Resumo: Atualmente, as Indicações Geográficas são um tema em constante e crescente debate no Brasil. O país tem enorme potencial de uso do mecanismo, que pode ser um elemento importante inclusive para o desenvolvimento local. Porém, nota-se que ainda há muitas questões que merecem uma discussão mais aprofundada, sobretudo quanto aos impactos que outras normas podem ter no uso das IGs e vice-versa. Nesse sentido, é importante destacar a relação com a Defesa da Concorrência, sendo objetivo do presente artigo alertar para certas situações envolvendo as Indicações Geográficas e que possam ser objeto de questionamentos do ponto de vista concorrencial. Para tanto, buscou-se precedentes na União Europeia que podem apontar situações passíveis de ocorrer também no Brasil e que configuram infrações à concorrência.
Palavras-chave:Indicação GeográficaIndicação Geográfica,Defesa da ConcorrênciaDefesa da Concorrência,Direito EconômicoDireito Econômico,Propriedade IntelectualPropriedade Intelectual.
Abstract: Currently, Geographical Indications are a subject of constant and increasing debate in Brazil. The country has enormous potential for using the mechanism, which can be an important element specially for local development. However, it is noted that there are still many issues that deserve further discussion, specially regarding the impacts that other rules may have on the use of GIs and vice versa. In this sense, it is important to highlight the link with the Competition Law, specially aiming to warn of certain situations involving Geographical Indications and which may be the subject of questions from a competitive point of view. To achieve that goal, we sought precedents in the European Union that can point out situations that may also occur in Brazil and which constitute infringements of competition law.
Keywords: Geographical Indication, Competition Law, Economic Law, Intellectual Property.
Artigos
Indicações geográficas e infrações concorrenciais
Geographical indications and antitrust violations
Recepção: 30 Agosto 2019
Aprovação: 15 Outubro 2019
A análise da Propriedade Intelectual (PI) sob a ótica do Direito Econômico, especialmente em relação ao Direito da Concorrência, justifica-se pela relevância do tema e dos impactos práticos que a mesma pode gerar, considerando que a PI é frequentemente apontada como instrumento para o desenvolvimento nacional. Uma vez que a legislação confere certos privilégios de exclusividade aos titulares de direitos de Propriedade Intelectual, é importante analisar quais são os efeitos no ambiente concorrencial, verificando se há compatibilidade entre as normas dessas áreas e as atuais leis brasileiras de PI.
Na medida em que a indicação geográfica seja utilizada para identificar a origem de um produto/serviço, relacionando-o a uma região demarcada que tenha características determinantes para sua qualidade ou que seja famosa por ofertá-lo, esse sinal distintivo mostra-se altamente relevante, pois pode agregar valor aos produtores situados nessa localidade, que detém o direito exclusivo de uso da IG e se vinculam a essa qualidade/fama. Porém, é também importante perceber que a aplicação atual das normas pode ser objeto de questionamentos, sobretudo em relação aos potenciais impactos à concorrência. Dessa forma, ainda que haja uma conscientização e maior uso das IGs no Brasil, a eventual inadequação normativa sobre o tema pode ser um entrave para o alcance eficiente dos objetivos de desenvolvimento regional e nacional por meio desse tipo de sinal distintivo.
Dentro do contexto do presente trabalho, o direito dos produtores o uso da IG como signo distintivo é reconhecido, ao mesmo tempo em que se entende necessário também resguardar a defesa da concorrência, bem como reprimir eventuais abusos. Nesse sentido, o presente artigo busca apresentar a legislação concorrencial e seus objetivos, demonstrando a potencial aplicação dos mesmos na questão das indicações geográficas. Na mesma linha, foram levantados casos concretos nos quais a autoridade de defesa da concorrência da União Europeia puniu associações de produtores por práticas indevidas no âmbito das IGs.
Em suma, a pesquisa buscou fazer uma análise crítica e propositiva das normas e cadernos de especificação técnica/regulamentos de uso[1], buscando contribuir com a eficiência do modelo brasileiro de indicações geográficas. O atual momento, no qual esse tipo de sinal ainda não é muito utilizado no Brasil, parece propício para tanto, uma vez que o estudo pode ter caráter preventivo em relação aos pontos potencialmente problemáticos.
A indicação geográfica é um sinal distintivo, de uso exclusivo de produtores localizados em uma região demarcada cujas características naturais/culturais sejam determinantes para a qualidade de um produto ou serviço ali ofertado ou que seja conhecida por ser um centro de produção de determinado objeto ou de prestação de um tipo de serviço. A Constituição da República de 1988 prevê sua proteção no artigo 5º, XXIX, como uma espécie de signo distintivo:
Art. 5º, XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; (grifos nossos) (BRASIL, 1988)
Tão relevante quanto a previsão do direito é a condicionante que a CR/88 apresenta para existência e exercício de tais prerrogativas: o atendimento ao interesse público e ao desenvolvimento tecnológico e econômico do país. É fundamental ter isso em vista para que seja possível interpretar adequadamente a forma de aplicação e limites desse tipo de exclusividade.
De acordo com a Lei 9.279/96 (BRASIL, 1996), há duas espécies de indicação geográfica no Brasil: a indicação de procedência, utilizada no caso de uma região delimitada que se tenha tornado famosa por ofertar determinado produto ou serviço, e a denominação de origem, aplicável quando as características do produto/serviço se devam a fatores presentes na localidade[2].
Cada produtor situado na área geográfica identificada como IG poderá utilizar esse sinal distintivo junto à sua própria marca individual. No caso das denominações de origem, o produto/serviço ofertado pelo agente deve ainda atender a requisitos de qualidade, nos termos do artigo 182 da Lei 9.279/96[3]. Segundo o professor Denis Barbosa (2003):
O tratamento das duas figuras é paralela, a não ser o fato de que, para a designação de origem se exige não só o estabelecimento no local designado, mas também o atendimento de requisitos de qualidade. Por exemplo, no caso de vinhos, os regulamentos pertinentes não só indicam os exatos locais de plantio (demarcações às vezes com minúcia de metros), mas também a insolação, a qualidade da cepa, a distância entre as vinhas, etc.
