigação junto ao CPS, tendo como objetivo apresentar reflexões sobre alguns dos principais pilares do projeto de paisagem: a atenção voltada para o contraste e para a diversidade e a necessidade da cooperação são fatores fundamentais levantados pela pesquisa que apresentam o potencial de contribuir para formas mais atuais de gestão dos espaços públicos. Por meio desses pilares, procura-se explicar como os parques - laboratórios de relacionamentos político-sociais dos cidadãos com suas cidades - têm a chance de “transformarem-se em responsabilidade coletiva, diferente da noção convencional de espaço público como propriedade privada da população” (Rattner, 2001, p. 10).
A ênfase do ensaio está na proposta de que, ao estudarmos os parques da cidade, estes se mostram cada vez mais como redutos de espaços públicos, espaços de encontro, de relações corpo-a-corpo, de descobertas de novas formas de convivência. Tal conclusão não surge por acaso. Uma vez que os parques promovem práticas de vida que configuram formas de sociabilidade características da metrópole, nota-se que essas áreas da cidade estão longe de apresentarem modelos prontos ou relações pouco desafiadoras. Mas é justamente por esse contexto desafiador que a dinâmica dos parques da cidade tem muito a ensinar sobre o planejamento e gestão do espaço urbano, sobretudo no que se refere à definição de metas, objetivos e instrumentos a favor de uma cidade mais humana e sustentável no longo prazo.
Atualmente, em São Paulo, os diversos parques – de diferentes tamanhos, localidades e configurações – enfrentam um duplo desafio no que se refere à gestão de seus espaços: atender a uma demanda crescente por lugares de lazer e convivência públicos e gratuitos, além de preservar recantos vegetados em meio a um crescente mar de concreto. Esse desafio ocorre, principalmente, porque São Paulo, ao longo dos últimos 40 anos, optou por ‘fechar’ seu horizonte. A metáfora é, ao mesmo tempo, uma provocação e uma manifestação da cidade. Na medida em que a cidade optou por priorizar a verticalidade cinza do poder financeiro e privado, em detrimento da horizontalidade dos espaços de convivência, verdes, abertos e gratuitos à população, limitou também a vista de seus habitantes àquele lugar onde céu e terra parecem se encontrar. No imaginário popular, enxergar o horizonte é vislumbrar um caminho; é ter esperança. Mas em São Paulo, vê o horizonte apenas quem chega ao topo da verticalidade. E assim, no imperativo da verticalidade que abafa a horizontalidade (Oliveira, 2013, p. 54), sobrevive um espaço público em crise profunda. Uma crise que se dá pela primazia da verticalidade em detrimento da horizontalidade; pela ausência de um equilíbrio entre as estruturas programadas do poder e a liberdade do corpo em devir.
Contrastes no continuum urbano, áreas abertas em oposição à densa massa de prédios, os parques públicos de São Paulo denotam, à primeira vista, um grande contraste visual, cromático e estésico quando comparados ao restante da metrópole: o verde contrasta fortemente com o cimento e o concreto; o som dos veículos motorizados predominantes nas grandes vias é substituído pelo silêncio, pelo roçar das folhas de árvores ao vento, pelo canto de pássaros. Há, portanto, numa comparação entre os parques e o restante da cidade, um grande contraste no estímulo aos sentidos. Aliado a esse contraste (ou devido a ele), o corpo citadino se transforma: permite-se despir parcialmente, suar, correr, respirar, descansar. De forma geral, ao estarem no parque, os sujeitos se comportam e se manifestam de forma relativamente distinta; alguns códigos sociais se alteram em função do contexto, abrindo possibilidades para gestos e comportamentos vistos com menor frequência em outros lugares da metrópole: corpos se exercitam, descansam deitados sob a sombra de árvores, sentam-se no chão. Homens andam sem camisa e mulheres vestem roupas de ginástica que as deixam com a barriga de fora. No parque, é possível tirar uma soneca debaixo de uma árvore. Ninguém estranha.
