Resumo: Convencionalmente se reconhece a existência de dois grandes sistemas ou dinâmicas no âmbito da produção de vinhos em nivel mundial. De um lado, o que se veio a chamar de ‘velho mundo’, qual seja, a produção obtida em países da Europa, onde se valoriza, entre outros aspectos, o terroir e o savoir-faire dos vinicultores, bem como uma qualidade eminentemente associada à tradição. Por outra parte, o ‘novo mundo’, identificado com a produção gerada, sobretudo, nas Américas e Oceania, onde se valoriza o aspecto varietal e onde as empresas apostam por estratégias de marca e em esquemas de competitividade centrados nos preços e na padronização dos vinhos. O surgimento de experiências como o “Vale dos Vinhedos”, no Sul do Brasil, serve para mostrar uma ruptura nessa dualidade. Do mesmo modo, a introdução da componente varietal nas indicações geográficas europeias é outro aspecto que reforça o sentido dessa mudança, revelando, em última análise, as grandes transformações operadas no mundo vitivinícola.
Palavras-chave:Indicações geográficasIndicações geográficas, Vitivinicultura Vitivinicultura, Estratégias de qualidade Estratégias de qualidade, Diferenciação Diferenciação, Tipicidade Tipicidade.
Abstract: Conventionally there are two big systems or dynamics in the field of wine production globally. First, what came to be called 'old world', which is the native production of European countries, which is valued, among other things, the terroir and savoir-faire of winemakers, besides the associated quality tradition. Moreover, the "new world", identified with the production obtained especially in the Americas and Oceania, where the varietal aspect is valued and companies bet on strategies of marks and schemes focused on price competitiveness and standardization of the wines. The emergence of experiences like the case of "Vale dos Vinhedos" in southern Brazil, serves, among other things, to break this duality. Similarly, the introduction of varietal attribute in European geographical indications is another factor that reinforces the sense that move, which at the end of the day, shows the nature of the changes in the wine world.
Keywords: Geographical indications, Viticulture, Quality strategies, Differentiation, Typicality.
Artigos
MUTAÇÕES NO MUNDO VITIVINÍCOLA: A INDICAÇÃO GEOGRÁFICA COMO ESTRATÉGIA DE QUALIFICAÇÃO
MUTATIONS IN THE WORLD OF WINES: THE GEOGRAPHICAL INDICATION AS A STRATEGY OF CONSTRUCTION OF QUALITY
Recepção: 25 Dezembro 2015
Aprovação: 04 Fevereiro 2016
Como citar esse artigo: KOHLS, V.; ANJOS, F.; VELLEDA CALDAS, N. Mutações no mundo vitivinícola: a Indicação Geográfica como estratégia de qualificação. DRd - Desenvolvimento Regional em debate, v. 6, n. 1, p. 41-62, 15 abr. 2016. DOI: https://doi.org/10.24302/drd.v6i1.1068
A produção de commodities (agrícolas e não-agrícolas) representa um dos pilares centrais da economia brasileira. No caso das commodities agrícolas não é necessário insistir na importância de produtos como a soja, do complexo ‘carnes’ (aves, bovinos e suínos), café, citrus ou cana de açúcar. É por força destes números que esse país figura como o terceiro maior produtor de alimentos em nível mundial, perdendo apenas para os Estados Unidos da América e a União Europeia. O fato é que, ao longo da última década, a agropecuária brasileira deixou para trás tradicionais países produtores e exportadores de alimentos, a exemplo da Austrália, China e Canadá.
Todavia, a modernização da agricultura brasileira, cujo auge corresponde ao período compreendido entre a segunda metade dos anos 1960 e o começo dos anos 1980, não é somente considerada conservadora (GUIMARÃES, 1977; BRUM, 1987), mas inclusive “dolorosa” (SILVA, 1982) do ponto de vista dos graves desdobramentos sociais, políticos e ambientais e da quase ausência de mudanças estruturais. Mas para os efeitos que persegue esse artigo vale dizer que o reconhecimento da trajetória expansionista do agronegócio brasileiro não pode redundar no desconhecimento em relação a outros processos que emergem dentro de uma realidade que é absolutamente multifacetada e que atinge igualmente outros países latino-americanos.
Referimo-nos ao que se veio a chamar de transição para uma nova “economia de qualidades” (CALLON; MÉADEL; RABÉHARISOA, 2002) no âmbito da produção agroalimentar, onde não somente a natureza diferenciada do produto converte-se num aspecto decisivo que orienta a escolha dos consumidores, mas também a origem, procedência e os processos subjacentes à sua elaboração ganham um protagonismo crescente. Não obstante, há outros fatores que devem ser levados em conta ao delimitar o campo da presente reflexão.
No mundo contemporâneo, com a crescente integração dos mercados, emergem novos agentes econômicos que se enfrentam em um cenário cada vez mais competitivo e desafiador. Esse contexto traz efeitos difusos, pois, ao mesmo tempo em que abre novas oportunidades coloca, também, ameaças e limites a serem superados, exigindo um grande esforço de compreensão da dinâmica complexa desta nova realidade. Um dos desafios dos gestores das organizações agroalimentares é o de acompanhar a velocidade das mudanças e identificar fontes locais de competitividade, as quais são de fundamental importância para a sua inserção e sustentabilidade na cadeia global de valores. Conceitos como aprendizagem, inovação e qualidade – pela combinação inteligente de recursos, capacitações, cultura, entre outros – passam a constituir eixos fundamentais para a gestão das suas atividades e qualificação dos produtos e serviços.
Simultaneamente a este processo de “superoferta e hipercompetição” no mundo da produção, e de aumento do consumo de alimentos homogêneos e indiferenciados, ocorre um movimento paralelo e progressivo de transição, de uma economia de volume (produtos standartizados) para uma economia de valor (produtos diferenciados) que envolve algum tipo de atributo qualitativo e/ou distintivo. Ou seja, o modelo de quantidades vai convivendo com um novo padrão, no qual a qualidade (em todas as suas dimensões), tanto dos produtos como dos processos, passa a ter peso importante na decisão dos consumidores.
