Dosier
“Onde queres Dubai sou Pernambuco”: Entre prospecções e reminiscências do Ocupe Estelita
“Onde queres Dubai sou Pernambuco”: Entre prospecções e reminiscências do Ocupe Estelita
Contratexto, núm. 30, pp. 157-179, 2018
Universidad de Lima
Recepción: 31 Julio 2018
Aprobación: 24 Octubre 2018
Resumo: . O presente ensaio insere-se nos desenvolvimentos iniciais da Dissertação em andamento sobre o Movimento Ocupe Estelita (MOE) – movimento contra a construção do projeto Novo Recife que prevê a implementação de doze torres de até quarenta andares no terreno da União do Cais José Estelita. Adicionalmente, destina-se a levantar os primeiros questionamentos resultantes de uma preliminar investida ao campo. A partir de uma pesquisa etnográfica, pretendo resgatar as reminiscências do período da ocupação para tentar entender os funcionamentos e posicionamentos do Ocupe Estelita em relação à contemporaneidade, assim como ao futuro. Baseada nas próprias narrativas, falas e discursos de seus integrantes e, além disso, nas observações e anotações do caderno de campo, as seguintes questões emergem como fruto dessa incursão: se o movimento pode ser compreendido como uma ruptura, uma vitória pela não construção das torres; se existe relação entre o imaginário pernambucano de lutas e resistência e o posicionamento do Cais José Estelita como símbolo da persistência e da sobrevivência a uma lógica de cidades geridas como empresas; e, ademais, se o cais Estelita, compreendido como espaço físico ressignificado pela ocupação, emerge nesse contexto como símbolo afetivo referencial da cidade de Recife.
Palavras-chave: s: Ocupe Estelita, cidade, cidades empresas, ocupação, movimento social.
Resumen: . El presente ensayo es parte del desarrollo inicial de la tesis de maestría en curso sobre el Movimiento Ocupe Estelita (MOE) —movimiento en contra de la construcción del proyecto Novo Recife— que prevé la implementación de doce torres de aproximadamente cuarenta pisos en el terreno de la Unión del puerto José Estelita. Más aun, este trabajo está destinado a presentar los primeros cuestionamientos resultantes de un trabajo de campo preliminar. A partir de una investigación etnográfica, pretendo rescatar las reminiscencias del periodo de ocupación para tratar de entender los funcionamientos y posicionamientos de Ocupe Estelita en relación con la contemporaneidad, así como con el futuro. Basada en narrativas propias, palabras y discursos de los integrantes, y en las observaciones y anotaciones del cuaderno de campo, emergen como fruto de esta incursión las siguientes interrogantes: si el movimiento puede comprenderse como una ruptura, una victoria por la no-construcción de las torres; si existe relación entre el imaginario pernambucano de luchas y resistencia, y el posicionamiento del puerto José Estelita como símbolo de la persistencia y sobrevivencia a una lógica de ciudades gestionadas como empresas; asimismo, si el puerto Estelita, como espacio físico resignificado por la ocupación, emerge en ese contexto como símbolo afectivo referencial de la ciudad de Recife.
Palabras clave: Ocupe Estelita, ciudad, ciudades empresa, ocupación, movimiento social.
Abstract: . This essay is part of the initial draft of the ongoing master’s thesis on the Ocupe Estelita Movement (MOE): a movement against the construction of the Novo Recife project which foresees the implementation of twelve buildings of approximately 40 floors each on the land of the União do Cais José Estelita. Moreover, it is intended to raise the first questions resulting from a preliminary fieldwork. From an ethnographic research, we intend to redeem the reminiscences of the occupation period to try to understand the functioning and positioning of the Ocupe Estelita Movement in relation to contemporaneity, as well as to the future. Based on its peoples’ own stories, speeches and discourses, and the observations and entries of the fieldnotes, the following issues emerge as a result of this incursion: if the movement can be understood as a rupture, a victory for the non-construction of the towers; if there is a relationship between Pernambuco’s imaginary of struggles and resistance, and the positioning of the José Estelita port as a symbol of persistence and survival of cities managed as companies; and if the José Estelita port, understood as a physical space modified by the occupation, emerges in this context as a referential affective symbol of the city of Recife.
Keywords: Ocupe Estelita, city, business cities, occupation, social movement.
Introdução
O presente artigo pretende estudar como objeto o Movimento Ocupe Estelita (MOE), movimento social urbano de ocupação que se desenvolve na cidade do Recife, capital de Pernambuco, estado inserido na região Nordeste do Brasil. No período colonial brasileiro, o país era dividido entre Capitanias Hereditárias, cada uma gerida e governada por um nobre nomeado pelo rei de Portugal. A Capitania Hereditária de Pernambuco foi uma das mais prósperas da época devido à produção açucareira, importante matéria prima nesse momento histórico. Além disso, no século xix, a metrópole abrigava um elevado número de intelectuais, filhos da nobreza que iam fazer faculdade fora do país e depois retornavam com ideias progressistas, gerando um cenário propício para eclosão de revoltas libertárias como a Revolução Pernambucana de 1817.
Nos anos 1990, emerge na capital pernambucana um movimento social, político e cultural denominado Manguebeat, que apresentava como fundador e principal expoente Chico Science, cantor e compositor da banda Nação Zumbi (2000). Cantando as mazelas da suburbanização recifense por meio de uma metáfora com o mangue, ecossistema predominante da região, Science denunciava a pobreza, a miséria e a fome aterradas na lama da periferia da Manguetown. Atualmente, Recife apresenta poucas mudanças socioeconômicas, com a diferença de ter conquistado o título de maior trânsito do país (Recife, a capital com o trânsito mais lento do país, 2018), ter adquirido algumas reformas higienistas que assumem a vizinhança das palafitas e barracos, e ainda figurar em 22o lugar no ranking de cidades mais violentas do mundo (Recife é a 22o cidade mais violenta do mundo, 2018).
