Artigos
Recepção: 27 Março 2015
Revised document received: 22 Julho 2015
Aprovação: 31 Agosto 2015
DOI: 10.24220/2318-0870v21n1a2787
Resumo: O artigo analisa as contribuições do educador Paulo Freire ao pensamento de propostas curriculares para a Educação de Jovens e Adultos, dentro da teoria crítica do currículo, destacando historicamente no Brasil as perspectivas curriculares para a Educação de Jovens e Adultos em seus primórdios e as tendências atuais. A temática é problematizada com a análise das pautas curriculares, a partir dos desdobramentos da concepção humanista de educação à luz da visão freiriana, fazendo a defesa da escola que humaniza o ser humano e o liberta do processo ideológico a que está submetido o homem contemporâneo. Tudo isso, tendo como objetivo principal buscar e ampliar os resultados das reflexões sobre a importância da construção de currículos que garantam a escolarização e a emancipação dos sujeitos da Educação de Jovens e Adultos, colocando essa evolução curricular como necessária no processo de construção e consolidação de Projetos Políticos Pedagógicos de todas as escolas brasileiras que ofertam essa modalidade de ensino.
Palavras-Chave: Currículo, EJA, Escolarização, Paulo Freire, Teoria crítica.
Abstract: The aim of the article was to analyze the contributions of the educator Paulo Freire to curriculum proposals for Adult and Youth Education within the critical curriculum theory, emphasizing the curricular perspectives of adult and youth education in Brazil from its infancy to the current trends. The issue becomes problematic with the analysis of the curriculum guidelines according to the subdivisions of the humanistic conception of education in the light of Freire's vision that argues that schools should humanize human beings and set them free from the ideological process to which we are all subjected. Therefore, the main objective was to seek and expand the results of reflections on the importance of building curriculum content to ensure the education and emancipation of adults and the youth, placing this curriculum evolution as necessary step for the construction and consolidation of political pedagogical projects in all Brazilian schools that offer this type of education.
Keywords: Curriculum, EJA, Schooling, Paulo Freire, Critical theory.
Introdução
A trajetória da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil é marcada por um currículo excludente, que acompanha contornos e interesses ideológicos de dominação, descaracterizando o verdadeiro sujeito da ação educativa. Pensar nas ações políticas que marcaram historicamente o que se denomina
Educação de Jovens e Adultos é refletir sobre quais garantias educacionais eram asseguradas na formação da pessoa adulta e o que se constituía em currículo para EJA. Dessa forma, é possível analisar quais são os reflexos presentes na oferta dessa modalidade de ensino atualmente, considerando o panorama histórico, bem como o viver e o situar no mundo desses sujeitos.
Por isso, num primeiro momento este estudo pretende traçar uma visão geral sobre o currículo, descrevendo como este foi definido e praticado à luz da teoria tradicional, que adotava uma pedagogia mecanicista da realidade do mundo, desconsiderando os fatores humanistas e a subjetividade que faz parte da construção dos saberes dos indivíduos e da sociedade.
Em seguida, será esboçado um breve histórico da Educação de Jovens e Adultos no Brasil, enfocando as contribuições advindas da década de 1960, com o advento da teoria crítica, que teve autores importantes que marcam fundamentalmente tanto a teoria educacional crítica quanto a teoria crítica do currículo, como Freire (1970), Apple (1982) e Althusser (1983) dentre outros. Todos esses autores trazem uma crítica ao processo educacional capitalista, contribuindo para um olhar diferenciado sobre as pautas curriculares. Nesse contexto, o currículo escolar torna-se sinônimo de mudança, de construção de uma nova visão de mundo, em que a criticidade, a liberdade, a justiça social e a solidariedade são predominantes.
Nessa perspectiva, entende-se que um dos maiores pioneiros dessa nova concepção educativa e de construção curricular foi, justamente, o educador Paulo Freire, que marca pela primeira vez na história do Brasil um pensamento crítico voltado para a formação das camadas populares. Por isso, além de referenciar os autores identificados aqui, procura-se destacar as contribuições de Freire à teoria crítica sobre o currículo, tecendo algumas reflexões sobre a importância da teoria para a construção e efetivação de propostas curriculares da EJA. Observa-se, nesse processo reflexivo, que se trata de um projeto de vida escolar para o jovem e para o adulto brasileiro que não tiveram acesso à escola formal em idade própria, e que tem na teoria humanista de Freire o seu lugar na história das políticas públicas em educação.