Isto significa uma mudança substancial no âmbito do consumo das sociedades pós-industriais e na imagem do mundo rural que, presentemente, se associa a novas atividades e valores, como no caso da proteção ao meio ambiente, reordenação do território, sustentabilidade, qualidade agroalimentar (nutricional e sanitária) dos produtos, sem perder de vista a dimensão residencial e recreativa. Assim, nessa perspectiva, num movimento que se origina no continente europeu, a multifuncionalidade se converte no eixo principal de ação, com os produtos locais associados a um território concreto e que, portanto, incorporam, como valor agregado, os significados atribuídos pela própria sociedade. (BUENO; AGUILAR, 2003; AGUILAR, 2007; AGUILAR; SACCO DOS ANJOS; CALDAS, 2011; SACCO DOS ANJOS; CALDAS; CANEVER, 2011; LOZANO CABEDO; AGUILAR CRIADO, 2012; SACCO DOS ANJOS, 2012).
No caso dos vinhos não é diferente, pois uma combinação de transformações conjunturais e estruturais trouxe como consequência, uma superprodução vitivinícola, em meio à queda do consumo em países tradicionais, a emergência de novas regiões produtoras e a concentração das vendas nas grandes redes do varejo.
No mundo do vinho, os países produtores se dividem, segundo análises usuais, em dois grandes blocos: de um lado, o chamado “velho mundo”, especialmente França, Espanha e Itália, os quais, historicamente, enfatizaram a valorização do território, da cultura, do saber-fazer, vinculando a produção a uma área geográfica delimitada. Estes países foram pioneiros na criação de Indicação Geográfica (IG)[4] como forma de expressar a diferenciação qualitativa e os vínculos socioculturais do produto com o local produzido, garantindo, através de um conjunto de regras de produção e elaboração, a sua autenticidade. As IG urgiram como estratégia de tipificação e qualificação dos vinhos, com base em diversos fatores e atributos de diferenciação locais, num momento de menor pressão competitiva, com uma base tecnológica mais estável, o que fez com que as mesmas se multiplicassem geometricamente, na segunda metade do século XX, no velho continente.
Por outro lado, admite-se o chamado “novo mundo dos vinhos”, incluindo EUA, Austrália, Argentina, Chile, África do Sul, dentre outros, com ênfase nos chamados vinhos varietais. Tal lógica refletiria a ideia da competitividade, padronização, inovação e qualificação, pressupondo tanto a existência de empresas de caráter familiar, com inserção em mercados regionais, até grandes plantas industriais, com estrutura de governança corporativa baseada em fusões/aquisições, escala e preço, as quais se apresentam articuladas em torno a grandes redes mundiais de distribuição e varejo.
Desta forma, o cenário mudou através da entrada destes novos competidores com outras ênfases estratégicas (padronização, escala, preço, varietais, etc), novos canais de distribuição, especialmente grandes redes de supermercados, a concorrência de outras bebidas, a pressão para a eliminação de barreiras comerciais no âmbito da OMC, além da revolução tecnológica em curso, especialmente no que tange ao desenvolvimento das tecnologias de informação, comunicação e biotecnologia aplicadas aos processos e produtos, fatores estes que, conjuntamente, ampliaram a pressão competitiva.
Isoladamente a Europa ainda é, de longe, o maior produtor, consumidor, exportador e importador de vinho do mundo (Quadro 1). Entretanto, na atualidade, as exportações do novo mundo do vinho crescem em maior velocidade. Este cenário sugere uma transformação radical neste mercado que ocorre, não apenas pelo reposicionamento dos atores líderes, mas, também, pelo surgimento de novas convenções de qualidade.

Segundo Niederle (2012), a emergência destas convenções coloca em xeque hierarquias e classificações que se estabeleceram ao longo de décadas, e aponta para um certo consenso de que a qualificação e diferenciação da produção, dentre as quais, as Indicações Geográficas se apresentam como alternativa estratégica para as regiões produtoras, dentre outros aspectos, porque garantem, ao fim e ao cabo, a vinculação de um produto com o território, uma matéria-prima, um saber-fazer, uma cultura, etc. Em outros termos, encontramo-nos diante de alimentos ou bebidas que se vinculam a um ecossistema concreto, cujos significados apontam para uma forma de “saborear” a natureza, um modo simbólico de “apropriar-se” de uma paisagem, de uma forma de vida e de elementos culturais concretos.
Na base da construção de uma IG de vinhos está o conceito de terroir[5], que se configura pela simbiose de um conjunto de fatores naturais, tecnológicos e sociais. Esse processo é marcado por uma série de ambiguidades que dificultam o acordo para uma proposição universal do conceito, dada a difícil tarefa de “precisar” as fronteiras de influência de cada fator, ou do conjunto de fatores que distinguem um produto oriundo de determinado território (BLUME; PEDROZO, 2008; CHAMPREDONDE, 2012). Assim, é necessário um diálogo entre as proposições conceituais, que não são necessariamente dicotômicas ou excludentes entre si. A análise se pauta, normalmente, a partir de quatro grandes dimensões: físico-ambiental; humano-cultural; jurídico-política; e sócio-econômica, com diferentes ênfases, em função da abordagem teórica a qual cada pesquisador ou agente se filia.
Além desta introdução, este artigo contempla outras três seções. A primeira delas delimita o problema de pesquisa e o marco teórico e metodológico que dá sustentação à reflexão proposta. A segunda seção expõe o debate acerca dos diferentes papéis e significados atribuídos às IG no atual contexto, enquanto a última seção reúne as considerações finais do trabalho.
Tendo em vista a atual conformação do setor agroalimentário em geral, há algumas posições que salientam a dificuldade, ou mesmo, a impossibilidade, de se trabalhar com as IG e, ao mesmo tempo, seguir a evolução tecnológica, em curso, do setor vitivinícola. Na visão de alguns pesquisadores da área, estas estratégias seriam incompatíveis, porque uma tem por base a “tradição” e a outra a “inovação”. Quer dizer, de acordo com este ponto de vista, haveria um claro antagonismo entre estas duas estratégias ou orientações. Em outras palavras, poder-se-ia indagar, diante de um cenário de acirramento concorrencial via redução de custos, seriam as IG uma estratégia competitiva consistente do ponto de vista de atender às expectativas dos atores sociais? Por outro lado, é possível compatibilizar uma estratégia, em grande medida centrada na história, no saber-fazer tradicional, na cultura, etc, com a velocidade dos novos tempos, especialmente com os avanços tecnológicos e as mudanças no mercado e no perfil dos consumidores? É plausível conciliar a implantação de IG nas regiões vitivinícolas e, simultaneamente, acompanhar a evolução tecnológica nos vinhedos, nos processos de vinificação e as novas tendências de consumo?
