Seção Temática: Racismo e Educação Escolar

Desafios da implementação da Lei nº 10.639/03: um estudo de caso de municípios do Estado de São Paulo1

Implementation challenges of Law 10.639/03: A case study in municipalities in the State of São Paulo

Tatiane Cosentino Rodrigues
Universidade Federal de São Carlos, Brazil
Fabiana Luci de Oliveira
Universidade Federal de São Carlos, Brazil
Fernanda Vieira da Silva Santos
Universidade Federal de São Carlos, Brazil

Desafios da implementação da Lei nº 10.639/03: um estudo de caso de municípios do Estado de São Paulo1

Revista de Educação PUC-Campinas, vol. 21, núm. 3, pp. 281-294, 2016

PUC-Campinas

Recepção: 02 Fevereiro 2016

Revised document received: 05 Julho 2016

Aprovação: 05 Agosto 2016

Resumo: Após mais de uma década da aprovação da Lei nº 10.639/03, como está o processo de sua implementação? Essa legislação alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tornando obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio oficiais e particulares. Este artigo busca responder à pergunta, a partir da perspectiva de dois dos principais atores envolvidos no processo de implementação da lei: professores e gestores. O objetivo é entender se, e como, tem sido trabalhada a temática das relações étnico-raciais e da cultura africana e afro-brasileira na rede pública de educação infantil e no ensino fundamental. O artigo toma como base a prática de formação continuada de professores, a partir dos dados acerca da oferta de um curso de aperfeiçoamento de 180 horas, em 12 municípios do Estado de São Paulo, durante o ano de 2014. No primeiro encontro, professores e gestores foram convidados a responder a um questionário em forma de diagnóstico, que contemplava informações pessoais, conhecimentos sobre a temática e suas visões sobre práticas pedagógicas referentes à Lei nº 10.639/03. Este estudo obteve a adesão de 1.272 participantes, sendo 1.134 professores e 138 gestores e, com base nas respostas, foram mapeados os elementos facilitadores e os obstáculos à implementação da lei, dentre os quais o desconhecimento, desinteresse e a existência de posicionamentos políticos conflitivos sobre a temática. Os resultados apontam que o assunto ainda é pouco discutido nas escolas e, também, na formação inicial dos professores e gestores.

Palavras-chave: Formação de professores, Educação para relações étnico-raciais, Lei 10.639/03.

Abstract: A decade after the approval of Law 10.639/03, how has the implementation process of the law been? Law 10.639/03 amended Law of Guidelines and Bases of National Education making the teaching of History and Afro-Brazilian Culture mandatory in public and private elementary and high schools. This article endeavors to answer this question from the perspective of the two main actors involved in the process of law implementation: teachers and administrators. The aim is to understand if and how the theme of ethnic and racial relations and African and African-Brazilian culture has been addressed in the public child and elementary school. We focus on the practice of continuing education for teachers based on the data from a 180-hour training course during 2014 in 12 municipalities in the State of São Paulo. At the first meeting, teachers and administrators were invited to answer a diagnostic questionnaire, which included personal information, knowledge on the subject and their views on teaching practices according to Law 10.639/03. A total of 1,272 participants, 1,134 teachers and 138 administrators, participated in the study and facilitating and impeding elements concerning the implementation of the law were identified in accordance with their answers. These included unfamiliarity, disinterest and conflicting political positions on the issue. The results show that the issue is not widely discussed in schools or during initial training of these teachers and administrators.

Keywords: Teacher training, Education for ethnic-racial relations, Law 10.639/03.

Introdução

Passada pouco mais de uma década da sanção da Lei nº 10.639 (Brasil, 2003), como está o processo de sua implementação? Essa legislação alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), tornando obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio oficiais e particulares4. A alteração foi regulamentada pelo Parecer nº 03/2004, de 10 de março de 2004, expedido pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação, aprovando o projeto de resolução das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que orientam quanto à inclusão da temática em todos os níveis e modalidades de ensino.

Este artigo busca responder àquela pergunta a partir da perspectiva de dois dos principais atores envolvidos no processo de implementação da lei: professores e gestores. O objetivo é entender se, e como, tem sido trabalhada a temática das relações étnico-raciais e da cultura afro-brasileira e africana na rede pública de educação infantil e Ensino Fundamental.