Cenas como essas em outros espaços da cidade são consideravelmente mais raras. Em nenhum outro lugar da cidade as gerações, as atividades, os gestos e comportamentos tão variados se encontram no mesmo espaço com propósitos bastante distintos. Nas paisagens verdes, convivem os mais variados modos de ser e estar. Nessas paisagens de contraste, desenvolve-se parte do discurso da metrópole através de uma dinâmica própria, singular e reveladora. É na oposição com a própria cidade que surge parte importante do que a metrópole tem a dizer: seja por sua relação com o passeio, o lazer ou o descanso, seja por proporcionarem o contato com reescrituras da natureza (em meio à ausência de natureza) ou ainda por oferecerem espaço para práticas benéficas à saúde (esportes, meditação, caminhadas), as paisagens verdes (ou parques) se apresentam como pausas, como fraturas (no sentido de proporcionarem a descontinuidade, a quebra e o imprevisto em meio a padrões contínuos de visualidade, de plástica e de rítmica urbana proporcionando, assim, a possibilidade de deslumbramento e geração de sentido) (Greimas, 2002, p. 24). Em meio à continuidade cinza do concreto e à aridez do asfalto, surge uma relação do sujeito com a cidade baseada na surpresa e no frescor do verde.
O pesquisador e arquiteto-paisagista italiano Franco Zagari (2010) enfatiza que é a partir dessas fraturas/contrastes que frequentemente surgem novas modalidades do habitar, às vezes mais avançadas do que aquelas sugeridas por outros sistemas urbanos. Para Zagari,
Nos parques, a eterna contraposição entre natureza e cultura, a indecisão sentimental entre passado e presente, nostalgia e esperança, revela esses lugares como espaços emocionais, eminentemente públicos, nos quais a sabedoria da herança histórica e a capacidade de uma visão de futuro trazem a força da paisagem brasileira como valor, muitas vezes como antídoto à vida na metrópole. Enquanto as cidades crescem e decrescem, nos grandes parques encontramos novos valores criadores de uma nova estética que por sua vez absorve, filtra e elabora novas regras do jogo, elogiando a descontinuidade e o movimento. (Zagari, 2010, p. 32)
É nesse contexto que se analisa a liberdade do corpo em devir a partir de um olhar que busca a possibilidade de compreendermos o corpo segundo a construção do significado. Assim, interessa-nos justamente estudar o corpo como mediação: como o corpo apreende o real e o reconstrói fazendo significado das coisas (Landowski, 1996, p. 77). Longe de uma abordagem positivista, o que se sugere por meio de uma abordagem semiótica nos leva a assumir que aquilo que o corpo sente já pertence ao universo do sentido (Assis Silva, 1996, p. 20). Ou seja, o que se sente e o que se compreende não estão em dois níveis separados.
Esse corpo mediador, local de tradução e lugar privilegiado de manifestações, revela nos parques um contato corpo-corpo e corpo-parque que contrasta com o contato regular do corpo-cidade. De forma geral, observa-se que, diferentemente do restante da cidade, nos parques há uma maior possibilidade do sujeito se reconhecer num corpo e, portanto, numa sensibilidade. Como vimos anteriormente, o que o corpo no parque proclama não resulta, de forma geral, da persuasão entre inteligências, mas sim de um repouso sobre o contágio entre sensibilidades. Nos parques não é preciso consumir, não é preciso participar, não é preciso trocar de marcha. Basta sentir-se lá. Basta sentir-se em contato com a paisagem e encontrar, no próprio corpo, um desenvolvimento de competências do sentir e dos sentidos que diferem daqueles presentes no restante da cidade.
Enquanto os parques colocam o corpo, sentidos e significados, em ação, enquanto estimulam descontinuidades (surpresas, pausas e fraturas) no continuum urbano, possibilitam o convívio do corpo com uma paisagem baseada na estesia. E assim, o parque convida o corpo a não apenas estar na paisagem, mas ver-sentir-ouvir a paisagem. A viver a paisagem e a cidade. Opondo-se a um ritmo funcional da metrópole que tende a esvaziar nossos gestos e a reduzir nossos pensamentos, fazendo-os tender ao estado de clichês, oferecendo cada vez mais atividades de lazer baseadas em produtos negociáveis, os parques urbanos possibilitam um rompimento do avanço da funcionalidade, aguçando a sensibilidade, tornando a vida mais espessa, abrindo-a para um não-aqui, não-agora.
Mas não sejamos românticos ou ingênuos, pode pensar o leitor. Certamente, apesar desse tipo de interpretação ser bastante significativo para uma compreensão das práticas comunicativas que se desenvolvem nos parques da cidade, seu perigo está em condenar o restante da cidade ao marasmo absoluto e a enxergar o sujeito citadino num estado de carência (ou falta de sentido) total provocado pela rotina reiterada do cotidiano, pelo desgaste da cidade, pela total dessemantização (ou falta de significado) das práticas de vida.