O objetivo do estudo é mostrar que, sob as lentes neo-schumpeterianas (visão evolucionária) e da RBV – resource based view (visão baseada em recursos) –, as experiências materializadas na construção de IG indicam ser possível pensar que tais caminhos não são, necessariamente, excludentes entre si. Ou seja, sob este enfoque, é factível compatibilizar a estratégia de implantação de IG, acompanhando as novas tendências constatadas no âmbito da produção e do consumo, com a introdução de inovações de processos e de produtos nos vinhedos e cantinas atualmente existentes.
Para que isto seja possível, propõe-se um modelo que trabalha com duas estratégias de forma simultânea e não excludente: a primeira, através da construção e consolidação da IG, que chamamos de “estratégia compartilhada ou coletiva”, e a segunda, as “estratégias individuais”, desenvolvidas pelos vitivinicultores nas suas empresas, percorrendo uma trajetória resultante da combinação “única” dos seus recursos e capacitações. A primeira, uma estratégia “potencial” resultante de um conjunto de fatores territoriais naturais, geográficos e humanos os quais, só serão expressos na sua plenitude se acompanhados da segunda, ou seja, do desenvolvimento permanente dos recursos e capacitações dos agentes que, pela sua “combinação única”, aplicada aos vinhedos e cantinas e associados àquelas, permitirão obter produtos e serviços típicos de qualidade superior. Quer dizer, o fato do vinho proceder de uma região altamente favorável ou vocacionada à vitivinicultura, pela presença de um conjunto de atributos consubstanciados na IG, não garante, por si só, a materialização de todos estes atributos no produto vinho, caso os vitivinicultores não desenvolvam capacitações específicas e um aprendizado permanente que lhes permita a obtenção de uvas e vinhos com a distinção e tipicidade “anunciadas” pela IG.
O estudo sugere ainda que, mesmo em países tradicionais na implantação e consolidação de IG com regulamentos de uso bastante restritivos, como é o caso da Espanha, é possível para os mesmos, com alguma flexibilização nesses regulamentos, acompanhar as novas tendências no mercado mundial de vinhos, sem que isso signifique descaracterizar a tipicidade dos produtos originários das regiões protegidas.
Admite-se, enfim, que é possível pensar numa espécie de “terceira via híbrida”, compatibilizando os aspectos históricos, naturais, tradicionais e culturais do território expressos na IG, com a inovação tecnológica e a modernização dos processos vitivinícolas.
Estas são algumas questões que o presente artigo pretende abordar, partindo de uma revisão da produção acadêmica sobre o tema e de observações sistemáticas in loco nas regiões do Vale dos Vinhedos e da Campanha Gaúcha (Brasil)[6] e em tradicionais zonas vitivinícolas da Espanha (La Rioja, Aragón, Ribera Del Duero e Jerez de la Frontera), bem como da análise de informações sobre tendências de produção e consumo do mercado mundial de vinhos em sites especializados. Durante o ano 2012 acompanhamos, também, audiência pública realizada no Congresso Brasileiro sobre o tema das Indicações Geográficas[7], proposto pelo Projeto de Lei n. 1.973 de 2011, a qual contou com a participação e depoimentos de uma série de especialistas oriundos das mais diversas áreas e âmbitos de atuação (acadêmica, pesquisa, extensão, associações de produtores e vinicultores, órgãos especializados, governo federal e iniciativa privada).
Cada vez mais os avanços na área de estratégia são caracterizados pela conversação entre diferentes aportes teóricos. Figuram em destaque o conceito de inovação e a ideia de trajetórias tecnológicas nos estudos dos economistas neoschumpeterianos ou evolucionários (NELSON; WINTER, 1982; DOSI, 1982; FREEMAN, 2004), a visão da empresa, baseada em recursos ou do original research-based view [RBV] (WERNEFELT, 1984; BARNEY, 1991; PETERAF, 1993; TEECE et al., 1997; ITO et al., 2012), a análise de clusters, desde os estudos dos distritos industriais italianos, até a ideia de arranjos locais de produção – APLs (BECATTINI, 1994; CRUZ et al., 2011).
Trata-se de pesquisadores oriundos de diferentes escolas acadêmicas – economia, administração, antropologia, sociologia, geografia, dentre outras – todos buscando, através de diferentes perspectivas, a compreensão da dinâmica das organizações empresariais, suas fontes de desempenho superior e consequente sua sustentabilidade sob um ambiente extremamente competitivo. Particularmente, as ciências econômicas têm desempenhado um papel central neste processo, auxiliando na compreensão de questões essenciais, como: qual a razão da existência das firmas, dos seus mecanismos e processos de crescimento? Qual a natureza do seu comportamento competitivo, evolutivo e inovativo? Como e por que diferem entre si, bem como sobre a influência destas diferenças em relação ao próprio desempenho (COASE, [1937] 2007; PENROSE, 1959).
Para Schumpeter, a análise do desenvolvimento e da dinâmica de longo prazo nas economias capitalistas pressupunha a centralidade da tecnologia e dos procedimentos inovativos. A análise neoschumpeteriana tem como pressuposto a existência de um princípio dinâmico que conduz à evolução do sistema econômico. Esse princípio é a tecnologia, as revoluções que ela promove e os impactos daí decorrentes, em que pese a existência de novos padrões produtivos e de consumo, exigindo mudanças institucionais que possibilitem o efetivo aproveitamento de uma nova fase. Assim, os desequilíbrios são intrínsecos ao sistema, e as inovações promovem assimetrias entre as empresas de um mesmo setor, bem como entre os diferentes setores da atividade econômica. Nessa conjuntura, o conhecimento tecnológico avança de forma dependente do conhecimento acumulado anteriormente (path-dependence), concedendo grande importância à história, às rotinas e influências do ambiente e das instituições. Assim, o conhecimento desempenha um papel fundamental e pode ser desenvolvido pelos diferentes processos de aprendizado, trazendo à tona elementos, não apenas de mercado, para a compreensão dos processos inovativos, como também o ambiente de inserção da empresa, bem como os elementos institucionais (CARLEIAL, 2011).