A venda do terreno da União do Cais José Estelita, em 2008, gerou uma movimentação e articulação da sociedade civil pernambucana que defendendo a causa do Estelita passou a promover eventos e atividades na área externa do cais. A tentativa de implementação do Projeto Novo Recife –que pressupõe a construção de um condomínio de luxo com doze torres de até quarenta andares em um terreno marcado pela história brasileira e recifense1– obteve como resposta uma grande organização da sociedade civil pernambucana. Essa organização materializou-se nas diversas ocupações realizadas na área externa do cais, além da própria ocupação dele que durou cerca de dois meses e impôs uma barreira física à edificação do empreendimento.
Em 2014, com o início da demolição dos armazéns presentes no local, inicia-se a ocupação e com ela nasce o Movimento Ocupe Estelita (MOE). O MOE, durante o período em que ocupou o cais, revitalizou o espaço por meio de shows, aulas públicas, oficinas de circo, debates, atividades para crianças, além das diárias assembleias realizadas com participação coletiva para resolver os rumos e o futuro da ocupação.
A partir de uma investigação etnográfica, na qual objetiva-se resgatar o passado e a contemporaneidade do movimento através das narrativas dos atores políticos que participaram da ocupação, pretendo compreender as transformações simbólicas e afetivas no espaço do cais Estelita para a população recifense. Os interlocutores entrevistados e que aparecem no decorrer do texto são membros do Grupo Direitos Urbanos (DU)2 ou do MOE3 que tiveram seus nomes trocados por questões éticas, para preservar as respectivas identidades e por compreender que seus nomes ou certos detalhes de suas identidades não são fundamentais para o percurso metodológico feito por esta etnografia. A relação entre os dois grupos evidenciou-se tensa durante sua coexistência, isto porque enquanto o DU empreendia formas de lutas mais relacionadas à institucionalidade, como a jurídica; o MOE acreditava na ação direta, por meio de ações políticas e culturais nas ruas e no espaço do Cais José Estelita. Alguns membros do Movimento aproximavam-se do anarquismo e chegaram a negar qualquer possibilidade de vitória por uma via institucional. Porém, apesar de adversário nas formas de luta, ambos possuíam um objetivo em comum que era a permanência do Cais enquanto espaço coletivo e da população.
É importante retificar que esse ensaio faz parte de uma pesquisa de mestrado em andamento e que, tanto o trabalho de campo realizado quanto os resultados obtidos, ainda se encontram em fase inicial. Algumas questões, entretanto, persistem como fio condutor da pesquisa e, portanto, deste ensaio. São elas: compreender se o MOE pode ser pensado como uma potência de ruptura de um processo de transformação das cidades em empresas, planejadas e destinadas ao capital privado; se o movimento utiliza-se da identidade pernambucana relacionada a um passado de lutas e resistência construído historicamente; e se, após a ocupação, o Cais José Estelita emerge na capital pernambucana como um símbolo afetivo, que acomete as subjetividades dos atores políticos envolvidos no processo de construção desse movimento social urbano.
No primeiro tópico do texto será abordada a etnografia, como método e pensamento, a partir das reflexões da autora Janice Caiafa, que disserta sobre os desafios de realizar uma pesquisa etnográfica em um ambiente tão próximo ao familiar e afetivo. Como resposta, a autora fundamenta, a partir do conceito de agenciamento de Deleuze, uma abordagem sóbria, sem, entretanto, tornar-se clínica ou asséptica. Essa abordagem surgiria a partir da simpatia, afeto que possibilitaria um equilíbrio entre a voz do etnógrafo e a voz dos interlocutores, por meio de algum agenciamento em comum. A autora também esclarece a necessidade da subjetividade e da voz do etnógrafo se fazer presente durante o texto, propondo, inclusive, uma voz colorida, que não se pretende superior ou universal.
Uma voz colorida do pesquisador, segundo a autora, seria uma voz que não se pretende universal, que renuncia de alguma forma à autoridade conferida ao etnógrafo, que se coloca ao lado das outras na tentativa de adquirir “uma expressividade, um movimento que a aproximasse das falas quotidianas, com nuances, hesitações e intensidades” (Caiafa, 2013, p. 37). Uma voz que tenciona o lugar da primeira voz e se esforça constantemente para se colocar ao lado das outras sem, todavia, ter a pretensão de fugir completamente disso, uma vez que, a tentativa de suplantar a voz do autor é um empenho falso que esvazia a própria participação do etnógrafo na pesquisa de campo. Nesse ponto inicial, também serão discutidas a transformação das cidades em empresas e a exacerbação da imagem como característica fundamental para produção de consenso em relação a projetos de gentrificação, além de outros conceitos essenciais para o desenvolvimento do texto.
No tópico seguinte abordarei o processo de especulação imobiliária na cidade de Recife, assim como a construção do MOE a partir desse passado pernambucano de luta e resistência. Esse aspecto será demonstrado com algumas imagens utilizadas como cartazes de convocatória para os eventos do cais Estelita. Esses cartazes publicados no Facebook, feitos coletivamente e utilizados para convocação da população para as festividades realizadas normalmente nos domingos e que contavam com a presença de artistas pernambucanos e nacionais que promoviam shows para manifestar o apoio à causa. Ademais, outras atividades se promoviam em paralelo às apresentações musicais, eram elas aulas públicas, diversos tipos de oficina, atividades para as crianças, exposições fotográficas e audiovisuais, etc. Finalmente, encerrarei com os resultados iniciais dessa primeira investida ao campo e das entrevistas com meus interlocutores que produziram alguns resultados às perguntas iniciais que norteiam esse ensaio.