É claro que, apesar da corporeidade poder se deparar com momentos de deslumbramento nos parques urbanos, uma espécie de ruptura retira o sujeito da rotina e provoca uma relação sensível capaz de absorvê-lo por meio de uma comoção estésica, revelando assim o sentido ‘outro’ das coisas (Landowski, 2002, p. 9); a cidade cinza, a cidade do trabalho, a cidade da não-natureza não pode ‘condenar’ o sujeito à falta de sentido, anestesiá-lo em uma vida aplainada como se os parques fossem os últimos e únicos redutos de um “sentido sensível”.
O que aprendemos observando parques de São Paulo é que apesar de outras localidades da cidade também promoverem intensas relações entre sujeito e paisagem, aguçando os sentidos e provocando interações corpo a corpo (basta lembrar, por exemplo, das ruas de comércio popular aglomeradas por pedestres), os parques públicos se destacam por estimularem grande diversidade de atividades e um amplo leque de possibilidades de sentido, diferentemente do restante da cidade. A formação de micro espaços por meio dessa variedade de usos e significados quase impossibilita que um único sistema programado, enquanto regime de interação, predomine num parque. A programação (que são as atividades pré-determinadas, os usos exclusivos, os planejamentos totalizantes, a estruturas fixas e imutáveis) pode até predominar em diferentes atividades praticadas, mas ela dificilmente determina a totalidade das atividades nesses espaços verdes. Nos parques convivem as mais diferentes idades e os mais diferentes interesses. O que se ressalta é que observar a capacidade dessas áreas verdes em promoverem formas de sociabilidade baseadas no contato e na espontaneidade vai muito além de encará-las como um aglomerado de objetos naturais e de lazer. É a partir da espontaneidade que os parques se conectam com a cidade em ininterruptos processos de mediação. E nessa espontaneidade e variabilidade de corpos, atividades, gestos e interações corpo-corpo e corpo-paisagem é que se dá um aprendizado somático. E, nele, o passo em direção a uma cidade mais colaborativa, uma vez que o aprendizado do corpo é capaz de operar o diálogo entre o contínuo e o descontínuo, como veremos a seguir.
Propor que o aprendizado somático, como estratégia de aprendizado e vivência na metrópole, opera as relações entre o contínuo e o descontínuo nos leva a aprofundar o entendimento sobre o papel que as áreas verdes desempenham nas formas de sociabilidade da metrópole e a compreender não apenas como o sujeito se coloca como construtor de seu próprio sentido, mas também a identificar os momentos em que o espaço público se revela em crise.
A potencialidade plástica dos parques vividas pelos sujeitos no lazer e a própria plástica topológica das áreas verdes oferecem um aprofundamento dessas questões e permitem vislumbrar como a falta de equilíbrio entre as estruturas programados do poder e a liberdade do corpo em devir contribuem para a crise do espaço público na cidade. O olhar semiótico contribui para essa análise. Vejemos:
“Os parques nada significam se forem divorciados das influências concretas – boas e más – dos bairros e usos que os afetam”, mencionou Jane Jacobs, célebre autora de Morte e Vida de Grandes Cidades (Jacobs, 2001), originalmente publicado na década de 1960. A observação é válida até hoje. Para Jacobs, apenas a função interativa dos sujeitos com o território possibilita a formação de uma identidade através do tempo. Na análise semiótica, essa ideia pode ser traduzida enquanto relação sujeito-paisagem que, por sua vez, sugere recuperar algo profundo a partir de manifestações do plano da expressão. É assim que Assis Silva (1996), citando Geninasca, sugere que a paisagem possa ser vivida enquanto figura pelo sujeito, tendo habilidade de nos convidar a explorar o sensível que a partir dela se instaura, num encontro entre o vivido e o figural.
Essa exploração semiótica da paisagem enquanto figura, ou seja, da paisagem vista-vivida pelo sujeito, torna-se possível devido ao caminho já aberto por Greimas ao propor que a figuratividade não é um ornamento das coisas, mas sim uma tela que, graças à imperfeição ou por causa dela, possibilita um entreabrir-se que nos deixa entrever uma possibilidade de além sentido. Ao debruçarmos sobre a variedade de parques urbanos e depararmos com um encontro entre o vivido e o figural (a própria relação sujeito-paisagem), a partir de uma certa interrupção do movimento que predomina na metrópole, somos primeiramente convidados a analisar manifestações produzidas a partir da potencialidade plástica desses espaços da cidade. Perguntamos: Como essa potencialidade plástica é vivida pelos sujeitos?