Este estudo busca mapear os níveis de compreensão das relações étnico-raciais, assim como o seu grau de enraizamento nas instituições escolares, identificando avanços e limites na implementação da Lei nº 10.639 (Brasil, 2003) e de todas as normas que a regulamentam, a partir de uma experiência prática de formação continuada de professores. A experiência consistiu na oferta de um curso de aperfeiçoamento de 180 horas, ofertado em 12 municípios da região administrativa central do Estado de São Paulo, formando 1.400 professores e gestores da rede pública entre o primeiro semestre de 2014 e o primeiro semestre de 2015. O curso foi resultado do Termo de Ajuste de Conduta nº 1.34.000189/2006-32) junto ao Ministério Público, organizado pela Universidade Federal de São Carlos, com o objetivo de atender às determinações da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei nº 9.394/96, alterada pelas Leis nº 10.639/03 e n° 11.645/08. Esta última inclui a obrigatoriedade do ensino da cultura indígena nas escolas.

Como atividade do primeiro encontro da formação, os professores e gestores foram convidados a responder a um questionário de diagnóstico, envolvendo informações de perfil, conhecimentos, percepções, valores, hábitos e atitudes sobre a temática das relações étnico-raciais, assim como sua visão sobre as práticas pedagógicas, na perspectiva da Lei nº 10.639/03, na escola pública em que trabalhavam no momento de realização do curso.

Esta pesquisa obteve a adesão de 1.272 participantes, sendo 1.134 professores e 138 gestores e, com base nas respostas, foram mapeados os elementos facilitadores e os obstáculos à implementação da Lei, dentre os quais o desconhecimento, desinteresse e a existência de posicionamentos políticos conflitivos sobre a temática.

O presente artigo apresenta inicialmente o perfil dos professores e gestores, referente a características demográficas, socioeconômicas, de formação e atuação profissional. Na sequência, apresenta o tipo de informação que possuem sobre a Lei, bem como seu domínio e interesse em aprender sobre o assunto, assim como seu conhecimento e imaginário sobre a África. A seguir, o artigo descreve as percepções, hábitos e atitudes que apresentam acerca da temática racial, observando resistências e mesmo negação da questão. Por fim, este estudo aborda o ambiente de trabalho dos professores relativamente à temática das relações étnico-raciais, focalizando a disponibilidade e avaliação de materiais didáticos disponíveis, bem como as ações pedagógicas adotadas.

Perfil dos participantes: professores e gestores

A distribuição dos 1.272 participantes (1.134 professores e 138 gestores) corresponde, de forma equilibrada, ao tamanho da rede pública nesses municípios (Figura 1), considerando os níveis de educação infantil e ensino fundamental. Ressalta-se que a amostra não é probabilística, uma vez que envolve apenas os participantes que voluntariamente aceitaram participar da pesquisa respondendo ao questionário no primeiro dia do curso.

Distribuição dos participantes por município, de acordo com posição ocupada. São Carlos (SP), 2015.
Figura 1
Distribuição dos participantes por município, de acordo com posição ocupada. São Carlos (SP), 2015.
Base: 1.134 professores e 138 gestores.

Quanto ao gênero, a grande maioria é composta de mulheres, representando 96% dos professores e 92% dos gestores. No que se refere ao estado civil, a maioria é casada (63%) e com filhos (60%).

A Figura 1 apresenta a distribuição dos professores e gestores envolvidos no projeto, de acordo com sua localização. Observa-se que São Carlos e Descalvado apresentam uma proporção maior de entrevistados (21 e 16%, respectivamente), enquanto Porto Ferreira conta com uma maior proporção de gestores participantes (17%). A única localidade onde não houve participação de gestores no curso de formação foi Ribeirão Bonito.

A idade média dos professores é de 37,7 anos, e dos gestores um pouco mais alta, 40,5 anos. Os 25% mais jovens têm até 35 anos no caso dos gestores, e 30 anos no caso dos professores, sendo que os 25% mais velhos possuem idade acima de 47 anos no caso dos gestores, e 44 no que se refere aos professores. A rede com os profissionais mais velhos é a de Santa Rita do Passa Quatro (SP), com idade mediana de 44 anos, seguida de Ribeirão Bonito (SP), com 42 anos. E as redes mais jovens são Pirassununga (SP) e Santa Cruz da Conceição (SP), com 35 anos de idade mediana, e São Carlos (SP), com 34 anos.

