Resumo: A instituição jornalística, uma das gestoras do tempo social, constitui uma importante fiadora do poder simbólico de lembrar e esquecer, e de iluminar uma cidade na narrativa de seus vultos prestigiosos. Este artigo busca problematizar a construção jornalística da cidade a partir dos gestos memorativos do caderno Cultura de Zero Hora, jornal do sul do Brasil, detendo-se em um conjunto de narrativas de 32 figuras públicas, visibilizadas entre 2011 e 2014, por meio do anúncio da morte ou das efemérides de nascimento e morte. Por meio do jornalismo comemorativo e pelo sucessivo ato de prestar tributos aos mortos, o suplemento participa da mediação dos vínculos de pertencimento a um território. Configura, dentro de múltiplas possibilidades de um mundo pré-figurado, histórias destinadas a serem contadas constituindo uma galeria de personagens representativos de uma cidade. O conjunto dos nomes memoráveis implica uma rede de intercâmbio de capital simbólico. Seus percursos apontam para uma topografia das ruas e bairros visualizada na personalização das casas; destaca-se a distinção do sistema de transmissão de saberes no espaço da cidade, a centralidade da Universidade e do campo jornalístico e editorial; e o contraste entre centro e periferia a partir dos índices obtidos nas histórias de vida
Palavras-chave: jornalismo cultural, memória, cidade, efemérides, morte.
Resumen: La institución periodística, una de las gestoras del tiempo social, constituye un importante aval del poder simbólico de recordar y olvidar, además de iluminar una ciudad en la narrativa de sus personalidades más destacadas y prestigiosas. Este artículo busca problematizar la construcción periodística de la ciudad a partir de los gestos conmemorativos del suplemento Cultura de Zero Hora, periódico del sur de Brasil, y se detiene en un conjunto de narrativas de 32 figuras públicas, visualizadas entre el 2011 y el 2014, a través del obituario o de las efemérides de nacimiento y fallecimiento. Por medio del periodismo conmemorativo y por el acto recurrente de homenajear a los muertos, el suplemento es partícipe de la mediación de los vínculos de pertenencia a determinado territorio. Configura, dentro de las múltiples posibilidades de un mundo prefigurado, historias destinadas a ser narradas, que constituyen una galería de personajes representativos de una ciudad. El conjunto de nombres memorables implica una red de intercambio de capital simbólico. Sus recorridos apuntan hacia una topografía de las calles y barrios observada en la personalización de las casas; se destaca la distinción del sistema de transmisión de saberes en el espacio de la ciudad, la centralidad de la universidad y del campo periodístico y editorial; y el contraste entre centro y periferia a través de los índices obtenidos en las historias de vida.
Palabras clave: periodismo cultural, memoria, ciudad, efemérides, muerte.
Abstract: The journalistic institution, one of the managers of social time, constitutes an important guarantor of the symbolic power of remembering and forgetting, as well as illuminating a city through the narrative of its most well-known and prestigious figures. This article aims to problematize the journalistic construction of the city from the commemorative expressions of Cultura de Zero Hora, the supplement of a newspaper from southern Brazil. It focuses on a set of narratives written by 32 public figures and published between 2011 and 2014 through obituaries, and anniversaries of deaths and births. By means of commemorative journalism and the recurrent act of rendering tributes to the dead, the supplement participates in the mediation of the belonging to a territory. It creates, within multiple possibilities of a prefigured world, stories planned to be told, resulting in a gallery of representative characters of a city. The set of memorable names involves a network of symbolic capital exchange. Through the indices obtained from these life stories, their paths become evident on the topography of the streets and neighborhoods which are expressed in the personalization of the houses; the distinction between the education field in the city, the centrality of the university, and the centrality of the journalistic and editorial fields is highlighted; and a contrast between center and periphery is performed
Keywords: cultural journalism, memory, city, anniversaries, death.
Dosier
A construção jornalística da cidade nos gestos memorativos de um suplemento cultural
La construcción de la ciudad en los gestos conmemorativos de un suplemento cultural
A journalistic construction of the city in the commemorative expressions of a cultural supplement
Recepción: 20 Agosto 2018
Aprobación: 18 Octubre 2018
Lewis Mumford, no clássico A cidade na história (1988), demarca a origem da cidade no respeito ancestral do homem pelos seus mortos, reservando a eles algum marco fixo em forma de pedras ou túmulos, marcos para os quais sempre foi possível voltar ou rememorar. Esta inscrição ritualizada prolonga simbolicamente a narrativa de uma vida singular. Se a cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos, basta lançar um olhar no mapa toponímico das ruas de boa parte das urbes para perceber a espessura simbólica dos notáveis que um dia ali habitaram. O manto de homenagens que encobre a cidade implica uma camada de memória gestada no cotidiano, seja no próprio esquecimento da biografia de quem nomeia uma rua, por exemplo, seja no rememorar cíclico destes perfis.