Assim, entre os elementos a serem apresentados no caso de designação de origem está a descrição das qualidades e características do produto ou do serviço a descrição do processo ou método de obtenção do produto ou serviço, “que devem ser locais, leais e constantes”, os elementos que comprovem a existência de uma estrutura de controle sobre os produtores ou prestadores de serviços bem como sobre o produto ou serviço e prova de que os produtores ou prestadores de serviço estejam lá estabelecidos e operando (BARBOSA, 2003, p. 913).
À primeira vista, a indicação geográfica poderia ser confundida com uma espécie de marca, uma vez que ambas são sinais distintivos que possuem a função de indicar a procedência de um produto ou serviço. Porém, a IG é uma espécie autônoma de direito, com características distintas da tutela marcária.
Inicialmente, a indicação geográfica deve, necessariamente, estar ligada a uma região demarcada, de onde vem o nome protegido. No caso das marcas, não há qualquer vinculação obrigatória nesse sentido.
Além disso, o direito sobre a IG é, por conceito, de natureza coletiva[4], o que não ocorre com todos os tipos de marca, que podem ser utilizadas por um único titular. Mesmo no caso das marcas coletivas, não há confusão jurídica com a indicação geográfica. Isso porque, embora seja utilizada por um universo de usuários, a marca coletiva pertence a uma única pessoa jurídica, que representa justamente essa coletividade. No caso da IG, não seria adequado indicar que esta pertence a uma determinada pessoa, ainda que esta represente um conjunto de produtores e tenha tomado a iniciativa de promover o registro da indicação. Na verdade, a indicação geográfica constitui um direito de toda a coletividade da região delimitada, o que alcança todos os seus usuários ali localizados[5] e que, em alguns casos, atendem a certas exigências relativas à forma de produção. Logo, para uso da IG, o que interessa não é a vinculação jurídica à pessoa que promoveu o registro, mas sim o atendimento aos requisitos de localização e, quando aplicável, qualidade.
Como decorrência disso, outra diferença importante diz respeito à possibilidade – ou não – de transferência de cada sinal distintivo. Uma marca pode ser alienada, observadas certas condições, em função de disposições da Lei 9.279/96[6] e em decorrência do expresso reconhecimento legal de que se trata de uma propriedade privada[7]. Contudo, o mesmo não se aplica às indicações geográficas. Estas não são reconhecidas expressamente na legislação como um tipo de propriedade e não há previsão legal para sua transferência. De fato, eventual alienação da IG seria uma situação contrária à sua própria essência, de sinal necessariamente vinculado a uma região geográfica, de titularidade dos produtores ali localizados e atuantes[8].
O artigo 179 da LPI indica que a proteção se estende à representação gráfica ou figurativa da indicação geográfica, bem como à representação geográfica do local. Apesar de não estar expresso na lei, pode-se deduzir que o registro de IG pode ser feito na forma nominativa ou mista, aplicando-se de forma análoga os conceitos referentes às marcas nesse sentido. Considerando que tanto a indicação de procedência como a denominação de origem são constituídas por um nome geográfico[9], fica claro que necessariamente haverá um componente nominativo no registro. Caso esse seja acompanhado por um elemento gráfico, haveria um registro misto[10].
Já o artigo 180 reforça a natureza da IG como sinal distintivo, ao vedar proteção ao nome geográfico que se tenha tornado de uso comum[11]. Essa disposição tem o mesmo sentido do já apresentado artigo 124, VI da LPI, por faltar ao sinal a capacidade distintiva para identificação da origem, e, não poder ser objeto de exclusividade[12].
Deve-se notar que a legislação brasileira é bastante sucinta em relação à indicação geográfica. A própria Lei 9.279/96 se limita a sete artigos específicos sobre o tema (artigos 176 a 182), acrescidos de poucos outros pontos que lhe fazem referência de alguma forma. A isso deve-se somar a IN 95/18 do INPI como base normativa sobre o assunto. Considerando também que se trata de instituto de aplicação ainda relativamente tímida no Brasil (apesar de um crescimento perceptível), esses fatores mostram um potencial de dúvidas e polêmicas que tendem a se ampliar na medida em que as IGs tenham seu uso intensificado no país. Isso se mostra especialmente sensível quando o tema é abordado a partir da perspectiva da Defesa da Concorrência.
A livre concorrência está prevista no art. 170, IV da Constituição da República de 1988 como um princípio da ordem econômica. Trata-se de um direito de permanência conferido aos agentes econômicos, no sentido de que estes somente poderão ser excluídos do mercado caso sejam ineficientes e, em função disso, percam espaço para concorrentes mais capacitados[13]. Ao mesmo tempo, a livre concorrência impõe aos agentes um dever de efetivamente competir, sendo vedados acordos destinados a evitar a disputa entre eles, de modo a interferir negativamente no funcionamento do sistema econômico. É um princípio intimamente ligado ao da livre inciativa, que estabelece uma liberdade de entrar e sair dos mercados e lá exercer alguma atividade econômica de produção de bens e serviços[14]. O exercício desse direito somente pode ser condicionado ao cumprimento de exigências se houver justificativa para tanto, sendo vedado ao Estado criar empecilhos arbitrários[15].
A livre concorrência se desdobra em dois aspectos: a repressão à concorrência desleal e a defesa da concorrência (ou da ordem econômica) propriamente dita. Apesar da semelhança dos termos, conceitualmente são situações distintas, cada qual com tratamento jurídico próprio.
A concorrência desleal é um comportamento fraudulento destinado a desviar ilicitamente a clientela alheia[16]. Tipicamente se caracteriza como uma trapaça, contrária às práticas leais de competição que todos os ofertantes devem observar no mercado[17]. A concorrência desleal se divide em específica e genérica. No primeiro caso, a legislação lista cada tipo de comportamento e os considera crimes. No segundo, não há tratamento penal, mas são atos passíveis de responsabilização patrimonial na esfera civil pelos prejuízos causados. Na Lei 9.279/96, as duas hipóteses são tratadas, respectivamente, nos artigos 195 e 209[18].
