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Cicatrizes do Contestado: a estatização da Southern Brazil Lumber and Colonization Company e o advento do Campo de Instrução Marechal Hermes
Consequences of Contestado war: the nationalization of Southern Brazil Lumber and Colonization Company and the advent of Military Training Camp Marshal Hermes
Desenvolvimento Regional em Debate, vol. 6, núm. 3, pp. 178-192, 2016
Universidade do Contestado

Artigos



Recepção: 14 Novembro 2016

Aprovação: 14 Novembro 2016

DOI: https://doi.org/10.24302/drd.v6i3.1318

Resumo: O objetivo deste artigo consiste em examinar os desdobramentos do processo de estatização da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, culminando com a transformação de sua sede no Campo de Instrução Marechal Hermes. A abordagem considera o enfoque da História Social Inglesa – especialmente as noções sugeridas por Thompson – na perspectiva da reciprocidade entre a classe trabalhadora e as classes dominantes, além de suas relações com o Estado. Dentre os resultados do estudo, descreve-se: as mudanças na cultura organizacional da Lumber Incorporada após os militares assumirem o controle da administração; as aparentes irregularidades no processo de venda do acervo de bens da Lumber Incorporada; a suspeição acerca da atuação do então governador do estado de Santa Catarina, Irineu Bornhausen; a atuação com segundas intenções do empresário Alberto Dalcanale, que cedeu a área de terras da sede da Lumber Incorporada ao Ministério da Guerra; a agonia dos trabalhadores da Lumber Incorporada em longos períodos de atraso nos pagamentos de salários; o processo injusto de desapropriações de áreas de terras contíguas à Lumber Incorporada, para fins de composição do campo militar. Concluí-se que a presença da Lumber Company afetou decisivamente o curso dos eventos na região sob sua influência.

Palavras-chave: Lumber Company, Estatização, Campo de Instrução Marechal Hermes.

Abstract: The purpose of this article is to examine the consequences of the process of nationalization of Southern Brazil Lumber and Colonization Company, culminating in the transformation of its headquarter in the military training camp Marshal Hermes. The approach considers the Social English history - especially the ideas suggested by Thompson - from the perspective of reciprocity between the working class and the ruling classes, and their relations with the state. Among the results of the study, it is described: changes in organizational culture of Lumber Incorporated after the military forces took control of its administration; the apparent irregularities during the selling process of the Lumber Incorporated goods; suspicion about the role of the governor of Santa Catarina state, Irineu Bornhausen; acting with ulterior motives of the entrepreneur Alberto Dalcanale, who gave in the land area of the Lumber Incorporated headquarters to the War Ministry; the agony of the Lumber workers in long periods of late payments; the unfair process of expropriation of land contiguous to Lumber Incorporated for composition of the military camp. It concluded that the presence of Lumber Company decisively affected the course of events in the region under its influence.

Keywords: Lumber Company, Nationalization, Military training camp Field Marshal Hermes.

INTRODUÇÃO

O ano de 2016 encerra o período de rememoração do centenário do Movimento Sertanejo do Contestado (1912-1916). Os últimos quatro anos foram marcados por uma intensa agenda positiva sobre o tema, proposta e desenvolvida tanto pelo público acadêmico - mediante atuação de pesquisadores de diversas universidades brasileiras, dentre as quais, a UDESC, UFSC, UFSM, UFFS e UnC, quanto pela população em geral, especialmente nos municípios do Planalto Norte Catarinense, que ainda convivem com as consequências daquele processo histórico.

Ato contínuo ocorreu a ampliação do interesse em relação ao assunto. Durante este período, a notoriedade obtida pelo tema se evidencia pela profícua produção acadêmica, literária e audiovisual sobre o Contestado[2].

Especificamente em relação à produção acadêmica, revigorada a partir do início dos anos 2000, constata-se que nos últimos anos vem ocorrendo a consolidação dessa área de pesquisa, principalmente em decorrência das sessões do Simpósio Nacional sobre o Centenário do Movimento do Contestado, evento que vem reunindo pesquisadores de diferentes universidades e de distintas áreas do conhecimento[3]. Os estudos sobre o Contestado, além de abundantes, – realizados a partir de uma instrumentalização teórica ampla e sofisticada, que considera intensa busca e utilização de fontes inéditas –, estabeleceram novas abordagens e interpretações acerca daquele movimento social, as quais vêm superando preconceitos e estereótipos que, a título de exemplo, definiam os rebeldes revoltosos como "fanáticos" ou "jagunços"[4].

O avanço das pesquisas desvelou a complexidade do movimento, com suas especificidades, a heterogeneidade e a regionalização de suas causas. Cabe lembrar que os estudos mais recentes não se restringem ao período do conflito, transcendendo o recorte cronológico tradicional. Esses incipientes estudos vêm proporcionando a instauração de outro profícuo campo de pesquisa, qual seja, o exame das consequências da Guerra do Contestado para aquela região, cuja população ainda convive com os ecos do passado.

O período que precedeu o conflito foi caracterizado pela ampliação do controle da terra, seja pela atuação do capital estrangeiro, representado tanto pela ferrovia de propriedade da Brazil Railway Company, quanto pela madeireira operada por sua subsidiária, a Southern Brazil Lumber and Colonization Company, seja pela atuação dos coronéis ou grandes comerciantes. Naquele contexto, dada a privatização da terra e, por conseguinte, a proibição de adentrar as matas para realizar a coleta da erva mate, a situação dos pequenos posseiros e sitiantes tornara-se insustentável. É plausível afirmar que, ao menos no território do planalto norte de Santa Catarina, esse fator influenciou decisivamente a adesão daquela população marginalizada ao movimento sertanejo do Contestado.

Dentre as causas para o início do movimento sertanejo, adquire relevância as consequências suscitadas pela atuação de companhias estrangeiras, dos setores ferroviário e madeireiro. Ambas, municiadas com a típica voracidade do capital, avançaram sobre a região, exaurindo os recursos naturais, exterminando vidas e aniquilando as esperanças – de milhares de pessoas pobres do interior do planalto meridional brasileiro – de que era possível viver em um mundo repleto de justiça e equidade.