Como vimos até agora, a resposta está, principalmente, nas atividades de lazer. A potencialidade plástica topológica desses espaços é principalmente vivida pelo ócio criativo e pela fruição do espaço, que por sua vez está longe de criar experiências homogêneas. Sob esse olhar, os parques não manifestam significados prontos. Sua significação abarca a presentificação dos sujeitos, o que por sua vez nos oferece a possibilidade de fugirmos das versões estereotipadas da cidade e identificarmos a busca de sentido pelos modos de viver.
No cerne da oposição natureza/cultura, surgem polaridades: a grande metrópole tende a ser associada ao trabalho, ao consumo, às características alimentadoras do capitalismo desenfreado. As reescrituras da natureza, por sua vez, são associadas ao seu oposto: ao descanso, ao contato com elementos da natureza, ou seja, a manifestações que presentificam o lazer no contexto do viver numa grande cidade.
Seja em áreas grandes, recobertas por grandes extensões de gramado ou em locais mais sombrios cobertos por densa arborização, descobrimos atividades variadas que se revelam em horas mais praticadas, estimulando uma maior geração de sentido (como apresentações de música) ou em horas mais repetitivas e mais características de um uso pressuposto (como as atividades de cooper ou os trajetos de bicicleta). Em meio a essa variedade, as práticas de lazer nos parques revelam-se ainda promovendo diferentes graus de socialização e aprendizado. Dos esportes à leitura, do passeio com cães à contemplação do espaço, os modos de presença e de sociabilidade permitem a identificação de formas de se habitar a cidade que em grande parte diferem dos demais espaços planejados (em sua maioria, privados). Essas formas podem ser coletivas ou individuais; podem ser culturais ou esportivas; podem ser meditativas ou educativas. Em todos os casos, os modos de presença tangenciam, necessariamente, o convívio com o outro, seja ele sujeito ou paisagem.
Nessa dinâmica capaz de promover formas de sociabilidade, o traçado de cada parque (a configuração eidética, cromática, matérica e topológica de sua paisagem) é em grande medida homologada à construção das práticas predominantemente de lazer. E é também por essa homologação (entre outros fatores) que os parques se tornam laboratórios de comportamentos. Um laboratório, portanto, das relações sujeito-paisagem que acaba contribuindo para a organização social, para a construção de modos de se habitar e viver.
Se a semiótica topológica é revelada como a descrição, produção e interpretação das linguagens espaciais, ao analisarmos as paisagens verdes da cidade nos encontramos diante de um objeto polissêmico, por um lado imediatamente apreendido como efeito de sentido, mas por outro, apresentando a necessidade de desarticularmos o todo em suas partes constitutivas para melhor compreendê-lo. Assim, na medida em que se analisa a relação sujeito-paisagem nos parques públicos, identifica-se e “desarticula-se” os diferentes aspectos da topologia, dos usos e modalidades presentes nesses espaços. É certo que, nessa desarticulação, não basta elencar os objetos que compõem cada espaço. Necessário é identificar propriedades comuns, que por sua vez configuram determinadas relações.
Diferentes características físicas encontram-se inscritas em diferentes formas de se conceber o espaço, investindo nele diferentes valores e papeis actanciais, bem como usos pressupostos desse lugares – o passeio, a fruição, a prática esportiva. Alguns exemplos se fazem bastante evidentes: os tipos de pisos (como no Parque Trianon, na Av. Paulista), apresentam inclinações e largura de suas ruas pouco adequadas para o passeio com bicicleta; outros (como o Parque Zilda Natel) são propositalmente construídos para a prática do esporte e abrem poucas possibilidades para demais atividades.
Em diversos outros casos, usos são adaptados pelos usuários. No Parque Linear Aricanduva, construído na beira do complexo de vias expressas do bairro da Zona Leste da cidade, a calçada, o viaduto e as árvores transformam-se em suporte para jogos, brincadeiras e socialização, promovendo uma forte reescritura, através da prática, destes espaços que nada tinham a ver com o lazer. O canteiro central transforma-se em parque não apenas pela nomeação oficial do poder administrativo, mas sobretudo pela forma como os usuários interagem entre si no espaço, semantizando-o. São manifestações que tornam os parques laboratórios comonovas formas de sociabilidade, uma vez que o espaço aberto permite encontrar novos usos para seus lugares, configurando, assim, microespaços diferentes do macroespaço original.