A instituição jornalística, filha da Modernidade e que se tornou uma das gestoras do tempo social alinhada na construção do presente, é também uma importante fiadora da memória, deste poder simbólico de lembrar e esquecer e de iluminar uma cidade na narrativa de seus vultos prestigiosos. Este artigo busca problematizar a construção jornalística da cidade a partir dos gestos memorativos de um suplemento cultural de um jornal do sul do Brasil, detendo-se em um conjunto de narrativas de 32 figuras públicas, visibilizadas entre 2011 e 2014, por meio do anúncio da morte ou das efemérides de nascimento e morte. Partimos da premissa de que, ao iluminar a vida e a morte de sujeitos notáveis, o jornalismo mobiliza um esforço de lembrança, projeta um relevo da cidade, demarca lugares de prestígio e de memória, e reverbera rituais de distinção. Tanto no anúncio da morte como na marcação da efeméride, trata-se de sintetizar marcações temporais no esforço ilusório das biografias singulares, projetando a notabilidade de suas ações na história cultural e tendo o território local como ponto de vista hegemônico.
Sob o parâmetro amplo de texto – tecido que envolve a cidade e o jornalismo, e também a lógica do fragmento, da montagem e da superposição que caracteriza a estrutura narrativa de ambos –, partimos da perspectiva da narrativa como lugar de mediação da memória, da cidade e do jornalismo (Ricouer, 1994). Enfatizamos aqui o círculo hermenêutico da tríplice mimese apresentada por Paul Ricoeur ao pensar na arquitetura temporal que atravessa esses três âmbitos. Ao configurar determinados fragmentos de um mundo de referência (pré-figurado), cada intriga configura uma mediação deste mundo pré-figurado e faz a intersecção com o mundo do leitor, aquele que refigura cada narrativa em um processo infinito de interpretação1.
Pensamos a cidade a partir da perspectiva de um construto simbólico, um lugar socialmente criado em um contexto histórico-espacial; um texto feito de camadas e superposições e como cenário de disputa de relatos e perspectivas, que tem no jornalismo um de seus emblemáticos artífices (Certeau, 2012; Mongin, 2009; Limonad; Randolph, 2001). Seguimos também a perspectiva de Pesavento (2004) que aproxima a cidade, enquanto unidade de espaço e tempo, do palimpsesto, de uma escrita que se oculta sobre a outra, deixando traços e vestígios.
Uma das práticas culturais que se consolidou visceralmente atrelada à experiência urbana, o jornalismo constrói escalas sobre a cidade, projeta determinados relevos sobre ela, espaços desde onde se observa e se é observado exercitando seu poder simbólico de visibilidade. Ancorado em marcas temporais, constitui-se em um dos tecelões da memória, paisagem onde ela toma forma (Zelizer, 2014), em que é inscrita, sobrescrita e reescrita ininterruptamente (Lage, 2013). Reiteramos que, para cada história configurada pelos jornalistas, outras tantas foram silenciadas.
Situados em uma cultura da memória que preenche uma função importante na experiência temporal contemporânea, os meios enquadram a memória a partir de sua estrutura e forma (Huyssen, 2000). Há uma espécie de regime normativo da lembrança que concede a ela a força de mandamento, multiplicando datas memoráveis e a busca obsessiva pelas narrativas das efemérides (Ribeiro e Lerner, 2005). Neste contexto, a comemoração ritualística, as marcações cíclicas do aniversário de nascimento e de morte de notáveis e a inscrição das mortes merecedoras de distinção são gestos interpretativos no âmbito da função temporalizante da instituição jornalística.
Datas, pessoas e edições comemorativas, no entanto, jamais são fixas ou evidentes por si só, mas são permanentemente ressignificadas pelo presente e pelo trabalho de lembrar e esquecer. Seguimos a Babo-Lança (2011), quando argumenta que estas formas ritualizadas de retorno possuem uma dimensão pragmática ao reatualizar e enquadrar o acontecimento em uma configuração narrativa que lhe confere inteligibilidade a partir do presente. Ou seja, inserindo e ajustando cada acontecimento em quadros sociais comuns aos leitores, a algo que perdura dentro de uma memória coletiva (Halbwachs, 1990; Hall, 1999) e que compreendem, na maioria das vezes e de modo implícito, mapas de interpretação com suposições cruciais sobre o que é a sociedade e como ela funciona.