Após o término dos combates, as companhias estrangeiras permaneceram naquela região. A Lumber Company operou em Três Barras até o ano de 1940, quando foi estatizada por Vargas, durante o Estado Novo. Posteriormente, no local em que aquela empresa atuou, ocorreu a formação de um campo de manobras do exército brasileiro, resultando em outro processo de expropriação de pequenos proprietários rurais, famílias que ainda hoje lutam para reaver as terras que lhes foram subtraídas injustamente.

O presente artigo pretende examinar a articulação política da companhia e as consequências de sua atuação por mais de cinco décadas, até sua transferência para o Ministério da Guerra e posterior transformação num campo de manobras do exército brasileiro.

Dessa forma, a análise não se restringe tão somente ao período de instalação e operação da companhia, examinando, também, os impactos resultantes da presença da Lumber Company, inclusive, os eventos sucedidos após sua desativação.

METODOLOGIA

Objetivando compreender as mudanças ocorridas na região do Contestado, suscitadas pela presença da Lumber Company, seja no período em que esteve sob controle do capital estrangeiro, seja após sua estatização e posterior controle pelo Ministério da Guerra, o artigo utiliza sugestões teórico-metodológicas que convergem às perspectivas da História Social Inglesa – especialmente as noções sugeridas por Thompson – aplicáveis aos estudos que optam por uma análise que valoriza uma “história de baixo”, a qual propõe que os mais pobres também demonstram (mesmo que muitas vezes tal fato seja ignorado) o desenvolvimento de uma consciência das condições sociais e políticas de sua marginalização.

É importante destacar que, o enfoque proposto pela história social inglesa também expõe a necessidade premente de desenvolver uma “história de cima”, visando complementar a “história de baixo”, evitando-se, assim, negligenciar uma perspectiva relacional, ou seja, é preciso valorizar as relações mútuas, e considerar a reciprocidade entre a classe trabalhadora e as classes dominantes, além de suas relações com o Estado (THOMPSON, 1978, p. 31).

A LUMBER COMPANY

O advento da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, conecta-se ao processo de construção de uma ferrovia que interligaria os estados do sul do Brasil. Para este fim, o governo brasileiro firmou contrato com a Brazil Railway Company, empresa responsável pela construção da estrada de ferro que cruzaria o Planalto Norte Catarinense, tendo como pontos de partida e de chegada as cidades de Itararé em São Paulo e de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, respectivamente.

O contrato para a construção da ferrovia estabelecia que a empresa responsável pela empreitada – a Brazil Railway Company – teria o direito de explorar as terras adjacentes à linha tronco, numa extensão de até quinze quilômetros do leito da linha férrea. Essas terras eram cobertas por milhões de pinheiros ou araucárias, imbuias, canelas pretas, cedros e cabriúvas. Objetivando extrair e comercializar essa madeira de alto valor econômico e, mais tarde, vender parte daquelas terras a imigrantes europeus, a Brazil Railway Company constituiu uma subsidiária, a Southern Brazil Lumber and Colonization Company. Em 1910, a Lumber instalou em Três Barras, então território paranaense contestado por Santa Catarina, uma moderna serraria. A empresa instituiu um processo industrial altamente mecanizado, com elevada organização técnica, tornando-se a maior madeireira da América do Sul (CARVALHO, 2010).

A construção desta grande linha férrea alterou o modo de vida das populações residentes nas regiões por ela atravessadas, elevando o valor econômico das terras, agravando problemas sociais e influenciando diretamente a deflagração do movimento sertanejo do Contestado, entre os anos de 1912 a 1916, na região fronteiriça entre os estados do Paraná e de Santa Catarina.

A Brazil Railway Company atuou durante quase trinta anos sob controle do capital estrangeiro, até sua estatização através da publicação do Decreto-Lei n.º 2.346, de 22 de julho de 1940, assinado por Getúlio Vargas, em plena vigência do Estado Novo.

A estatização ocorreu em favor dos “interesses nacionais”. Essa foi a justificativa apontada pelo decreto presidencial. A expressão tem um forte viés econômico e financeiro. O fato da Brazil Railway Company e suas filiais controlarem setores de fundamental importância para o Brasil, tais sejam, ferroviário, portuário, energético e de colonização, contribuiu para a estatização. Entretanto, os problemas decorrentes da má gestão nas companhias do grupo Farquhar influenciavam, sobremaneira, a economia nacional. Os atrasos no cumprimento de obrigações com credores de capitais – alavancados em bolsas europeias – geraram descontentamento e abalaram a confiança dos investidores estrangeiros na economia nacional. Isso constrangia a administração pública do país[5]. Com base nessa justificativa, o primeiro artigo do decreto incorporou ao patrimônio da União os bens e direitos tanto da Brazil Railway Company – existentes em território nacional – quanto de suas dependentes, caso da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, além de outras onze companhias[6].

Conforme será examinado posteriormente, em determinado momento, após a estatização, o Ministério da Guerra assumiu definitivamente o controle da Lumber Incorporada, o que significou mudanças no modus operandi adotado pela companhia. Alguns antigos costumes foram banidos. Fumar durante o trabalho, por exemplo, foi proibido, inclusive para os chefes de seção. Os relacionamentos, anteriormente imbuídos pelo lúdico, sofreram a imposição de certa disciplina militar. A intransigência dos oficiais em suas relações com o pessoal da Lumber gerou conflitos e contribuiu para o agravamento dos problemas que assolaram a empresa ao longo da década de 1940. O ex-operário da Lumber, Leopoldo Padilha, rememorou um episódio que exemplifica esse processo. Segundo ele, “o pessoal fumava, brincava e o Coronel não queria. Um dia ele pegou o cachimbo de um feitor e jogou no fogo, na frente de todo mundo”[7]. Para Leopoldo, após a estatização da companhia e o controle exercido pelo exército, “mudou muita coisa”, pois na “época dos americanos”, o “pessoal trabalhava direitinho” e após a chegada dos militares “a coisa foi fracassando”[8].