Esses breves exemplos nos mostram que a análise das características plástica e topológica nas áreas verdes da cidade não leva a uma definição já pronta dessas regiões. Muito menos conduz a uma associação direta com a plenitude de sentido na medida em que podem romper com o aspecto “funcional” do restante da cidade (algo que planos de urbanização freqüentemente tendem a justificar, encarando as áreas verdes como “dádivas” à população).
Como já vimos, na interação habitante-lugar não encaramos os sujeitos urbanos como personagens caracterizados pela carência de sentido, ancorados às rotinas do cotidiano, como se a salubridade e o sentido pleno estivessem exclusivamente associados ao encontro desses sujeitos com as paisagens verdes. A estereotipia tende a conectar o “não-urbano” (natureza) à saúde e a vida plena, enquanto que a insalubridade, o funcional, o automatizado caracteriza, estereotipicamente, o restante da cidade. Ao analisarmos a plástica-topológica e as interações habitante-lugar desses lugares, notaremos que os parques não estão separados do restante da cidade. Mas manifestam uma potencialidade plástica a ser apreendida que, por sua vez, coloca o sentido em mutação.
A análise da plástica topológica (associada a uma análise das práticas) e a ‘fuga’ da esteriotipia nos leva a apreender a participação dos sujeitos na criação de grande parte da figuratividade dos parques, revelando assim uma (res)semantização desses lugares e, talvez, da imagem da metrópole. E nos permite assumir que, mais do que condenado ao sentido, o sujeito é construtor de seu próprio sentido. Portanto, enxergar a cidade enquanto cidade vivida é ver o sujeito, em diversos momentos, enquanto seu próprio destinador e não simplesmente como receptor da intencionalidade do outro.
Quando os processos comunicativos na cidade são demasiadamente controlados ou quando impossibilitam o surgimento de uma variedade coesa de estratégias comunicativas; quando a comunicação é encarada como estrutura e não como processo, maiores são as possibilidades de geração de não-sentido. Daí a importância dos espaços públicos no estímulo a relações que oferecem um laboratório ao exercício, ao mesmo tempo de resistência à verticalidade e de movimento das práticas de vida. É nesse sentido que, consciente ou inconscientemente, os encontros nos parques públicos podem antecipar novas modalidades do habitar: mais do que “pulmões verdes”, os parques públicos se apresentam como ‘pausas’, como possibilidades de reorganização, como estimuladores de equilíbrio entre o continuo e o descontínuo, características fundamentais para a sustentabilidade da metrópole. Como veremos mais adiante, poderíamos dizer, no jargão semiótico (Landowski, 2009), que há, nos parques ampla possibilidade para a promoção do diálogo entre, de um lado, os regimes de programação e manipulação (estratégias e processos mais previsíveis, de ordem, de causa e efeito e, nesse sentido, tendem a seguir determinado planejamento e garantir a segurança) e, de outro, os regimes de acidente e ajustamento (ações mais imprevisíveis e, por isso, mais arriscadas, onde o corpo se coloca em devir, se lança ao desconhecido, conversa com o acaso, se entrelaça, se adapta e se conecta com seu entorno). Quando esse diálogo (entre estrutura e devir) é, de alguma forma tolhido ou não se concretiza nas cidades, é sinal de que seus espaços públicos estão em crise.
Além das relações corpo a corpo que se fazem ver por meio de um aprendizado somático e por meio das relações entre corpo e paisagem, uma apreensão midiática torna-se também fundamental no entendimento de como as vivências que emergem nas paisagens verdes da cidade geram significado e como se relacionam com a própria dinâmica da metrópole. A mídia revela, como veremos a seguir, uma relação, ora de confronto, ora de diálogo entre o contínuo e o descontínuo que, por sua vez, desempenha importante papel na configuração do espaço público na cidade1.
Um conjunto de reportagens produzidas pela mídia online e quatro veículos de informação: os jornais Folha de S. Pauloe O Estado de S. Paulo e das revistas (versões online) Época e Veja São Paulo. A apreensão dessas formas narrativas também conduziu à necessidade de analisarmos um outro segmento da mídia online: as mídias sociais (principalmente blogs e sites ‘independentes’ ou ‘informais’) que se revelaram fundamentais no entendimento de como as manifestações nas paisagens verdes se relacionam com a dinâmica da própria cidade.