Corpo e desenvolvimento
A viagem etnográfica
A batalha pelo Cais José Estelita persiste desde seu leilão em 2008, arrematado pelo consórcio Novo Recife (composto pelas empreiteiras Ara Empreendimentos, GL Empreendimentos, Queiroz Galvão e Moura Dubeux Engenharia) que propõe implementar um projeto para área que transborda e reflete um modelo de cidade perceptível como uma tendência mundial. Em “Recife, cidade roubada”4 (Ocupe Estelita, 2014, 1:10), Irandhir Santos afirma “nem tudo que é novo é bom e nem tudo que é novo é novo”. O projeto Novo Recife, com seu protótipo de cidade pensada e planejada para os investimentos privados e não para o interesse coletivo da população, persiste como característica desse tipo de empreendimento. Também não é novo o interesse de empreiteiras por áreas portuárias e em frente d’água. Então, não é por acaso que a região do cais Estelita, que olha para Bacia do Pina e que está bem localizada entre o polo tecnológico do Recife Antigo e o bairro de classe média alta Boa Viagem, é alvo de especulação imobiliária e suas obras estão encadeadas com outras obras de “revitalização”5 da capital pernambucana. Obras para a promoção de Recife como cidade cultural, preparada para atrair usuários solventes6 e investimentos internacionais, obras que posicionem a manguetown7 como metrópole de primeiro mundo.
Em tempos do modelo de planejamento estratégico, da ditadura da imagem e da promoção de cidades em espetáculos, como diria Guy Debord (2003)8 o importante não é ser, nem ter e sim parecer. Parecer moderna, parecer segura, parecer uma world class city9. Assim, a capital do Manguebeat10 entope-se de obras como a reestruturação do Porto, a reforma dos armazéns da praça do Marco Zero, a construção da Via Mangue e do shopping Rio Mar, todas voltadas para usuários bem específicos que devem possuir um certo grau de solvência. O entorno, junto com a pobreza ou qualquer coisa que possa prejudicar a imagem dessa cidade-espetáculo11, transforma-se em paisagem, é deslocado para longe da vista dos turistas de fora e os turistas moradores da própria metrópole. Dessa forma, o espaço da cidadania e da política são esvaziados do espaço público e deslocados para o consumo, criando lugares acessíveis apenas para aqueles que têm e parecem ter.
Na criação de cidades-empresas, as urbes assumem a posição de sujeitos e, junto com esse sujeito, nasce a necessidade da construção de uma identidade que seja adequada e emulada ao cenário totalmente competitivo no qual se inserem as cidades atualmente. Para isso, investe-se em técnicas de marketing, promove-se a cidade de acordo com o comprador que se tenha em vista. Por isso, escondendo as mazelas da suburbanização de uma das urbes mais violentas do mundo, Recife coloca-se à venda nesse mercado mundial de metrópoles, como a capital criativa do Nordeste (Prefeitura do Recife, 2017).
Para pensar a dinâmica da capital pernambucana é preciso imaginá-la em seus contrastes e embelezamentos, é necessário enxergá-la para além do cartão postal ou dos estereótipos que podem habitam o imaginário de quem é de fora. A praia de Boa Viagem, um dos pontos turísticos do local, só é habitável para os amantes de sol até determinado horário da tarde, já que as sombras dos prédios invadem a areia provocando desenhos inadequados, praticamente deslocados daquela paisagem. Em Recife, tudo tem dono e quem não é “Cavalcanti será cavalgado”12. Costuma-se brincar que ainda vivemos na Capitania Hereditária de Pernambuco, já que os políticos parecem continuar governando sob o regime do coronelismo e da sucessão hereditária. Conversando com um dos meus interlocutores, Marcos –membro do Direitos Urbanos (DU), grupo que pauta e lidera as discussões urbanas da cidade–, ele tenta explicar essa lógica particular da capital pernambucana: “No caso do Recife, da questão colonial, assim, eu digo que tem uma mistura da cidade neoliberal com a cidade colonial, que os donos de terra são os donos de engenho”.
Em Recife, a mobilidade orientada para o carro e não para a promoção de uma experiência de caminhar pelas ruas, afeta diretamente na percepção do espaço, na criação de uma memória e de uma vivência sensível da urbe. Rogério, interlocutor, professor de história, membro do Direitos Urbanos e criador do projeto História ao ar Livre13, atribui a escolha da profissão de professor de História à decisão de não tirar a habilitação de motorista:
Recife é o contraexemplo máximo, eu acho. É uma cultura de divinificar o carro, mas ao mesmo tempo, você quando anda facilita você criar uma espécie de memória afetiva do local. Eu ia passando pelas ruas perguntando o que tinha ali, porque aquela rua que tinha tanta história não era ocupada.
Eu costumo dizer aos meus alunos, inclusive, que ter escolhido caminhar foi talvez a coisa que me fez fazer história.
A festa mais democrática e popular, o carnaval, vem sendo progressivamente dominada pela lógica dos camarotes privados, que inclusive, teimam em se materializar sobre as praças públicas. Mas Pernambuco ocupa, desde a Revolução Pernambucana de 1817, o imaginário dos recifenses como o Leão do Norte14, como povo que resiste e é, ao mesmo tempo, apagado da história, suprimido pela hegemonia do Sudeste. Rogério reforça esse sentimento com a seguinte colocação: “Quando você analisa a história da gente, a história do Brasil... a história do Brasil foi construída sobre a história de Pernambuco... Pernambuco foi pioneiro, mas infelizmente houve um monopólio da construção da cidade pelo Rio de Janeiro”.