Espaço concebido dentro das lógicas editoriais do impresso. O suplemento constitui-se como uma espécie de arquivo em relação às demais narrativas efêmeras produzidas no jornal, tanto que a dimensão de colecionável – daquilo que merece ser guardado na medida em que estabelece com o leitor um vínculo de tempo longo – pautou boa parte dos títulos do gênero ao longo do século xx. Ao convocar especialistas e intelectuais a participar no campo jornalístico, ele se articula por meio de uma montagem de fragmentos heterogêneos (materiais jornalísticos, textos analíticos e excertos ficcionais, eventualmente), exercendo seu poder de demarcar espaços de conhecimento e de circulação de saberes (Barei, 1999). Pela sua periodicidade mais alargada (semanal), abriga temporalidades heterogêneas e carrega consigo parte do conceito etimológico da revista, ou seja, o ato da re-vista, de examinar e de inspecionar mais detidamente, pressupondo o exercício da crítica e do ensaio e, portanto, da reflexividade em relação ao passado e ao porvir, inscrito no agendamento do presente.
No Brasil, a profusão de suplementos literários e afins, encartados em importantes diários brasileiros, ocorreu nas décadas de 1950 e 1960. Nesse período, mais precisamente no dia 13 de abril de 1967, surgiu a primeira versão do Caderno de Cultura de Zero Hora2 em periodicidade quinzenal. Haveria um hiato de onze anos até que outra publicação mensal com as mesmas características voltasse ao jornal, em 1981. Em 1992, quando Zero Hora buscava visibilidade e abrangência nacional, surgiu o Suplemento Cultura como parte integrante do Segundo Caderno (caderno cultural diário de ZH, que nomeia a editorial de cultura) e com periodicidade semanal. Em 1998 e 2010, reformas gráficas redesenharam o suplemento, que encerrou seu ciclo em 2014. Com um período de 22 anos de circulação semanal ininterrupta, foi um dos suplementos mais longevos do país, que apostava, sobretudo, no mercado editorial (livro) como uma de suas ênfases.
A narrativa em fragmentos sobre a cultura, proposta pela publicação, estruturou-se no acontecimento repetitivo e pré-agendado da maioria das pautas (eventos) e pela presença privilegiada da efeméride. Organizou-se a partir de um tempo previsível e provocado pelo gesto de interpretação editorial. Este gesto era tensionado pela exigência de ordenar a apreensão do presente e de iluminar um passado que fundamenta boa parte do seu conteúdo editorial (Golin, 2016).
Ao escolher a quem lembrar e como lembrar – por meio não apenas dos personagens perfilados, mas também dos colaboradores convocados a escrever –, o suplemento configura e refigura quadros sociais da memória, estratifica o tempo por meio de hierarquias editoriais, projeta paisagens de e sobre a cidade. Podemos relacioná-lo às funções de guarda da memória por meio do registro escrito, ou seja, dos feitos mais antigos e mais característicos das cidades na promoção das bibliotecas, dos arquivos, da escola e das universidades, justamente esferas que se destacam nas espacialidades projetadas pelo suplemento analisado. Por meio de suas disponibilidades de armazenagem, ensina Mumford (1998), a cidade transmite, de geração a geração, a herança de uma cultura complexa.
Entre os 173 cadernos pesquisados que compõem a fase final do Cultura –e que foram publicados semanalmente entre janeiro de 2011 e abril de 2014–, elencamos uma amostra específica para tensionamento analítico. Esta amostra foi obtida após o cumprimento de um dos objetivos específicos da pesquisa, ou seja, localizar os personagens visibilizados para serem rememorados pelo suplemento dentro do acionamento do anúncio da morte (obituário) e da efeméride (centenários de nascimento ou morte). A partir daí, buscou-se identificar os regimes de temporalidade utilizados pelo caderno para justificar o acionamento da lembrança sobre a cidade; e, por fim, analisar as espacialidades projetadas sobre a cidade por meio destes gestos editoriais. Ao todo, localizamos 55 textos distribuídos nas edições de 2011 a 2014 que tematizam 32 figuras notáveis destacadas pelo suplemento cultural3. O primeiro mapeamento classificou cada um dos textos pela autoria (quem escreve e seu origem institucional); personagem evocado (quem foi visibilizado pelo suplemento, profissão e vínculo com qual cidade); e, motivo da pauta (temporalidade da pauta, se obituário ou efeméride).
No contexto do suplemento estudado, percebemos que os rituais narrativos do aniversário e da morte anunciada são bastante similares na medida em que projetam uma trajetória de vida de sujeitos notórios, figuras que são destacadas pelo esforço de lembrança jornalístico. No intuito de classificar e contextualizar, o suplemento transforma tais rituais em acontecimentos inteligíveis e justificados para seu público dentro de quadros de referência supostos, ou seja, justificam-se a partir do legado cultural deixado por esses personagens.