Sob esta ótica, as firmas são agentes específicos os quais, dada a complexidade da ambiência e os conflitos de interesse, não são meramente agentes maximizadores. Elas se constituem no locus preferencial da inovação, sob a forma de uma organização contextualizada numa determinada estrutura de mercado, região e/ou país, com estratégias competitivas definidas, uma história própria e que, portanto, acumula seus conhecimentos e experiências, não só nos seus maquinários e equipamentos, mas também em seus trabalhadores, técnicos, gerentes, consultores etc (DOSI, 1988; PAVITT, 1990; FREEMAN, 2004).
Há muitos fatores externos às organizações que influenciam a introdução de inovações, tais como: a ação e natureza do Estado, com suas políticas públicas e financiamento, a situação da área científica em cada país, as capacitações tecnológicas disponíveis, qualificações, condições ocupacionais, além das tendências macroeconômicas. Elas aprendem com sua experiência, mas também com outras organizações com as quais partilham informação, conhecimento e tecnologias. Nesse sentido, cada uma possui uma trajetória de desenvolvimento, explorando novos caminhos e capacitações. Estas trajetórias podem ser explicadas através de dois conceitos-chave para a análise evolucionária: a busca e a seleção (NELSON; WINTER, 1982; DOSI, 1988).
A busca é um processo desencadeado dentro de cada empresa para definir novos produtos, novos formatos organizacionais, novos processos, enfim, inovações que lhes garantam vantagens competitivas, tais como redução de custos, maior participação nos mercados, personificando o próprio processo de concorrência. Essa concorrência opera estabelecendo a seleção desses produtos e processos encontrados pela mesma num dado ambiente econômico, definindo quais tecnologias devem ser superadas e quais devem ser incorporadas. Como resultante, tem-se assimetrias reveladas nos custos, na produtividade, na qualidade, no tipo de gestão, no tamanho, nas estratégias, etc. A inter-relação entre as decisões das empresas e a ambiência externa – entendida como mercados, instituições e as políticas públicas – vai resultar numa dada dinâmica de desenvolvimento regional, fruto dessas decisões e escolhas.
A partir dos anos 1990, cresce o número de estudos que privilegiam o aprendizado como foco analítico. Noções como competitividade dinâmica, inovação interativa e eficiência coletiva, passaram a constituir o cerne dos novos modelos de competição (NELSON; WINTER, 1982; LUNDVALL, 2002). A teoria evolucionária contesta a tese de que o processo inovativo é linear, no qual a inovação se origina na ciência pura, passa pela ciência aplicada e desemboca no mercado. Ao contrário, de acordo com esta abordagem, a inovação é fruto de um processo coletivo, o qual tem como recurso fundamental o conhecimento em todas as suas dimensões. Para os evolucionários, a inovação é fruto da combinação de conhecimento, bem como um processo social dependente de interações. Um processo no qual a cooperação surge como uma relação essencial, diretamente ligada aos processos de aprendizagem, propiciados por um conjunto de organizações que se relacionam reciprocamente, e que acabam, formal ou informalmente, gerando inovações dentro de um determinado marco institucional e territorial.
Os processos de construção de IG, conforme evidenciado por Fort, Peyroux e Temry (2007), sugerem uma inovação institucional associada a processos de modernização produtiva. Trata-se de inovações incrementais associadas a formas de aprendizagem coletiva e a rotinas organizacionais estabelecidas em redes de colaboração que, não raro, são erigidas com a finalidade de construir capacidades coletivas e de incrementar as vantagens competitivas dos atores envolvidos. Estas formas de inovação não se desenvolvem sem objetivos ou compromissos coletivos previamente definidos, ainda que a obtenção desses acordos seja um longo processo de argumentação e contra-argumentação, em função das diferenças de percepção e valores em relação aos objetivos do projeto, forma de condução, quais atores e organizações participarão, quais são suas atribuições, que tipo de resultado será buscado, etc. Para Nelson (1996), as instituições referem-se a uma complexidade de valores, normas, crenças, significados, símbolos, costumes e padrões socialmente aprendidos e compartilhados, que delineiam o elenco do comportamento esperado e aceito em um contexto particular. Já para Lundvall (2002), instituições são normas, hábitos e regras que estão profundamente enraizados na sociedade e que desempenham um papel importante na determinação de como as pessoas se relacionam entre si e como elas aprendem a usar o seu conhecimento.
De um modo geral, esta abordagem expressa um entendimento de que a criação de vantagens competitivas sustentáveis depende da capacidade de cada região encontrar, nos recursos específicos que possui (natureza, imagem, tradição, cultura, técnicas, conhecimento etc.), os diferenciais qualitativos que lhe confiram uma espécie de “lucro monopolístico”, ainda que temporário, associado à especificidade da origem. A qualidade é colocada no centro da construção das novas estratégias competitivas e, com ela, os diferentes mecanismos institucionais de diferenciação e segmentação dos mercados. Esta compreensão é fundamental para evidenciar por que o projeto de IG do Vale dos Vinhedos e outros em curso podem constituir, ao fim e ao cabo, uma resposta à perda de competitividade das empresas frente a um mercado cada vez mais competitivo e volátil (NIEDERLE; VITROLLES, 2010).
A concentração e diferenciação do mercado também se refletem na dinâmica do território, revelando aspectos contraditórios de sua trajetória socioeconômica. O fato de o protagonismo empresarial estar associado à conformação de cluster vitivinícola, fez da experiência do Vale dos Vinhedos um laboratório de diversas pesquisas abordando a sua dinâmica endógena/territorial de desenvolvimento, baseada em confiança, capital social, empreendedorismo e inovação individual e coletiva (GOLLO, 2006; CALOÊTE, 2007; ROESE; NEIS, 2007). Alguns destes estudos exaltam as qualidades intrínsecas do território, destacando como a cooperação foi capaz de produzir inovações sem afetar valores, tradições e costumes herdados do passado (VALDUGA; VALDUGA, 2008).