Ao longo da década de 1940, após os militares assumirem o domínio da Lumber, obrigações legais inerentes aos contratos de trabalho deixaram de ser cumpridas.

No período compreendido entre os dias 15 e 20 de outubro de 1948, o promotor público, Rubem Moritz da Costa, remeteu para avaliação do juiz da comarca de Canoinhas, Euclides Cerqueira Cintra, um conjunto de requerimentos impetrados por trabalhadores acidentados e não indenizados[9].

Os operários e a operária vitimados por acidentes de trabalho foram preteridos pela administração da Lumber Incorporada. Em um dos casos, embora transcorridos seis meses desde o acidente, o operário não tivera acesso ao atendimento médico e aos direitos assegurados pela legislação trabalhista, até a denúncia ao juiz da comarca. Nas audiências, a companhia declarou que não contestava os acidentes, mas sim os direitos dos (a) acidentados (a). É preciso considerar que o exército, apesar da atribuição institucional, não reconhecia a imputação de responsabilidade para com os trabalhadores da antiga Lumber e, por conseguinte, as indenizações decorrentes de acidentes de trabalho.

Os casos localizados tiveram decisões favoráveis aos trabalhadores, assegurados os tratamentos médicos e os pagamentos das indenizações.

O inquérito do operário polonês Estefano Schlapak é emblemático. Estefano “de início trabalhou nas matas da companhia, sujeito ao tempo, não parando o serviço mesmo em caso de chuva”. Em consequência da arduidade desse serviço, adoeceu. Antes de abandonar o trabalho, em função das dores abdominais insuportáveis, Estefano trabalhava no serviço de maquinista do guincho. Nessa ocasião, Estefano já havia dedicado 25 anos de trabalho à empresa, na qual começou aos 15 anos de idade e pela qual foi abandonado sem atendimento ou indenização.

Considerando a intempestividade entre as datas de ocorrência dos acidentes citados e as datas de avaliação pela Justiça, conclui-se que não houve o cumprimento das determinações da legislação trabalhista, situação que evidencia o abandono dos trabalhadores acidentados à mercê da própria sorte, sem sequer o adjutório do tratamento médico condizente. O fato da Lumber Incorporada declarar não reconhecer os direitos dos acidentados e não prestar os atendimentos básicos imputados pela legislação, foi algo representativo do modo como o pessoal da Lumber seria tratado pela nova gestão. Os trabalhadores precisariam continuar a resistir.

O EDITAL

No ano de 1949, foi aberto um edital de concorrência pública, cujo objeto consistia na venda dos bens da Lumber Incorporada. Inicialmente, não houve apresentação de propostas, contudo, em dezembro de 1950, três firmas adquiriram o acervo. As três empresas, Cia. Terra e Pinho Ltda., Groppe S.A., Cia. Madeiras Del Alto Paraná, eram controladas pelo mesmo indivíduo, Alberto Dalcanale[10], empresário que atuou na colonização do sudoeste do Paraná e oeste de Santa Catarina.

O acervo era constituído por um extenso rol de bens, dentre os quais: uma propriedade em Calmon, com quinze mil alqueires[11] de terras e trezentos e cinquenta mil pinheiros adultos; na região da Serra do Espigão, então município de Canoinhas, outros duzentos mil pinheiros adultos; remanescentes de ‘propriedades loteadas’, entre os quais muitos lotes que haviam sido vendidos entre as estações ferroviárias de Canivete e Valões (atual Irineópolis); um terreno com mais de dez mil metros quadrados, em São Francisco do Sul; na região da Barra Funda, em São Paulo, um “palacete”, quatro casas menores e um terreno com dez mil metros quadrados; uma propriedade com seiscentos e cinquenta alqueires no então distrito canoinhense de Papanduva (atual município de Papanduva); um terreno – com cerca de nove alqueires – onde estava instalada a serraria, fábrica de caixas, laminadora, oficinas, casas, armazéns, e hospital; aproximadamente quarenta e três quilômetros de linha férrea assentada, além de maquinário da indústria de madeira, locomotivas, cerca de quarenta vagões e plataformas para transporte de madeira pela ferrovia[12].

Conquanto tenha sido efetivada a alienação do acervo, depreende-se que houve irregularidades, seja no edital de concorrência pública, seja na posterior partilha dos bens da Lumber. A proposta vencedora foi a única que consignou preço superior ao mínimo estipulado no edital, correspondente a cinquenta milhões de cruzeiros, embora o excedente tenha sido de apenas Cr$100.000,00 (cem mil cruzeiros). Apesar do edital de concorrência pública não admitir a divisão dos bens da Lumber, após a negociação, uma parcela do acervo foi celeremente escriturada em nome de terceiros.

Naquele contexto, também é preciso considerar o interesse do Ministério da Guerra em instalar um Campo de Manobras na 5ª Região Militar, o que se coadunou com a obtenção dos bens da antiga Lumber, após a estatização. Outro fator preponderante consistiu na atuação do governo do estado de Santa Catarina, chefiado por Irineu Bornhausen, que colaborou decisivamente para o processo de instalação do campo militar em Três Barras, inclusive assumindo o compromisso de cessão de terras – evidentemente após as desapropriações – num total de dez mil hectares, na região de Papanduva, limítrofe ao perímetro da Lumber.

