Uma Contribuição ao Ensino de Genética por Meio de uma Abordagem do Trabalho de Mendel à Luz do Fluxo Sanguíneo da Ciência de Bruno Latour

A Contribution to the Teaching of Genetics Using Latour’s Science’s Blood Flow to Approach Mendel’s Works

Joyce Padilha de Melo
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Francisco Ângelo Coutinho
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Fábio Augusto Rodrigues e Silva
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil
Adlane Vilas-Boas
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Uma Contribuição ao Ensino de Genética por Meio de uma Abordagem do Trabalho de Mendel à Luz do Fluxo Sanguíneo da Ciência de Bruno Latour

Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, vol. 22, pp. 1-19, 2022

Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências

Recepción: 11 Junio 2021

Aprobación: 01 Octubre 2021

Resumo: O uso da história da ciência na educação científica tem o potencial de contribuir para a conexão de contextos pessoais, éticos, culturais e políticos dos cientistas. A visão romantizada da ciência, que expõe cientistas como gênios trabalhando isoladamente, pode prejudicar a compreensão da natureza da ciência. Gregor Mendel é um exemplo dessa representação e o presente artigo traz uma contribuição no sentido de desmistificá-lo como o “pai da Genética”. Pensando em contribuir com elementos para proporcionar processos de ensino e aprendizagem mais próximos de uma abordagem menos romantizada, usamos a teoria ator-rede (TAR), de Bruno Latour, para guiar as análises das relações sociomateriais, e empreendemos uma análise sobre a inserção de Mendel no chamado fluxo da ciência, valendo-nos da literatura sobre a história de Mendel e da Genética. Dessa forma, foi possível compreender a rede que sustenta o desenvolvimento das leis da hereditariedade e indicar que Mendel mobilizou diversos atores (botânicos, físicos, matemáticos, ervilhas, estufas, assistentes, sociedades acadêmicas, agricultores e diferentes entidades), que colaboraram para a conclusão de seu trabalho. Com o presente trabalho, pretendemos contribuir para as pesquisas que buscam um tratamento historicamente mais adequado da sistematização da genética enquanto ciência e que poderá, também, auxiliar em processos de ensino/ aprendizagem.

Palavras-chave: ENSINO DE CIÊNCIAS, HISTÓRIA DA GENÉTICA, TEORIA ATOR- REDE, HISTÓRIA DA CIÊNCIA, GREGOR MENDEL, LEIS DA HEREDITARIEDADE.

Abstract: Using history of science for scientific education has the potential to contribute for the connection of personal, ethical, cultural and political contexts of scientists. The romanticized view of science, which exposes scientists as geniuses working in isolation, can undermine the understanding of the nature of science. Gregor Mendel is an example of this representation, and this article takes a step to demystify the idea that he is the “father of genetics”. In order to contribute with elements to provide teaching and learning processes in a less romantic approach, we used Bruno Latour’s actor-network theory (ANT) to guide sociomaterial analyses of relationships (with humans and non-humans), and employed an analysis of Mendel’s introduction in the so-called flow of science, using the literature on Mendel’s history and genetics. In this way, it was possible to understand the network that supports the development of the laws of heredity, which indicates that Mendel mobilized several actors (botanists, physicists, mathematicians, peas, greenhouses, assistants, academic societies, farmers and different entities) who have collaborated to his conclusions. With this paper, we intend to contribute to research studies that seek to apply a more historically adequate account of genetics as a science, which could help in teaching/learning processes.

Keywords: SCIENCE TEACHING, HISTORY OF GENETICS, ACTOR-NETWORK THEORY, HISTORY OF SCIENCE, GREGOR MENDEL, HEREDITY LAWS.

Introdução

Poucos discordariam que se tornou um consenso na área de educação em ciências a defesa de que a compreensão da natureza da ciência é um objetivo desejável, pois é considerada fator essencial para aproximar os discentes de elementos epistemológicos que sustentam e influenciam a atividade científica (Duschl, 2008, Sasseron & Duschl, 2016). Esse objetivo gira em torno da ideia de que aos alunos deveriam ser dadas oportunidades de compreender como a ciência é produzida e quais são as suas características (Kampourakis & Gripiotis, 2015). Nos últimos 30 anos, foram publicadas centenas de artigos e vários livros sobre natureza da ciência e suas implicações para o ensino, a aprendizagem, a construção de currículos e a formação de professores (Matthews, 2018). Esse objetivo é posto, muitas vezes, quando o que se deseja é justificar o oferecimento de uma educação científica voltada para todos e que proporcione oportunidade para a formação de cidadãs e cidadãos cientificamente letradas e letrados (Abd-El-Khalick, 2012; Abd-El-Khalick & Lederman, 2000; Bell & Lederman, 2003; Kim & Irving, 2010). Como enfatizam Bell e Lederman (2003), quando cidadãos passam a entender quais são as características do conhecimento científico e como ele é construído, ampliam-se as possiblidades de reconhecerem afirmativas pseudocientíficas e de aplicarem o conhecimento científico em seu dia a dia ou, ainda, participarem dos processos de tomada de decisão que envolvem questões sociocientíficas. Provavelmente inspirada nessas contribuições das pesquisas em Ensino de Ciências, a Base Nacional Comum Curricular, também, afirma a necessidade de a Educação Básica “comprometer- se com o letramento científico da população” (MEC, 2016, p. 547).

Como uma das estratégias privilegiadas para a construção de uma visão da natureza da ciência, a literatura tem enfatizado uma abordagem histórica dos processos de produção do conhecimento científico (e.g., Bastos, 1988; Kim & Irving, 2010; Millar, 2003). Segundo autores associados a essa perspectiva, a história da ciência tem o potencial, entre outros, de contribuir para uma humanização da ciência, conectando-a aos contextos pessoais, éticos, culturais e políticos dos cientistas (e.g., Matthews, 1994) e pode nos oferecer uma melhor compreensão dos métodos por eles utilizados (Chang, 2017). Outro aspecto importante é que a história da ciência tem o potencial de contribuir para que mitos relacionados à produção do conhecimento científico sejam evitados. Um desses mitos é a apresentação, em livros didáticos, dos cientistas como “heróis” solitários, que recebem todo o crédito por determinada pesquisa (Bastos, 1988).