Currículo e Educação de Jovens e Adultos: compreensão fundante
O conceito de currículo ou currículos é bastante discutido na esfera educacional, a partir da existência de teorias que surgem da emergência do campo curricular, como área profissional especifica de estudos e de pesquisas. A questão central do currículo perpassa o conjunto de ações que envolvem o que se pretende ensinar. Conforme Macedo (2013), pode-se definir o currículo como organização, seleção, implementação, institucionalização e avaliação de conhecimentos eleitos como formativos, considerando questões éticas, políticas, estéticas e culturais.
Dessa forma, entende-se que a busca da compreensão do que se define como currículo não pode perder de vista a sua historicidade e a sua dinâmica. Segundo Silva (2014), é a partir do século XX que a noção de currículo é ampliada para além dos procedimentos didáticos pré-estabelecidos, entendendo-o como um instrumento político e de controle da sociedade:
Foram talvez as condições associadas com a institucionalização da educação de massas que o campo de estudos do currículo surgisse nos Estados Unidos, como um campo profissional especializado. Estão entre essas condições: a formação de uma burocracia estatal encarregada dos negócios ligados à educação; o estabelecimento da educação como um objeto próprio de estudo cientifico; a extensão da educação escolarizada em níveis cada vez mais altos a segmentos cada vez maiores da população; as preocupações com a manutenção de uma identidade nacional, como resultado das sucessivas ondas de imigração; o processo de crescente industrialização e urbanização (Silva, 2014, p.22).
É nesse contexto político social em que as forças econômicas, políticas e culturais procuravam moldar os objetivos e as formas da educação de massa, para tornar tudo de acordo com a diferente e particular visão de mundo, que surge The curriculum. Essa obra, por Bobbitt (1918), definia um conjunto de ideias conservadoras sobre o sistema educacional, que deveria estabelecer, de forma precisa, quais seriam os objetivos e as habilidades necessárias para que o indivíduo exercesse com eficiência as ocupações profissionais que o mercado oferecia.
Nessa concepção curricular, o sistema educacional deveria ser tão eficiente quanto qualquer empresa econômica. Assim, o modelo de currículo defendido por Bobbitt (1918) constituiu-se numa das vertentes dominantes da educação ao longo do século XX, passando a incorporar posteriormente a teoria de Tyler (1974). Marcou, de maneira profunda, o que foi classificada como teoria tradicional do currículo, paradigma que dominou o campo dos estudos curriculares nos Estados Unidos, com influência em diversos países, incluindo no Brasil. Essa perspectiva foi caracterizada como sendo parte do paradigma fabril, que adotava padrões pré-estabelecidos através da seleção de conteúdos e objetivos que deveriam ser perseguidos, tendo como finalidade principal preparar os jovens e os adultos para a aquisição de habilidades intelectuais, efetivando as práticas de memorização, da ação direta junto ao objeto de interesse curricular.
Segundo Saviani (2008), tratava-se de uma concepção de educação e currículo que procurava consagrar a efetivação dos objetivos de ensino, havendo o controle direto das ações realizadas, para buscar sempre a efetivação de uma eficiência nas práticas curriculares desenvolvidas, que apresentasse resultados concretos. Essa lógica começa a ser contestada a partir da compreensão de autores como Althusser (1983), que traz questionamentos sobre o papel da escola como aparelho ideológico do estado, sendo o currículo o instrumento de controle, bem como as contribuições de Apple (1982), mais especificamente na ênfase ao conceito de hegemonia e transformação das pautas curriculares.
No cenário brasileiro, a educação e o currículo sofreram diferentes processos de transformação, evoluindo a reflexão para as necessidades específicas das práticas curriculares. Especificamente na Educação de Jovens e Adultos, pode-se inferir que o currículo desenvolvido no espaço formal das instituições de ensino, centrava-se em propostas curriculares pontuais, fundamentadas na perspectiva tradicional do currículo, que priorizava a transmissão do saber, com a incorporação de propostas curriculares prescritivas que explicitavam objetivos políticos estabelecidos. Contudo, analisando a historicidade da EJA no país, observa-se que ela não se restringiu aos espaços escolares institucionalizados. A EJA foi considerada a partir da década de sessenta como um projeto de transformação social, realizado em espaços de educação não formais, tendo no movimento operário uma matriz ideológica libertária, um modelo educacional inserido nesse contexto, que promoveu experiências educacionais coerentes com o projeto político democrático que a sociedade pensava em construir (Gadotti & Romão, 2011).