Os textos captados e apresentados por esses veículos podem ser agrupados em dois grandes grupos opostos, no entanto complementares; antagônicos, mas ricamente interacionais. De um lado, os parques são abordados como parte da continuidade, do espaço conhecido da cidade, dentro dos mecanismos burocráticos e programáticos que vislumbram a construção de uma cidade que funcione de forma operacionalmente eficiente, sem riscos ou imprevistos. De outro, os parques são ressaltados como espaços que elogiam a descontinuidade (Landowski, 2009, p. 93) e o movimento (Zagari, 2010, p. 54). Como pontos de resistência contra a verticalização desenfreada da metrópole, são evidenciados como locais de retorno à natureza, capazes de promover o convívio entre as diferenças (de idade, de gênero, de “tribos”) e assim trazer à cidade novos valores criadores de uma estética que, por sua vez, absorve, filtra e elabora novas regras do jogo citadino. O primeiro grupo predomina na mídia formal (analisado nas versões digitais de jornais e revistas de grande circulação). O segundo grupo é encontrado com mais frequência nas mídias sociais (mídia informal – blogs e Facebook, principalmente), mas não está totalmente ausente da mídia formal. Revela-se, assim, que a abordagem das paisagens verdes da cidade pela mídia transita entre o contínuo e o descontínuo, entre as possibilidades de sentido e não-sentido.
Por que é importante entender a dialética entre contínuo e descontínuo? Por um lado, as regras, técnicas, normas, leis e padronizações estão no cerne das adequações do espaço a um uso funcional, garantindo a boa parte da convivência e da administração de maneira regular, sem imprevistos. Por outro lado, a cidade não se constrói por meio de um plano único e totalizante, mas sim por meio de um fluxo contínuo entre risco e segurança, previsível e imprevisível, contínuo e descontínuo.
Para melhor entender a continuidade ligada à previsibilidade, o semioticista Eric Landowski (2009) nos oferece alguns exemplos:
Ao proteger-nos contra o risco de acidentes [...] ou melhor, para evitarmos os riscos vinculados a diversas incertezas, tomamos milhares de precauções consagradas por tantas outras proibições. As regras de trânsito são um bom exemplo: para se garantir a ordem e o bem-estar, é proibido acelerar, virar, estacionar, parar, ultrapassar... ; é preciso usar cinto de segurança, parar no farol vermelho, transportar crianças no banco de trás. São ações que, em última instância, diminuem o risco nas ruas e avenidas. (p. 95)
Para compreender como isso se relaciona aos parques, basta avaliar, por exemplo, a construção de parques lineares em diversos bairros da cidade. Um dos principais objetivos dessas intervenções urbanísticas está na necessidade de organização dos bairros, limpeza de córregos e prevenção de enchentes (uma vez que grande parte dos parques lineares é construída ao longo de córregos nas áreas periféricas da cidade – daí o nome de ‘linear’). Já no interior de grandes parques como o Ibirapuera (Bergamasco, 2012), os desafios enfrentados pelos administradores não são poucos: os problemas variam do vandalismo à recomposição vegetal; da educação dos usuários à manutenção física de locais onde transitam milhares de pessoas todas as semanas (o Parque Ibirapuera chega a receber mais de 120.000 visitantes no final de semana ensolarado). O desafio dos administradores está, em grande medida, na manutenção física da área verde (limpeza, arborização, sanitários, acessos, playgrounds, quadras, equipamentos, etc.) e na garantia da seguridade do parque e dos visitantes.
Isso nem sempre é fácil. Em matéria realizada pelo jornal Folha de São Paulo, os problemas da manutenção e administração dos parques acentuam o abandono e falta de segurança. O poder público é criticado e convocado a instaurar ordem no caos. “Um usuário, por volta das 13 hs de ontem, começa a urinar na mata, ao lado do prédio histórico que abriga o único banheiro do [parque] Trianon”, revela a matéria. “O parque está interditado desde o início do mês por ‘problemas operacionais’... Os problemas operacionais em questão afetam 48 parques e são decorrentes de uma falha na gestão”, comenta a matéria (Geraque e Spinelli, 2013).