Entretanto, para enfrentar essa visão romantizada da Ciência e dos seus personagens, precisamos de novas abordagens teórico-metodológicas para estudarmos a História. Nesse sentido, buscamos os subsídios propostos por Bruno Latour (2001) para empreender um estudo das associações prováveis e que possibilitaram o desenvolvimento inicial da Genética. Assim, o presente artigo tem como objetivo apresentar a rede sociomaterial, que sustenta a construção de fatos, os quais fundamentaram a proposição das leis da hereditariedade por Johann Mendel, o pesquisador que ficou conhecido por Gregor Mendel, seu nome como religioso da ordem dos agostinianos (Leite et al., 2001).

Acreditamos que oferecemos uma proposta de estudo da sociomaterialidade dos modos de produção e circulação de conhecimentos científicos, que nos propicia identificar as diferentes conexões entre atores humanos e não humanos envolvidos, algo que Latour defende como um método para evidenciar como o adjetivo “científico” pode ser definido, afinal:

(...) dizer que um resultado é ‘científico’ implica nos conduzir para um laboratório (no sentido amplo) no qual topamos com um conjunto de testemunhas reunidas ao redor de um instrumento, que permite reunir o testemunho de um outro conjunto de entidades submetidas a provas, graças às quais vão poder participar de uma maneira ou de outra daquilo que se diz delas. Nesses lugares, a linguagem articulada dos seres humanos se carrega da linguagem articulada do mundo (Latour, 2016, p. 179).

Portanto, dedicamo-nos a descrever a rede sociomaterial, que colaborou para que Mendel publicasse seu trabalho sobre hereditariedade em 1866, e usamos os referenciais teóricos metodológicos de Bruno Latour, que ou a apresentação de um estudo dentro da teoria ator-rede (TAR). O trabalho, assim, buscou produzir um relato textual, que apresenta como traçamos uma rede ou uma representação da ação dos mais diferentes actantes que participaram do desenvolvimento das ideias de Mendel.

O fluxo sanguíneo da ciência

Considerando que a ciência não se faz e nunca se se fez de modo isolado da sociedade, atribuir o desenvolvimento da explicação dos mecanismos de hereditariedade a um único indivíduo, por exemplo, demonstra uma visão desarrazoada do processo de produção científica. A maneira como a ciência é difundida e divulgada leva muitos a crer que ela e a tecnologia são autônomas e, portanto, não possuem relação com a vida cotidiana, a cultura, os valores, as humanidades e as paixões políticas (Latour, 2016). Porém, essa visão, de acordo com Bruno Latour, problematiza pouco as relações entre ciência, tecnologia e sociedade, que, para ele, não podem ser colocadas em esferas isoladas. Esse seria um artifício dos “modernos”, que, por meio de um trabalho de purificação, estabelecem um grande esforço prático e discursivo de tentar separar a cultura e a natureza em dois polos ontológicos distintos. Contudo, uma observação mais atenta do mundo, inclusive dos processos tecnocientíficos, nos apresenta os mais diferentes híbridos, criando misturas heterogêneas, nas quais é impossível distinguir limites entre o social e o natural (Latour, 1994). Portanto, só podemos entender o processo de produção do conhecimento científico constituído em uma complexa rede, que imbrica humanos e não humanos, sociedade e natureza (Latour, 2001).

Essa compreensão da atividade científica pode ter implicações para a pesquisa em educação em ciências naturais, pois, ao considerar os aspectos sociomateriais e as demais negociações que acontecem na ciência real, poderíamos adquirir maior compreensão sobre a natureza da ciência. Afinal, ao explicitar essa rede heterogênea e dinâmica, daríamos visibilidade ao processo pelo qual, nos enunciados científicos, “se entrelaçam as condições de produção e de reconhecimento dos textos, a negociação entre cientista e suas comunidades, a luta de fronteiras entre as ciências e o intercâmbio entre pesquisadores” (Batista et al., 2013, p. 04).

Trabalho na mesma vertente foi realizado também por Silva et al. (2016), que apresentaram a teoria ator-rede (TAR) como uma abordagem, que permite entender a complexa rede de produção sociomaterial do conhecimento científico. Como exemplo de estudo, os autores tomaram a tarefa de analisar o conto “O alienista”, de Machado de Assis. Portanto, colocamo-nos nessa vertente, que visa a contribuir para superar o caráter episódico e alegórico, o qual atravessa a história dos cientistas (Carneiro & Gastal, 2005), oferecendo um referencial para a pesquisa.

Para Latour (2012), a partir de uma análise da atividade científica, tanto os atores humanos quanto os não humanos participam do processo de produção do conhecimento científico, constituindo uma rede. Portanto, de acordo com essa perspectiva, a ciência não é vista como uma entidade isolada da sociedade e da tecnologia; ao contrário, está intimamente relacionada a essas duas entidades. Entre as abordagens teóricas e metodológicas que procuram dar conta das íntimas relações entre ciência, tecnologia e sociedade, a TAR se apresenta, atualmente, como um referencial importante. Isso se dá porque essa abordagem considera que o “social” deve ser definido como associação e compreendido em termos de rede, ou ator-rede, que envolve uma heterogeneidade de elementos humanos e não humanos. Da perspectiva da TAR, o social não é uma instância privilegiada da realidade, ou uma substância, ou causa que explica como as pessoas agem ou se relacionam. Pelo contrário, o “social” é que deve ser explicado.