A repressão à concorrência desleal tem como objetivo direto o respeito a um padrão leal de competição como forma de proteção ao concorrente, na medida em que busca resguardá-lo em relação à manutenção de sua clientela[19]-[20]. Eventuais adversários podem até captar tais consumidores, desde que por meios leais e em função de maior eficiência na oferta[21]. Mas não podem atraí-los com base em trapaças, como já indicado, sendo tal comportamento considerado fora do padrão esperado no mercado[22].
Já na defesa da concorrência propriamente dita, a perspectiva é mais abrangente. Enquanto as normas de repressão à concorrência desleal focam especialmente no interesse individual do concorrente cuja clientela é objeto do desvio[23], a defesa da concorrência se estrutura em uma abordagem mais ampla. Neste caso, o que se protege não é o direito à clientela ou a um padrão esperado de competição leal, mas sim uma a preservação de uma dinâmica geral de concorrência enquanto instrumento relevante para o bom funcionamento da economia[24]. O fundamento para essa tutela é a percepção que a existência de concorrência é importante para que agentes de mercado busquem reduzir seus preços, melhorar a qualidade da sua oferta e tentem gerar inovações, na medida em que esses elementos tenham peso na disputa para ganhar a preferência do demandante[25]. Não se trata, portanto, de proteção do concorrente, mas sim da concorrência enquanto mecanismo de funcionamento do mercado[26]. A preocupação é assegurar o bom funcionamento do sistema econômico, direito esse de toda a coletividade. Logicamente, isso transcende o mero interesse individual de um concorrente e foca um tipo de proteção de ordem macro jurídica.
Nesse sentido, nota-se que essa vertente da livre concorrência possui forte relação com o artigo 173, § 4º da CR/88, que prevê a repressão ao abuso de poder econômico destinado à eliminação da concorrência, aumento arbitrário dos lucros e domínio do mercado, uma vez que tal dispositivo também busca a preservação do bom funcionamento da economia. Os atos que possam atrapalhar essa dinâmica serão coibidos pela autoridade de defesa da concorrência, como será explicado mais adiante.
Apesar da distinção entre repressão à concorrência desleal e defesa da concorrência, vale destacar que tais institutos não são antagônicos, inclusive no que diz respeito aos interesses protegidos. É possível considerar que a defesa da concorrência tutele indiretamente o concorrente em certos casos, desde que a proteção deste seja um meio necessário para assegurar o bom funcionamento do sistema econômico. Essa hipótese poderia ser ilustrada com a proibição legal de abuso de posição dominante por parte de um agente no mercado, quando tenta valer-se exclusivamente de sua estrutura e poderio financeiro para excluir os adversários mais fracos. Nesse sentido, os agentes de menor porte serão protegidos para que a dinâmica de concorrência não seja aniquilada. O objetivo principal é assegurar que haja competição, mas é inegável que, nesse exemplo, a medida atende também a interesses dos concorrentes mais frágeis.
Na mesma linha, se determinado ato de concorrência desleal for capaz de gerar efeitos concretos ou potenciais que afetem o funcionamento do mercado, transcendendo o interesse de determinado competidor que tem sua clientela ameaçada, essa situação estará também sujeita às normas de defesa da concorrência. Isso reforça a percepção que os dois institutos – repressão à concorrência desleal e defesa da concorrência – podem interagir, apesar de não se confundirem[27].
Ainda em relação à defesa da concorrência, é preciso ter ciência que tal proteção não pode ser tratada em termos absolutos. Conforme a situação, é possível observar que determinadas restrições concorrenciais podem gerar um saldo positivo, considerando eventuais eficiências promovidas inclusive por meio da redução da competição.
Isso posto, cabe agora verificar como a legislação brasileira trata a matéria, destacando especialmente as competências do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE nesse âmbito.
O CADE existe desde a década de 1960, criado como um órgão do Ministério da Justiça. Porém, a Lei 8.884/94 alterou sua natureza jurídica, que passou a ser de autarquia[28], visando dar-lhe atuação mais efetiva e autonomia. Isso ocorreu especialmente em função do tratamento dado pela Constituição da República de 1988 às questões econômicas. O Poder Público, até então com grande atuação empresarial direta, passou a ter um novo papel no mercado. Em função do próprio texto constitucional, deixa de atuar como empresário em diversos campos e passa a agir preponderantemente por meio de intervenções indiretas, sobretudo como agente regulador e normativo da economia, conforme artigo 174 da CR/88[29]. Esse novo contexto demandou a existência de uma entidade de defesa da concorrência mais estruturada e atuante, motivando a edição da Lei 8.884/94, que foi posteriormente substituída pela Lei 12.529/11.
O principal órgão do CADE é o Tribunal Administrativo, composto por sete membros de notório saber jurídico ou econômico e reputação ilibada. A aplicação da Lei 12.529/11 sobre fatos eminentemente econômicos justifica a existência dessa estrutura mista em relação aos conhecimentos dos seus integrantes. A função do Tribunal[30] é primordialmente fazer o julgamento dos casos analisados pelo CADE.
Outros órgãos relevantes do Conselho são a Superintendência-Geral e o Departamento de Estudos Econômicos. Ao primeiro cabe sobretudo o trabalho de investigação e instrução dos processos administrativos, enquanto ao segundo incumbe a elaboração de estudos e pareceres econômicos.
Em relação à matéria a ser analisada pelo CADE, a Lei 12.529/11 define duas vertentes de atuação: preventiva e repressiva. No primeiro caso, o foco é nas estruturas de mercado, cabendo ao Conselho impedir a ocorrência de concentrações empresariais que criem ou intensifiquem um poder econômico, eliminem parte substancial da concorrência ou que possam resultar na dominação de mercado[31].
Logo, o caráter de atuação é preventivo para evitar operações que possam aumentar as chances de comportamentos lesivos ao funcionamento do mercado, dada a força econômica que pode surgir desses atos. Já a vertente repressiva se dedica a analisar comportamentos dos agentes, punindo condutas que possam, elas mesmas, gerar efeitos lesivos à ordem econômica. Na Lei 12.529/11, tais formas de atuação são denominadas respectivamente de atos de concentração e infrações contra a ordem econômica.