Num outro artigo que chama a atenção para os roubos de bicicleta no Parque Ibirapuera (Bertoni, 2013), os parques também estão longe de serem ressaltados como locais idílicos. Os textos clamam pela institucionalização das áreas verdes, demandando ações de ordem e poder, destacando a ideia de manutenção de atividades contínuas, constantes e previsíveis, dentro de um espaço operatório, administrável e controlável. Em outras palavras, para que os parques “funcionem”, o espaço deve ser controlado e, evidentemente administrado. Nesse aspecto, os parques são vistos como espaços onde deve predominar a ordem e a constância: gramas aparadas, vias limpas, locais sem obstáculos, sem roubos, sem surpresas desagradáveis (algo que também se almeja no restante da cidade). O parque (assim como a cidade) é visto como um grande sistema que apresenta regularidades próprias que devem ser eficazmente manipuladas ou controladas, algo que se torna bastante evidente no recente surto de febre amarela que assolou a cidade e o estado de São Paulo e que levou a diversos parques a permanecerem fechados (Canal G1, 2018, párr. 2) durante quatro meses do ano (Bertoia, 2018).
Apesar das regras, proibições e controles serem inegavelmente importantes e necessários para o funcionamento da cidade, uma sociedade que, em nome da organização e da preservação da vida se desenvolve apenas pelas certezas absolutas, estaria condenada à imobilidade total e “mortal”. É possível que a ideia também se aplique aos parques. Afinal, sabe-se que “apenas” o funcionamento estrutural, ou seja, a continuidade, as regras e a manutenção não são suficientes para que um parque público desempenhe com sucesso sua função.
É o que mostra, por exemplo, a matéria sobre o parque linear na Brasilândia (Ribeiro, 2012). O parque é um espaço que surge como resultado da revitalização de uma zona “morta” numa comunidade periférica da cidade que, através da implantação do parque, recuperou um ponto de centralidade e convívio. O local é, então, visto não apenas como obra urbanística, mas também como antídoto à segregação entre moradores, como estímulo à familiaridade entre diferentes, como espaço de descanso, como lugar para o exercício físico e, quase por consequência, para o exercício da liberdade. O parque linear na Brasilândia é mostrado como um espaço que prioriza o desenvolvimento em devir, o diálogo, a criação de modalidades alternativas do habitar a cidade. E esses fatores são tão importantes quando se refere a estrutura, a segurança e a manutenção. Sobretudo porque, em determinada medida, as atividades um pouco mais arriscadas –no sentido de não serem tão programadas e controladas– são fundamentais para a geração de sentido e até mesmo para a sobrevivência desses espaços. São elas que, na ruptura, na surpresa e na novidade (Landowski, 2004, p. 49) criam diversos movimentos a favor de outros modos de ser e habitar a cidade.
É justamente o ‘risco’ e as atividades a favor do risco (do novo e do desconhecido) que se observa com intensidade nas mídias sociais (ou na mídia digital ‘alternativa’, sobretudo em blogs e nas páginas independentes do Facebook). Exemplos relevantes são oferecidos nos últimos anos pelas iniciativas a favor da implantação de novas áreas verdes no município, como o Movimento Parque Augusta e a Rede Novos Parques, movimentos que lutam não apenas pela implantação de novos parques em regiões da cidade carentes de áreas verdes, como também clamam por formas de gestão mais participativas. Se, por um lado, a longa batalha pela implantação do Parque Augusta chega ao fim por meio de uma resolução bastante polêmica, onde em troca da abertura do parque, a prefeitura cede às donas do terreno –as construtoras de grande porte Cyrella e Setin– uma área pública em local mais valorizado da cidade, ou seja, de aparente maior valor imobiliário; por outro lado, os desdobramentos do Movimento Parque Augusta fizeram eclodir uma série de questionamentos sobre o modus operandi dos sistemas de gestão atuais, propondo novas formas políticas de se relacionar com a cidade que, embora do muito pouco interesse do Estado, acabam sendo fundamentais à população, pois ressaltam esses espaços justamente como frutos da responsabilidade coletiva (Brucoli, 2017, párr. 4).
Outro movimento importante é o Programa Ruas Abertas, (Secretaria Especial de Comunicação da Prefeitura de SP, 2016) iniciativa de abertura de ruas e avenidas exclusivamente a pedestres e ao lazer aos domingos e feriados. Conquistado (Catraca Livre, 2016) e mantido pelo movimento popular (uma vez que a prefeitura não raramente ameaça desmontar a iniciativa) (Rede Nossa São Paulo, 2017), as diversas organizações sociais que acompanham o programa se lançam a propor novas formas de gestão desses espaços públicos e abertos, mostrando que a solução para os problemas de uma cidade não pode ser concebida apenas em termos técnicos e financeiros.
