Resenhas
Bem viver: paradigma comunitário, direito de relação e utopia do afeto
Bem viver: paradigma comunitário, direito de relação e utopia do afeto
Desenvolvimento Regional em Debate, vol. 8, núm. 1, pp. 198-201, 2018
Universidade do Contestado
| Brito Ciro de Souza. MAMANI, Fernando Huanacuni. Buen Vivir / Vivir Bien: filosofia, políticas, estrategias y experiencias regionales andinas. Lima, Peru: Coodinadora Andina de Organizaciones Indígenas (CAOI), 2010.. 2010. Peru. Coodinadora Andina de Organizaciones Indígenas. 1pp. |
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Recepção: 27 Janeiro 2018
Aprovação: 26 Fevereiro 2018
Resumo: Fernando Huanacuni Mamani é um indígena aymara jurista, pesquisador, ativista e político da Bolívia. Nasceu em La Paz, em maio de 1966, licenciou-se em Direito pela Universidad Mayor de San Andrés e em 1983 começou a percorrer a América e a Europa palestrando sobre a importância dos conhecimentos ancestrais e motivando ao retorno das práticas comunitárias. Tornou-se um dos proeminentes pensadores da América Latina sobre o bem viver. Desde janeiro de 2017, é ministro das relações exteriores do governo de Evo Morales Ayma.
Resenha do livro: MAMANI, Fernando Huanacuni. Buen Vivir / Vivir Bien: filosofia, políticas, estrategias y experiencias regionales andinas. Lima, Peru: Coodinadora Andina de Organizaciones Indígenas (CAOI), 2010.
Fernando Huanacuni Mamani é um indígena aymara jurista, pesquisador, ativista e político da Bolívia. Nasceu em La Paz, em maio de 1966, licenciou-se em Direito pela Universidad Mayor de San Andrés e em 1983 começou a percorrer a América e a Europa palestrando sobre a importância dos conhecimentos ancestrais e motivando ao retorno das práticas comunitárias. Tornou-se um dos proeminentes pensadores da América Latina sobre o bem viver. Desde janeiro de 2017, é ministro das relações exteriores do governo de Evo Morales Ayma.
Na obra Buen Vivir/ Vivir Bien: filosofia, políticas, estrategias y experiencias regionales andinas (2010), posiciona-se contra o paradigma ocidental, o capitalismo, o mercado mundial, o crescimento econômico, o corporativismo e o consumismo, apontando-lhes como causadores de uma aguda crise de vida pela qual estamos atravessando e que se instaura nos âmbitos social, econômico e político. Coloca-se, ainda, contrário a processos de colonização realizados e em realização nos países da América Latina, tecendo boas reflexões a partir de consequências apontadas nesses processos.
Para Mamani, a América Latina vive a emergência de um processo de troca de paradigmas, que vem repercutindo no mundo todo. Chama esse processo de paradigma comunitário de la cultura de la vida para vivir bien, sustentado em formas de viver direcionadas por cotidianos de respeito, harmonia, equilíbrio e afeto com todas as formas de vida existentes e compreendendo a vida como um todo interconectado, interdependente e inter-relacionado.
É apontado que os paradigmas dominantes percebem somente os seres humanos como sujeitos de direitos dos sistemas jurídico, educativo, político, econômico e social. E ainda consideram os seres humanos como seres individuais, aparados por estruturas que só preveem o individualismo. Esses paradigmas são sustentados pelo capital, que gera um cenário de desencontros e um abismo entre seres humanos e tudo o que lhes rodeia. Quanto maior esse abismo fica maior grau de insensibilidade da humanidade.
Portanto, urge uma mudança paradigmática, que deve incluir uma mudança das atitudes das autoridades no sentido de cuidar de todos seus ordenados – não apenas dos que concordam consigo - de forma parental. Isso implica uma verdadeira consciência comunitária.
Como alternativa proposta, Fernando Mamani aponta o bem viver: uma cosmovisão que pretende reconstituir a harmonia e o equilíbrio da vida conforme vivenciaram os ancestrais dos povos indígenas originários.
A reconstituição da harmonia e do equilíbrio da vida passa necessariamente pela etapa de reconstituição de direitos. Mamani assevera que as relações sociais e de vida estão desequilibradas graças às hierarquias existentes no mundo ocidental moderno capitalista e essas hierarquias geram privilégios para uns e violações de direitos para outros. Por isso necessária a reconstituição de direitos, sabendo de que seria uma etapa transitória, rumo ao bem viver, onde não existem essas hierarquias senão apenas responsabilidades naturais.
Na língua aymara, bem viver é chamado de suma qamaña. Suma tem significado de plenitude, sublime, excelente ou magnífico; enquanto qamaña tem significado de viver, conviver, estar sendo e ser estando. A tradução que mais se aproximaria, então, é “vida em plenitude”. Por sua vez, na língua quechua, vivir bien é conhecido como sumak kawsay, onde sumak equivaleria a suma e kawsay a qamaña. Ou seja, também “vida em plenitude”. Na língua dos povos mapuche do Chile, bem viver é identificado como kyme mogen. Já para os povos indígenas da Amazônia, agrupados na Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (COICA), é conhecido como “Volver a la Maloca”, que significa retornar a eles mesmos, valorizar ainda mais os saberes ancestrais e a relação harmoniosa com o meio ambiente.
O autor explica que volver a la maloca é sentir prazer nas danças e nos espíritos. É proteger os conhecimentos locais, as tecnologias e os sítios sagrados. É aproveitar o que o mundo ocidental oferece sem abandonar valores e práticas socioculturais próprios. É ser um ser coletivo, sabendo que não é possível preterir o local de fala, ou seja, não há como discutir relações entre atores sociais sem fazer diferença entre eles. Mostra que, segundo os aymara, para bem viver primeiro deve-se estar bem. E estar bem é consequência de saber viver, ou seja, saber relacionar-se/ conviver com todas as formas de existência.