Nesse contexto, a educação libertária das pessoas jovens e adultas passa a ser compreendida não apenas como uma alternativa à educação formal, mas como uma possibilidade de conceber um projeto pedagógico que tivesse correspondência com o projeto societário em construção. Essa questão será aprofundada a seguir, com a realização de um breve histórico da EJA no Brasil, contextualizando como foi definida e inserida a teoria crítica do currículo no contexto da educação brasileira.
Histórico da Educação de Jovens e Adultos e o contorno político-educacional que marcou o currículo
A Educação de Jovens e Adultos no Brasil suscita inúmeros desafios, que exigem compreender aspectos históricos que orientam as políticas curriculares e seus reflexos na prática, a fim de garantir uma educação pública equânime para jovens, adultos e idosos.
Pode-se dizer que a instrução dada a adultos nos tempos coloniais consistia em um projeto dos jesuítas em exercer uma ação missionária de dominação religiosa sem caráter educacional. Igualmente, no período imperial, marcado pela monopolização do conhecimento formal pela classe dominante, a concepção de cidadania e de direito à educação era inexistente. Conforme Capucho (2012, p.57), "a ampliação da escolarização da população jovem e adulta se vincula às conquistas legais referendadas pela Constituição Brasileira de 1988, que formaliza a garantia de uma instrução primária e gratuita para todos os cidadãos", embora poucos tenham sido os avanços em termos de políticas públicas educacionais para esse público.
Com a crescente urbanização e o início do período industrial no país, houve a necessidade de formação de uma mão de obra local, devido à reorganização do processo do trabalho, inaugurando assim uma mudança na postura e no interesse da elite em relação à formação do trabalhador. Contudo, conforme Paiva (1970), até a segunda república, o problema da educação de adultos no Brasil não se distinguia dentro da problemática mais geral da educação das massas; segundo a autora, o tema começa a ter destaque a partir das discussões originadas pelo resultado do Censo populacional de 1940, que indicou a existência de 55% de analfabetos maiores de 18 anos, no país.
De acordo com o documento intitulado Proposta Curricular Nacional para o Segundo Segmento da Educação de Jovens e Adultos (Brasil, 2000b), apenas na década de 1940, a educação de jovens e adultos se firmou como questão de política nacional, por força da Constituição de 1934, que instituiu nacionalmente a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino primário para todos. Além disso, aquela época foi marcada pela necessidade política de desenvolvimento do país, que todos julgavam estar atrelado ao processo de erradicação do número de analfabetos existentes em todas as regiões do país.
Destacou-se naquela década e início dos anos 1950, em âmbito nacional, a formulação de políticas públicas na área de educação, com a criação do Fundo Nacional de Ensino Primário de 1942, com o objetivo de ampliar a educação primária, de modo a incluir o ensino supletivo para adolescentes e adultos. Foi também criado o Serviço de Educação de Adultos (SEA), em 1947, com a finalidade orientar e coordenar os planos anuais do ensino supletivo para adolescentes e para adultos analfabetos.
O foco na erradicação do analfabetismo acarretou por um longo período a criação de campanhas voltadas para esse fim. Dentre elas, podem-se destacar: a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA), de 1947, que teve grande importância como fornecedora de infraestrutura aos estados e municípios para atender à educação de jovens e adultos; a Campanha Nacional de Educação Rural, de 1952, que marcou uma política desenvolvimento de comunidades do meio rural brasileiro; a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, de 1958, que se constituiu como sendo uma nova etapa nas discussões sobre a educação de adultos. Seus organizadores compreendiam que a simples ação alfabetizadora era insuficiente, devendo dar prioridade à educação de crianças e de jovens, para os quais a educação ainda poderia significar alteração em sua condição de vida. Em 1963, essa e outras campanhas existentes foram extintas pelo governo.