De acordo com Lundvall (2002), a experiência cotidiana de trabalhadores, engenheiros de produção e representantes de vendas influencia a agenda e pode determinar a direção dos esforços inovativos, os quais se constituem em “insumos” cruciais para o processo de inovação. A experiência cotidiana também aumenta o conhecimento técnico, além de gerar ideias sobre soluções de problemas de rotina e em que direção elas devem ser procuradas. Analisando o Vale dos Vinhedos a partir de uma abordagem sistêmica da inovação, Jeziorny e Ortega (2012) concluíram que existe um sistema de inovação local, o qual é fruto da interação de diversas organizações como a Embrapa Uva e Vinho, as vinícolas, as associações de produtores, o Sebrae, o Centro Federal de Educação Tecnológica, a Universidade de Caxias do Sul, dentre outras. Neste sistema, a cooperação aparece como uma relação central, porque auxilia nos processos de aprendizagem, combinação e re-combinação de conhecimento acumulado.
Numa abordagem próxima e complementar, a perspectiva baseada em recursos entende as firmas como organizações heterogêneas com respeito às suas dotações, perfis de recursos (tangíveis e intangíveis) e capacidades. Por conta disso, ela tem um caráter e trajetória únicos, sugerindo que derivam daí suas possíveis vantagens competitivas. Elas não adquirem novas capacidades e competências rapidamente, pois, além do conhecimento aberto ou acessível, existe ainda o chamado conhecimento tácito, de difícil circulação e apreensão entre os agentes econômicos, o que ratifica a complexidade do desenvolvimento estratégico.
A premissa central dessa abordagem é que desempenhos superiores à média em um setor, são influenciados e explicados pela presença de recursos estratégicos raros, dificilmente imitáveis ou acessíveis aos cocorrentes, propiciando a criação de assimetrias e vantagens competitivas para as organizações que os possuem, acessam ou controlam. Isto significa explorar aquilo que a empresa faz bem, e de uma forma muito particular. Segundo Wilk e Fensterseifer (2003), estudos anteriores do cluster de vinhos da serra gaúcha, mostraram uma grande heterogeneidade de desempenho entre as empresas, assim como de recursos que estas firmas possuíam ou acessavam. Um dos aspectos que chamou a atenção nesta pesquisa foi que a dificuldade de acesso a recursos que limitam as firmas de atingirem melhores índices de performance, reside, não só nos recursos estratégicos em si, como também numa certa “rigidez cultural”, que as impede de investirem em recursos e estratégias mais efetivas. Não raras vezes a ênfase na dimensão cultural traz implícita uma certa ambiguidade, que, se por um lado, é responsável por valorizar os ativos intangíveis e conferir singularidade ao produto, por outro, pode se converter numa barreira à aprendizagem e incorporação de inovações aos processos vitivinícolas.
Em síntese, ao olhar para a região vitivinícola da Serra Gaúcha, o autor observou dois tipos de trajetórias antagônicas: uma de empreendedorismo, modernidade e comprometimento com a qualidade; e outra de oportunismo, atraso tecnológico e especulação industrial. Estrategicamente, empresas especialistas com vinhedos próprios ou integrados e monitoramento sobre a matéria-prima, apresentaram desempenho superior para vinhos finos, mesmo em uma região exposta a condições edafoclimáticas similares. Nesse sentido, tecnologias e competências vitícola e enológica se mostraram importantíssimas para o alto desempenho.
Pode-se inferir que no setor agroalimentar e, particularmente no vitivinícola, em função de sua forte associação com os aspectos naturais, culturais e de território, e as empresas enfrentando concorrentes cada vez mais informados, tudo indica, que os próximos passos estratégicos serão determinados, em grande medida, pelas capacitações dinâmicas que as firmas desenvolverem, as quais permitirão adquirir e/ou recombinar os seus recursos atuais, criando novas assimetrias no seu ambiente competitivo.
Assim, sob as lentes evolucionárias e da visão baseada em recursos, este trabalho segue uma linha de argumentação que admite que a estratégia de implantação de IG no setor vitivinícola possibilita a “pavimentação” simultânea de dois caminhos não excludentes, os quais, pelo contrário, se reforçam na busca de qualificação dos agentes econômicos, viticultores e vinicultores e de seus respectivos produtos (uva e vinho), tendo como consequência, a diferenciação, a qualificação, a agregação de valores e inserção competitiva sustentável no mercado, tal como se indica na Figura 1.
O primeiro caminho é coletivo ou compartilhado, onde serão definidos os critérios “gerais” da tipicidade. Este é um momento onde todos os agentes locais interessados vão estabelecer uma agenda de trabalho que, ao final, resultará no dossier para o encaminhamento institucional e formal de obtenção da IG. Dada a provável assimetria de informações e conhecimento entre as organizações e os agentes envolvidos no início do processo, esta é uma etapa importantíssima para buscar o nivelamento de informações e conhecimentos entre os atores envolvidos. Além disso, é muito rica em função dos debates e das defesas dos diferentes pontos de vistas, cujas ênfases vão sendo sedimentadas pela força dos argumentos, sejam territoriais, técnicos, históricos, culturais, legais, sócio-econômicos, etc, cuja síntese deverá redundar num acordo geral, que fará parte do regulamento a ser encaminhado aos órgãos competentes, que no caso brasileiro, consiste no INPI[8]
É uma grande oportunidade também, do ponto de vista coletivo, para consolidar o “capital social”, que se constrói através do aprendizado coletivo, na defesa das linhas de argumentação, na postura de cooperação, na busca da “identidade”, na reafirmação do patrimônio cultural, na afirmação de valores coletivos, na articulação com outros setores interessados (gastronomia, turismo, artesanato etc), os quais culminam na ampliação da visibilidade da região e da respectiva IG nos meios de comunicação, entre os próprios agentes do setor e da região delimitada e junto ao mercado.
Aqui prevalece a busca potencial de possíveis vantagens competitivas compartilhadas. São os trunfos que, em princípio, todos os agentes signatários do registro da IG poderão utilizar, desde que dentro das “regras do jogo” encaminhadas pelo grupo, cuja aplicação será monitorada pelo Conselho Regulador. Ou seja, são os fatores disponíveis aos vitivinicultores proporcionados pela aprovação da IG, os quais farão parte do conjunto de recursos de uso compartilhado, potencialmente utilizáveis pelos mesmos, desde que cumpridas as normas do regulamento de uso, com o objetivo de qualificar e agregar valores aos seus produtos e serviços.