Para Gilles Deleuze a viagem é algo que não pressupõe o movimento geográfico, está mais relacionada a uma forma de se associar com a diferença do que com um deslocamento físico. Em “Carta a Serge Daney: Otimismo, pessimismo e viagem” (2008, p. 100), o autor propõe quatro observações sobre a viagem: em primeiro lugar, viajar nunca provocará ruptura “desde que se leve consigo sua Bíblia”, isto é, desde que não se desfaça dos códigos morais, regras sociais, etc. preexistentes; segundo, ela está relacionada a um ideal nômade. Contudo, para o filósofo o nômade é aquele que não se mexe, tão apegado e agarrado a uma terra deserdada que precisa estar em constante movimento de busca por esse lugar simbólico. As reflexões terceiras e quartas apresentam-se como desdobramentos uma da outra, quando Deleuze, evocando Beckett, afirma que não se viaja por prazer, viaja-se para verificar algo. Janice Caiafa (2007, p. 148 e 149), vai propor essa ideia de viagem associada à etnografia, que, para a autora, pressupõe uma vulnerabilidade, disponibilidade de se deixar afetar pelo Outro.
Em seu texto “Notas sobre a cidade-espetáculo”, Caiafa (2016, p. 42) faz uma diferenciação entre turistas e viajantes. Segundo ela, o viajante busca uma terra diferente e uma transformação de si mesmo no processo, enquanto os turistas deslocam-se com objetivo de consumir o que lhe é familiar. Minha pesquisa de mestrado pressupôs uma viagem, que se iniciou de forma puramente geográfica, motivada, assim como os nômades, por apego a minha terra natal. Porém, esse mesmo deslocamento15, essa decisão de pesquisar o Ocupe Estelita no Rio de Janeiro vem me possibilitando um olhar diferente sobre o mesmo objeto, um estranhamento necessário à pesquisa etnográfica (Caiafa, 2007, p. 148).
Durante algum tempo, na antropologia existiu um pressuposto de que a distância física era fundamental para a compreensão de modos de vida diferentes pelo etnógrafo, exigência que persiste de alguma forma até hoje. Porém, atualmente, existem pesquisadores que vão estudar precisamente o grupo ao qual estão inseridos, o que levanta novas questões em relação à viabilidade da pesquisa acadêmica em um ambiente tão próximo ao familiar e afetivo.
Como possibilidade de resposta a esses problemas, Caiafa propõe refletir sobre o conceito de agenciamento de Deleuze e Guattari. Contrapondo estrutura – relacionada à homogeneidade– e agenciamento –implicado a elementos heterogêneos– os autores conceituam-nos como “datados, transitórios e sempre em relação com um limiar que, atingido, promove uma virada, uma mudança” (Caiafa, 2007, p. 152). A autora vai reforçar que, para Deleuze, a única unidade do agenciamento é o co-funcionamento, que ele também vai denominar simpatia. É a partir dessa noção de simpatia –o afeto possibilitaria a nossa conexão com o heterogêneo, abrindo para nós o mundo de possibilidades que o Outro representa– que Caiafa (2007) esboça uma saída para esse dilema da etnografia onde não necessariamente “distanciar-se para compreender o outro, nem tampouco tomar-se por esse outro, mas ter algo a ver com ele, ‘alguma coisa a agenciar com ele’” (Caiafa, 2007, p. 153).
Seria impossível negar a aproximação com um movimento que reverbera angústias que eu como cidadã recifense sempre senti, mas a própria distância física, essa distância geográfica que se traveste em emocional e simbólica, me permite o afastamento necessário para que observações críticas sejam feitas. Além disso, partindo da ideia de Guattari (2006) de que a subjetividade é produzida em processo coletivo e considerando que durante a pesquisa também estão sendo engendradas subjetividades, e, além disso, que o trabalho de campo pressupõe certo grau de agenciamento com os seus interlocutores, posso dizer que minha afetação pela minha pesquisa começou com uma viagem. Minha subjetividade começou, também, a ser alterada por esse deslocamento físico e emocional causado pela decisão de fazer mestrado no Rio de Janeiro.
Especulação imobiliária no Recife: ressurgimento do Leão do Norte?
O tema da viagem é citado nos escritos de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira no início do século xx. Contemplando as remodelações e reestruturações da fisionomia urbana de Recife, Freyre refere-se à capital pernambucana como “outra cidade”, onde agora ele se sente “um tanto estrangeiro” (Freire, 1924 citado em Peixoto, 2004, p. 159). Tanto para Freyre quanto para Bandeira, a transfiguração da paisagem arquitetural da cidade afeta a paisagem afetiva, criando um sentimento de estrangeirismo na própria cidade natal, uma incapacidade de reconhecer as ruas das memórias sensíveis da sua meninez. Manuel Bandeira, em “Evocação do Recife” (s. f.), relembra, através de um passeio afetivo pelas ruas da capital, o Recife de sua infância:
Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
(...)
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
(...)
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
Nesse trecho do poema, Bandeira expressa o medo de que as transformações físicas que a urbe passava na época incidissem sobre o imaginário e sobre a memória da capital. A alteração dos poéticos nomes das ruas recifenses por nomes que pudessem celebrar ou homenagear algum “dr. Fulano de Tal”, exprimem o medo do poeta de que a cidade estivesse se tornando irreconhecível, estranha, estrangeira. Félix Guattari (2006) em seu livro Caosmose propõe pensar o espaço e o corpo como fenômenos inseparáveis e intimamente conectados a constituição dos modos de subjetivação.
Segundo o autor, nossa percepção do espaço atual pode ser modificada pelo que ele chama de componentes de subjetividade –que podem ser sociais, maquínicos ou estéticos– logo, esses espaços construídos, afetados por percepções anteriores, destituem nossos antigos lugares de referência, gerando uma velocidade de desterritorialização crescente, talvez o tal sentimento de estrangeirismo mencionado por Freyre e Bandeira.