No mês de março de 1951, um representante da 5ª Região Militar, cuja sede do comando localizava-se em Curitiba, procurou o governo do estado de Santa Catarina visando obter apoio para identificar uma área de terras entre três e quatro mil alqueires. Tal área deveria estar localizada nas proximidades da Lumber, em Três Barras, entre os rios Canoinhas, São João e Rio das Antas. Em correspondência ao comandante da 5ª Região Militar, à época o General Tristão de Alencar Pires, o governador catarinense, o udenista Irineu Bornhausen, manifestou enlevo pela ideia, segundo ele, “visando o progresso que advirá para Três Barras com o estabelecimento, ali, de uma Unidade do Exército Nacional”[13]. O governador enviou instruções ao prefeito municipal de Canoinhas, orientando-o para que, juntamente com o representante da Companhia de Madeiras Del Alto Paraná, empresa compradora do acervo da Lumber, compusesse uma comissão com o objetivo de localizar uma área de terras que atendesse aos interesses dos militares.

Transcorrido pouco mais de um mês, em nova correspondência do governo catarinense destinada ao comando da 5ª Região Militar, o chefe do executivo estadual ratificou sua intenção em colaborar com os interesses dos militares, acerca da instalação do campo de manobras no município de Canoinhas. O entusiasmo de Irineu Bornhausen com a negociata levou-o a declarar que estava “[...] disposto a tomar todas as providências no sentido de desapropriar as terras necessárias à instalação, no município de Canoinhas, do campo de Instruções e Manobras da 5ª Região Militar, na área escolhida pela Comissão designada por esse comando”[14]. Dessa forma, o então governador do estado de Santa Catarina, delegou a responsabilidade pela escolha de uma área de terras a uma comissão constituída por representantes do Ministério da Guerra e pelo controlador das empresas que haviam adquirido os bens que integravam o acervo da antiga Lumber. Nesse contexto, estranha o fato dessa atribuição para escolher e desapropriar terras ter sido transferida a uma comissão que apresentava, entre seus membros, representantes de empresas privadas.

Na mesma correspondência, o governador Irineu Bornhausen, com o objetivo de “reduzir os custos com as indenizações” decorrentes das desapropriações, apresentou uma proposta para permuta das novas áreas de terras, que seriam desapropriadas pelo estado catarinense, com áreas de terras outrora pertencentes à antiga Lumber, transferidas ao Ministério da Guerra após a estatização daquela companhia. O General Tristão, atônito, afirmou não ter compreendido a proposta, afinal, segundo ele, o patrimônio total da Lumber, elencadas as terras, instalações e reservas florestais, estaria avaliado em cinquenta milhões de cruzeiros, enquanto as áreas de terrenos que o exército receberia, caso aquiescesse com a permuta, “embora mais extensas, são, porém, de valor incomparavelmente bem mais reduzido do que aquelas terras da Lumber[15]. A tentativa do governador catarinense em ludibriar o Ministério da Guerra, através de uma ardilosa proposta de permuta fundiária, foi prontamente rechaçada pelo comando militar. Contudo, esse revés nos planos para utilização do acervo da Lumber em prol de interesses privados, não significou o abandono do projeto.

No dia 29 de maio de 1951, foi realizada uma reunião da Comissão Regional de Escolha de Imóveis para o Ministério da Guerra, na sede da Lumber Company, em Três Barras, município de Canoinhas[16]. Entre os presentes, encontravam-se os militares componentes da Comissão[17], os delegados da Superintendência das Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional[18] e os representantes da Companhia de Madeiras Del Alto Paraná[19].

O empresário Alberto Dalcanale declarou abrir mão, em favor do Ministério da Guerra, de área sob controle da Cia. de Madeiras do Alto Paraná, situada na região compreendida entre os rios Canoinhas, Jangada, Papanduva, bem como de glebas situadas nas regiões de Valões, São João da Barra e Toldo de Cima, “exceção feita da área de reflorestamento da gleba de Valões”. Dalcanale concordou com a transferência integral das instalações e maquinarias existentes na sede da Lumber, em Três Barras, ao Ministério da Guerra[20]. Evidentemente, as cessões dos bens não foram motivadas por um patriotismo exacerbado por parte de Dalcanale. A transferência das áreas supracitadas (com exceção feita àquelas povoadas por pinheiros) consistiu em um estratagema que objetivou desatar os bens de menor valor e transferir os trabalhadores da antiga Lumber para uma instância pública – no caso, o Ministério da Guerra – desincumbindo as empresas de Dalcanale das obrigações referentes aos salários, encargos trabalhistas e de contingências resultantes de indenizações aos operários da companhia incorporada.

Após a efetivação da transferência, prosseguiram as negociações para a doação, pelo governo catarinense, de terrenos que complementariam a área necessária para instalação de um campo militar. O governador de Santa Catarina, Irineu Bornhausen, propôs uma solução, aceita pelo então ministro da guerra, general Henrique Teixeira Lott, que consistiu na utilização dos recursos consignados na emenda n.º 157, no montante de Cr$ 40.000.000,00 (quarenta milhões de cruzeiros), para fins de complementação da dotação orçamentária do Ministério da Guerra, visando prover recursos para pagamento das indenizações decorrentes das desapropriações de terras necessárias à composição do campo militar em Três Barras[21]. Portanto, a atuação de Bornhausen foi decisiva para a instalação do campo militar, inclusive dispondo-se a desapropriar novas áreas de terra necessárias à composição do campo, o que, de fato, consistiu num compromisso formal, contudo destituído de ônus para o governo catarinense. Através de manobra astuta, embora obscura, tanto os encargos trabalhistas quanto o ônus e o desgaste político, inerentes ao processo de desapropriação de terras na região de Três Barras, foram transferidos ao Ministério da Guerra. Os empecilhos à maximização dos lucros das empresas controladas por Dalcanale haviam sido removidos, incrementando a expectativa de auferir vantagens – lícitas ou não – àqueles que apoiaram ou contribuíram decisivamente para o desfecho do negócio.

Após a reunião realizada em Três Barras, e, por conseguinte, do desenlace dos trâmites jurídicos, a partir do dia 11 de setembro de 1952, a área onde outrora funcionara a Southern Brazil Lumber and Colonization Company foi transferida ao controle do exército brasileiro.