Em um dos seus primeiros livros, “The Pasteurization of France”, Latour demonstra como a produção do conhecimento científico se constitui em um processo de coprodução da sociedade, e vice-versa, levando a uma reconfiguração conjunta da ciência e da esfera social (Delgado, 2016). Latour (2001) afirma, no seu livro “A esperança de Pandora”, que a ciência, a tecnologia e a sociedade não são atividades pertencentes a esferas distintas. Para Latour, “a noção de uma ciência isolada do resto da sociedade se tornará tão absurda quanto a ideia de um sistema arterial desconectado do sistema venoso” (p. 97), introduzindo a concepção de um sistema circulatório da ciência. A ideia do fluxo sanguíneo da ciência contrapõe-se ao modelo contexto/conteúdo no qual encontramos um “núcleo de conteúdo científico rodeado por um ambiente social, político e cultural, a que se pode chamar de contexto da ciência” (p. 108) representado na Figura 1A, no qual a ciência encontra-se no centro da sociedade, mas não se observam relações de trocas entre elas.

Uma alternativa a esse modelo contexto/conteúdo seria o modelo proposto por Latour (2001) apresentado na Figura 1B, no qual podemos notar a existência de um fluxo entre os cinco circuitos dispostos, deixando muito claras as inter-relações entre eles. Ao comparar esse modelo com o anterior, é possível perceber que os circuitos são dependentes, pois um alimenta o outro. Essa imagem é que faz com que seja possível compará-lo ao sistema circulatório do corpo humano.

(A) Modelo contexto/conteúdo e (B) Representação do “Fluxo sanguíneo da Ciência”
Figura 1.
(A) Modelo contexto/conteúdo e (B) Representação do “Fluxo sanguíneo da Ciência”
adaptado de Latour, 2001.

Descrevemos a Figura 1B a partir do primeiro circuito chamado Mobilização do mundo. Tal circuito refere-se aos elementos não humanos, que são inseridos nas pesquisas científicas. Em um primeiro momento, podemos pensar nos instrumentos e equipamentos utilizados nos laboratórios, que participam do processo de construção do conhecimento, mas podemos incluir, também, as expedições realizadas, que possibilitam trazer o objeto de pesquisa para o ambiente de laboratório assim como questionários, entrevistas e levantamentos, que trazem informações relevantes sobre determinadasituação da sociedade, por exemplo (Latour, 2001). Sobre esse circuito, Latour afirma: “é uma questão de dirigir-se para o mundo, torná-lo móvel, trazê-lo para o local da controvérsia, mantê-lo empenhado e fazê-lo suscetível de argumentação” (p. 119).

Já a Autonomização é o segundo circuito e refere-se ao modo pelo qual o cientista encontra colegas, que trabalham com objetivos semelhantes ao seu, pois “ninguém pode se especializar sem a autonomização simultânea de um pequeno grupo de pares” (Latour, 2001, p. 121). Ressalta-se que esse processo de autonomização diz respeito à forma como surgem as disciplinas científicas, por exemplo. Além disso, esse circuito refere-se às instituições de pesquisas. Elas precisam existir para manter juntos os pesquisadores, que possuem interesses em comum, e, ainda, para que existam organizações, simpósios, congressos e regulamentos, a fim de facilitar esse encontro.

A terceira parte do sistema vascular mostrada na Figura 1B é chamada de Aliança. Considera-se que é um circuito, que pode modificar a velocidade do fluxo sanguíneo, aumentando sua intensidade. Essa parte refere-se às alianças estabelecidas entre os pesquisadores e demais grupos, que não possuem, necessariamente, relação direta com a pesquisa científica, como, por exemplo, as agências financiadoras, ministros e apoiadores. Mesmo não possuindo estreita relação com o projeto de pesquisa, essas peças são fundamentais, pois os cientistas precisam de financiamento para realizarem pesquisas em larga escala (Latour, 2001).

Ainda com referência à Figura 1B, o quarto circuito, Representação pública, refere-se à necessidade do cientista de comunicar suas pesquisas para o público em geral. “Os mesmos cientistas que precisaram correr o mundo para torná-lo móvel, convencer colegas e assediar ministros ou conselhos de diretores têm agora de cuidar de suas relações com outro mundo exterior formado por civis: repórteres, pânditas e pessoas comuns” (Latour, 2001, p. 124). Esse circuito exige dos cientistas habilidades diferentes, que não estão relacionadas com as habilidades exigidas nos outros circuitos e se relacionam à divulgação científica, ou seja, à comunicação pública da ciência.

Ao chegar ao quinto circuito representado na Figura 1B, Vínculos e Nós, alcançamos o coração do sistema. O conhecimento (representado por vínculos e nós) só seria produzido a partir do caminho percorrido nos demais circuitos, como o fluxo nas veias e artérias no sistema circulatório, que se vincula no coração. Esse circuito, por representar os conceitos científicos, mantém todos os outros unidos. De acordo com o autor, se, de um lado, for mantido o conteúdo e, de outro, o contexto, o fluxo da ciência se tornaria incompreensível (Latour, 2001).

Esse modelo alternativo do processo de construção do conhecimento científico indica uma concepção mais realista da ciência, visto que para um(a) cientista conseguir alcançar seus objetivos ele/ela precisa passar por todos esses circuitos e seguir esse fluxo. Dessa forma, considerando o fluxo sanguíneo da ciência e o modo como acontece a produção do conhecimento científico, abordaremos os circuitos percorridos por Gregor Mendel, que foram determinantes para a conclusão de sua pesquisa com as plantas híbridas.

Como Mendel se insere no fluxo sanguíneo da ciência?