Contemporaneamente, esse processo de desterritorialização é potencializado pela velocidade das mudanças físicas que afetam o mundo, “o mundo não muda mais de dez em dez anos, mas de ano em ano” (Guattari, 2006, p. 159). Richard Sennet (2014), também vai discutir a relação entre carne e pedra, entre corpo e a cidade, e de que forma a velocidade, intensificada pelas tecnologias de locomoção, transforma o espaço urbano em mero corredor, que não produz nenhum atrativo para quem o atravessa, produzindo uma experiência de apassivamento dos corpos.
O Cais José Estelita, por exemplo, é vítima desse processo de desterritorialização potencializado pela velocidade, defronte a uma via expressa; em um lugar em que ninguém consegue chegar a pé, o cais torna-se apenas um borrão da passagem e na paisagem, um lugar negado da experiência recifense, propositalmente isolado ou como Marcos coloca:
As pessoas não têm essa vivência, que de certa maneira foi negada essa vivência, entendeu? Assim, tipo, você fez uma reforma no calçadão e ninguém chega ali a pé. Antes então, meio que tinha esse isolamento, essa coisa meio apagada na memória.
Além disso, toda a capital pernambucana passa por alterações em sua paisagem física, seguindo o paradigma do planejamento estratégico que objetiva criar cidades globais ou cidades-mundo, onde as singularidades locais são suprimidas em benefício da criação de um modelo padronizado e universal de cidade. Ironicamente, reflito que para entrar na rede mundial de cidades16, a metrópole precisa se fazer decalque17, precisa se constituir em algo a ser imitado: algo que era fluido, heterogêneo, mutável e transformou-se em imagem fixa, estrutura, cristalizando-se em uma representação. O decalque fica por conta das obras de urbanização, equipamentos culturais e edifícios padronizados implementados nas urbes pelo mundo todo, criando um modelo a ser repetido mundialmente por aquelas cidades que querem ingressar nesse circuito global de cidades-empresas.
A contradição maior seria perceber que na atualidade, o que causa o estranhamento não é a diferença, mas sim a homogeneização do mundo, o estrangeirismo dos dias de hoje estaciona em um turista que viaja para consumir os padrões mundiais, que viaja sem nunca ser de fato viajante.As transmutações físicas que Recife vem sofrendo nos últimos anos, desde a reforma do Porto para a Copa do Mundo, passando pela “revitalização” dos armazéns do Marco Zero, até a construção da via expressa denominada Via Mangue –que conecta a área portuária e o Cais José Estelita aos bairros de classe média-alta Boa Viagem e Paiva18– estão intimamente conectadas com esse projeto de cidade fabricado para usuários específicos que detêm capital para consumir. O Ocupe Estelita se questiona “cidade para quem?”. Definitivamente não o “Recife da minha infância” da evocação de Manuel Bandeira, talvez o “Recife das revoluções libertárias19” seja o sujeito citadino evocado pelo movimento, o Recife do Leão do Norte, da Revolução Pernambucana, da Revolução Praieira, do Manguebeat, o Recife da resistência e da efervescência cultural.
Em um período no qual o Brasil era divido apenas entre “Norte” e “Sul”, a imagem do “Leão do Norte” surge para representar um imaginário de pernambucanidade relacionado a um histórico de resistência e luta. Primeira província a tornar-se independente de Portugal com a Revolução de 1817, a manifestação do bairrismo pernambucano já se observava através de uma releitura da Santa Missa (Ministério da Cultura, 2017) portuguesa: os padres locais substituíam a cachaça pelo vinho e a fabricação da hóstia era de macaxeira e não trigo. A figura desse leão, apropriada na canção do compositor Lenine, quase um hino informal do estado, é ampliada para contemplar a diversidade cultural pernambucana. Pernambuco, sujeito, afirma “sou coração do folclore nordestino”20.
É recorrente o retorno a esses traços que compõem a identidade pernambucana nas convocações do Movimento Ocupe Estelita, tanto a figura do leão, quanto a elementos relacionados a essa pernambucanidade (como o movimento Manguebeat), além de um constante reforço da ligação afetiva do cais com a cidade. Na figura 1, o apelo é explícito “o leão do Norte resiste”. Já na figura 2, de forma mais implícita o simbolismo do felino é aliado a alguns elementos da bandeira de Pernambuco, como a cruz, o sol e a estrela.
A partir dessas e de outras peças produzidas pelo MOE, o movimento promove um discurso de resistência associado à ocupação do espaço físico do cais. O Ocupe Estelita grita “Ocupar! Resistir”, as vozes ressoam no cais, as palavras retumbam nos corpos que ocuparam o espaço, os corpos que deixaram suas marcas no cais e nos quais o Estelita provocou e construiu memórias e imaginários.
Conclusões: trabalho de campo e suas primeiras impressões
Do imaginário e da memória me desloco da posição de habitante pernambucana para pesquisadora cinco anos depois do primeiro evento que ocupou o Cais José Estelita. O movimento encontrava-se em período de hiato, desde 2015, como eu já tinha observado outras vezes. Hiatos provocados pela calmaria de falta de acontecimentos, de tempos de indecisão da Justiça21, o movimento cochilava um sono que talvez parecesse profundo, mas que era inquieto e atento as artimanhas do capital. O primeiro despertar deu-se por motivos de celebração, a comemoração da não edificação de nenhum prédio. Em uma data simbólica, no dia 21 de maio de 2017 –data que se iniciou a ocupação em 2014–, a proposta era reunir coletivos, lutas e pessoas no Estelita para elaborar caminhos comuns de resistência. Com a temática de “que lutas cabem no cais?”, o movimento propunha refletir sobre o simbolismo do cais e como expandi-lo para abraçar outras lutas. É nesse primeiro despertar que inicio meu trabalho de campo, ainda receosa pela falta de prática, ainda ansiosa pelo iminente primeiro contato com meus interlocutores.