As condutas ou infrações contra a ordem econômica são entendidas como práticas que afetam o bom funcionamento do mercado, podendo gerar danos potenciais ou concretos a este[32]. Ao reprimir tais condutas, o Direito busca tutelar toda a coletividade[33], considerando que todos têm direito ao funcionamento adequado da economia, de modo a gerar resultados benéficos para a sociedade. A atuação estatal na defesa da concorrência aqui é focada no comportamento dos agentes, e não na alteração nas estruturas de mercados.
O artigo 36 da Lei 12.529/11 aponta quais efeitos uma conduta deve gerar (ou ter o potencial de gerar) para ser considerada ilícita do ponto de vista concorrencial[34]-[35]. Deve-se destacar que não é exigida a ocorrência cumulada de todos esses efeitos, bastando apenas um deles para configuração da infração. No âmbito do CADE, esse tipo de prática ilícita pode acarretar na aplicação de sanções administrativas, sendo a mais comum a imposição de multa de 0,1% a 20% do faturamento do infrator no ramo de atividade econômica afetada. A intenção do agente não é levada em conta para configuração da conduta, mas tem peso na definição das penalidades, conforme artigo 45 da Lei 12.529/11.
Nesse sentido, deve-se destacar que o legislador nacional não adotou uma tipicidade estrita quanto à análise das condutas em espécie previstas na Lei 12.529/11, no sentido de ser considerado ilícito apenas o comportamento expressamente descrito na norma ou que certa situação seja sempre tida como ilegal, independente do poder econômico de quem a praticou e do contexto do ato[36]. Como indicado, está explícito na legislação que será considerada infração apenas aquilo que implicar nos efeitos vedados, de forma potencial ou concreta, mesmo nos casos de condutas mencionadas expressamente na Lei 12.529/11[37]. Dessa forma, fica claro que o CADE deve analisar o contexto e os mercados envolvidos para julgar se uma conduta é ilícita ou não, tendo em vista os efeitos previstos nos incisos do artigo 36.
O primeiro inciso refere-se a “limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa”. Tendo em vista a regra da razão, pode-se concluir que a conduta será ilícita, nesse caso, se a restrição for efetivada de forma desarrazoada. Caso a limitação à concorrência seja oriunda de uma vantagem competitiva legítima detida pelo agente, não haverá ilícito algum[38].
Em relação ao inciso II, “dominar mercado relevante de bens ou serviços”, devemos destacar o conteúdo do §1º desse mesmo artigo: a conquista resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza esse ilícito.
Já o inciso III do artigo 36 fala em “aumentar arbitrariamente os lucros”. Trata-se de um dispositivo de difícil aplicação isolado dos outros efeitos, considerando especialmente que a CR/88 estabeleceu que a liberdade de iniciativa e concorrência são as regras no mercado, devendo os preços serem formados pela dinâmica de competição entre os agentes. Logo, qualquer intervenção estatal nesse âmbito deve ser vista como exceção. Porém, se via de regra os preços são estabelecidos de forma livre (devendo o agente arcar com as consequências econômicas de sua decisão nesse sentido), não há um parâmetro do que seria um lucro “justo”, inclusive porque os custos de cada ofertante podem variar. Sem a referência do que seria adequado, por consequência torna-se inviável avaliar o que seria indevido nesse campo. Assim, em tese, esse dispositivo se aplicaria somente em mercados sujeitos a controle de preço, situações essas excepcionais no Brasil. Não sendo esse o caso, o aumento arbitrário de lucros, quando observado, tipicamente se apresenta junto com algum dos outros efeitos previstos no artigo 36.
Por fim, o inciso IV indica como efeito proibido “exercer de forma abusiva posição dominante”. Essa norma deixa claro que a legislação nacional não proíbe a existência de posição dominante em absoluto, mas sim seu abuso[39]-[40]. Entretanto, a definição e a configuração desse abuso no caso concreto não são tarefas necessariamente simples[41].
A etimologia da palavra, considerada sua origem no Latim, remete à noção de “desvio de uso”[42]. Assim sendo, o abuso seria, a princípio, uma situação na qual o uso regular que se espera daquele direito é desviado pelo titular para outra direção[43]. Uma referência que poderia ser utilizada para definir qual seria esse “uso regular” reside na finalidade econômica ou social do direito[44].
No caso dos sinais distintivos, tais finalidades parecem estar indicadas no artigo 5º, XXIX da Constituição. Os direitos seriam conferidos na busca do desenvolvimento econômico e tecnológico do país, para atender ao interesse social. Logo, o exercício daquele tipo de direito, de modo a desviar desses objetivos, configuraria o abuso.
Deve-se ressaltar, entretanto, que o artigo 36, IV da Lei 12.529/11 não fala apenas em “abuso”, mas sim “abuso de posição dominante”. Assim, para que a lei de defesa da concorrência possa agir sobre uma situação que envolva um direito de Propriedade Intelectual, este deve conceder ao seu titular um real poder econômico, capaz de influenciar no preço e na oferta, e não um monopólio meramente jurídico[45]. Caso contrário, não haveria posição dominante de que se pudesse abusar.
Detalhada a forma de configuração dos ilícitos concorrenciais, deve-se ressaltar que a Propriedade Intelectual não se encontra imune ao cumprimento das regras de proteção à concorrência[46]-[47]-[48]. Não é diferente em relação às IGs, já havendo inclusive reconhecimento expresso nesse sentido em normativas europeias[49]-[50]. Portanto, cabe agora avaliar se a regulamentação do uso das indicações geográficas no Brasil poderia, de alguma forma, implicar ou favorecer a ocorrência de alguma infração dessa natureza.
Para análise desse ponto, inicialmente é interessante notar a existência de precedentes de intervenção das autoridades de defesa da concorrência em casos envolvendo IGs na Europa:
In fact, antitrust authorities have intervened with regard to a number of prominent GI products: the Italian Parma ham and San Daniele ham, the Italian Grana Padano, Parmigiano-Reggiano and Gorgonzola cheeses, and the French Cantal cheese (OECD, 2000). The anticompetitive behavior that was investigated concerned attempts by producer associations to control their supply through imposition of individual production quotas to their membership and through market share agreements between consortia (OECD, 2000). In all cases, after the antitrust intervention, production quota and market share agreements were abandoned, and competitive conditions were restored (MOSCHINI; MENAPACE; PICK, 2008, p. 798)[51].