Conforme Strelhow (2010), com a realização do II Congresso Nacional de Educação de Adultos no Rio de Janeiro, em 1958, começavam as discussões em torno de um novo método pedagógico para a educação de adultos. Os educadores sentiram a necessidade de romper com os preconceitos que envolviam as pessoas analfabetas. Foi naquela época que o trabalho do educador Paulo Freire ganhou o reconhecimento nacional.
Nesse período, Freire chamava a atenção para a problemática do desenvolvimento educativo. Ele defendia que o processo de alfabetização deveria ser contextualizado às necessidades essenciais das pessoas. Esse processo deveria ser "com" elas e não "para" elas. Nesse sentido, ele defendia que as pessoas analfabetas não deveriam ser vistas como imaturas e ignorantes. Além disso, o analfabetismo não era o único problema que a população enfrentava, pois havia a questão da condição de miséria em que vivia a maioria da população não alfabetizada (Strelhow, 2010).
Na década de sessenta, de acordo com Paiva (1970), difundiram-se as ideias de educação popular, acompanhando a democratização da escolarização básica. Estudantes e intelectuais desenvolviam novas perspectivas de cultura e de educação junto aos grupos populares. Isso ocorria por meio de diferentes instituições e com graus variáveis de ligação com o Estado. Destacaram-se no período: o Movimento de Educação de Base (MEB); a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); o Movimento de Cultura Popular do Recife, iniciado em 1961; a implantação dos Centros Populares de Cultura; a União Nacional dos Estudantes (UNE); a Campanha "De Pé no Chão, Também se Aprende a Ler", da Secretaria Municipal de Educação de Natal; e o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura, em 1964.
De acordo com Capucho (2012, p.15), esses movimentos trouxeram como marca a compreensão de que "o processo de alfabetização e de educação de jovens e adultos deveria ser estruturado a partir de um exame crítico da realidade do estudante, da identificação das origens de seus problemas e das possibilidades de superá-los". Foi por isso que os movimentos sociais, nesse período, tiveram importante papel na mudança da perspectiva da formação das camadas populares, conforme descreve Jenize (2014, p.5):
O que unia tais movimentos na década de 1960 era a possibilidade de interagir com o restante da população desorganizada, isolada e sem condições políticas de levar suas reivindicações ao Estado, de forma que tais movimentos tinham o papel de chamar atenção para a situação de exclusão da classe oprimida, contra o capital e promover novas formas de organização, uma força-política alternativa que viessem a constituir uma nova ordem social.
No início, a educação de jovens e adultos era oferecida apenas em nível equivalente ao ensino fundamental inicial; a partir de 1960, estendia-se ao curso "ginasial" (segunda etapa do ensino fundamental). Essa década foi marcada pela construção de um novo paradigma teórico e pedagógico criado pelo educador Paulo Freire, que teve um papel fundamental no desenvolvimento da EJA no Brasil, ao destacar a importância da participação do povo na vida pública nacional e o papel da educação para sua conscientização.
As iniciativas de educação popular defendidas por Freire (1970) eram organizadas a partir de trabalhos que levavam em conta a realidade dos alunos, implicando a renovação de métodos e procedimentos educativos. A Experiência de Alfabetização em Angicos, em 1963, no Rio Grande do Norte, afirmava essa ideia curricular, através de um processo de alfabetização de trabalhadores pelo qual os conhecimentos gerados partiam da prática social, por meio do diálogo como mediação entre estes e o mundo. Essa atitude pedagógica mostrou que a alfabetização de adultos precisava ser pensada de forma diferente e serviu como um marco para pensar o currículo na especificidade dos sujeitos da EJA. Pode-se pontuar aqui que foi a partir dessas reflexões e práticas que surgiu o marco da concepção freiriana sobre educação, que se expande pelo mundo e se insere na perspectiva crítica do currículo.
No contexto histórico da EJA, no Brasil, pode-se perceber que o currículo que predominou ao longo da história foi marcado pelo aligeiramento de programas que focavam a erradicação do analfabetismo. Esse pressuposto originou intensamente as políticas específicas para a formação de adultos, com a oferta de propostas direcionadas à correção do analfabetismo, para garantir o desenvolvimento do país.