Chego no cais por volta das 15h, a movimentação ainda estava pequena. Após o vazamento do áudio de Temer e Joesley Batista pelo Globo, o clima e o cenário político são de incerteza e indefinição. Me pergunto se o ato pelas “Diretas Já” convocado para o mesmo dia do evento do Ocupe Estelita, além do show de Jorge Ben Jor promovido pela Nívea, não podem desmobilizar e enfraquecer essa reunião. Vejo muita gente jovem, crianças brincando em piscinas de plásticos, mulheres se pendurando em tecidos, em uma parede fotos de lambe-lambe22 do cais estão sendo coladas. Do outro lado, algum tipo de intervenção com tinta está sendo realizada. Homens e mulheres, se pintam, pintam suas mãos, pés e frases políticas nas paredes, no chão, na pista do Estelita. Naquele momento, a via expressa, por onde cotidianamente os carros passam em alta velocidade tornando o cais apenas um borrão, torna-se de alguma forma parte dele. Penso se a intenção foi essa, mas para mim parece que é uma forma de tornar físicas essas marcas simbólicas feitas pelo cais nessas pessoas. Observo a pintura de uma faixa de pedestre, mais mãos e pés, no meio fio alguém escreveu “o golpe está nu”.23
Foi a partir da leitura do texto de Vincent Crapanzano (1977) “On the writing of ethnography” que pude compreender um pouco a inquietação que senti naquele dia. Para o autor, a etnografia pressupõe enfrentamento e ao referir-se ao trabalho de campo a partir dessa ideia de confrontação pretende destacar a violência, a característica angustiante que seria o encontro entre pesquisador e seus interlocutores. Isto porque, para ele, o movimento do etnógrafo no campo é uma ação de desconstrução e reconstrução do self, pois é presumida uma abertura a compreensão do ponto de vista do outro o que leva inevitavelmente a uma nova forma de ver e, algumas vezes, a um novo self.
Félix Guattari (2006) propõe que os espaços podem criar experiências de subjetivação e que o espaço construído tem a potência de afetar de diferentes modos como o “estilístico, histórico, funcional, afetivo...” (Guattari, 2006, p. 157). Dessa forma, a experiência de subjetivação constituída pela associação do Estelita com o passado de luta pernambucana emerge desse espaço construído, que afeta os sujeitos de forma histórica e afetiva, criando uma junção entre a história de resistência contemporânea e as memórias de um passado de luta. Rogério, professor de História, também presente no evento com a aula intitulada “Pernambuco, uma história de luta”, me explica um pouco dessa relação e do motivo da escolha desse tema:
A ideia foi conectar o tema com o que a gente tá vivendo hoje com os cinco anos do Ocupe Estelita. Então, a ideia foi tentar mostrar como o que a gente tá vivendo hoje não é descaracterizado, desconectado com nossa história, nossas tradições. E mostrar que as grandes conquistas elas não vieram à toa, não vieram por bondade de governante. Vieram por pressão popular.
Os espaços construídos, segundo Guattari (2006) possuem uma dimensão que vai além da física, visível e funcional e eles podem interpelar nossa subjetividade constituindo tanto um “esmagamento uniformizador”, quanto uma “re-singularização liberadora da subjetividade individual e coletiva” (Guattari, 2006, p. 157). Isto é, o cais a partir da ocupação e das diversas invasões realizadas naquela área, produziu uma dimensão afetiva e simbólica para aqueles recifenses que experimentaram a vivência proporcionada pelo movimento. No Reveillita24 o convite para a festa já anunciava “O Recife inteiro é um grande Cais José Estelita”, sinalizando que “o Estelita tem força porque se tornou simbólico”. Dessa forma, o MOE e o DU demonstravam o entendimento de que aquela área tinha transbordado sua dimensão física e funcional e agora representava a cidade inteira, nos anseios e nas esperanças. A partir da minha pergunta da utilização dessa frase pelo movimento, Rogério responde que:
Recife é um Cais José Estelita no sentido bom e no sentido ruim. No sentido ruim, é um grande cais porque não é só aquela região que é degradada nesse momento pra ser entregue a preço de banana pra empreiteira.
Mas ao mesmo tempo a gente é um Cais José Estelita no sentido que Recife tem uma história de tradição de luta que não se resume a certos grupos
Refletindo a respeito dessa dupla representação, levantada em várias situações pelos meus informantes, me recordo das expressões, sorrisos e orgulho discreto nas narrativas de meus interlocutores. Nesta preliminar investigação a respeito do MOE percebo que aquela área construída é muito menor do que o imaginário dessas pessoas para o que cabe no cais. Recordo da ligação direta, afetiva e emocional, apontada também por eles, entre o futuro do Estelita e o amanhã pensado e planejado para cidade. Tiago, membro do MOE, a partir da sua vivência na ocupação, tenta traduzir as expectativas nascidas junto com a ocupação do cais Estelita:
Isso era a base de milhares de pessoas do Recife que acreditavam num outro modelo de cidade, ali eu acho que foi um ato muito importante pra sociedade civil recifense, nessa questão do direito à cidade mesmo, uma certa expressão de “basta” sabe? Uma certa expressão de que “a gente já viu coisa demais, vocês fazerem coisa demais”. A gente precisa se posicionar sobre isso agora. Eu acho que muita gente encontrou ali a possibilidade de manifestar a indignação, o sentimento de injustiça contra o capital imobiliário, contra vê o que a sua cidade tava se transformando por conta do interesse do capital imobiliário, de poucas empresas.