Ao indagar quem são os sujeitos escolhidos pelo suplemento e por que devem ser lembrados, vamos percorrer sincronicamente suas trajetórias. Nossa amostra é regida de forma quase equivalente pelos ganchos jornalísticos da efeméride (15 pautas) e do anúncio da morte (17 pautas) conforme verificamos na figura 1.
De acordo com ilustração da figura 2, os notáveis perfilados estão inseridos e são reconhecidos nos campos da literatura, do jornalismo e do mercado editorial (11); das artes cênicas e dança (5); das artes visuais e fotografia (5); da música (4); do ensino de línguas (2); do ensino e pesquisa da geografia e história (2). O conjunto reverbera as características de um suplemento voltado para lançamentos do mercado editorial, que tem como temáticas constantes a literatura, a história, os intelectuais e a música.
Dos 32 perfilados, temos somente quatro mulheres, indiciando uma forte predominância do gênero masculino na seleção de quem deve ser lembrado. Há uma forte prevalência da figura do professor, um terço (8) destas personalidades exerceram a docência como atividade principal. Das figuras evocadas, apenas duas estavam vivas (o dramaturgo e professor de teatro Ivo Bender e o músico João Gilberto) e comemoravam, na época da publicação, seus aniversários de ٧٥ anos e ٨٠ anos, respectivamente. No geral, o arco temporal das histórias de vida abarca uma média de 70 a 98 anos, com exceção dos escritores Caio Fernando Abreu e Sérgio Metz, que eram lembrados pela passagem dos 15 anos de suas mortes prematuras. Ao iluminar as trajetórias dos perfilados, os textos configuram um contexto panorâmico do século xx, especialmente.
Os textos provêm tanto de colaboradores convidados, geralmente do campo acadêmico, como de profissionais da redação de Zero Hora, pontuando uma marca editorial do caderno, um relevo construído pelo suplemento indiciando a perspectiva perita com a qual se observam os temas enfocados4. Dos 43 autores, 12 (27,9 %) são jornalistas, sendo o restante de 31 (72,1 %) composto por profissionais especializados (figura 3).
Dos 31 autores especializados, 17 (54,8 %) são professores universitários, o que mostra uma forte hegemonia do campo acadêmico. Os outros 14 (45,2 %) não são professores, mas estão inseridos dentro de um sistema perito5, de acordo com a figura 4:
A partir desse panorama de 17 autores/professores especializados, vemos que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) é a universidade que mais espaço ganha, totalizando 58,8% de predominância6. Se formos comparar o número de colaboradores da UFRGS (10) com o número total de autores (43), incluindo os jornalistas, a presença da Federal totaliza 23,25 %, que é um valor bem alto: quase um quarto de todos os autores da amostra vem da UFRGS. Isso nos mostra que as universidades ocupam um lugar extremamente importante na dimensão narrativa do suplemento, contabilizando 39,5 % dos autores em relação ao total de 43. Além disso, ao pensar no total de 17 professores, 65% deles são especialistas em Letras, o que indica a hegemonia dessa área no recorte cultural do jornal.
Percebemos o tom de enaltecimento que cerca os percursos biográficos acionados tanto pela morte como pelos aniversários de nascimento e morte. As narrativas sintetizam o sujeito pela dimensão cultural de sua ação profissional e artística e, desse modo, tecem a memória ao inscrevê-los como vidas inspiradoras na história cultural da urbe. A cidade, aqui, aparece como ponto luminoso da lembrança que serve para demarcar momentos significativos da trajetória da maioria dos notáveis. As localidades demarcam nascimento, morte, infância, adolescência, vida adulta, vida profissional e estas representações envolvem-se, muitas vezes, em percursos por ruas, bairros e instituições.
Na amostra de quatro anos da publicação percebe-se a emergência, em um número significativo de textos, da perspectiva da cidade porto-seguro que abriga o personagem durante boa parte de sua vida e que se constitui como espaço acolhedor para o desenvolvimento de sensibilidades artísticas. Junta-se a isso o cultivo de memórias afetivas, elemento que aparece direta ou indiretamente na obra dos criadores e que implica a criação de vínculos com determinados lugares.