A Figura 2 exibe o perfil etário dos professores e gestores, com relação à posição ocupada.

Perfil etário, em anos completos, de acordo com a posição ocupada. São Carlos (SP), 2015.
Figura 2
Perfil etário, em anos completos, de acordo com a posição ocupada. São Carlos (SP), 2015.
Base: 1.134 professores e 138 gestores.

No que diz respeito à identificação racial dos professores e gestores, mais de três quartos da amostra se autodeclarou branca. A rede em que os profissionais mais se declararam negros (pardos ou pretos) foi São Carlos (SP), com 34% de negros, seguida de Tapiratiba (SP), com 28%, e Pirassununga (SP), com 26%. Já as redes de Tambaú (SP) e Rincão (SP) estão entre as com menor proporção de negros, com 10% de autodeclarados pretos ou pardos, e Porto Ferreira (SP), com 9%.

A Figura 2 apresenta o perfil de cor ou raça dos professores e gestores participantes do projeto, de acordo com a posição ocupada.

Com relação à formação, 99% dos gestores e 93% dos professores têm ensino superior completo: 1% dos gestores e 6% dos professores declararam estar cursando ensino superior. Quanto à área de formação, 93% dos gestores e 81% dos professores concluíram cursos de Pedagogia. Dos que não têm pedagogia, a maioria é formada em (ou está cursando) Normal Superior (36%), seguida de Letras (19%) e Educação Artística (9%) (Figura 3).

Perfil de cor ou raça, de acordo com a posição ocupada. São Carlos (SP), 2015.
Figura 3
Perfil de cor ou raça, de acordo com a posição ocupada. São Carlos (SP), 2015.
Base: 1.134 professores e 138 gestores.

Entre os que já estão formados, a maioria concluiu a graduação nos anos 2000, sendo que apenas 25% concluíram a faculdade antes de 2001 - outros 25% concluíram o ensino superior depois de 2010. O tempo médio de conclusão do ensino superior foi de 9,5 anos, com mediana de 8 anos. Ou seja, embora a maioria tenha frequentado o ensino superior quando as ações afirmativas começavam a ser implementadas, esses professores e gestores se formaram majoritariamente antes da lei das cotas, Lei nº 12.711/12 (Brasil, 2012) (reserva 50% das vagas nas Universidades e Institutos Federais de Ensino Superior e Técnico aos candidatos oriundos de escolas públicas, aos estudantes de baixa renda e aos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas), e isso pode ajudar a entender o fato de a maioria não ter ingressado no ensino superior via ação afirmativa, assim como o elevado percentual de desconhecimento sobre a política de ação afirmativa no ensino superior.

As Figuras 4 e 5 apresentam a formação superior de gestores e professores, bem como se o ingresso na universidade se deu por meio de programa de ação afirmativa.

Rede de formação no ensino superior, de acordo com a posição ocupada. São Carlos (SP), 2015.
Figura 4
Rede de formação no ensino superior, de acordo com a posição ocupada. São Carlos (SP), 2015.
Base: 1.134 professores e 138 gestores.

Ingresso universidade via ação afirmativa, de acordo com a posição ocupada. São Carlos (SP), 2015.
Figura 5
Ingresso universidade via ação afirmativa, de acordo com a posição ocupada. São Carlos (SP), 2015.
Base: 1.134 professores e 138 gestores.

A rede privada de ensino é a principal responsável pela formação desses professores e gestores, sendo que apenas em São Carlos a rede pública tem maior representatividade (com 27% dos participantes oriundos de universidade pública). Os municípios onde há menor participação de formados em universidades públicas são Tambaú (SP) e Tapiratiba (SP), com 1% cada um. Esse fato ajuda também a entender o baixo percentual de ingresso no ensino superior via ação afirmativa e o elevado desconhecimento acerca da medida.

Dentre os participantes com ensino superior completo, apenas pouco mais de 1% possuía mestrado, enquanto 56% haviam concluído algum curso de pós-graduação e 15% o estavam cursando.