Para empreender a análise sobre a inserção de Mendel no fluxo da ciência, valemo-nos da literatura sobre a história de Mendel e da Genética e dos pressupostos metodológicos da TAR, que implicam, primeiro, em demonstrar como as coisas atuam, considerando a ação como uma surpresa, e, em segundo lugar, em iniciar a pesquisa a partir da “subdeterminação da ação, das incertezas e controvérsias em torno de quem e o que está agindo” (Latour, 2012, p. 74). Portanto, o modelo do fluxo sanguíneo da ciência foi utilizado com um instrumento, que nos permitiu perscrutar a literatura em ensino de ciências sobre a história de Mendel, dos quais destacamos algumas publicações (El-Hani, 2016; Freire-Maia, 1995; Klein & Klein, 2013, Leite et al., 2001; Orel & Wood, 2000) e que nos foram úteis por trazer fatos históricos, que propiciaram um mapeamento da rede a partir de diferentes perspectivas. Além disso, valemo-nos de outras obras, que explicitam as contribuições de cientistas contemporâneos a Mendel e que, também, se dedicaram aos estudos dos processos de hereditariedade, como: Arcanjo e Silva (2015); Gliboff (2015) e Polizello (2009). Esses textos podem ser considerados “móveis imutáveis”, ou seja, um tipo de ator-rede com estabilidade e que permitem nos mobilizar para outros locais, tempos e domínios (Fenwick & Edwards, 2012).

Assim, o percurso metodológico incluiu essa leitura interessada dos textos e nos guiou a responder às seguintes questões: quais actantes participam do fluxo sanguíneo? Como eles se organizam? Que aliados são mobilizados? Isso nos habilitou a desenvolver o relato textual, que apresenta uma “rede” como uma série de ações, na qual cada participante faz algo e realiza ações que deixam rastros, os quais podem ser identificados, descritos e que nos ajudam a compreender as associações (Latour, 2012), em nosso caso, de Mendel e dos diversos actantes.

Gregor Mendel desenvolveu um trabalho que impactou a Biologia, pois forneceu dados, que possibilitaram a elaboração de leis, as quais esclarecem como acontecem alguns processos da hereditariedade. Para compreendermos como Mendel conseguiu destaque, mesmo que esse destaque só viesse a acontecer alguns anos após a sua morte, e como seus dados foram tão significativos para a ciência, precisamos analisar sua trajetória e as suas associações em processos de coprodução de conhecimentos científicos e, consequentemente, do mundo. Dessa forma, foi possível estabelecermos os atores humanos e não humanos da rede, os circuitos e como se deu a inserção de Mendel no fluxo sanguíneo da ciência.

O mito de que um único cientista é o responsável pela produção de um novo conhecimento ignora o fato de que os pesquisadores estão inseridos no mundo e que, por isso, sua pesquisa está sempre articulada a diferentes esferas e elementos humanos e não humanos. No ensino de Genética na Educação Básica e no Ensino Superior, Gregor Mendel é reconhecido por seu trabalho com as ervilhas, e é, fundamentalmente, considerado o fundador dessa disciplina, sendo atribuído a ele o título de “pai da Genética”. Esse título deixa entrever a ideia de que um único cientista foi responsável pela criação de uma nova disciplina, que revolucionou a Biologia, descartando o contexto histórico,social e científico, no qual Mendel estava inserido. Esse é mais um exemplo de relato, construído para purificar o processo de construção desse fato científico, que procura invisibilizar a heterogeneidade e a composição intricada de conhecimentos, técnicas, objetos e sujeitos mobilizados pelo trabalho de Mendel à luz de nossa análise pela TAR (Latour, 2016). Constitui-se como mais uma contribuição para entender a permanência da ideia de ciência como uma atividade isolada, além de ignorar as contribuições de cientistas importantes, que elaboraram teorias para explicar o problema da herança (El- Hani, 2016).

Com relação ao nó ou vínculo desse fluxo sanguíneo da ciência, é importante destacarmos que o interesse pela hereditariedade não começou com Mendel, obviamente, e, ao longo do século XIX, vários cientistas apresentaram teorias para explicar esse fenômeno. As teorias propostas envolviam partículas microscópicas, porém não havia um estudo citológico relacionado, uma vez que essa área do conhecimento era ainda incipiente.

Em 1864, Herbert Spencer propôs a existência de unidades fisiológicas vivas, que estariam presentes em todas as células do corpo, as quais nomeou“unidades intermediárias ou fisiológicas”. Essas unidades seriam responsáveis pela transmissão dos caracteres de uma geração para outra (Polizello, 2009). Em oposição a essas ideias, destacamos a proposta trazida por Charles Darwin de 1868, a teoria da pangênese, segundo a qual todas as partes do corpo seriam capazes de se reproduzir, pois elas expeliriam gêmulas, que, por meio dos fluidos do organismo, seguiriam até as células germinativas para a formação do embrião. Essa ideia contemplaria a herança de caracteres diferentes, já que modificações ocorridas no corpo do indivíduo seriam transmitidas às próximas gerações afetando as gêmulas produzidas nas partes modificadas (Arcanjo & Silva, 2015). Darwin, também, acreditava que haveria uma grande variedade de gêmulas, o que contrastava com as unidades fisiológicas de Herbert Spencer, que seriam idênticas em um indivíduo (Polizello, 2009). Um problema que escapou a Darwin, e mais tarde foi elucidado por Mendel, é que os caracteres hereditários são condicionados por fatores que se segregam, mantendo sua integridade, e não por meio de diluições ou contaminações ao longo de gerações como previa a pangênese (Freire-Maia, 1995).

Ainda para realçar a assembleia de actantes associados aos estudos sobre hereditariedade no século XIX, podemos citar Francis Galton, por sinal um primo de Darwin, que, também, tentou explicar o fenômeno da hereditariedade chegando a elaborar a “Teoria das Estirpes” em 1872. Segundo essa teoria, existiria uma linhagem germinal, compartilhada por pais e filhos, responsável pela hereditariedade. Assim, os tecidos e as características dos descendentes se assemelhavam aos dos pais não porque gêmulas tivessem sido herdadas dos pais pelos filhos, como defendia Darwin, mas porque ambos, pais e filhos, tinham se originado a partir dessa linhagem germinal (Andrade & Silva, 2016). Outro cientista com interesse no assunto foi Hugo de Vries, que, em 1889, anunciou sua teoria da pangênese intracelular, em que propôs a presença de partículas invisíveis denominadas pangêneses. Essas partículas podiam ser ativas ou inativas, e capazes de se multiplicarem constituindo-se em unidades de vida (Polizello, 2009).