Viu-se que, historicamente, os currículos voltados para a Educação de Jovens e Adultos foram constituídos a partir da problemática expressa nas Campanhas Alfabetizadoras de cada época e no Movimento Brasileiro de Alfabetização-Mobral, no período da ditadura militar de 1964 a 1985 - projeto esse que marcou um longo período de ruptura com os ideais freirianos em busca da emancipação dos sujeitos. Além disso, herdaram-se desse processo histórico resquícios de um pensamento de que a EJA deve pautar-se apenas na alfabetização e de que o jovem e o adulto têm pressa em galgar seus estudos, pois o mercado de trabalho exige a presença dele com a qualificação necessária.
Outra perspectiva curricular para a Educação de Jovens e Adultos surge com o advento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei nº 9394/ 96 (Brasil, 1996) que reafirmou o seu lugar nas políticas de educação, levantando muitas discussões ao colocar a EJA como uma modalidade de ensino que tinha um caráter específico e necessitava de diretrizes próprias. Essas Diretrizes foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação/Câmera da Educação Básica nº 11/2000 (Brasil, 2000a) elaborado pelo conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury, tratando das Diretrizes Curriculares Nacionais para EJA. Fica evidenciada no Parecer a concepção de EJA como modalidade da educação básica:
[...] Logo a EJA é uma modalidade da Educação Básica, nas suas etapas fundamental e média. O termo modalidade é diminutivo latino, de modus (modo, maneira) e expressa uma medida dentro de uma forma própria de ser. Ela tem, assim, um perfil próprio, uma feição especial diante de um processo considerado como medida de referência. Trata-se, pois, de um modo de existir com característica própria (Brasil, 2000a).
Outra referência normativa que define o perfil da EJA encontra-se na Resolução CNE/CEB nº 01/2000, em seu art. 5º, que diz:
Parágrafo único. Como modalidade destas etapas da Educação Básica, a identidade própria da Educação de Jovens e Adultos considerará as situações, os perfis dos estudantes, as faixas etárias e se pautará pelos princípios de eqüidade, diferença e proporcionalidade na apropriação e contextualização das diretrizes curriculares nacionais e na proposição de um modelo pedagógico próprio (Brasil, 2000b).
Nesse sentido, pode-se afirmar que a oferta da Educação de Jovens e Adultos não se restringe à questão da alfabetização e, sim, compreende princípios específicos para essa modalidade de ensino, que apontam para além da escolarização e visam à formação de sujeitos plenos de direito e conscientes do seu papel no mundo. É por isso que Capucho (2012) define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA como sendo uma conquista que estabeleceu funções reparadoras, equalizadoras e qualificadoras para modalidade de ensino. Contudo, tem-se notado que as Diretrizes ainda não significaram o desenvolvimento de políticas públicas de educação que assegurem a qualidade na oferta dessa modalidade.
Mas, é preciso destacar que, na contemporaneidade, já se percebem avanços legais na construção de uma política pública da EJA no contexto brasileiro. Isso vem ocorrendo devido aos esforços da sociedade civil organizada, com destaque para os Movimentos Sociais e a representação dos Fóruns da EJA, espalhados pelo país, fortemente influenciados pela perspectiva freiriana de educação, o que tem significado um movimento forte em prol da educação frente ao fomento e qualificação das políticas educacionais para essa modalidade de ensino. Nesse sentido, pensar em políticas públicas de escolarização destinadas à EJA é, imprescindivelmente, pensar o lugar do currículo e de toda ação educativa como sendo um território em disputa, como afirma muito bem Arroyo (2013), e um campo político, como afirma Freire (2003).
As contribuições da teoria crítica no currículo da Educação de Jovens e Adultos
A teoria crítica do currículo marca um processo de inovação do pensamento educacional, atestando que não há neutralidade nas ações curriculares. Ela surge mundialmente no contexto de crise de paradigmas iluministas, quando teóricos criam um campo de contestação e questionamento da intencionalidade do currículo. Conforme Silva (2014, p.30), "as teorias críticas desconfiam do status quo, responsabilizando-o pelas desigualdades e injustiças sociais". No campo da EJA, os estudos de Paulo Freire no Brasil despertam essa compreensão, enfatizando o papel político da educação e a visão epistemológica do conhecimento, que é sempre intencional, dirigido a alguma coisa, não havendo separação entre o ato de conhecer e aquilo que se conhece.