Isso era a base de milhares de pessoas do Recife que acreditavam num outro modelo de cidade, ali eu acho que foi um ato muito importante pra sociedade civil recifense, nessa questão do direito à cidade mesmo, uma certa expressão de “basta” sabe? Uma certa expressão de que “a gente já viu coisa demais, vocês fazerem coisa demais”. A gente precisa se posicionar sobre isso agora. Eu acho que muita gente encontrou ali a possibilidade de manifestar a indignação, o sentimento de injustiça contra o capital imobiliário, contra vê o que a sua cidade tava se transformando por conta do interesse do capital imobiliário, de poucas empresas.
A gente pensava a cidade a partir do que poderia ser o cais, entendeu? Porque, tu sabe, né, como é o cais? O cais é como se fosse uma muralha que barra Boa Viagem25 prossiga pra ali, né?
O cais é uma grande área que poderia abrigar a semente de um novo modelo de cidade sabe?
O Cais José Estelita, perpassando a sua dimensão física, possui uma dimensão simbólica e afetiva importante para esses recifenses. O espaço construído, físico e material, do cais talvez atraia diversas demandas e anseios dos habitantes da capital pernambucana. Possivelmente confluam as esperanças e os desejos represados da população, desejos que não encontram mais lugar nas representações políticas tradicionais e que precisam de novos modelos para escoar. Reinvindicações pela construção de uma cidade mais inclusiva e mais participativa, onde proliferem locais de encontro, espaços abertos ou nas palavras de Rogério, o cais é:
Talvez o último espaço grande possível de ter uma área pública, um parque, moradia popular, bares, restaurantes, centro dinâmico, cultural, histórico e tá sendo atacado dessa forma pelo poder público, pelas empreiteiras e tudo mais. Então, de certa forma, tudo que a gente construiu lá me fez ter uma vivência maravilhosa, mas ao mesmo tempo me fez ter um sentimento de indignação, que faz parte da minha memória afetiva, imensamente grande por não poder aproveitar mais aquele lugar.
Uma das maiores reinvindicações do Ocupe Estelita é a favor do direito à cidade, um direito que não esteja confinado ao consumo ou instituído pelo Estado, um direito que segundo Harvey (2014) é o direito de reivindicar por “algum tipo de poder configurador sobre os processos de urbanização, sobre o modo como nossas cidades são feitas e refeitas” (Harvey, 2014, p. 30). Esse direito, segundo o autor, também está relacionado com o tipo de pessoas que queremos ser e o tipo de relações sociais que desejamos cultivar. Portanto, exigir o direito à cidade é demandar um novo modelo de cidade que seja coletivo, pensado e planejado de acordo com as nossas mais profundas vontades. Que para Rogério está relacionado:
O direito à cidade envolve você também ter o direito de chegar aos locais, de ter um transporte público acessível.
Tem que ter um modelo de arquitetura que não seja baseado em muros altos que criam pontos cegos, que dificultam a circulação de pessoas.
Enquanto para Marcos, membro do DU seria: “A ideia do processo, da participação real, efetiva, radical na construção. Assim seria isso e também na questão da mistura, da cidade como o lugar onde isso se concretiza, essa democracia máxima”.
Já para Mariana, professora da UFPE:
O direito à cidade é o direito a existir sem ser objeto de violência. Então, houve uma espécie de convergência, uma compreensão de que a disputa por um espaço na cidade era também a disputa por um espaço nessa sociedade que é uma sociedade preconceituosa e violenta.
Deleuze e Guattari (2012) no “Tratado de nomadologia: a máquina de guerra” vão discutir sobre o espaço e as estratégias para esse espaço. Eles forjam os conceitos de máquina de guerra e aparelho de Estado que vão se opor sem necessariamente se excluir. A exterioridade do Estado, o que se encontra fora desse aparelho, nasceria como potência de máquina de guerra, não necessariamente descolada dele, mas coexistindo, em relação, apesar de ser oposta e antagônica. A partir da teoria dos jogos, o que os autores chamam de um “exemplo limitado”, eles vão comparar e iluminar os dois conceitos (Deleuze e Guattari, 2012, p. 13).
O xadrez com seu movimento e sua guerra institucionalizados e munidos de um certo poder específico funcionariam dentro de uma dinâmica que os autores entendem como estatal. Isto porque o objetivo das peças seria de espalhar-se em um espaço fechado, delimitado, “ocupar o máximo de casas com o mínimo de peças” (Deleuze e Guattari, 2012, p. 13 e 14). O jogo, por sua vez, com seus peões que são “elementos de um agenciamento maquínico não subjetivado”, movimentam-se em uma guerra sem regras na qual o que prevalece é a pura estratégia. O propósito dele, assim como da máquina de guerra, seria “distribuir-se num espaço aberto, ocupar o espaço, preservar a possibilidade de surgir em qualquer ponto” (idem).
Considerando ambos conceitos, talvez seja possível pensar o Ocupe Estelita como uma exterioridade do Estado, uma potência de máquina de guerra, algo que existe e se movimenta para além das regras e do controle estatal. Ao ser a máquina de guerra uma “invenção dos nômades”, um movimento que produz alisamento no espaço, assinalado por traços voláteis que territorializa e desterritorializa o espaço, inverte ordens, constituindo novos territórios internos e, por vezes, contíguos. Além disso, catalisa desterritorializações no inimigo, provocando rupturas no seu próprio espaço, causando o surgimento de novos movimentos e territórios outros. A partir dessa compreensão, seria imaginável pensar o MOE como potência dessa máquina de guerra, seria possível pensar o movimento como uma ruptura? Será que o alcançado até o momento –a barragem do projeto Novo Recife, a não edificação das torres– pode ser considerado uma vitória?