Um breve percurso pelas chamadas de cada uma das edições aponta para um primeiro espaço, uma primeira moldura, em que estas narrativas são enquadradas sob o ponto de vista da distinção e da trajetória superlativa e singular – “invenções de um padre genial”, “mestre do cartum”, “morto há 130 anos, o escritor Qorpo Santo continua sendo um nome a ser descoberto”, “pioneiro da escultura moderna gaúcha”, “a primeira-dama do ballet clássico”, “escritor que fundou a literatura pop”, “a voz do Brasil”, “um dos grandes autores argentinos do século 20”, “erudito ímpar”, “maior dramaturgo gaúcho vivo”, “um dos maiores pensadores da língua portuguesa”, “um dos raros autores a conquistar a admiração dos críticos e milhões de leitores ao redor do mundo”. Olhando em conjunto, as chamadas mobilizam a atenção do leitor para aquilo que é único, criando expectativa em relação a cada singularidade, é uma narrativa que aponta o raro, mas que se repete sempre com o mesmo enquadramento.
Dois terços dos personagens (24) têm uma relação direta com Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil, norte editorial do caderno estudado, reverberando o acento hiperlocalista do jornal. A capital aparece como o território construído em que cada um deixou um trajeto singular, um trajeto enfatizado pelo esforço editorial de lembrança. Percebemos também, no conjunto das narrativas, algo que Pollak (1989) sublinhou na recolha de histórias de vida como certo alisamento dos conflitos e tensões que possam ter havido no percurso dos sujeitos. As narrativas, inseridas na dimensão comemorativa, mesmo quando se trata de anúncios de morte, buscam enquadrar cada história naquilo que ela ilumina do presente e vislumbra do futuro. Há uma tentativa de ordenação cronológica, certa coerência entre acontecimentos-chave, organizando aquilo que é da ordem da ilusão biográfica. Pelos tipos de mortes relatadas na amostra, percebe-se ela como uma espécie de vida que prolonga, de um modo ou de outro, a vida individual (e aqui entra em ação o rememorar cíclico dos aniversários), ou seja, o reconhecimento de uma individualidade (Morin, 1997).
No seu ensaio sobre o narrador, Walter Benjamin, ao problematizar a invisibilidade cada vez mais veemente da morte nos últimos séculos, ponderava que era neste momento em que o saber, a sabedoria e a experiência vivida, assumiriam uma forma transmissível e conferiria a qualquer homem a sua maior autoridade perante os vivos ao seu redor. Nos nossos relatos, a exemplaridade de quem morre vale somente para quem já conquistou autoridade em vida (Benjamin, 1993; Vogel; Silva, 2012).
Após a primeira leitura de viés quantitativo e que detectou também as características gerais do conjunto de textos, seguimos para uma segunda etapa qualitativa de análise, desta vez sublinhando excertos narrativos comuns aos textos. Nosso foco se concentrou em encontrar repetições e regularidades na projeção de espacialidades. A opção de usar o termo espacialidade implica pensá-lo também como um construto cultural, real ou imaginário. Retomamos Certeau (2012) quando pensamos a leitura de nosso conjunto de narrativas como uma espécie de caminhada deambulatória pela cidade-texto, dilatando e ampliando elementos presentes no percurso. Ao recolher detalhes comuns às trajetórias dos 32 perfilados, encontramos três espacialidades pregnantes: a casa-residência (as casas têm nome próprio), o sistema escolar e acadêmico (os sistemas de transmissão) e os deslocamentos entre cidades (os espelhamentos das cidades). Apresentamos, a seguir, nossa análise.
Chama atenção, no conjunto, o ponto de referência da casa, elemento central do habitar no sentido de apropriar-se, de manter relações intensas e de constância (hábito, habitualidade) e que se traduz, justamente, na relação de pertença (Menezes, 1996), na apropriação de um território. O território aqui, se revela na sua dimensão de microcosmos e aponta para a cidade como agregação de territórios atomizados (Burgos, 2005). A casa se apresenta como território de identificação e de sedimentação de memórias. Dos 32 personagens, 12 aparecem em relação explícita com sua residência, território de abrigo e criação, e ela em relação à cidade.