Nos anos subsequentes, a área da antiga Lumber permaneceu sob controle do exército, porém a configuração do campo militar continuava indefinida em função da necessidade de ampliação da área total, o que seria viabilizado somente após os processos de desapropriações de terras dos camponeses situados em áreas adjacentes à sede da antiga serraria, local que também abrigaria o comando do futuro campo militar.

“QUEM PARTE E REPARTE FICA COM A MELHOR PARTE”[22]

O acervo da antiga Lumber foi alvo de negócios espúrios. O processo de encampação dos bens pertencentes à Lumber Company esteve envolto em irregularidades, escopo de estratagemas que objetivavam a divisão dos bens. Os bens que integravam o acervo foram vendidos em concorrência pública, por valores muito aquém daqueles vigentes no mercado, em desobediência ao edital. Aqueles bens que apresentavam valores vultosos foram desmembrados, e a serraria de Três Barras, que em determinada época fora a maior da América do Sul e uma das maiores do mundo, tornou-se obsoleta, além de padecer com a escassez de matéria prima em seu entorno. Dessa forma, a Lumber transformou-se em um “presente de grego” para o Exército Nacional[23].

Aqueles bens que exibiam potencial para otimizar a geração de lucros – dentre os quais uma ingente propriedade em Calmon, a fazenda São Roque, com duas serrarias, desvios ferroviários, trezentos e cinquenta mil pinheiros, imbúias, etc., edifícios em São Paulo e Paraná e vastos pinheirais na Serra do Espigão, em Santa Catarina – permaneceram sob controle das empresas adquirentes controladas por Alberto Dalcanale, e sua exploração gerou, imediatamente, acentuado retorno econômico-financeiro. Em contrapartida, a serraria de Três Barras – transferida por Dalcanale ao Ministério da Guerra – permanecia praticamente imobilizada, analogamente ao grupo de antigos trabalhadores da Lumber, que ficara sob responsabilidade do exército. Os custos estimados para amortização dos encargos decorrentes de eventuais demissões dos trabalhadores poderia atingir a cifra de quinze milhões de cruzeiros[24].

Ainda no decorrer do ano de 1953, o então deputado federal Saulo Ramos, apresentou um relatório – que fora submetido a uma Comissão Parlamentar de Inquérito – no qual detalhou as irregularidades envolvendo a Lumber Company. O relatório sustentava que a Companhia Pinho e Terras Ltda, detentora da propriedade Calmon, com cerca de 350 mil pinheiros, além dos três edifícios na região da Barra Funda, em São Paulo, cujos preços atingiam o montante de Cr$8.500.000,00 (oito milhões e quinhentos mil cruzeiros), imediatamente após a concretização da negociação, realizou a venda dos imóveis localizados na Barra Funda, recebendo a importância de Cr$ 10.000.000,00 (dez milhões de cruzeiros). Sem dúvida um excelente negócio. Além disso, as centenas de milhares de pinheiros possuíam valor estimado entre Cr$ 100 e Cr$ 200 (cem e duzentos cruzeiros) a unidade, ou seja, após seu corte e venda, também poderiam auferir lucro de dezenas de milhões de cruzeiros[25].

À empresa Groppe S.A., coube a parcela industrial do acervo, além de faixas de terras marginais à Rede Viação Paraná Santa Catarina. Esses consistiram nos itens do acervo que posteriormente foram transferidos ao Ministério da Guerra.

A terceira empresa que compunha o consórcio, a Cia. De Madeiras Del Alto Paraná S.A., obteve os pinheirais da Serra do Espigão, uma propriedade na localidade de Felipe Schmidt, município de Canoinhas, e uma área de dez mil metros quadrados, em São Francisco do Sul.

O referido relatório estimava que o valor real dos bens e direitos da Lumber atingiria o montante de Cr$ 100.000.000,00 (cem milhões de cruzeiros). No entanto, o preço básico fora definido em apenas Cr$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de cruzeiros). Segundo o relatório, o preço dos pinheiros e das propriedades fora subavaliado, em valores aquém das cotações do mercado, na mesma época e nos mesmos locais.

Ao tomar conhecimento do interesse do Ministério da Guerra em compor um campo militar na região de Três Barras, o proprietário das três empresas consorciadas que adquiriram os bens da Lumber, Alberto Dalcanale, prontificou-se em ceder a propriedade de seiscentos e cinquenta alqueires, além da parte industrial, maquinários, ferrovia, edifícios e algumas propriedades em São Francisco do Sul. Certamente, um notório empresário do setor fundiário, madeireiro e colonizador, não obtinha fortuna realizando doações motivadas por seu patriotismo. Juntamente com a parcela do acervo, de interesse do exército, Dalcanale transferiu os duzentos e sessenta e quatro trabalhadores da Lumber e os correspondentes encargos trabalhistas. O jornal Barriga Verde, em março de 1953, denunciou aquilo que definiu como “uma das mais negras manobras para saquear a Fazenda Nacional”. Segundo o jornal, os dirigentes das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União e os compradores do acervo da Lumber Company, entre eles Irineu Bornhausen, então governador do estado de Santa Catarina, pressionaram o Ministério da Guerra para que assumisse os encargos trabalhistas, objetivando isentar os compradores do acervo[26].

No dia 04 de fevereiro de 1954, a filha de Alberto Dalcanale, Ivete Terezinha[27], e o filho do governador Irineu Bornhausen, Paulo Konder Bornhausen, contraíram matrimônio. Enquanto as famílias Dalcanale e Konder Bornhausen celebravam sua união por intermédio do casamento de Paulo e Ivete, os duzentos e sessenta e quatro trabalhadores da Lumber e suas famílias, num total de aproximadamente mil e duzentas pessoas, padeciam com o segundo período de atrasos no recebimento dos salários. Surgiam os “flagelados de Três Barras”.