Uma resposta definitiva nesse momento talvez ainda não seja possível, ainda são divergentes e, por vezes, contraditórios os discursos dos interlocutores a respeito do presente e futuro do Ocupe Estelita. Para Mariana, professora da UFPE: “Eu acho que o Estelita mudou, foi uma fissura dentro de um jogo político que era extremamente monopolizado. Agora quanto ao sentimento de vitória, isso é muito... Existe um pouco um discurso pra consumo externo”.
Marcos, membro do DU destaca outro aspecto:
Não tá perdido, não tá nem a pau ganho. Se quiser ganhar tem que mudar o patamar pra isso e atacar, começar a atacar as causas.
Você cancelar um Novo Recife é um símbolo, é uma vitória simbólica se cancelasse, mas dez prédios saem na cidade em poucos meses. Dez prédios iguais, então, vitória definitiva tá nesse patamar..., e aí é complicado.
A partir disso tudo, como algo que contrariando a função do Estado de estriar os espaços que governa e criando espaços de “muros, cercados e caminhos entre os cercados” (Deleuze e Guattari, 2012, p. 55), pode causar rupturas, fissuras na ordem hegemônica desse pensamento contemporâneo de cidade? Talvez, para além de pensar os processos atuais como vitória ou derrota, produzindo binarismos simples e simplificadores, o ideal seria seguir a inspiração de Deleuze e Guattari em “Mil Platôs”, organizando as categorias em intensidade, dissipando a possibilidade de formação de antípodas, engendrando novas categorias que flutuassem entre as duas, não se reduzindo a uma nem a outra, existindo em coexistência, em relação, em constante movimento. Ou, como diria Tiago, membro do MOE:
o Novo Recife ainda não tá lá né..., mas ao mesmo tempo, vale ressaltar, o Ocupe Estelita também..., ele passou por um processo de mudança que foi de barrar o Novo Recife sabe, pautou a discussão de um modelo da cidade pra toda a cidade, fez isso permear o cotidiano dessas pessoas..., e discutiu também a finalidade daquela área né.
Talvez só possa existir uma vitória completa e de fato quando as causas desse sintoma, que são os grandes condomínios de luxo destinado para uma pequena parte da população, sejam tratadas. Ou se o cais for devolvido para a população e sua área viabilizada para permitir outra vivência de cidade. Enquanto isso, o cais permanece ali, quase invisível para aqueles olhos não atentos ou não vigilantes. E quando peço para Tiago, interlocutor membro do MOE, resgatar de suas memórias a imagem do cais Estelita e descrevê-lo pra mim, a resposta é: “O cais ele tem a via férrea... Ele tinha vida, né? Agora parece uma área desabitada... voltou a ser o que era antes... ou pior...”
O sentimento de insatisfação com a atual situação do cais Estelita fica claro no discurso de Tiago. A comparação entre o “antes” da ocupação e o agora –“depois” da ocupação– ilumina a imagem de que a experiência da ocupação, a vivência coletiva da área é a revitalização almejada, ou como afirmou o MOE “entre o abandono e as torres cabe um monte de coisas” (Movimento#OcupeEstelita, 2017). Além disso, a própria vitória é atribuída a várias causas além do Movimento Ocupe Estelita, como aponta Mariana, professora da UFPE que apoiou a causa do Estelita:
A história do planejamento urbano no Recife, antes e depois do Estelita é outra coisa. Só que eu não sei, sabe. Eu não tenho muita confiança no judiciário. De uma forma geral. Então, eu acho que o resultado no judiciário ainda pode ser um resultado muito ruim e que, de fato, aquilo que tá segurando mais a história é a crise. É a crise econômica, a crise do mercado imobiliário.
Como se antecedesse o que aconteceria, minha interlocutora profetizou o futuro. No dia 16 de novembro de 2017, anoto em meu caderno de campo:
Enquanto me preparo para escrever o que seria o primeiro esboço de um texto etnográfico, recebo a notícia de que a decisão dada pelo TRF, que declarava nulo o leilão do cais José Estelita, foi revogada por unanimidade. Fico pensando nas reviravoltas constantes que é pesquisar um objeto da contemporaneidade e que está o tempo todo em constante processo de modificação e negociação. Enquanto recifenses debatem na página dos Direitos Urbanos do Facebook sobre uma possível derrota, alguns líderes se manifestam para acalmar os nervos afirmando que “ainda existe um frágil embargo do IPHAN segurando”. As notícias veiculadas pelas grandes mídias pernambucanas são muito confusas e cheias de termos técnicos jurídicos. Me questiono se isso é feito como mais uma ferramenta para afastar à população de mais esse poder de decisão ou até, da mais elementar possibilidade de dissenso.
De fato, qualquer tipo de vitória ainda é muito frágil diante do poder do capital. Essa decisão judicial, de 2015, que considerava nulo o leilão de 2008 do Cais José Estelita, foi suspensa pouco tempo depois de ser proferida. Agora, depois de quase dois anos, o Tribunal Regional Federal da 5° Região decreta, por unanimidade, que não encontrou motivos legais para impedir a construção do empreendimento. Em paralelo, o IPHAN se posiciona pelo não tombamento da área. O Estelita novamente pende entre as ambições do capital imobiliário e o desejo coletivo de uma cidade menos espetacular. A decisão funciona como um segundo despertar para o Ocupe Estelita, que mais uma vez se (re)organiza para planejar os próximos passos nessa guerra que se arrasta a quase dez anos e parece estar bem longe do fim.
Referências
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Notas