No que diz respeito ao sujeito Gregor Johann Mendel, destaca-se que nasceu em 1822 e viveu na região de Morávia, então parte do Império Austro-Húngaro, até 1884. Por ser de uma família de horticultores, com poucos recursos, conciliava os estudos com o trabalho no campo. Considera-se que sua origem no campo em vez de diminuir seus interesses pelos estudos, ao contrário, contribuiu com sua pesquisa no cultivo de ervilhas (Freire-Maia, 1995; Leite et al., 2001). Interessado nos trabalhos agrícolas, Mendel observava atentamente as práticas de cultivo, os métodos de enxertia e cruzamento de diferentes espécies de vegetais, já mostrando uma inteligência viva, que lhe seria, junto com as técnicas aprendidas, extremamente útil no cultivo de suas ervilhas (Cavalcanti, 1965; Freire-Maia, 1995). Após completar seis anos de estudos secundários em 1840, ingressou em um curso gratuito de Filosofia, no qual teve a oportunidade de estudar, também, Física e Matemática (Freire-Maia, 1995). Como seu interesse em continuar estudando esbarrava no fato de que sua família não tinha condições financeiras, Mendel ingressou como noviço no Mosteiro de Santo Tomás, em Brno, região de sua residência, em 1843. Nesse mosteiro, foi possível conciliar os estudos teológicos com a participação em cursos de Agricultura, Arboricultura e Vinicultura (Leite et al., 2001) além de poder ingressar, mais tarde, na Universidade de Viena, cursando ali Zoologia, Botânica, Paleontologia, Física e Matemática (Freire-Maia, 1995).

A experiência que Mendel possuía na agricultura foi importante para o seu trabalho com as famosas ervilhas-de-cheiro da espécie Pisum sativum. Considerando a Figura 1B, podemos indicar como Mendel se insere no circuito de mobilização do mundo ao dominar as técnicas necessárias para realizar o cultivo experimental das ervilhas. A habilidade em executar a técnica de polinização artificial foi crucial para os cruzamentos das ervilhas.

O fato de os cruzamentos terem sido realizados por Mendel no jardim do mosteiro pode transmitir a ideia de um cientista amador, executando experimentos de forma improvisada. Porém, de acordo com Drouin (1996), tal ideia não condiz com a real situação do mosteiro, já que Mendel dispunha de um jardim experimental, de auxiliares para as suas culturas e de uma biblioteca. Além disso, em 1854, foi construída uma estufa, que estava à disposição de Mendel para realizar seus trabalhos (Orel & Wood, 2000). Portanto, Mendel dispunha de um ambiente favorável para seus experimentos e de conhecimento técnico para o desenvolvimento da sua pesquisa.Ou seja, ele estava inserido em um “laboratório” com a possibilidade de se articular aos mais diferentes objetos técnicos, humanos e textos, todos actantes que discursam sobre o mundo (Latour, 2016).

A escolha das ervilhas como objeto de estudo, também, influenciou no sucesso da pesquisa de Mendel. Temos, aqui, uma associação com uma espécie, que apresenta fácil cultivo e que pode se desenvolver em um curto período, com características de fácil observação. Trabalhar com ervilhas não foi um acaso, visto que já havia sido descrito na literatura que ervilhas eram bons objetos de estudo para esse fim. O superior do Mosteiro de Brno, o abade Cyrill Napp, promovia vários encontros científicos. Em um desses encontros, em que Mendel esteve presente, foi convidado como palestrante Franz Diebl, um cientista interessado no melhoramento de plantas, e ali discutiu-se, dentre outras coisas, a importância do cruzamento de plantas com diferentes caracteres para criar variedades produtivas. Além disso, foi apontado como a investigação sobre herança poderia se beneficiar com o uso da ervilha e do feijão (Andrade & Silva, 2016). Essas informações reforçam que Mendel se movimentava por um local privilegiado cientificamente e mobilizava e era mobilizado pelos recursos humanos e não humanos necessários para o desenvolvimento de sua pesquisa.

Trata-se de um local tão privilegiado que acabou por proporcionar sua aproximação e participação junto a uma comunidade científica dedicada a investigações sobre o cultivo de plantas, evidenciando sua contribuição no processo de autonomização de sua ciência, no qual figuraram nomes importantes da ciência como Joseph Gottlieb Kölreuter e Karl Friedrich von Gärtner, que tiveram especial papel em trabalhos com fertilização artificial com o intuito de transformar uma espécie em outra (Freire-Maia, 1995). Como parte de um grupo de cientistas bastante ativos que investigavam os híbridos, Mendel estava próximo de colegas, que trabalhavam em linhas parecidas com a sua, cujo questionamento principal era que hibridização poderia dar origem a novas espécies genuínas (El-Hani, 2016). O próprio Mendel anunciou aos interlocutores, antecedentes e contemporâneos, no início do seu conhecido artigo de 1866, “Experimentos de hibridização de plantas”, na tradução apresentada por Freire-Maia (1995): “A este objetivo vários cuidadosos observadores, como Kölreuter, Gärtner, Herbert, Lecoq, Wichura e outros, devotaram parte de suas vidas com incansável perseverança” (p. 53).

Mendel discutiu as questões elaboradas por esses autores e adotou alguns de seus métodos. Esses vínculos demonstram, portanto, que ele estava envolvido com as comunidades botânicas da época (Gliboff, 2015), reiterando que o cientista não trabalhava sozinho. Além disso, Mendel trocava correspondências com outros cientistas e participava da Sociedade de Ciências Naturais, que proporcionou a ele encontros com universitários e especialistas de diversas áreas (Leite et al., 2001).