Neste sentido, é emblemática a reportagem sobre a busca pela casa-esconderijo de João Gilberto, espécie de enclave onde o criador se recolhe. O repórter atravessou com seu texto pelo menos três ruas do bairro Leblon no Rio de Janeiro, trazendo à tona o relevo das ruas, que dá vida a uma cidade e ao próprio jornalismo, e compõe outro território tão caro à topografia dos afetos urbanos, o bairro como cidades dentro de uma cidade. Se a busca pela casa, universo do homem privado, onde se habita significa deixar rastros (Benjamin, 1991), o suplemento, por meio da palavra e das fotografias ou ilustrações, vai escavando escritas ocultas na cidade, suas rugas como bem definiu Rodrigues (2014). A figura da artista e primeira fotógrafa mulher Margareth Schneider (1892-1983) e seu casarão demolido esvaem-se na memória cultural de Porto Alegre, sendo novamente acionadas na ancoragem da efeméride de 120 anos por um esforço memorativo do suplemento representado pelo excerto a seguir:
A mansão dos pais, na esquina das ruas Ramiro Barcelos e Vasco da Gama, tinha 48 peças – inclusive um ateliê fotográfico e um auditório, onde estava instalado o piano de cauda. Margarethe funda ali o Auditório de Artes Clássicas. Organiza saraus onde se lê poesia e se ouve música. Promove, em 1968, o I Encontro de Poetas e Compositores Brasileiros e Alemães. Em 1976, aos 84 anos, ela depara com o primeiro e intransponível obstáculo: o dito progresso. A grande casa onde vive e patrocina as artes é ameaçada de desapropriação para alargamento da Vasco da Gama. Nem uma carta ao prefeito, com 816 assinaturas de amigos e admiradores, consegue impedir a demolição do imóvel. Como tudo que é sólido se desmancha no ar, o casarão é posto abaixo em 1979. (Chaves, 2012, p. 6)
A própria casa, signo material e simbólico de uma história singular, passa a ser um objeto que deve ser preservado, nem sempre bem-sucedido como aconteceu com a casa acima e a do escritor Caio Fernando Abreu. Seus fãs e leitores tentaram, sem sucesso, transformar sua residência no bairro Menino Deus em Porto Alegre em um centro cultural para salvaguardar um acervo de mais de mil itens do escritor (Moreira, 2011, p. 6). Provavelmente o caso mais emblemático de simbiose entre o sujeito e seu abrigo é a descrição da casa-museu-ateliê, batizada como Casapueblo pelo artista uruguaio Carlos Páez Vilaró (1923 - 2014), na ocasião de sua morte, que fez dela uma escultura habitável e um cartão postal de seu país encravado num penhasco a beira-mar de Punta Ballena. A casa-labirinto é tão personagem quanto seu proprietário e criador (Lerina, 2014, p. 2).
Também é possível olhar o mundo a partir da aldeia. Esse foi o percurso assinalado na trajetória do historiador e professor Telmo Mauro Müller (1926-2012), que nasceu em Lomba Grande, distrito de Novo Hamburgo, e que fez dela, das torres da igreja, dos bailes, dos cemitérios, das festas, dos aromas e gostos da cozinha da mãe a sua perspectiva de leitura da imigração alemã no sul do Brasil: “O mal de Alzheimer fez Lomba Grande ser sua última memória” (Dreher, 2012, p. 6).
A narrativa, mediadora da memória, fecha o ciclo de nascimento e morte em torno de um território. Sem as datas, “pontas de icebergs” na perspectiva de Alfredo Bosi (1992, p. 19) – que fixam um acontecimento na aritmética –, não seria possível vislumbrar sequer o vulto dos personagens e as órbitas de suas ações “no opaco dos tempos”, na polifonia do tempo social, cultural e corporal. Contar é narrar e contar é numerar: “O ato de narrar paga tributo ao deus Chronos”. (Bosi, 1992, p. 20).
Chamamos atenção para a figura de Maria Coussirat Camargo (1915-2014), na ocasião de sua morte, e que dedicou a sua longeva vida à guarda do legado de seu marido, o pintor Iberê Camargo, pois organizava registros do processo criativo e da circulação das obras dele. Esta mulher, que se recolheu à casa e aos bastidores do sobrenome, personificou como poucos a gestão cotidiana da memória, esta consciência que age contra o esquecimento e que se concretizou na criação da fundação-museu Iberê Camargo em Porto Alegre, reunindo sua coleção. “[...] as obras do artista que a rodeavam em sua residência assumiram um lugar de vital significação em sua vida privada – passaram a ocupar para ela o espaço simbólico da presença do artista, como se ele estivesse sempre ali.” (Zielinsky, 2014, p. 2). A personagem concentra em si a função de guarda, de transmissão de uma herança, função tão característica das cidades (Mumford, 1998) e que o suplemento, a partir de seus próprios arranjos e fragmentos editoriais, também pedagogicamente configura.
Gestor da lembrança dos notáveis no palimpsesto da cidade, o suplemento jornalístico aponta para a topografia da distinção em que as escolas, a universidade e a experiência da aula são espacialidades privilegiadas. A implementação do circuito de aprendizado de ballet clássico em Porto Alegre, por exemplo, está centralizado em torno da figura de bailarinos que fundam suas próprias escolas ao longo do século xx. Isto pode ser visualizado nos textos dedicados a pontuar os centenários de Lya Bastian Meyer (1911-2006) e de João Luiz Rolla (1912-1999) (Mestre da dança, 2012, p. 2; Machado, 2011, p. 2).