Pode-se perceber, novamente, que o currículo predominante no país foi marcado pelo aligeiramento de programas que focavam apenas a erradicação do analfabetismo, expresso em um currículo tradicional profundamente desligado da situação existencial das pessoas envolvidas no ato de conhecer. Foi a partir da década de sessenta que emergiram novas ideias pedagógicas. De acordo com Silva (2014, p.29):
A década de 60 foi uma década de grandes agitações e transformações. Os movimentos de independência das antigas colônias europeias; os protestos estudantis na França e em vários outros países; a continuação do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos; os protestos contra a guerra do Vietnã; os movimentos de contracultura; o movimento feminista; a liberação sexual; as lutas contra a ditadura militar no Brasil: são apenas alguns dos importantes movimentos sociais e culturais que caracterizaram os anos 60. Não por coincidência foi também nessa época que surgiram livros, ensaios, teorizações que colocavam em xeque o pensamento e a estrutura educacional tradicional.
No contexto mundial, a perspectiva de uma visão crítica de mundo surge como sendo uma necessidade de mudança, contrapondo-se aos ideais difundidos pelo conservadorismo educacional. Foi assim que, no Brasil, os trabalhos de Paulo Freire, mesmo não desenvolvendo uma teorização crítica sobre o currículo, fizeram com que sua obra criasse uma possibilidade histórica de inovação educacional, apontando um caminho crítico para refletir acerca do currículo como parte de uma nova possibilidade histórica da pessoa oprimida. Caem por terra os princípios que defendiam a teoria e a prática formativa no currículo como sendo algo neutro, passando-se a defender o espaço da criação curricular como um campo que prega a liberdade e o espaço cultural e social de lutas (Freire, 2003).
É a partir dessa compreensão que se concorda com Silva (2014), quando define o currículo como lugar, espaço, território, relação de poder, trajetória, viagem, percurso, texto, discurso, documento e documento de identidade, que deve ser valorizado por todos os educadores que desejam ver o processo de emancipação humana ser consolidado, tendo na escola e na práxis curricular um instrumento educacional poderoso.
A busca por uma identidade do educando, a valorização de sua cultura, de um currículo humanizador é defendida na obra Pedagogia do Oprimido, de 1970, que demarca a crítica de Freire sobre o currículo desumanizador, que tornava o indivíduo um ser anônimo, sem perspectiva de atuar socialmente. Foi a partir dessa importante obra que ele lançou o conceito clássico de educação bancária a qual expressa uma visão do conhecimento como informações e fatos a serem transferidos do professor ao aluno, característica presente na perspectiva tradicional do currículo, conforme Freire (1970) e Silva (2014).
Paulo Freire inaugura os conceitos de "educação problematizadora" e "educação libertadora"; cria uma alternativa que se contrapõe à visão bancária da educação, concebendo o conhecimento não como algo pronto e acabado, mas sim como algo socialmente construído, um ato pedagógico, um ato dialógico e político, pelo qual "ninguém educada ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo" (Freire, 1970, p.58).
Pode-se inferir que as principais contribuições da teoria crítica do currículo, que promovem a construção de políticas curriculares para a EJA e que se espelham nos ideários defendidos por Paulo Freire, estão na compreensão de que a experiência dos educandos se torna fonte primária na constituição de conteúdos programáticos, considerada a partir de temas geradores, significativos para o processo educativo.
Defende-se, como Freire (2003) e Amorim (2007), que não existe neutralidade na educação, pois educar é uma ação fortemente marcada por uma opção ideológica que se manifesta contra ou a favor de alguém. Da mesma forma, Freire (2003) ainda defende que é preciso garantir a autonomia do sujeito, pois o conhecimento não é estático nem é transmitido, mas dialogicamente construído. Ele ainda deixa a concepção de currículo transformador: a ideia de que ensinar não é transferir conhecimentos, mas criar as possibilidades para que o educando construa a sua própria produção ou a sua construção. Nesse sentido, o currículo deve abranger métodos nos quais os saberes dos alunos sejam valorizados e suas vozes não sejam silenciadas no contexto da aprendizagem escolar.
Numa visão sociológica, o ato de conhecer deve ser concebido como sendo "consciência de alguma coisa", de modo que o papel da escola se centre em ensinar o aluno a ler o mundo para então transformá-lo. O caminho do jovem e do adulto na busca pelo conhecimento tem várias nuances de vida, envolve a sua própria história de vida, o seu estar, o viver e o transformar o mundo, adotando com princípio humanizador a ação coletiva, o diálogo entre iguais.