Podemos destacar que um papel diferencial de Mendel no processo de autonomização da Genética, quando o comparamos a outros cientistas de sua época, está nas análises realizadas com os resultados obtidos dos cruzamentos com as ervilhas. Ele formulou uma hipótese, planejou os experimentos, quantificou e interpretou os resultados e chegou a uma conclusão geral utilizando relações matemáticas (Andrade & Silva, 2016). Isso pode estar relacionado a outros fluxos sanguíneos dos quais esse pesquisador se aproximou ou participou, o que evidencia os limites impostos pela historiografia tradicional.

De acordo com Leite et al. (2001), a influência da Física foi importante para a pesquisa do monge. Os autores ressaltam que seu artigo de 1865 apresenta características semelhantes aos estudos realizados pelos físicos: os objetivos são claramente definidos, os dados apresentados são concisos e as conclusões são formuladas com cautela. Isso foi possível graças à formação de Gregor Mendel, que chegou a ser aluno de um famoso físico, Christian Doppler. Ao estudar essa disciplina na Universidade de Viena, aprendeu metodologias relevantes, que influenciaram sua conduta científica. Ainda segundo apontam Leite et al., Mendel aprendeu, por exemplo, a tomar notas cuidadosas dos seus experimentos para chegar a generalizações numéricas e a utilizar uma análise estatística, ainda que rudimentar, que já era comumente utilizada pelos físicos. Além de aulas de Física, Mendel, também, assistiu a aulas de Cálculo, Análise Combinatória e Uso das Tábuas de Logaritmo e Trigonometria com Franz Moth e Andreas von Ettingshausen (Andrade & Silva, 2016). Dentre seus colegas naturalistas, não era comum ter esse tipo de formação (Leite et al., 2001). Isso pode ter influenciado, de forma decisiva, o modo como abordou o problema da hibridização.

Sobre o processo de autonomização, no qual uma nova disciplina ou especialistas surgem, Latour (2001, pp. 120–121) acrescenta que precisamos antes: “extrair químicos de alquimistas, economistas de juristas, sociólogos de filósofos, ou obter as misturas sutis que produzem bioquímicos a partir de biólogos e químicos, psicólogos sociais a partir de psicólogos e sociólogos”. Seguindo essa ideia, notamos que, para a autonomização da Genética, foi necessária, no mínimo, uma mistura de botânicos e físicos. Podemos indicar isso, pois trabalhos sobre hibridização já aconteciam na época assim como outros cientistas buscavam respostas sobre as questões que envolviam a hereditariedade. Porém, só conseguiu-se chegar a uma resposta, que foi aceita pela comunidade científica, quando os conhecimentos de Botânica foram aplicados junto aos conhecimentos da Física, corroborando a ideia de que o conflito entre disciplinas é um dos motores da ciência.

Ainda sobre o circuito Autonomização, Latour (2001) afirma a importância das instituições científicas no processo de produção do conhecimento científico para manter juntas as massas de colegas. Considerando isso, vale ressaltarmos a existência de várias sociedades na Morávia, como a Sociedade Agrícola de Moravia e a Sociedade de Criadores de Ovelhas. Orel e Wood (2000) apontam que acontecia, nessas sociedades, discussões sobre transmissão de traços individuais entre gerações. Cyril Napp, além de chefe do mosteiro, tinha cadeira como consultor e presidente das principais sociedades agropecuárias da Morávia, tendo que lidar com alguns questionamentos como: de que maneira criar e manter grandes estoques de carneiros e como realizar a fertilização artificial para criar e selecionar novas variedades de plantas (Andrade & Silva, 2016). Fatos significativos gerados a partir dessas questões influenciaram o trabalho de Mendel. Por exemplo, sabe-se da publicação de um livro por um criador de animais da região, no qual se enfatiza a existência de uma propriedade universal dos híbridos, afirmando que se pode encontrar na progênie traços das formas parentais com grande variabilidade (Orel & Wood, 2000).

Neste ponto, já podemos perceber os diversos atores que influenciaram Mendel e contribuíram para a sua pesquisa e para os estudos sobre hereditariedade. O conhecimento que ele possuía em diferentes áreas foi fundamental para o seu sucesso. Sua rede de relações se expandiu e envolveu muito mais atores diversos quando comparamos com outros cientistas, que se interessavam pelas mesmas questões que Mendel.

O próximo circuito em que podemos situar Mendel é o terceiro circuito, o das Alianças, e que tem influência na velocidade dos processos (ver suas interações na Figura 1B). Cyrill Napp teve grande influência sobre Mendel durante a sua permanência no mosteiro. Isso se deu muito porque poucas pessoas possuíam o conhecimento e a autoridade de Napp nos assuntos relacionados à agricultura, horticultura e criação de carneiros. Mesmo antes do ingresso de Mendel ao mosteiro, Napp já se questionava sobre o que significava a herança em diversas variedades importantes economicamente para a região onde estavam (Andrade & Silva, 2016). Além dos já citados encontros científicos promovidos por Napp, sabe-se que ele conseguiu trazer recursos financeiros para o mosteiro, unindo forças com fabricantes, comerciantes e especialistas acadêmicos, contribuindo, assim, para que a rede de relações no mosteiro se expandisse. A aliança com Napp possibilitou, de acordo com o modelo de Latour (2001), que o fluxo sanguíneo da ciência para a descoberta das leis da hereditariedade fosse acelerado, já que atuou fortemente na formação científica de Mendel, com um auxílio financeiro sem o qual ele poderia se ver sem condições para a conclusão dos experimentos de hibridização. Cyrill Napp influenciou, também, na formulação da pergunta de pesquisa de Mendel: “O que é herdado e como?” Isso porque, mesmo antes da entrada de Mendel ao mosteiro, essa questão já interessava Napp, uma vez que informações sobre melhoria de cultivo de plantas ou criação de animais com características desejáveis eram interessantes economicamente. Napp, também, o incentivou a participar das sociedades científicas e de cursos de formação e, além disso, financiou a construção de uma estufa para proteger as ervilhas de insetos polinizadores, que pudessem interferir no trabalho experimental de Mendel (Klein & Klein, 2013). “O fascínio do abade pelo significado da hereditariedade em relação às diferenças entre variedades de plantas e animais economicamente significativos pode ser considerado um aspecto dominante do contexto de formação de Mendel” (Orel & Wood, 2000, p. 3). Sem Napp, Mendel não teria acesso aos vários cursos de formação, incluindo o apoio para cursar disciplinas como Física e Matemática na Universidade de Viena. Além disso, não teria os equipamentos (atores não humanos), que foram necessários durante sua pesquisa, elementos sem os quais Mendel não teria conseguido alcançar seus objetivos. A presença de um ator que possuía recursos financeiros e interesse pelo projeto de pesquisa realizado no mosteiro, além de confiar em Mendel para o desenvolvimento deste, compõe um dos circuitos, que envolve toda a pesquisa dos híbridos, sendo este, portanto, indissociável dos demais circuitos.