Em outras palavras, isto que estamos chamando de “estratégias compartilhadas de qualificação”, é a base geral de atributos do território (naturais, históricos, culturais e patrimoniais) disponíveis ao coletivo dos agentes da área delimitada, mas que, por si só, não garantem níveis qualitativos suficientes nos seus produtos e serviços, tendo em vista a busca de uma inserção competitiva no complexo mercado de vinhos. Para que estes atributos distintivos da área geográfica delimitada se materializem ou se “revelem” no produto ‘vinho’ e nos serviços associados, são necessários, por parte de cada viticultor e/ou vinicultor no âmbito das suas empresas, um aprendizado e conhecimento profundo de todas as etapas do processo produtivo, assim como o desenvolvimento de capacitações e habilidades específicas, as quais, através da combinação única dos recursos disponíveis, transformar-se-ão nos “insumos estratégicos individuais” para a obtenção de produtos diferenciados. É o “toque pessoal”, em grande medida tácito, de cada viticultor e/ou vinicultor, conferido ao seu produto e/ou serviço, para além daqueles proporcionados pelas condições “gerais” que distinguiram a área protegida.
Assim, paralelamente ao trabalho coletivo que redundou na obtenção da IG enquanto estratégia compartilhada, os vitivinicultores de caráter familiar ou empresarial estabelecem estratégias competitivas individuais, percorrendo a sua trajetória, por meio de uma combinação “única” de recursos e capacitações. Agora, no âmbito das suas organizações, os agentes envolvidos diretamente na produção, possuem um espaço para o desenvolvimento de competências e capacitações próprias, através de pesquisa, inovação, diferenciação, novas combinações produtivas e elaborativas, frutos de uma dinâmica de construção de trajetórias únicas, tanto no ambiente dos vinhedos (parreirais), como na vinificação (elaboração do vinho nas cantinas), nas operações de logística, nos planos de marketing, etc.
Este é o momento dos viticultores e vinicultores, para além das conquistas coletivas que resultaram na aprovação da IG, explorarem as suas competências e capacitações individuais aplicadas, respectivamente, à produção da uva e de vinho. Trata-se de um esforço que é fruto da sua história, da sua família e de outros fatores (experiências, saber-fazer, aprendizado, trajetória profissional, busca e aplicação de novas tecnologias, etc) que sintetizam o conhecimento acumulado, de forma a agregar um diferencial a mais ao seu produto e/ou à sua marca, mais além daquele já agregado via implantação coletiva da IG. Almejam agora, aquele “algo mais”, para encontrar o seu espaço num mercado altamente competitivo, procurando “refinar” a qualidade dos seus produtos, para além daqueles atributos já proporcionados pelos fatores associados à região delimitada pela IG.
Conforme evidenciado na primeira seção, o mundo do vinho estaria supostamente centrado em dois grandes blocos de países produtores com características bem definidas, as quais, nas duas últimas décadas, vivenciaram importantes mudanças decorrentes, em boa medida, do acirramento da competição nos diferentes mercados. Os tensionamentos entre os sistemas produtivos, e o próprio ambiente concorrencial, colocam frente a frente os tradicionais produtores europeus e os “novos entrantes”, para usar uma expressão do esquema das cinco forças competitivas de Porter (1980). Estas regiões impõem uma nova forma de pensar o negócio vinho, introduzindo inovações, modernização das vinícolas e ampliação da escala. Visam a padronização como indicativo de qualidade para se destacar no mercado mundial, investindo no aspecto varietal e em agressivas campanhas de marketing, através de marcas próprias e/ou das grandes redes de distribuição.
No continente europeu, não obstante a larga tradição na exaltação dos atributos tangíveis e intangíveis dos territórios, é somente no começo dos anos 1990 que é criada uma legislação específica (Regulamento CE nº2081/92)[9] para produtos agroalimentares, incluindo o caso dos vinhos. As ênfases competitivas para a delimitação de áreas protegidas, sempre estiveram alicerçadas na história, na tradição, na cultura, no saber-fazer, na identidade, nos costumes e crenças, no patrimônio e elementos naturais do território, no relevo, na paisagem, enfim, sobre um conjunto de atributos que lhe conferem tipicidade e reputação. Produzidos na área protegida, os vinhos únicos expressam o terroir. Todavia, segundo Blume e Specht (2008), este conceito abarca duas grandes vertentes, uma delas, mais voltada a precisar a influência do ambiente físico, e a outra, que exalta a dimensão humana do produto. A primeira, destacando os fatores naturais da área geográfica demarcada, que vão ser expressos nas qualidades sensoriais objetivas dos vinhos aí produzidos, e a segunda, salientando um conjunto de qualificações de cunho mais subjetivo, destacando a noção holística de abordagem do território, a valorização do coletivo e dos processos de cooperação, a afirmação da identidade cultural, a convergência entre produto e território, buscando passar aos consumidores, além das qualidades objetivas de um bom vinho, a sensação de estarem desfrutando e saboreando daquele conjunto de atributos históricos, patrimoniais e culturais. Em síntese, um conjunto de atributos locais reunidos sob um marco institucional complexo, o qual é fruto de um acordo entre os atores envolvidos, expresso no Regulamento de Uso, monitorados e fiscalizado pelo Conselho Regulador.
As regiões centradas neste tipo de dinâmica têm enfrentado alguns problemas e questionamentos, dentre os quais, pode-se elencar: a expansão geométrica do número de IGP e DOP com diferentes ênfases de enfoques e qualificações, muitas vezes de cunho difuso ou subjetivo, de difícil reconhecimento por parte de consumidores, que acabam confundindo-se no momento de fazer as suas escolhas. Um paradoxo, pois quando todos os argumentos apontam para a necessidade de qualificação pela diferenciação e tipificação, surge o problema de “excesso de diferenciação” em face da multiplicação desenfreada de Indicações Geográficas. Quer dizer, para uma escolha mais criteriosa, o consumidor necessitaria ter um conhecimento relativamente aprofundado sobre a influência de cada fator ou atributo na qualidade final do produto. Há claramente um gap entre o conjunto de qualidades ofertadas pelos vinicultores e a compreensão e/ou percepção dessas qualidades, por parte dos consumidores.