Para Freire (2003), o objetivo maior da educação e do currículo transformador é a busca pelo fortalecimento do processo de mudança, de conscientização do ser em processo de alfabetização. Isso significa dizer que é preciso rever os métodos de alfabetização das crianças, dos jovens e dos adultos, para garantir às parcelas desfavorecidas da sociedade a construção e a consolidação de uma nova pedagogia escolar, para levá-las a entender a sua situação de oprimidas e agir em favor da própria libertação. Pensar a Educação de Jovens e Adultos, nessa conjuntura, é romper com o paradigma da reprodução de uma sociedade desigual, que, no contexto histórico da EJA, no Brasil, está intimamente ligada ao descaso que por muitos anos impera na formação educacional da maioria das pessoas das camadas populares.
É por isso que se tem aqui a mesma compreensão de Sacristán (2000) quando caracteriza a política curricular como sendo um aspecto específico da política educativa, que estabelece formas de selecionar, ordenar e mudar o currículo dentro do sistema educativo. Defende-se que, enquanto política curricular, toda decisão e prática do desenvolvimento do currículo deve se originar a partir das instâncias coletivas da escola. Nesse sentido, a formulação de propostas curriculares para a EJA deve se constituir dentro de uma perspectiva crítica, coletiva, ouvindo os verdadeiros sujeitos da ação educativa; como se viu, esses princípios são fundamentais, pois eles promovem o diálogo e a transformação social a partir da educação.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que é inegável a contribuição do educador Paulo Freire ao pensamento de propostas curriculares emancipatórias. Por isso, numa perspectiva freiriana, os planos ou propostas de cursos devem levar em consideração o aluno, isto é, seus códigos culturais e suas necessidades específicas, pois é preciso educar para o viver e para o ser. É o que defendem Gadotti e Romão (2011) quando projetam a necessidade da cultura do aluno estar presente na construção de seu processo educacional, pois é a cultura de sua vida, é a própria essência do ato de viver e de educar.
Entende-se também que uma educação capaz de retirar o povo da transitividade ingênua, do senso comum em que a maioria da sociedade vive ainda hoje no país, requer a consolidação da verdadeira consciência crítica, uma visão ampla de mundo e de sociedade, evitando a massificação do indivíduo, com a implantação e o desenvolvimento de um novo método ativo, dialogal e participativo no processo de educar. Por isso, defende-se que é preciso pensar a EJA e o currículo dessa modalidade de ensino como uma política necessária, com a realização de ações que deixem de ser esporádicas, para que seja firmado um verdadeiro e atual pacto pela Educação de Jovens e Adultos, como defende Gadotti (2014).
Da mesma forma, pode-se afirmar que, com a implantação de propostas curriculares críticas e emancipatórias, nas quais os sujeitos sejam protagonistas, é possível inovar e revolucionar a Política Educacional no Currículo da EJA, promovendo a união entre estados, municípios e comunidade, em prol de uma educação de qualidade, com a existência de igualdade de oportunidades para todos, independentemente do sexo, idade ou posição social, vislumbrando a configuração da EJA que verdadeiramente se quer.
Considerações Finais
Viu-se nesse processo reflexivo que a análise a respeito da teoria tradicional do currículo versus teoria crítica torna-se pertinente, pois garante o entendimento de que todo ato pedagógico traz consigo a historicidade, portando uma ideologia de manutenção ou de transformação da sociedade. No contexto da EJA, não se pode perder de vista que toda política educacional deve garantir, de forma eficiente, a confirmação dos postulados freirianos, que desejam fazer da educação, da escola e dos projetos curriculares importantes ferramentas a serviço da pessoa oprimida.
Por isso, defende-se que a EJA não pode ser mais colocada em paralelo ao sistema de ensino, como algo que tenha uma existência relativa no contexto das políticas públicas, como sendo uma política educacional compensatória, um programa simples, um projeto sem definição e sem endereço concreto, que venha servindo ao processo de exploração das classes oprimidas.
É preciso fortalecer a EJA como sendo uma verdadeira modalidade de ensino, oriunda de uma política social, educacional e cultural maior, que visa colocar no centro da reflexão um conjunto de pessoas - de cidadãos específicos - onde todos têm um nome, um endereço, uma vontade política e o desejo de conhecer e praticar a sua verdadeira visão de mundo, num processo de enxergar a si próprio e a todos pelas lentes dos seus próprios olhos, e não pelas lentes dos outros, daqueles que oprimem e estão a serviço da dominação.