O sistema universitário tem protagonismo no caderno, não apenas porque dali provém a maior parte dos colaboradores, como já foi visto, e sim pela sua dimensão e legitimidade institucional, de guarda e provocação da memória. Alguns dos perfilados pertenceram aos quadros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Lya Bastian Meyer, Ivo Bender, Celso Pedro Luft, Aziz Ab’Sáber) ou foram homenageados por ela com distinções (Doutor Honoris Causa), exposições ou guarda de arquivos. A universidade, como instituição de guarda e produção da memória, é realçada em iniciativas como as da Universidade de Passo Fundo, noroeste do Rio Grande do Sul, e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que mantém o arquivo Delfos, que reúne acervos deixados por escritores e intelectuais.
A universidade, portanto, é captada nas descrições dos rituais de instituição e de consagração (Bourdieu, 1998). No processo de selecionar quem precisa ser lembrado, conhecido e reconhecido, o caderno jornalístico ecoa os rituais de investidura, reconhece e sanciona a diferença, atribui uma competência ao retratado, esta comunicação é exercida pelo conjunto de textos memoriosos. Veja o caso, no excerto a seguir, da homenagem a Alexandre Roche, professor de francês, história e geopolítica que radicou-se em Porto Alegre e exerceu seu ofício durante décadas:
[...] A última aula dele a que assisti foi em julho do ano passado, quando ele recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A sala dos reitores estava lotada. Nem as cadeiras extras davam conta da multidão que fora festejá-lo. O que era para ser apenas um discurso de agradecimento tornou-se uma aula magna. Roche ofereceu naquela manhã uma história da razão de ser das academias desde a Idade Média, afirmando a necessidade de se produzir pensamento crítico e independente. (Veras, 2011, p. 5)
Há uma escritura que o suplemento é capaz de mobilizar no sentido do registro da experiência efêmera da aula que aparece aqui na sua potência de abertura de horizontes. O perfil, os gestos, a voz do professor, sua maestria e a localização da aula no mapa geográfico da cidade são rememorados muitas vezes em tom nostálgico e desde a perspectiva de quem foi aluno seu.
Por outro lado, como há predominância da literatura e do segmento de produção editorial e jornalística nos sujeitos perfilados, já que pelo menos 15 deles exerceram tais atividades em algum momento de suas vidas, as redações entreabrem-se na superposição do conjunto de textos. São descritas as rotinas diárias da construção da opinião e da subjetividade, por meio do comentário, do cartum, do humor e da crônica. Este último gênero merece uma ênfase, já que se constituiu de forma singular no Brasil como forma do tempo e da memória que se situa no cotidiano da cidade moderna, fazendo-se tecido desta experiência ao captar a miudeza do cotidiano e ao fazer o banal alçar voo (Arrigucci, 1987). O cronista Rubem Braga, evocado no centenário de seu nascimento, mostra seu vínculo umbilical com o Rio de Janeiro, cidade que podem também ser muitas outras, e a sua capacidade de desentranhar a poesia e iluminar-se com instantes do dia a dia.
As redações locais de Porto Alegre se cruzam com as redações das grandes cidadesjá que apontam a referencialidade e a hegemonia do jornal impresso na trajetória cultural de boa parte dos perfilados. Os veículos da empresa Caldas Júnior7, em Porto Alegre, e o jornal O Pasquim8, no Rio de Janeiro, são as redações mais citadas por onde passaram alguns destes indivíduos.
Ao mesmo tempo, percebe-se aqui a construção de figuras referenciais do jornalismo a partir do seu próprio campo. Em um movimento bastante frequente – comum nos aniversários dos veículos, por exemplo – o jornalismo dobra-se e compõe uma narrativa sobre si, exercendo seu poder de dizer e de escolher, assim como também de silenciar.
Ao longo do curso das existências perfiladas, encontramos as cidades como pontos luminosos que se espelham e se refletem entre si. As matérias realizam grande destaque, como vimos, para a perspectiva da cidade porto-seguro, que estabelece com o indivíduo uma simbiose, e também para os processos de deslocação. O escritor Caio Fernando Abreu é um destes indivíduos para quem cada mudança de endereço implicava um estranhamento sempre detectado em seus textos.