Outra questão, é certo enrijecimento no marco jurídico e institucional dos Regulamentos de Uso, dificultando a incorporação de inovações nos vinhedos, nos processos de vinificação e mesmo no mercado, como no caso da identificação da cultivar da uva no rótulo dos vinhos. Este debate aponta para a necessidade de flexibilização, havendo, nesse sentido, certas iniciativas em curso em algumas DOP da Espanha e AOC na França. Ou seja, como cada DOP encerra um conjunto de elementos que vão expressar, justamente, a tipicidade e os aspectos qualitativos diferenciais dos vinhos daquela região delimitada, na medida em que estes sinais disitintivos se multiplicam, carregam consigo estas características “únicas”. Isto acarreta dificuldades de entendimento e percepção, especialmente para os consumidores mais jovens e para a massa de consumidores “comuns” ou não especializados. Segundo dados do Ministério de Agricultura Espanhol, na safra 2011/2012 houve um aumento de 3% na produção de vinhos, das 86 DOP registradas na Espanha, em relação à safra 2010/2011. A mesma fonte indica que uma expressiva parcela (56%) é comercializada internamente e 44% é exportada, tendo como destinos principais pela ordem, a Alemanha, o Reino Unido, os EUA, a Holanda e a Bélgica. Da parcela de vinho exportado, aproximadamente 70% foi para outros países europeus e 30% para outros destinos, com destaque para os EUA e os países asiáticos, especialmente a China. Com a perspectiva de crescimento das exportações de vinhos DOP para países não europeus, ganha maior relevo o problema da comunicação dos significados estampados nos rótulos com os consumidores distantes.
De qualquer forma, ao se debater o conceito de terroir no âmbito do consumo, deve-se levar em consideração os elementos cognitivos que promovem a associação dos diferenciais capazes de revelar potenciais qualitativos do produto. Quanto mais elementos forem “comunicados” aos consumidores que, no seu conjunto, constituem um determinado terroir, mais facilmente este poderá ser percebido e reconhecido pelos mesmos. A Comissão de Agricultura e Desenvolvimento Rural da UE, através de uma proposta de reforma do setor vitivinícola, tem estimulado os agentes do setor a flexibilizarem os regulamentos de uso, especialmente no que tange à comunicação com os consumidores, sob pena dos produtores europeus perderem fatias importantes do mercado, onde, outrora exerciam plena hegemonia.
Durante as duas últimas décadas as regiões não europeias realizaram grandes esforços sob a égide de um outro tipo de dinâmica, com ênfases competitivas nos varietais, nas novas formas de condução dos vinhedos, na inovação de processos e produtos, na padronização e estabilização dos processos de vinificação, na gestão profissional, na ampliação da escala e alta competitividade dos seus complexos vitivinícolas e consolidação de suas marcas, em meio a um mercado que tem nas grandes redes mundiais do varejo, os seus canais principais de comercialização.
Estas regiões ingressaram no mundo dos vinhos com uma reorientação radical nos sistemas de condução dos vinhedos (principalmente em espaldeira), buscando adequá-los a glebas maiores, à mecanização e orientação solar, centrando-se em algumas varietais já bastante conhecidas no mercado. Uma reestruturação que inclui modernização nos processos de vinificação e estabilização dos padrões sensoriais de acordo com as condições ambientais de produção dos vinhedos e as características específicas de cada cultivar, ampliando consideravelmente a escala de produção, em meio a agressivas campanhas de marketing, que primam por consolidar suas marcas, num contexto mercadológico cada vez mais global.
O elemento novo que emerge mais recentemente tem a ver com o fato de que tanto as regiões tradicionais como as emergentes, começam também a flexibilizar suas estratégias, valendo-se de iniciativas voltadas seja para a valorização do terroir, seja para a adoção de novas formas de produção. A tendência de um maior controle da produção parece ser mais facilmente aceita pelos novos entrantes, que já começam a construir as suas IG e assim valorizar o terroir, do que, comparativamente, a flexibilização da produção no velho mundo, que significaria adaptar toda uma estrutura, que em grande medida, foi forjada e apoiada por políticas públicas no âmbito da UE. Uma mudança que supõe adequações a um novo estilo de gerenciamento da cadeia produtiva, com mais autonomia, iniciativa e recursos próprios.
As reformas da Comissão Europeia, no âmbito da PAC, para o período 2014-2020, apontam claramente para a necessidade de uma maior eficiência na aplicação dos recursos públicos e para o avanço das chamadas “regiões competitivas”, mais desenvolvidas na terminologia das políticas de coesão social e econômica, em relação às “regiões de convergência”, menos desenvolvidas. No nosso entendimento, vai haver um “convite” para que, cada vez mais, se faça a transição de regiões de convergência para regiões competitivas, com a UE priorizando os investimentos em projetos de eficiência energética, energias renováveis, e que primem pela competitividade e inovação nas empresas de pequeno e médio porte, nos setores que estas regiões indicarem como prioritários, dentro do marco estratégico comum definido pelo Tratado de Lisboa (MOYANO, 2013).
Este debate, que repercute sobre o tema das IG no âmbito dos vinhos em ambiente de acirrada concorrência, está presente também nas discussões acadêmicas e no universo político e econômico. Emerge daí uma dicotomia básica que expõe, de um lado, “vinhos de terroir” provenientes dos países europeus e, de outro, “vinhos varietais”, intensivos em novas tecnologias, oriundos do novo mundo vitivinícola. Entretanto, tudo indica que os últimos redefiniram toda a arquitetura do mercado, com reflexos importantes em todas as regiões vitivinícolas do mundo, relativizando aquela dicotomia referida anteriormente. A crescente influência da crítica especializada na preferência dos consumidores passa a ser decisiva nas escolhas estratégicas dos viticultores e vinicultores. Agora, além daquele saber-fazer tradicional, do conhecimento tácito e dos aspectos culturais repassados entre as gerações, deve-se estar atento a inovações de processos, a práticas sustentáveis do ponto de vista social, econômico e ecológico, na condução dos parreirais e nos métodos de vinificação, cujos reflexos são decisivos na qualidade sensorial dos vinhos. Igualmente importante é a inovação de produtos, a prospecção de novas cultivares, a produção de uvas e vinhos orgânicos, as novas assemblages, aprimorando e requalificando a tipicidade e qualidades distintivas, já incorporadas pelos fatores naturais e humanos, consubstanciados na aprovação da IG.