“OS FLAGELADOS DE TRÊS BARRAS”[28]

Os duzentos e sessenta e quatro trabalhadores da Lumber Company que se encontravam em atividade quando da estatização da companhia, foram transformados em moeda de troca, pela Superintendência da União, pelo Ministério da Guerra e, principalmente, pelos compradores do acervo da empresa. Ambos os envolvidos nas negociações fizeram o possível para se livrar da responsabilidade sobre os trabalhadores, seus encargos trabalhistas e indenizações decorrentes de eventuais demissões.

Após a transferência do segmento industrial da Lumber ao Ministério da Guerra, ocorrida em julho de 1952, foi firmado um acordo entre as partes interessadas, através do qual concordaram que as obrigações salariais do pessoal da Lumber seriam arcadas pela Superintendência da União, até que o Ministério da Guerra detivesse verbas para essa finalidade.

No entanto, a partir do mês de setembro de 1952, cessaram os pagamentos dos salários, momento a partir do qual as duzentas e sessenta e quatro famílias de trabalhadores da Lumber Incorporada iniciariam uma longa e angustiante jornada, cuja primeira etapa duraria catorze meses! Os pagamentos retroativos foram realizados somente no mês de dezembro de 1953, após árdua batalha travada pelos trabalhadores e sua organização, a Sociedade União Operária, com o apoio do Sindicato dos Oficiais Marceneiros e Trabalhadores nas Indústrias de Serrarias e Móveis de Madeira de Canoinhas, em aliança com o advogado da Lumber, além de políticos da região.

A maioria dos trabalhadores recebia salários situados na faixa entre Cr$ 600,00 (seiscentos cruzeiros) e Cr$ 900,00 (novecentos cruzeiros).

Os salários em atraso foram quitados após delicada negociação, que contou com a participação do Ministro do Trabalho, João Goulart. Os salários pagos correspondiam ao período de setembro de 1952 até dezembro de 1953. Infelizmente, reincidências de atrasos nos pagamentos dos salários afligiriam os trabalhadores da Lumber Incorporada e suas famílias, em períodos subsequentes. Todavia, além das questões trabalhistas, as desapropriações que seriam realizadas no entorno da antiga serraria, objetivando a composição do campo militar, também iriam suscitar sacrifícios dos camponeses que cultivavam as terras contíguas à Lumber Incorporada.

AS DESAPROPRIAÇÕES

O decreto n.º 50.570, de 18 de dezembro de 1956, autorizou a desapropriação de 7.614 (sete mil, seiscentos e catorze) hectares, atingindo oitenta e nove lotes de pequenos agricultores, num total de sessenta e oito famílias.

O decreto de desapropriação apresentava diversas falhas técnicas. A título de exemplo, não delimitava a localização da área desapropriada, apenas referenciava terrenos situados no Estado de Santa Catarina. Além disso, não descrevia os limites de cada propriedade, conforme a discriminação nas próprias escrituras e, por fim, também não definia um dispositivo que permitisse verificar os critérios de avaliação e validar os cálculos das verbas indenizatórias. Na etapa de arrolamento dos bens, a comissão do exército não considerou pastos e ervais na composição das verbas indenizatórias, apenas as benfeitorias. Portanto, recursos imprescindíveis à subsistência daqueles camponeses, abruptamente lhes foram retirados, sem que houvesse a indenização justa. Ademais, os valores das indenizações, consignados no decreto, apresentavam acentuada defasagem, pois se referiam ao período em que o levantamento da área de desapropriação fora efetuado. Ao considerar os índices de inflação acumulada de 22,6% (vinte e dois inteiros e seis décimos por cento) e 12,7% (doze inteiros e sete décimos por cento) nos anos de 1956 e 1957, respectivamente, depreende-se que os valores estabelecidos para as indenizações sofreram rápida perda de poder aquisitivo. No início da década de 1960, os valores constantes no decreto sequer representavam 3% (três por cento) do valor de mercado das terras (SCHIOCHET, 1988, p. 86).

Nesse mesmo período, os militares recrudesceram o tratamento dado aos camponeses, que continuavam a morar nas terras desapropriadas. Proibiu-se a retirada da madeira e da erva mate, recursos importantes para a subsistência dos pequenos agricultores, tendo sido formada, inclusive, uma comissão para averiguar as eventuais transgressões a essa determinação. Além disso, deu-se início às operações e manobras militares, que obrigavam os agricultores desapropriados a se afastarem periodicamente de suas casas, uma evidente estratégia para forçá-los a se retirarem definitivamente.

Em 1963, o poder judiciário concedeu títulos de posse provisória das terras desapropriadas ao exército, medida que lhe possibilitou assumir o domínio das terras, embora ainda não tivesse efetuado o pagamento das indenizações, cujos valores seriam reavaliados em processo de revisão.

Não obstante o processo de revisão das indenizações, a atuação do exército, durante a remoção das famílias desapropriadas, marcou indelevelmente aquelas pessoas. Diga-se de passagem que isto representa um vetor profícuo à ampliação da pesquisa.

Na década de 1980, desapropriados e herdeiros se organizaram no Movimento dos Desapropriados de Papanduva. Sua atuação foi marcada, desde o início, pela interposição de diversas ações judiciais, manifestações mediante greves de fome e da organização de acampamento, na localidade de Poço Grande, ao lado do Campo de Instrução Marechal Hermes. O acampamento foi denominado de João Maria. O movimento também ocupou a sede do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em Florianópolis, durante um ano, entre 1986 e 1987. Em 1987, também foi realizada a 2ª Romaria da Terra/SC, que reuniu cerca de 20 mil pessoas (FAVARIN, 2009, p. 114). No ano de 2007, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) realizou uma ocupação e promoveu um debate acerca das terras do campo militar serem improdutivas ou subutilizadas (em função do reduzido número de manobras realizadas). Além disso, houve denúncias de arrendamentos realizados pelo exército, de áreas do campo, para o cultivo de grãos de soja por fazendeiros da região[29].