De fato, há inclusive estudo da União Europeia (CARRAU, 2012) que destaca uma série de ilícitos concorrenciais envolvendo entidades gestoras de indicações geográficas. Uma infração comum é a prática de definir cotas, limitar ou reduzir a oferta dos produtores locais para manter preços elevados artificialmente, observado junto às associações italianas dos presuntos de Parma e San Daniele, dos queijos Parmigiano-Reggiano, Grana Padano e Gorgonzola, além dos franceses responsáveis pelo queijo Cantal e espanhois produtores de vinho Jerez. De um modo geral, as autoridades de defesa da concorrência consideram ilícitas medidas de limitação de produção se elas não se justificarem efetivamente pela melhoria da qualidade[52].
No caso específico dos ofertantes do queijo Gorgonzola, além da redução de produção ainda havia discriminação de produtor não associado à entidade gestora da IG, que sofria a cobrança de taxas mais altas. Isso evidencia a existência de outras práticas anticompetitivas, o que pode ser também ilustrado pelos casos do azeite espanhol Garrigues (no qual a associação gestora da IG determinava a fixação de preços dos produtores), da carne da Irlanda (pagamentos a produtores para que se retirassem do mercado e se comprometessem a condições de não-concorrência dali em diante) e do vinho francês Cahors (imposição de preço mínimo).
Apesar de não haver, até o momento (meados de 2019), identificação concreta de problemas concorrenciais desse tipo envolvendo indicações geográficas no Brasil, há ao menos um julgado do CADE que possui certas similaridades com essa discussão. Trata-se da condenação sofrida pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais – ECAD[53]. Embora não envolva IGs, a estruturação e funcionamento do ECAD foi objeto de questionamentos do ponto de vista concorrencial que poderiam, em tese, ocorrer em discussões envolvendo indicações geográficas.
O ECAD é uma associação sem fins lucrativos cujos membros são entidades representativas de titulares de direitos autorais musicais. O Escritório detém, em decorrência da Lei 9.610/98, poderes para realizar a cobrança e distribuição entre seus membros dos valores devidos pelas pessoas que realizam execuções públicas musicais:
Art. 68. Sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas.
§ 2º Considera-se execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de frequência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica.
§ 3º Consideram-se locais de frequência coletiva os teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, hotéis, motéis, clínicas, hospitais, órgãos públicos da administração direta ou indireta, fundacionais e estatais, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas.
§ 4º Previamente à realização da execução pública, o empresário deverá apresentar ao escritório central, previsto no art. 99, a comprovação dos recolhimentos relativos aos direitos autorais.
§ 5º Quando a remuneração depender da frequência do público, poderá o empresário, por convênio com o escritório central, pagar o preço após a realização da execução pública.
Art. 99. As associações manterão um único escritório central para a arrecadação e distribuição, em comum, dos direitos relativos à execução pública das obras musicais e lítero-musicais e de fonogramas, inclusive por meio da radiodifusão e transmissão por qualquer modalidade, e da exibição de obras audiovisuais.
§ 1º O escritório central organizado na forma prevista neste artigo não terá finalidade de lucro e será dirigido e administrado pelas associações que o integrem.
§ 2º O escritório central e as associações a que se refere este Título atuarão em juízo e fora dele em seus próprios nomes como substitutos processuais dos titulares a eles vinculados.
§ 3º O recolhimento de quaisquer valores pelo escritório central somente se fará por depósito bancário.
§ 4º O escritório central poderá manter fiscais, aos quais é vedado receber do empresário numerário a qualquer título.
§ 5º A inobservância da norma do parágrafo anterior tornará o faltoso inabilitado à função de fiscal, sem prejuízo das sanções civis e penais cabíveis[54].
Contudo, a atuação do ECAD foi questionada junto ao CADE por diversas razões, tais como:
a) Havia diferenciação de poder entre as associações filiadas ao ECAD, de modo que apenas algumas detinham poder de deliberação efetiva. Os critérios para que um membro do escritório pudesse exercer seu direito de voto nesse sentido eram atrelados a percentuais e valores mínimos de arrecadação que a associação obtivesse. Caso não alcaçasse tais números, não teria direito de opinar sobre os critérios de arrecadação e distribuição, tendo seus interesses administrados pelo ECAD sem qualquer ingerência sobre isso. O CADE entendeu que essas disposições configuravam infração contra a livre iniciativa, na medida em que criavam barreiras à entrada que desestimulavam a criação de novas entidades de titulares de direitos autorais musicais (já que eventuais novas associações dificilmente alcançariam os critérios mínimos para ter direito a voto ou mesmo à filiação ao ECAD; assim, os titulares de direitos autorais tenderiam simplesmente a se filiar às instituições mais antigas e com poder de deliberação consolidado, mantendo a hegemonia destas dentro do ECAD).
b) Em que pese a legislação conferir ao ECAD poder de cobrança e arrecadação, não havia previsão legal que autorizasse o tabelamento de preços. Porém, o ECAD e as associações com direito a voto deliberavam critérios uniformes de cobrança pelo uso das músicas em execuções públicas. O CADE considerou tal situação como formação de cartel.
Em função desses fatos, em março de 2013, o ECAD e as associações envolvidas sofreram multas aplicadas pelo CADE no valor total aproximado de R$38.000.000,00 (trinta e oito milhões de reais). Pouco depois, em agosto, foi promulgada a Lei 12.853/13, que alterou sensivelmente as condições de funcionamento das entidades coletivas de direitos autorais e reduzindo drasticamente sua capacidade de autorregulação no exercício do seu poder de cobrança.