Partindo da análise da concepção freiriana e da perspectiva crítica do currículo, entende-se que a reflexão em torno dos conteúdos a serem trabalhados na EJA deve assumir uma dimensão que lhe é específica, considerando a importância de um campo curricular; que tenha o desenvolvimento do trabalho pedagógico a partir das histórias de vida, interesses e saberes que os alunos trazem para a sala de aula. Portanto, a abordagem dos conteúdos deve estar relacionada às questões cotidianas dos estudantes jovens e adultos, para estabelecer conexões entre a vida e os conteúdos escolares. Por isso, a necessidade de se perguntar quem são esses estudantes e como vivem, levando em consideração a diversidade presente no processo: se são homens, mulheres, negros, negras, jovens, adultos, idosos, moradoras do campo ou da cidade, indígenas, quilombolas, enfim, sujeitos que constroem conhecimentos e produzem cultura.
Portanto, afirma-se ser urgente e necessária a formulação de uma política nacional de alfabetização de jovens e adultos, que de fato atenda às especificidades dos sujeitos que compõem essa modalidade de ensino, ainda tão desassistida e precarizada no contexto municipal, estadual e nacional. É preciso criar um processo de educação permanente para todas as pessoas que não tiveram a oportunidade de receber a educação obrigatória em idade certa, numa concepção de que são seres dotados de todas as qualidades necessárias para ser, crescer e revolucionar o mundo.
Referências
Althusser, L. Aparelhos ideológicos do Estado. Rio: Graal, 1983.
Amorim, A. Escola: uma instituição social complexa e plural. São Paulo: Editora Viena, 2007.
Apple, M. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982.
Arroyo, M.G. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2013.
Bobbitt, J.F. The curriculum. New York: Houghton Mifflin, 1918.
Brasil. Ministério da Educação. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 21 dez. 1996. Disponivel em: <Disponivel em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70320/65.pdf?sequence=3>. Acesso em: 15 jan. 2015.
Brasil. Conselho Nacional de Educação Continuada. Parecer nº 11, de 10 maio de 2000. Diretrizes curriculares nacionais para a educação de jovens e adultos. Brasília: MEC, 2000a. Disponível em: <portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdfpceb01100.pdf>. Acesso em: 2 nov. 2014.
Brasil. Ministério da EducaçãoProposta curricular para a educação de jovens e adultos: segundo segmento do ensino fundamental: 5ª a 8ª série: introdução. Brasília: MEC , 2000b.
Capucho, V. Educação de jovens e adultos: prática pedagógica e fortalecimento da cidadania. São Paulo: Cortez, 2012.
Freire, P. Pedagogia do oprimido. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
Freire, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 28.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
Gadotti, M. Por uma politica nacional de educação popular de jovens e adultosSão Paulo: Moderna, 2014.
Gadotti, M.; Romão, J.E. Educação de jovens e adultos: teoria, prática e propostas. 12.ed. São Paulo: Cortez , 2011.
Jenize, E. Currículo e movimentos sociais: novas perspectivas à velhos desafios. 2014. Disponível em: <Disponível em: http://br.monografias.com/trabalhos912/curriculo-e-ovimentos/curriculo-e-movimentos2.shtm>. Acesso: 10 jan. 2015.
Macedo, R.S. Currículo, campo, conceito e pesquisa. 6.ed. Petrópolis: Vozes , 2013.
Paiva, V. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1970.
Sacristán, J.G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3.ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.
Saviani, D. istória das ideias pedagógicas no Brasil. 2.ed. Campinas: Autores Associados, 2008.
Silva, T.T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014
Strelhow, T.B. Breve história sobre a educação de jovens e adultos no BrasilRevista HISTEDBR on-line, v.1, n.38, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.fe.unicamp.br/revistas/ged/histedbr/article/view/3520>. Acesso: 5 jan. 2015.
Tyler, R.W. Princípios básicos de currículo e ensino. Porto Alegre: Globo, 1974.
Autor notes
Correpondência para/Correspondence to: A.S. SANTOS. E-mail: <andreiadesantan21@gmail.com>.