O processo de desapropriação gerou enorme tensão social, pois os colonos desapropriados sentiram-se lesados, haja vista que, segundo eles, o governo federal estabeleceu preço irrisório pelas terras desapropriadas, destituído de isonomia, pois com terras que apresentavam de igual qualidade similar foram sendo avaliadas com oscilações de até 100% (cem por cento) no valor do hectare.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presença da Lumber Company afetou, de modo direto e indireto, em várias instâncias e em diferentes épocas, a região sob sua influência, no território Contestado. Seja sob controle do capital estrangeiro, expandindo seu domínio fundiário, expulsando milhares de pequenos posseiros das terras, exaurindo a madeira nobre, influenciando os eventos na Guerra do Contestado (1912-1916) e, nos anos seguintes à guerra, cooptando autoridades e furtivamente esquivando-se de suas obrigações decorrentes de acidentes de trabalhos. Da mesma forma, sob controle do governo, após sua estatização, a partir de 1940, na suspeição que recai sobre o processo de venda do acervo da companhia, mediante atuação parcial de autoridades públicas, utilizando-a como embuste e cedendo-a, a partir de 1952, ao controle dos militares, momento a partir do qual suas centenas de trabalhadores e familiares iniciaram um longo e angustiante período com ausência de recebimento de salários, até seu desfecho surpreendente, no qual o local da sede da companhia fora transformado em um campo de instrução militar, por sua vez influenciando – novamente! – desapropriações de terras adjacentes, gerando uma nova onda de injustiças que reverbera até os dias atuais. Indubitavelmente, a presença da Lumber Company– uma empresa – influenciou sobremaneira, outrora e hodiernamente, o curso dos eventos, de modo direto e indireto, na região sob sua influência, impactando no processo de desenvolvimento regional, não só na dimensão econômica, mas gerando descontentamentos e conflitos sociais, logo, situações de marginalização socioeconômica.

Acerca de sua influência indireta, já em seus derradeiros momentos, ou seja, as desapropriações de terras realizadas para complementar a área necessária à composição do campo de instrução militar, cuja sede coincidiu com o local de instalação da companhia, nos dias atuais, muitos descendentes dos antigos proprietários ainda mantém contendas judiciais, com o objetivo de reaver as terras ou, ao menos, obter a reparação justa pelas verbas indenizatórias defasadas pagas aos seus antepassados. Muitos acresceram suas dívidas ao captar empréstimos para quitação dos honorários advocatícios e, ao receberem suas indenizações, perceberam que a inflação havia corroído os valores, impossibilitando a aquisição de outras áreas, semelhantes àquelas das quais foram removidos.

Por conseguinte, em retrospectiva, tanto os duzentos e sessenta e quatro trabalhadores da Lumber (e suas famílias), vinculadas ao quadro do Ministério da Guerra – que padeceram com o descumprimento das obrigações salariais de forma recorrente –, quanto os desapropriados do campo militar e seus herdeiros, materializam alguns dos capítulos mais injustos da atuação das classes dominantes, com o agravante da conivência do Estado em detrimento dos interesses dos mais pobres.

Há que se considerar que muitos processos contundentes de exclusão dos mais pobres, permanecem vigentes em toda a região do Contestado. Conquanto, em perspectiva, percebe-se um longo processo de exploração e exclusão, uma leitura diametralmente oposta permite vislumbrar que a resistência, a organização e a luta dos excluídos, em prol do reconhecimento e cumprimento de seus direitos, constitui uma tradição sólida, a qual atingiu seu auge no movimento sertanejo do Contestado (1912-1916), nas décadas subsequentes reinventada de modo dinâmico e ininterrupto.

São desafios que ainda precisam ser enfrentados, para amainar os impactos de processos históricos de exploração e marginalização social do povo do Contestado, com vistas aos avanços necessários no processo de desenvolvimento das regiões atingidas.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, M. M. X. Uma grande empresa em meio à floresta: a história da devastação da floresta com araucária e a Southern Brazil Lumber and Colonization (1870-1970). 2010. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2010.

ESPIG, M. J. Personagens do Contestado: os turmeiros da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande (1909-1915). 2008. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008.

FAVARIN, R. A. Contribuições da economia solidária para o desenvolvimento recente da região do Contestado. 2009. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional) – Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 2009.

KARSBURG, A. O. O Eremita das Américas: a odisseia de um peregrino italiano no século XIX. Santa Maria: Ed. UFSM., 2014.

MACHADO, P. P. Lideranças do Contestado: a formação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.

OLIVEIRA, M. P. Quando a fábrica cria o bairro: estratégias do capital industrial e produção do espaço metropolitano no Rio de Janeiro. Scripta Nova, v. 10, 2006.

RODRIGUES, R. R. Os sertões catarinenses: embates e conflitos envolvendo a atuação militar na Guerra do Contestado. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2001.

RODRIGUES, R. R. Veredas de um grande sertão: a Guerra do Contestado e a modernização do Exército brasileiro. 2008. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

SCHIOCHET, V. Esta Terra é minha terra: movimento dos desapropriados de Papanduva. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis, 1988.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

TOMPOROSKI, A. A. “O pessoal da Lumber! Um estudo acerca dos trabalhadores da Southern Brazil Lumber and Colonization Company e sua atuação no planalto norte de Santa Catarina, 1910 – 1929. 2006. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2006.

TOMPOROSKI, A. A. O polvo e seus tentáculos: a Southern Brazil Lumber and Colonization Company e as transformações impingidas ao planalto contestado (1910-1940). 2013. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2013.

VALENTINI, D. J. Atividades da Brazil Railway Company no sul do Brasil: a instalação da Lumber e a Guerra na região do Contestado (1906-1916). 2009. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009.

WELTER, T. O profeta São João Maria continua encantado no meio do povo: um estudo sobre os discursos contemporâneos a respeito de João Maria em Santa Catarina. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.