Interessante notar que os questionamentos que motivaram a condenação poderiam perfeitamente se aplicar a uma hipotética situação envolvendo uma IG, observadas as devidas adaptações ao caso concreto. Isso parece ressaltar a percepção de que, em tese, a concessão e exercício das indicações geográficas não estão imunes a problemas concorrenciais, tal qual ocorreu no caso da cobrança de direitos autorais musicais em execução pública e nos precedentes europeus. A partir disso, será útil para o desenvolvimento do tema a análise dos estatutos das associações gestoras das indicações geográficas brasileiras, visando identificar eventuais cláusulas que possam se assemelhar aos casos relatados ou facilitar algum ilícito concorrencial. A leitura dos cadernos de especificações técnicas (antigos regulamentos de uso) dessas IGs aponta algumas questões relevantes nesse sentido.
A análise dos cadernos de especificações técnicas/regulamentos de uso das IGs registradas no Brasil mostra que boa parte desses documentos exige que o produtor seja obrigatoriamente filiado à entidade que promoveu o registro da IG junto ao INPI como condição necessária para uso do sinal[55].
Sobre isso, deve-se destacar que a pessoa jurídica responsável pelo registro o faz na qualidade de substituto processual[56]. Isso significa que não tem o direito sobre o sinal distintivo, sendo apenas um representante da coletividade de produtores localizados na região vinculada à IG, que são os reais titulares da indicação geográfica. Logo, não pode tratá-la como se fosse um direito exclusivo apenas dos seus membros[57].
Ademais, a Constituição da República de 1988, nos incisos XVII e XX do seu artigo 5º, prevê expressamente a liberdade associativa como um direito fundamental, o que engloba a proibição de associação compulsória para qualquer fim[58]. Nesse sentido, a imposição de filiação dessa natureza ou similar como condição para uso de um direito de essência coletiva, não apenas contraria o próprio conceito de indicação geográfica[59] como também configura prática inconstitucional.
Na jurisprudência nacional, o caso de maior repercussão referente à liberdade associativa diz respeito às associações de moradores que eram reconhecidas como condomínios de fato. Essa figura jurídica é bastante comum no Brasil, usada para regulamentar questões comuns a proprietários de lotes que, apesar de próximos e compartilharem serviços e estruturas, não são configurados legalmente como condomínios. Porém, historicamente, na prática atuam como se assim fossem, sobretudo em função da cobrança de rateio das despesas comuns.
Durante muito tempo, a jurisprudência considerou tal situação lícita, devendo todos os moradores, associados ou não, realizarem o pagamento dessas taxas. Porém, em 2011, o Superior Tribunal de Justiça mudou esse entendimento, no julgamento dos Recursos Especiais 1.280.871 e 1.439.163, ao entender que a cobrança estabelecida por uma associação somente poderia ser imposta àqueles que fossem a ela filiados[60]. Vale destacar a colocação do ministro Marco Buzzi nesse julgamento, ao afirmar que “há somente duas fontes de obrigações: a lei ou o contrato; e, no caso, permissa venia, não atuam qualquer dessas fontes”. No mesmo sentido, a exigência de filiação compulsória para uso da indicação geográfica não encontra previsão em alguma lei e não há, entre associação e pessoas que a ela não são filiadas, qualquer relação contratual ou similar que pudesse embasar a exigência. Na verdade, a Lei 9.279/96 aponta em sentido contrário, na medida em que o artigo 182 dessa norma indica expressamente que o uso da indicação geográfica cabe aos produtores e prestadores de serviço estabelecidos no local, não sendo feita qualquer referência a eventual necessidade de se filiar a qualquer entidade.
Na medida em que se entenda a IG como um instrumento potencialmente capaz de agregar valor aos produtores e favorecê-los em termos competitivos, a exclusão de produtores pelo critério de não filiação pode ser ainda questionada do ponto de vista concorrencial. Se tal situação for entendida como um dano injusto à reputação do ofertante impedido de usar a indicação geográfica, isso seria um ato de concorrência desleal, nos termos do artigo 209 da Lei 9.279/96. Caso essa limitação impacte a competição ao ponto de reduzir ou limitar a oferta geral, seria enquadrada como infração contra a ordem econômica, conforme Lei 12.529/11. Deve-se destacar que, em tese, nada impede que as duas hipóteses ocorram ao mesmo tempo, dependendo especialmente das consequências que a situação concreta possa gerar.
A IN 25/13 era omissa sobre o tema, mas a IN 95/18 trouxe disposição expressa no sentido de que o produtor não é obrigado a se vincular à entidade requerente da indicação geográfica para usar esse sinal distintivo[61]. Interessante notar que, mesmo antes da edição dessa norma, o INPI já havia passado a incorporar essa posição nas análises de registro de IGs. Isso pode ser percebido, por exemplo, em despacho feito nos autos do pedido BR402014000010-7 (Cacau de Tomé-Açu/PA), publicado na Revista de Propriedade Industrial 2480, de 17/07/2018:
Desta forma, constatamos que alguns dispositivos do mais recente Regulamento de Uso apresentado tem o potencial de infringir o disposto no caput do art. 182 da LPI, o qual estabelece que o “uso da indicação geográfica é restrito aos produtores e prestadores de serviço estabelecidos no local”, independente de serem filiados ou não à associação, não podendo, via de consequência, ser criado qualquer embaraço ou condição que possa ser impeditiva ao uso da IG por estes produtores, conforme preceitua a LPI.
É bastante relevante o reconhecimento expresso, por parte do INPI, que o uso da IG cabe a todos os produtores da região (respeitadas exigências de qualidade no caso das denominações de origem, conforme artigos 178 e 182 da Lei 9.279/96), independente de filiação. É fundamental que tal informação seja objeto de disseminação entre as entidades representativas locais, especialmente as que obtiveram registro de IG antes da IN 95/18, para que não haja manutenção de regras para uso da indicação geográfica que possam ser objeto de questionamento judicial.