Por meio de registros da mídia formal e informal, é possível identificar esses dois movimentos que movem tanto os parques, como a própria cidade: ao mesmo tempo em que as áreas verdes são espaços de liberdade e fruição, lugares de possibilidades e opções, de descontinuidade e inovação, antítese das regras de trabalho e do ritmo frenético do restante da metrópole, eles não deixam de demandar e requerer atitudes programadas e manipulatórias, necessárias à manutenção e continuidade de sua existência. São as iniciativas raramente divulgadas pela mídia formal, porém amplamente presentes na mídia informal, as responsáveis por indicar possibilidades de uma cidade como São Paulo a se tornar mais colaborativa e horizontal, enfrentando a rigidez dos espaços verticalizados.
Nesse contexto, o aprendizado do corpo opera justamente o diálogo entre o contínuo e o descontínuo, entre a segurança e risco, entre o previsível e o imprevisível, transformando um movimento normalmente visto como antagônico em ação complementar: na constante (e necessária) oposição entre continuidade e descontinuidade, o aprendizado somático ocorre na implementação de programas e projetos, ajustando as medidas entre ordem e liberdade, tornando o corpo mediador e aprendiz, refletindo as estratégias e adaptações que configuram a morfologia social da cidade. Na medida em que é permitido ao corpo aprender, ele organiza o que estava disperso e diversifica o que era hegemônico; padroniza o que estava confuso e articula o que parecia desconexo.
Talvez esse aprendizado do corpo, que promove um diálogo entre o contínuo e o descontínuo, entre programação e liberdade, represente o que na visão de Richard Sennet (1988) seja a possibilidade de “re-preenchimento” da esfera pública e uma reconfiguração das esferas de poder: de uma estrutura hierárquica dominante, observa-se nos parques da cidade a possibilidade de desenvolvimento de novas configurações de discurso e de presença. A ideia nos conduz a observar um contexto sempre em mutação, um fluxo contínuo de pensamentos, significações, crenças, explicações e valores. Analisar esse “fluxo” pode ser uma das importantes contribuições para a gestão dos parques urbanos e da própria cidade.
As possibilidades dessa observação têm nos mostrado que os universos de significação construídos nas paisagens verdes não mantêm, necessariamente, relações simples e diretas. A significação de áreas verdes vai muito além de estereótipos como “pulmão da cidade”. Pelo contrário: as áreas verdes mostram uma interessante relação entre o desafio de se dosar, equilibrar e conciliar programas, leis e regras de gestão e condução desses espaços sem deixar de se incentivar as atividades de caráter não-programado, livres e espontâneas, típicas dos encontros e do sentir. Essas conclusões se oferecem como grandes contribuições para propostas de gestão do espaço público em que se observa uma profunda crise na organização desses espaços.
Isso nos faz voltar à pergunta do início do texto, em que Henrique Rattner (2001, p. 7) procura identificar o que impede que São Paulo seja mais igualitária [e, quiçá, colaborativa] em seu desenvolvimento. Longe de visões estereotipadas, talvez os parques se apresentem como últimos receptáculos urbanos onde as pessoas podem ser estranhas umas às outras e mesmo assim conviver com a diversidade, pautadas em códigos simbólicos –como o modo de vestir, de relaxar, de se exercitar– regulando e propondo novas formas de interações sociais. Nessa dinâmica, observa-se a formação (ou seu contrário, a destruição, quando obstruída) de processos comunicativos que estimulam as relações humanas e assim tornam os espaços mais ou menos vivos, mais ou menos resilientes.
O planejamento das cidades só poderia ser transformado em responsabilidade coletiva (em vez de ser um processo decisório tecnocrático e autoritário) se se devolver a elas uma de suas características primordiais: a criação de novas linguagens, a abertura de novas possibilidades de relacionamento, o desdobramento de novas ideias, o estabelecimento de um novo estado das coisas, propondo uma transformação das relações entre sujeito e objeto.
Os parques públicos nos ensinam que nessa interação, o espaço torna-se tão sujeito quanto os outros sujeitos. E ambos, enquanto sujeitos, abrem caminho para tornar a vida mais espessa, fazendo com que o espaço seja laboratório de novas linguagens transformando a experiência e criando outros significados na cidade.
https://revistas.ulima.edu.pe/index.php/contratexto/article/view/3894/3883 (pdf)