A nosso ver, a Representação pública (parte 4 na Figura 1B) foi o circuito do qual Mendel participou de forma menos efetiva. Lembrando que essa parte do fluxo sanguíneo se relaciona com a divulgação da ciência e do relacionamento com o público, é possível que, por isso, o seu trabalho não tenha tido repercussão na época embora isso tenha acontecido algumas décadas mais tarde. Mendel era reconhecido por suas atividades religiosas desenvolvidas no mosteiro, mas, mesmo com seus conhecimentos e habilidades científicas, não tinha o reconhecimento como um importante cientista. Orel e Wood (2000) citam a fala de C. W. Eichling, um comerciante interessado em melhoramento de plantas, que teve um encontro com Mendel em uma tarde de 1878. Ao indagar como o monge tinha chegado à seleção de ervilhas que ele via nos canteiros, Mendel lhe respondeu ter sido apenas um pequeno truque e que seria uma longa estória não muito interessante para ser discorrida naquele momento. Na ocasião, Eichling, também, ouviu, de um habitante da cidade, que Mendel era considerado ali um dos melhores clérigos, mas que seus experimentos eram apenas um passatempo e suas teorias, divagações de um amador. Mendel perdeu a chance de divulgar a esse senhor, e seus compatriotas na França, a riqueza de seus conhecimentos matemáticos aplicados à herança de caracteres.

A visibilidade de seu trabalho só ocorreu em 1900. O significado biológico mais amplo de sua pesquisa foi, então, revelado, visto que o conhecimento de citologia estava mais avançado nessa época, com o desenvolvimento da chamada hipótese cromossômica de Sutton-Boveri. Porém, na época, como havia muitos problemas e poucas evidências que corroborassem a teoria de Mendel, houve rejeição por muitos cientistas, incluindo importantes nomes da incipiente Genética do século XX, como Thomas H. Morgan, William Bateson e Wilhelm Johannsen (Martins & Prestes, 2016). Algumas hipóteses foram propostas para explicar o porquê do longo intervalo de tempo entre a publicação do principal artigo de Mendel em 1865 e a “redescoberta” de seus resultados pelos botânicos K. Correns, E. Tschermak e H. de Vries entre o século XIX e XX (Andrade & Silva, 2016). Uma dessas hipóteses, comumente encontrada nos livros didáticos, seria a de que Mendel publicou seu artigo em uma revista de pouca circulação, desconhecida pelo meio acadêmico na época. Porém, essa informação não condiz com a realidade, visto que o número de revistas científicas nesse período não era grande, de forma que pesquisadores da área certamente teriam acesso a esse trabalho, que foi publicado na revista da Sociedade de História Natural de Brno, um importante centro acadêmico à época. Além disso, Mendel trocava correspondências com importantes cientistas, como Karl W. von Nagelli, famoso botânico da época. Outra hipótese que pretende explicar o porquê do pouco reconhecimento seriam as análises matemáticas realizadas, que dificultariam a compreensão pelos naturalistas da época. Porém, essa hipótese talvez não resista quando consideramos que os trabalhos de Francis Galton, que desenvolveu os seus estudos relacionando Biologia com Matemática, tiveram muita repercussão (Andrade & Silva, 2016), principalmente porque legitimavam as políticas imperialistas e racistas, que permeiam essa época. Como podemos ver, a questão sobre a demora no reconhecimento de Mendel é ainda controversa. De qualquer modo, não parece ser algo simples como normalmente exposto e, ainda, demanda estudos mais aprofundados.

É imprecindível destacar que Gregor Mendel chegou a conclusões que, na época, o público não conseguiu compreendê-las, mas impactaram a Biologia e propiciaram discussões para a posterioridade. Por exemplo, na controvérsia se Darwin teve conhecimento sobre os experimentos de Mendel, há relatos que o padre Dudik — que se encontrou com Darwin na mesma época que Mendel visitou Londres — não compreendia bem a teoria mendeliana, não podendo ser um divulgador de suas ideias(Freire-Maia, 1995). Foram necessários alguns anos e o amadurecimento científico de outras áreas para que, finalmente, seu trabalho fosse redescoberto. Sobre esse processo de representação pública, Latour (2001) afirma que:

Ainda que os instrumentos estivessem instalados, que os pares houvessem sido adestrados e disciplinados, que instituições prósperas se prontificassem a oferecer guarida a esse maravilhoso mundo de colegas e coleções, e que o governo, a indústria, o exército, a assistência social e a educação apoiassem amplamente as ciências, restaria muito trabalho a ser feito (p. 123).