Outro ponto razoavelmente recorrente nos regulamentos de uso é a prerrogativa dada a um Conselho Gestor (ou órgão similar) para estabelecer normas destinadas a “regular a produção de forma harmônica com a demanda de mercado”. Como demonstrado especialmente pelos precedentes julgados na União Europeia, eventual limitação de produção por razões de qualidade não é considerado um problema concorrencial em si. Isso se fundamenta sobretudo pela aplicação da doutrina da regra da razão[62], que admite a existência de restrições concorrenciais mediante uma justificativa econômica. Um possível exemplo de situação aceita refere-se a regras usualmente adotadas em regiões produtoras de uvas ou vinhos. É bastante comum que regulamentos de uso referentes a esses casos determinem uma limitação referente à quantidade máxima de uvas que pode ser extraída por hectare. Isso pode ser observado no caso de localidades europeias (como Champagne e a região dos Vinhos Verdes, que estão registradas no Brasil) e também em relação a IGs brasileiras relacionadas com uvas ou vinho[63].
Nesses casos, é importante notar que, normalmente, os critérios de limitação são objetivos e não guardam relação direta com a demanda pelo produto, no sentido quantitativo. A questão é estabelecer uma regra fundamentada em aspectos de qualidade. Porém, eventual regulação da produção visando limitá-la em função da demanda, de modo a reduzir a oferta para forçar um preço mais alto, pode ser considerado um ilícito concorrencial. Aqui, vale reiterar mais uma vez a jurisprudência europeia, que aplicou penalidades a associações gestoras de indicações geográficas que se valeram de cotas ou outras medidas para limitar ou reduzir a oferta dos produtores locais para manter preços elevados artificialmente. Se a competência do Conselho Gestor for exercida nesse sentido, tal ato poderá ser questionado do ponto de vista legal.
Há um terceiro tema razoavelmente comum nos cadernos de especificações técnicas/regulamentos de uso, referente à cobrança pela autorização de uso da IG pelos produtores locais que passem por um processo de certificação. A exigência de pagamento nesse sentido é determinada para realização da auditoria sobre a produção ou para entrega de selos que contém a IG e são colocados nas embalagens, por exemplo.
A princípio, esse tipo de cobrança, desde que diretamente relacionada à estruturação e funcionamento da indicação geográfica, não parece configurar qualquer infração do ponto de vista concorrencial. Isso porque uma das funções econômicas primordiais dos sinais distintivos é reduzir custos de procura dos consumidores. Para que isso ocorra, é preciso que este consiga identificar, por meio do sinal, o que esperar daquele produto. Nesse sentido, a definição de critérios relativos à qualidade da produção se mostra importante para que esse objetivo seja alcançado. Caso contrário, eventual heterogeneidade dos produtos apresentados sob o mesmo sinal impediria a economia dos custos de procura, uma vez que prejudicaria o aproveitamento das experiências anteriores pelo consumidor.
Além disso, se não houver processos de auditoria e instrumentos para sinalizar ao mercado a aprovação do produtor, aumentam os custos potenciais de monitoramento e as chances de ocorrência do carona (free rider). Isso poderia desestimular investimentos na medida em que esse produtor se aproveitaria gratuitamente de medidas custeadas pelos demais.
Tais questões justificam então a existência de processos de certificação e mecanismos de identificação para o público consumidor (como um selo). Porém, isso terá um custo, que alguém deve suportar[64]. Logo, esses elementos, que são relevantes para a IG (especialmente a denominação de origem), precisam ser custeados de alguma forma, o que fundamenta essas cobranças do ponto de vista legal.
Porém, tais taxas não podem ter caráter excludente ou discriminatório. Se forem estabelecidas em patamares muito altos, apenas para dificultar a certificação de novos produtores, isso pode ser considerado uma restrição concorrencial indevida. No mesmo sentido, definir valores distintos para associados e não-associados também seria ilícito, sobretudo porque, como já demonstrado, não é possível condicionar o uso da IG a uma filiação obrigatória à pessoa jurídica, de forma direta ou indireta.
Novamente, o despacho no pedido de registro do Cacau de Tomé-Açu/PA é ilustrativo quanto à incorporação dessas premissas nas análises do INPI (2018):
A previsão de cobrança de taxas deve ser excluída ou substituída por referência quanto a custeio da execução dos controles da indicação de procedência, referentes a sua unidade de produção; [...] Ainda que seja lícito cobrar dos produtores avaliados para fins do uso da indicação de procedência os custos do respectivo controle, o estabelecimento de uma “taxa de utilização” genérica pode figurar como embaraço ao uso da IG, nos termos da parte inicial do art. 182 da LPI, em especial por ser definida pelo Conselho Regulador (órgão composto exclusivamente por associados à ACTA, caput do art. 9º do Regulamento) e não em uma assembleia de produtores (associados ou não) que fossem potenciais detentores do direito de uso da IG.
Contudo, deve-se destacar que esse posicionamento não exclui eventual questionamento em relação à exigência de procedimentos de controle de qualidade no caso de indicações de procedência, usualmente incorporados nos processos de certificação para uso da IG. Isso conflita com o conceito legal de IP, que não contém nenhuma exigência de ordem qualitativa na Lei 9.279/96. Logo, os fundamentos econômicos para a existência dos procedimentos de certificação parecem-nos muito relevantes para avaliar a sua licitude do ponto de vista da legislação concorrencial, mas não se pode ignorar que a exigência dos mecanismos de controle para indicações de procedência não está de acordo com a Lei de Propriedade Industrial[65].
Nota-se uma confusão conceitual por parte de algumas das entidades representativas em relação à essência da IG. Em vários casos, o regulamento de uso não deixa claro que o sinal pertence à toda a coletividade de produtores e não ao seu requerente. Há situações em que isso se mostra de forma explícita, como entidades que se dizem expressamente “titulares da IG” ou fazem referência a ela como se fosse uma marca[66].
Essa é uma questão potencialmente problemática. Na medida em que o requerente se posiciona expressamente como proprietário do sinal, tende a ter maior dificuldade em perceber as limitações legais aplicáveis na definição das regras de uso da IG, como a liberdade ou não de o produtor se associar e as demais questões concorrenciais. Isso parece indicar a importância de maior disseminação desse aspecto coletivo da indicação geográfica, o que pode ser feito não apenas pelo INPI, mas também pelas entidades que têm se mostrado relevantes na capacitação e articulação dos produtores, como o Sebrae, o MAPA, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), diversas Universidades, entre outros[67].