Argumenta que bem viver significa compartilhamento, e não competição. Por isso, não se confunde com viver melhor, que indica desinteresse pelos demais, egoísmo, pensamento somente no lucro e individualismo.
O boliviano também afirma que bem viver é uma alternativa de consenso. E rejeita as decisões tomadas sob a justificativa da democracia, já que naturalmente implicam em sujeição das minorias às maiorias.
“Vivir bien también es vivir sin violencia, vivir com afecto y empatia” (MAMANI, 2010, p. 37). O autor faz essa afirmação baseado no seu convencimento de que a história mostra que só há duas formas possíveis para o avanço das sociedades: a violência e o afeto. Ocorre que esta segunda é a menos utilizada nos processos de mudanças sociais, mesmo sendo a que nos faz ser compromissados, assumir desafios e amar os descendentes e semelhantes.
É justamente o afeto que nos faz ser empáticos, romper barreiras e insuficiências de formação pessoal e nos posicionar para além de posições midiáticas. O afeto surge da prática, da interação. É produto de uma verdadeira integração. Portanto, não surge a partir de um ato reflexivo. Ele surge a partir de reuniões presenciais em pontos de encontros na comunidade. Por isso é necessário que as pessoas se encontrem com frequência, mesmo que seja para discutirem e discordarem. O propósito dos pontos de encontros não é somente resolver problemas, mas manter o grupo unido pelo afeto.
Conforme o autor, bem viver também significa vida simples e redução do consumismo. Significa produção equilibrada, que não arruíne o seu redor. Significa ter responsabilidade, primeiramente, com a Madre Tierra e o cosmos, segundamente com a comunidade, terceiramente com o ou a companheira e, por fim, consigo mesmo.
Por fim, cabe destacar aquele que talvez seja o ponto alto da obra e a principal contribuição de Fernando Mamani no debate sobre o bem viver, sua vinculação a discussão tanto de terra quanto de território e o argumento de que é imprescindível haver acesso à terra para que haja bem viver.
Segundo Mamani (2010, p. 77), terra é:
[...] el espacio natural de vida donde vive la comunidad, es el lugar sagrado de interacción, es el centro integrador de la vida en común-unidad. Compreende el espacio de arriba (el éter), el espacio en el que vivimos aquí, el espacio de abajo, es decir, todo lo que está dentro de la tierra, y el espacio indeterminado, donde moran nuestros ancestros.
E território:
[...]) se compreende como el espacio con própria estrutura organizativa, según los usos y costumbres, tradiciones, idioma, cosmovisiones, principios y valores; donde se ejercen los “derechos y responsabilidades comunitarios”, los “derechos de relación”. [...] territorio integra todas las formas de existência, en su diversidade natural y espiritual. El territorio es un concepto de vida comunitária. Y como nuestra tradición ancestral nos enseña, no es un recurso para explotar, es un espacio de vida recíproca y complementaria (MAMANI, 2010, p. 77-78).
Mamani observa que a perda de terras reflete uma perda de contato com a natureza e, por conseguinte, uma perda de contato com o sagrado, com a espiritualidade e com tudo o que mantem um grupo unido como entidade cultural. Logo, deve haver direito(s) de relação ou direito de relacionar-se com a Mãe Terra.
“[...] la tierra no es una mercancia, es sagrada para nosostros” (MAMANI, 2010, p. 79). Os aymara reconhecem que não são donos da terra. Eles pertencem a ela. Logo, não há que se reivindicar um direito de propriedade sobre a terra e sim um direito de relacionar-se com a Mãe Terra. Por conta disso, a tarefa é redistribuir equitativamente as terras, de maneira dinâmica e permanente. A proposta de Mamani é que essa redistribuição ocorra de acordo com o número de membros das famílias. E nas comunidades, para ter o direito à terra, as famílias devem cumprir certas responsabilidades como realizar trabalhos comunitários, fazer parte dos costumes e ritos, bem viver e, principalmente, viver na comunidade. Não se pode possuir terras à distância.
Esta obra de Fernando Mamani é fundamental aos investigadores do bem viver. O autor é capaz de sintetizar diversas experiências de povos indígenas da América Latina e sistematizar noções de bem viver, estabelecendo diálogos e conexões entre elas. Além disso, contribui no debate a partir da elaboração de noções como a de paradigma comunitário, de direito de relação e da importância do afeto e seus espaços de interações e integrações.
Ao admitir que o desafio se inicia na re-constituição, Mamani é utópico mas ao mesmo tempo realista na proposta que sistematiza, uma vez que reconhece que as atuais instalações institucionais, jurídicas, políticas, ambientais e sociais estão defasadas e o mundo está em colapso. Nesse sentido, o processo de mudança deve partir desses estágios caóticos e não partir de uma idealização que forçaria uma implantação fadada a inviabilidade prática.
Em síntese, bem viver é viver em plenitude comunitária, de maneira autossuficiente, equilibrada e harmônica com os ciclos da Mãe Terra, com os cosmos, com a vida e com a história. Tendo como objetivos a fraternidade e a complementariedade e sendo guiados por afeto e empatia para transformar a sociedade (MAMANI, 2010, p. 34; p. 49).
O bem viver nasce das experiências indígenas latino-americanas, mas não se direciona nem se limita a elas. A proposta é contra-hegemônica, paradigmática e epistemológica. Dirige-se, portanto, às ciências, mas principalmente às pessoas. É um convite individual, que só pode ser aceito se for de maneira coletiva.