Notas

[2] No ano de 2012 ocorreu o lançamento do documentário "O Contestado: restos mortais", do cineasta Sylvio Back. Em 2015 foi lançado outro documentário, intitulado "Terra Cabocla", da cineasta Márcia Paraíso. Esta obra se propõem a encontrar os descendentes dos rebeldes do Contestado nos dias atuais. A obra, além de esteticamente encantadora, consiste em importante documento sobre a vida no Contestado nos dias atuais. Entre a produção literária, merece destaque a obra "Caboclos Rebeldes: uma aventura pela Guerra do Contestado", de Ricardo Campos. O autor produziu uma obra direcionada ao público infanto-juvenil a partir das pesquisas mais recentes sobre a temática, contribuindo assim para a superação de um dos principais problemas enfrentados pelos pesquisadores atualmente: viabilizar que o conhecimento acadêmico seja disponibilizado ao público em geral que, mesmo na região do conflito, ainda desconhece sua própria história.
[3] A primeira edição do Simpósio Nacional sobre o Centenário do Movimento do Contestado foi realizada no ano de 2012, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis. Desde então o evento é realizado regularmente, congregando pesquisadores e interessados na temática, o que vem ampliando e fortalecendo esta área de pesquisa.
[4] É razoável afirmar que a obra de Paulo Pinheiro Machado, Lideranças do Contestado, publicada no ano de 2004, marcou o início de uma nova fase de estudos sobre o movimento do Contestado. Paralelamente, a abertura de novos programas de pós-graduação, a ampliação de vagas nos programas existentes e o incremento de recursos destinados a bolsas de pesquisa, ocorrido a partir do início dos anos 2000, permitiu o aumento do número de pesquisadores dedicados ao tema, produzindo dissertações e teses, destacando-se os trabalhos de Oliveira (2006); Welter (2007); Rodrigues (2008), (2001); Valentini (2009); Carvalho (2010); Espig (2008); Karsburg (2014); Tomporoski (2006, 2013).
[5] A título de exemplo, a Brazil Railway Company encontrava-se sob regime de concordata, a qual não fora homologada pela Justiça brasileira, desde 18 de julho de 1917.
[6] Decreto-Lei n.º 2.346, de 22 de julho de 1940.
[7] Entrevista com o ex-operário da Lumber, Leopoldo Padilha, de 96 anos. Realizada em Três Barras, no dia 03 de setembro de 2005.
[8] Idem.
[9] Ação Trabalhista: Santilha Rodrigues Faria versus Southern Brazil Lumber and Colonization Company Incorporada. Três Barras, 24 de abril de 1948; Ação Trabalhista: Sizenando Naizer versus SBLCC Incorporada. Três Barras, 07 de julho de 1948; Ação Trabalhista: Estefano Schlapak versus SBLCC Incorporada. Três Barras, 20 de outubro de 1948. Arquivo Histórico Municipal de Canoinhas.
[10] Diário do Congresso Nacional. Brasília, 23 de maio de 1953. p. 4374.
[11] Um alqueire representa, na região sob análise, 2,42 hectares.
[12] Diário do Congresso Nacional. 23 de maio de 1953. p. 4390.
[13] Ofício N.º 85 – Florianópolis/SC, 12 de março de 1951. Do Governador do Estado de Santa Catarina ao Comandante da 5ª Região Militar. Correspondências e Minutas do Palácio do Governo de Santa Catarina para o Ministério da Guerra. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina.
[14] Ofício N.º 161 – Florianópolis/SC, 20 de abril de 1951. Do Governador do Estado de Santa Catarina ao Comandante da 5ª Região Militar. Correspondências e Minutas do Palácio do Governo de Santa Catarina para o Ministério da Guerra. APESC.
[15] Ofício N.º 93 – SER/5ª R. M. Curitiba/PR, 27 de Abril de 1951. Do Comandante da 5ª Região Militar ao Governador do Estado de Santa Catarina. APESC.
[16] Ata da Reunião realizada pela Comissão Regional de Escolha de Imóveis para o Ministério da Guerra. Três Barras, município de Canoinhas, 29 de maio de 1951. APESC.
[17] General Sady Martins Vianna, Tenentes Coronéis Carlos Queiros Falcão e Murat Guimarães, Capitães Basílio Marques dos Santos Sobrinho e Dr. José Alvarenga Moreira, sob a presidência do primeiro.
[18] Hortencio Alcantara Filho e Ary d’Leary Paes Leme.
[19] Alberto Dalcanale e Wilen B. Martins.
[20] Ofício n.º 913. Florianópolis/SC, 31 de julho de 1957. Do Governador do Estado de Santa Catarina – Jorge Lacerda – ao Comandante da 5ª Região Militar – general Aurélio Lyra Tavares. Além do Superintendente das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União, a reunião de transferência teve a presença de um representante do Ministério da Guerra, membros da Comissão de Levantamento e Avaliação, representante do governo catarinense e dos compradores dos bens da Lumber, “tudo de conformidade com os entendimentos havidos entre o Ministério da Guerra, a Superintendência, os adquirentes do acervo da Lumber e o Estado de Santa Catarina”.
[21] Idem.
[22] Diário do Congresso Nacional. 23 maio 1953. p. 4391.
[23] Barriga Verde, a. 16, n. 839. Canoinhas, 24 mar. 1954. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina.
[24] Barriga Verde. Canoinhas, 24 mar. 1954. Idem.
[25] Diário do Congresso Nacional. 23 maio 1953. p. 4390.
[26] Barriga Verde, a. 16, n. 752. Canoinhas, 19 mar. 1953. BPESC.
[27] O nome de Ivete recebeu grande atenção no ano de 2003, quando uma investigação apontou a realização de lavagem de dinheiro pelo Banco Araucária, do Paraná, controlado pelo seu irmão e sobrinhos.
[28] Barriga Verde. a. 16, n. 751. Canoinhas, 15 mar. 1953. BPESC.
[29] Correio do Norte, a. 65. n. 3033. Canoinhas, 13 abr. 2012.


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