Na medida em que a indicação geográfica seja utilizada para identificar a origem de um produto/serviço, relacionando-o a uma região demarcada que tenha características determinantes para sua qualidade ou que seja famosa por ofertá-lo, esse sinal distintivo mostra-se altamente relevante, pois pode agregar valor aos produtores situados nessa localidade, que detém o direito exclusivo de uso da IG e se vinculam a essa qualidade/fama. Porém, apesar de ser um instrumento importante e vantajoso para os produtores da localidade identificada com a IG, o uso de tal mecanismo pelos brasileiros é ainda incipiente. Enquanto há milhares de indicações geográficas na União Europeia, em meados de 2019 o Brasil conta com apenas algumas dezenas de registros, o que é claramente incompatível com o potencial de uso desse sinal distintivo no país.
Além do desconhecimento a respeito da legislação e possibilidade de uso da IG pelos produtores, parece ser ainda menos clara a sua relação com a Defesa da Concorrência e que certos tipos de conduta podem ser considerados ilícitas nesse âmbito. Logo, o trabalho de disseminação das indicações geográficas deve ser acompanhado de uma conscientização sobre as questões concorrenciais, buscando uma postura preventiva em relação aos pontos potencialmente problemáticos aqui apontados.
Art. 176. Constitui indicação geográfica a indicação de procedência ou a denominação de origem.
Art. 177. Considera-se indicação de procedência o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço.
Art. 178. Considera-se denominação de origem o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos.
Art. 130. Ao titular da marca ou ao depositante é ainda assegurado o direito de:
I - ceder seu registro ou pedido de registro;
II - licenciar seu uso;
III - zelar pela sua integridade material ou reputação.
Art. 134. O pedido de registro e o registro poderão ser cedidos, desde que o cessionário atenda aos requisitos legais para requerer tal registro.
Art. 135. A cessão deverá compreender todos os registros ou pedidos, em nome do cedente, de marcas iguais ou semelhantes, relativas a produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, sob pena de cancelamento dos registros ou arquivamento dos pedidos não cedidos.
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem:
I - publica, por qualquer meio, falsa afirmação, em detrimento de concorrente, com o fim de obter vantagem;
II - presta ou divulga, acerca de concorrente, falsa informação, com o fim de obter vantagem;
III - emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem;
IV - usa expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos;
V - usa, indevidamente, nome comercial, título de estabelecimento ou insígnia alheios ou vende, expõe ou oferece à venda ou tem em estoque produto com essas referências;
VI - substitui, pelo seu próprio nome ou razão social, em produto de outrem, o nome ou razão social deste, sem o seu consentimento;
VII - atribui-se, como meio de propaganda, recompensa ou distinção que não obteve;
VIII - vende ou expõe ou oferece à venda, em recipiente ou invólucro de outrem, produto adulterado ou falsificado, ou dele se utiliza para negociar com produto da mesma espécie, embora não adulterado ou falsificado, se o fato não constitui crime mais grave;
IX - dá ou promete dinheiro ou outra utilidade a empregado de concorrente, para que o empregado, faltando ao dever do emprego, lhe proporcione vantagem;
X - recebe dinheiro ou outra utilidade, ou aceita promessa de paga ou recompensa, para, faltando ao dever de empregado, proporcionar vantagem a concorrente do empregador;
XI - divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia, mesmo após o término do contrato;
XII - divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos ou informações a que se refere o inciso anterior, obtidos por meios ilícitos ou a que teve acesso mediante fraude; ou
XIII - vende, expõe ou oferece à venda produto, declarando ser objeto de patente depositada, ou concedida, ou de desenho industrial registrado, que não o seja, ou menciona-o, em anúncio ou papel comercial, como depositado ou patenteado, ou registrado, sem o ser;
XIV - divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de resultados de testes ou outros dados não divulgados, cuja elaboração envolva esforço considerável e que tenham sido apresentados a entidades governamentais como condição para aprovar a comercialização de produtos.
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.
[...]
Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio.
Art. 1o Esta Lei estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência - SBDC e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.
Parágrafo único. A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei.
Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III - aumentar arbitrariamente os lucros; e
IV - exercer de forma abusiva posição dominante.
(57) O papel dos agrupamentos deverá ser esclarecido e reconhecido. Os agrupamentos desempenham um papel essencial no processo de pedido de registo de denominações relativas a denominações de origem e indicações geográficas e a especialidades tradicionais garantidas, bem como na alteração dos cadernos de especificações e nos pedidos de cancelamento. Os agrupamentos podem igualmente desenvolver atividades relacionadas com a fiscalização da proteção efetiva das denominações registadas, atividades relacionadas com a conformidade da produção com o caderno de especificações dos produtos, atividades relacionadas com a informação e promoção das denominações registadas e, em geral, qualquer atividade destinada a melhorar o valor dessas denominações e a eficácia dos regimes de qualidade. Cumpre-lhes, além disso, proceder ao acompanhamento da posição dos produtos no mercado. Não obstante, importa que estas atividades não facilitem nem provoquem situações anticoncorrenciais incompatíveis com os artigos 101 e 102. o do Tratado. (grifos nossos). Regulamento EU 1308/2013.
(175) Sem prejuízo da regulação da oferta de alguns produtos, como queijo e presunto com uma denominação de origem protegida ou uma indicação geográfica protegida, ou vinho, que é regido por um conjunto específico de regras, deverá ser seguida uma abordagem especial no que respeita a determinadas atividades das organizações interprofissionais desde que não possam dar origem a uma compartimentação dos mercados, prejudicar o bom funcionamento da OCM, distorcer ou eliminar a concorrência, conduzir à fixação de preços ou de quotas ou criar discriminações. (grifos nossos)
Art. 5º
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;
Art. 6º Poderão usar a Indicação Geográfica os produtores e prestadores de serviços estabelecidos no local, desde que cumpram as disposições do caderno de especificações técnicas e estejam sujeitos ao controle definido.
Parágrafo único. A ausência de vínculo do produtor ou do prestador de serviço com o substituto processual não configura óbice ao uso da Indicação Geográfica.