Este conjunto de atributos específicos, expresso na IG, vai constituir a base competitiva (coletiva ou compartilhada) dos agentes associados, na disputa com outras regiões produtoras, embora isto, por si só, não garanta a qualidade superior dos vinhos aí produzidos. Se o produtor de uvas e o vinicultor não fizerem a sua parte “pari passu” à consolidação da IG, nos respectivos parreirais e cantinas, não vão produzir uma uva e, por consequência um vinho, de boa qualidade. E isto é detectado nos processos de degustação e nos resultados alcançados no âmbito do Vale dos Vinhedos e em outras regiões que buscam a tipicidade, onde apenas um percentual relativamente pequeno (em torno de 20 a 30%) do vinho da região demarcada, consegue cumprir todos os requisitos para ser considerado um vinho DO. Quer dizer, além desse espaço para a construção coletiva, da imagem da região, das externalidades positivas, da ampliação da rede de relacionamentos, do fortalecimento da coesão social, econômica e territorial, etc, há um longo caminho mais personalizado de aprendizado e qualificação profissional a ser percorrido pelos atores envolvidos nos processos produtivos e de elaboração de vinhos.
A experiência do Vale dos Vinhedos é relevante não somente por exprimir os contornos de um processo peculiar de diferenciação, mas pelo fato de evidenciar uma tendência que tende a espraiar-se para as regiões vitivinícolas emergentes. Nessa visão estratégica, a IG se constitui na “base competitiva coletiva ou compartilhada” da região demarcada, reforçando (e sendo reforçada) pelas bases competitivas individuais levadas a cabo tanto pelos vitivinicultores de caráter familiar quanto empresarial.
Uma vez decidida a implementação da IG como estratégia competitiva coletiva, começa a seguir um longo processo de discussão e de negociação entre as partes interessadas que, sob um marco institucional-legal acordado, vão decidir a forma de governança para levar o projeto adiante, assim como elencar todos os recursos naturais e humanos, tangíveis e intangíveis, que vão se constituir, justamente, na base de argumentação da tipicidade da região demarcada, e por consequência, expressar a base compartilhada de sustentação competitiva dos vinhos produzidos naquela região. Este é o momento de reunir todos os fatores naturais e humanos que podem se constituir em fatores típicos e de diferenciação dos vinhos locais, potencialmente, disponíveis a todos os signatários do acordo que selou a consolidação da IG.
Paralelamente a esta estratégia compartilhada de construção e consolidação da IG, ganham corpo as estratégias individuais, de cada viticultor familiar ou empresário, de cada cantina ou bodega, cada qual agregando aquele algo mais a uva produzida ou ao próprio vinho, buscando, agora, uma vantagem competitiva entre os seus pares. É o espaço para colocar em prática as suas capacitações, o seu aprendizado, as suas experiências, a sua criatividade, os seus conhecimentos empíricos ou científicos, na busca de uma qualidade especial, fruto da combinação e recombinação “única” dos recursos disponíveis no seu parreiral e/ou na sua cantina/bodega. É o espaço para desenvolver, no limite, todo o seu conhecimento e aprendizado, na busca de um produto que, a cada safra, possa superar as anteriores e assim, consolidar a sua marca particular, contribuindo, simultaneamente, para reforçar e elevar a reputação e imagem da DO, da qual faz parte.
Vista sob este prisma, não procede a crítica de que os vinhos das regiões emergentes tendem à homogeneização e qualificação “por baixo” de vinhos varietais commoditizados. É evidente que uma modernização fruto de inovações nos equipamentos e processos de vinificação, além da mecanização e novos sistemas de manejo e condução dos parreirais, permitiram ampliar a escala, padronizar e estabilizar uma parcela significativa de determinados vinhos varietais, tornando-os bastante competitivos em preços, atingindo mercados antes desconhecidos para vinhos, como no caso do mercado asiático. Esta pode ser a estratégia de algumas empresas no intuito de produzir vinhos dentro de um padrão “aceitável”, em grande escala, para atender mercados emergentes, de poder aquisitivo mediano e com pouco conhecimento qualitativo e sensorial de vinhos de qualidade. Entretanto, a maior parte das vinícolas inseridas em regiões distinguidas com IG possui um leque de produtos de qualidade superior, destinado a atender diferentes segmentos do mercado, em consonância com as características típicas decorrentes dos atributos que fundamentaram a criação da IG e potencializadas pelas estratégias individuais de cada vitivinicultor.
No caso das regiões vitivinícolas europeias, especialmente no caso da Espanha, é visível o esforço dos vitivinicultores vinculados a regiões com Denominação de Origem Protegida, em flexibilizar seus regulamentos de uso, no afã de implementar mudanças no manejo dos vinhedos, incluindo a reconversão de algumas cepas, adoção de inovações no processo de vinificação e principalmente, a melhoria do processo de comunicação com os consumidores, através de informações pontuais nos rótulos do vinho. Tudo isto para diminuir a distância das tendências recentes no âmbito da produção e consumo de vinhos, sem comprometer a qualidade e a tipicidade dos atributos do território.
Assim, sob as lentes evolucionárias e da visão baseada em recursos, este trabalho seguiu uma linha de argumentação na qual a estratégia de implantação de Indicações Geográficas no setor vitivinícola, tanto no caso das áreas emergentes como nas tradicionais, possibilita a “pavimentação” simultânea de dois caminhos não excludentes, os quais, pelo contrário, se reforçam na busca de qualificação dos agentes econômicos, viticultores e vinicultores e de seus respectivos produtos.
Esse trabalho se desenvolveu graças ao apoio da CAPES mediante a concessão de bolsa de pós-doutoramento ao primeiro autor do trabalho (Processo nº 8381/12-7) realizado junto ao Departamento de Antropologia Social da Universidade de Sevilha dentro do Acordo Brasil-Espanha (CAPES-DGU) durante o ano de 2010. Essa missão de estudos desenvolveu-se dentro do marco de projeto de cooperação internacional nº 186/09, intitulado “A indicação Geográfica (IG) como estratégia de desenvolvimento territorial: a experiência espanhola e brasileira” no quadriênio 2009-2013. O agradecimento à CAPES se estende ao caso do segundo e terceiro autor (Processos nº 6943/2014-04 e nº 6909/14-0, respectivamente) que realizaram pós-doutoramento, durante o período 2015-2016, junto ao Departamento de Ciência Política e Social da Universidade da Calábria (UNICAL), onde atuaram simultaneamente como Professores Visitantes e como pesquisadores do Centro de Desenvolvimento Rural. Agradecem também ao CNPQ pela concessão de Bolsa de Produtividade (Processo nº 305779/2012-5) ao segundo autor no triênio (2012-2015).