Percebemos também o contraste entre centro e periferia a partir dos índices obtidos nas histórias de vida. Em relação a Porto Alegre, cidade que ganha protagonismo em função de ser norte editorial do caderno, esse liame fica bastante demarcado. Pelo menos 10 personagens estabeleceram este vínculo com ela, tanto de adoção como de afastamento. Ora porque vieram de pequenas cidades do interior do estado do Rio Grande do Sul e se radicaram na capital para o desenvolvimento de suas atividades profissionais, deixando na cidade algum legado; ora porque fazem o movimento contrário, saíram da provinciana Porto Alegre e encontraram em centros maiores a possibilidade de desenvolvimento de suas aptidões expressivas.
Esta condição de sair e retornar, que faz da experiência de deslocamento um fator de distinção e influência no seu meio de origem, é bastante frequente em algumas trajetórias. Lya Bastian, João Rolla, Carlos Reverbel, Vasco Prado são alguns dos nomes que se deslocaram e fizeram-se reconhecidos justamente pela experiência forânea. A escolha dos deslocamentos reverbera uma visão eurocêntrica, que tem Paris como ideal formativo e que se projeta como uma sombra e um espelho nas expectativas cosmopolitas de boa parte desses sujeitos.
A maioria dos perfilados encontraram prestígio em vida, justificando inclusive o fato de serem escolhidos como personalidades que merecem ser lembradas por este trabalho sistemático de criação de vínculos e de estabelecimento de proximidades acionados pelo campo jornalístico. Porém, nem todos tiveram a mesma sorte, como foi o caso do padre cientista Landell de Moura, precursor do rádio, que ficou deslocado de seu tempo e passou incompreendido em Porto Alegre na passagem do século xix para xx (Toralles, 2011).
Das espacialidades projetadas pelos gestos memorativos de um determinado suplemento cultural sugerem algumas pistas amplificadas sobre o movimento que o jornalismo exerce quando constrói e reconstrói, junto a outras instituições, as imagens das personalidades a serem lembradas em uma cidade.
Se toda a relação de espaço é também uma relação de poder, o suplemento constrói um espaço que ratifica o prestígio e a singularidade ancorados em datas, identificando vultos que se reatualizam na medida en que mais se deslocam no tempo. Ao funcionar pedagogicamente como um gestor de legados, convoca a temporalidade mais lenta do texto de especialistas e devolve ao leitor algum sentido temporal de permanência (Harvey, 2003).
Ao longo deste exercício analítico, percebemos o poder do jornalismo cultural, e do suplemento como lógica editorial, de chancelar a memória de uma cidade por meio dos seus personagens prestigiosos. Por meio da temporalidade cíclica, da marcação de ciclos biográficos (nascimento, morte), e pelo sucessivo ato de prestar tributos aos mortos, o suplemento participa da mediação dos vínculos de pertencimento a um território. Percebe-se aqui a força da visada sobre o passado, a ênfase sobre a memória e sobre o valor do repertório como molduras estruturantes nas narrativas deste segmento jornalístico.
Mais do que apresentar, o jornalismo cultural se estabelece como atividade para fazer re-conhecer. Dentro da política de gestão de memória, funciona como um dos agentes nas disputas entre lembrar ou deixar-se esquecer. O suplemento analisado destacou notáveis cujas biografias que já haviam conquistado autoridade no seu campo cultural de origem. O cruzamento das trajetórias, dentro das temporalidades ritmadas pelos ciclos, apontou pontos espaciais comuns entre os personagens, mesmo que estejam separados pelo tempo cronológico de suas vidas. Vimos, no exercício analítico, o acolhimento e o afeto privado da casa que personaliza a geografia; a evocação das principais instituições de leitura e de transmissão do século xx (aula, escola, universidade e jornalismo), além das deslocações formativas como processos de distinção nos sistemas especializados. Por outro lado, não é à toa que um suplemento, que se estrutura no chamamento dos especialistas, faça do prestígio do saber a sua principal perspectiva de representação espacial.
Dentro de múltiplas possibilidades de um mundo pré-figurado, o suplemento configura histórias destinadas a serem contadas constituindo uma galeria de personagens representativos de uma cidade. A similaridade dos textos aponta para a simbiose dos personagens com determinadas cidades em que o sujeito traduz a urbe e vice-versa. Esta maneira de reportar concentrando-se na comemoração – e esta disposição vale também para as mortes relatadas na nossa amostra –, insere os fragmentos de histórias de vida em mapas de valores distintivos que perduram acionando um leitor suposto a quem cabe convocar nesse contínuo tecer dos quadros da memória coletiva, incitando-o ao vínculo do reconhecimento.
Se a cidade nasce do gesto ancestral de colocar um marco como ponto de reverência aos mortos, o jornalismo, prática cultural da cidade moderna, atualiza permanentemente este gesto reapresentando personagens e acontecimentos.