Assim, tudo indica que Mendel não percorreu o circuito Representação pública, que é exatamente a parte do fluxo relacionada com a divulgação dos resultados científicos e do relacionamento com o público. No entanto, como sabemos, outros cientistas, anos depois, percorreram por ele esse percurso, ou seja, assumiram o papel de porta-voz (Latour, 2000) tanto para Mendel quanto para os outros actantes mobilizados nos circuitos.

Sobre o cientista e sua profissão, Latour (2001) acrescenta que não cabe a ele, sozinho, transformar sua afirmação científica em fato científico. Ao longo de sua trajetória como cientista, Mendel mobilizou diversos atores para a sua rede, que incluiu botânicos, físicos, matemáticos, ervilhas, estufas, assistentes, abade, sociedades acadêmicas, agricultores; enfim, entidades diferentes, que colaboraram para a conclusão de seu trabalho.

O tipo de investigação que aqui apresentamos propicia instrumentos teórico- metodológicos para perscrutar a história da Ciência de forma diferenciada; ou seja, “cumpre não somente tratar nos mesmos termos os vencedores e os vencidos da história das ciências, mas também tratar igualmente e nos mesmos termos a natureza e a sociedade” (Latour & Woolgar, 1997, p. 24). Uma pesquisa, que pode favorecer o fortalecimento da compreensão da ciência enquanto um trabalho coletivo e de mobilização dos mais diferentes actantes e que nos propicia identificar como a ação, ou a produção e a circulação do conhecimento, é tecida em uma rede de múltiplos encadeamentos e se constitui em camadas que envolvem os mais diferentes interesses e pertencimentos (Latour, 2016). Algo que já foi evidenciado em Silva et al. (2016) quando, mesmo em uma obra de ficção, o “Alienista”, de Machado de Assis, apresenta-se um mapeamento dos mais diferentes actantes e suas associações, que engendram relações de dominação e poder, que são mobilizados em um texto crítico aos ideais positivistas presentes no Brasil do século XIX. Essas pesquisas se somam a diferentes iniciativas, que buscam lutar contra o apagamento da rede, que sustentou as proposições científicas e que encapsula os conceitos, histórias e processos em caixas-pretas, as quais as afasta de sua rede e, portanto, da realidade (Lima et al., 2019).

Considerações finais

Em nossa narrativa e análise, buscamos salientar que o trabalho de Mendel se inseria numa linha de pesquisa bastante ativa à época, dentro de um meio acadêmico e estabelecendo diversas relações com diferentes atores, humanos e não humanos. Ao mobilizar um modelo proposto por Latour, valemo-nos de um instrumento, que propicia identificar os desvios, composições e interesses que a historiografia tradicional, comprometida com a visão dos modernos, busca apagar, silenciar ou omitir.

Apresentamos uma narrativa mais heterogênea e, por que não dizer, menos artificial, pois evidenciamos que a produção e a circulação dos conhecimentos se estabelecem nas relações e nas negociações com os mais diferentes campos. No caso de Mendel, envolve: religião, agricultura, matemática, física, botânica e cultura entre outras. Uma narrativa que, por meio do modelo do fluxo sanguíneo utilizado com ferramenta metodológica, se presta a destacar as inter-relações e a codependência entre os diferentes circuitos que envolveram Mendel, seus parceiros e objetos de pesquisa. Dessa forma, podemos destacar as experiências de Mendel como participante da comunidade científica, e não como um personagem isolado do seu tempo e do mundo. Ressaltamos que a nossa análise é limitada aos textos que consultamos; portanto, sujeita aos desvios e apagamentos inerentes ao fato de que nós não fizemos um estudo a partir de fontes primárias. Consideramos, em nosso relato, estudos e pesquisas, que nos afetaram e permitiram evidenciar como os fatos associados à figura de Mendel foram construídos, o que nos permitiu dirimir o processo de purificação que procura invisibilizar como toda a ação é heterogênea e que só possível com a participação dosmais diferentes humanos e não humanos.

Entretanto, mais do que superar o modo como Mendel é apresentado na educação básica e nos cursos de ensino superior, acreditamos que trazemos mais uma contribuição dos estudos da TAR para a compreensão do fazer científico. Ao adotar a sua metodologia e o seu olhar para os humanos e não humanos e para a hibridização que resiste ao trabalho de purificação dos “modernos”, desenvolvemos mais um material que pode oferecer subsídios para a pesquisa em educação científica ou para a formação de professores. Tem-se, dessa maneira, um texto que reforça a compreensão de que a construção dos fatos científicos se dá em uma ampla rede sociotécnica, que envolve aspectos sociais, culturais e tecnológicos e que depende da agência de humanos e não humanos.

Além disso, este trabalho abre a possibilidade de novas questões de pesquisa. Afinal, refletindo sobre as pesquisas em ensino de ciências, podemos nos perguntar: como estruturar tópicos, unidades de ensino ou produtos educacionais que propiciem trabalhar as redes sociotécnicas, que propiciam a produção e a circulação de conhecimentos científicos? Como fomentar e instrumentalizar novas abordagens teórico-metodológicas para o estudo da história e da natureza da Ciência? Como as diferentes produções de divulgação científica e os materiais didáticos podem abranger aspectos que contribuam para uma abordagem mais sociológica e menos romantizadaou anedótica? Que outros pesquisadores necessitam de um estudo mais detido para evidenciar os processos de construção de fatos científicos a que estão associados? Por fim, vemos na obra de Latour a possibilidade de outros aportes teóricos e metodológicos para fomentar os estudos da ciência.

Agradecimentos

Agradecimento à Capes por bolsa a J. M.P e apoio financeiro à Pós-Graduação.F.A.C e A. V. B. são gratos ao CNPq por concessão de bolsa de produtividade em pesquisa. Os autores também agradecem aos árbitros anônimos e à editoria da RBPEC pelas contribuições, que permitiram o aperfeiçoamento do artigo.

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