Quanto à origem social, a maioria é filha de pais com escolaridade baixa, sendo que cerca de 5% dos pais e mães não possuem escolaridade formal; 52% têm até o ensino fundamental incompleto; 11% das mães e 12% dos pais têm fundamental completo; 20% dos pais e mães têm ensino médio completo; 9% das mães e 7% dos pais possuem superior completo ou mais; e 5% desconhecem a escolaridade do pai e 3%, da mãe.

Entre as casadas, a maioria dos cônjuges possui escolaridade média ou alta, sendo que 47% têm ensino médio completo, e 32% superior completo ou mais.

No que diz respeito à religiosidade, cerca de 5% declararam não ter religião, e entre as com religião, a maioria se declarou católica (65%), seguida de evangélicos (14%) e espíritas (10%). Religiões com matriz africana e/ou afro-brasileira apareceram pouco, sendo que 2% se declararam da umbanda e menos de 1% do candomblé (computado juntamente com budismo). Dos que têm religião, 2/5 disseram nunca ou quase nunca frequentá-la, e 56% disseram frequentar com regularidade.

Em termos de renda familiar, há maior incidência de professores nas faixas de mais de dois a quatro salários mínimos e de quatro a seis salários mínimos, com 40% apresentando renda familiar superior a seis salários mínimos. Entre os gestores, como os salários costumam ser um pouco maiores, a concentração da renda familiar situa-se na faixa de mais de quatro a seis salários mínimos e de mais de seis a oito salários mínimos, sendo que a metade tem renda familiar superior a seis salários mínimos.

O tamanho dos domicílios é muito próximo ao da média brasileira, com três moradores, sendo que 25% deles têm até dois moradores, metade tem até três, e 75% têm até quatro moradores.

A maioria dos participantes trabalha em apenas uma escola (68%), com 32% do total trabalhando em duas escolas ou mais. Metade deles tem contrato de trabalho regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), enquanto 31% são estatutários, 12% têm contrato temporário e 7% não responderam à questão.

A amostra foi constituída por profissionais experientes na área do ensino, com tempo médio de 16 anos de experiência para os gestores, com a mesma mediana, e de 11,8 anos, com mediana de 10 anos, para os professores. O tempo de ingresso na rede pública em que trabalhavam no momento da pesquisa era de 11 anos em média para os gestores (com mediana de 9 anos), e de 8,2 anos para professores (com mediana 5). Ou seja, são profissionais com bastante conhecimento da rotina do trabalho na rede pública.

A maioria está mais satisfeita do que insatisfeita com a profissão, sendo que numa escala de 0 a 10, em que 0 significa estar totalmente insatisfeito e 10 totalmente satisfeito, a média alcançada por gestores foi de 7,7, e por professores, 7,5.

Em termos de acesso à tecnologia, a vasta maioria tem computador ou notebook e acesso à Internet banda larga no domicílio, assim conta de e-mail. Observa-se também uma grande utilização da mídia social Facebook, com 80% dos participantes possuindo conta nessa rede. Já o uso de outras mídias sociais, como Twitter e Instagram, é baixo (com 25% e 11%, respectivamente).

Quanto aos hábitos de mídia desses profissionais, verifica-se que os canais mais acessados são a Internet e a TV, com 88% declarando utilizar sempre a Internet5, e cerca de dois terços afirmando assistir ao noticiário de TV. A mesma proporção declarou ler sempre livros de histórias infantis, enquanto apenas um quarto declarou ler sempre revistas voltadas à área de Educação, e menos de um terço disse ler sempre blogs de notícia. Pouco mais de um quarto declarou nunca ler livros sobre educação, e mais de um terço afirmou nunca ler jornais impressos ou revistas de notícias e variedades.

Conhecer o perfil dessas profissionais, sua origem social, sua trajetória educacional e profissional, ajuda o pesquisador a compreender suas posições políticas e seus valores. Da mesma forma, conhecer o acesso que têm à tecnologia e seus hábitos de mídia, auxilia no planejamento da melhor forma de comunicação com esses profissionais.

Conhecimento da Lei nº 10.639 e imaginário sobre a África

A preocupação central do artigo é mapear o que esses profissionais da educação sabem sobre relações étnico-raciais, e se (e como) a temática tem sido trabalhada nas escolas, identificando avanços e limites na implementação da Lei nº 10.639/03 e de suas normas complementares, de modo a orientar novas propostas de formação inicial e continuada de professores que considerem a temática como prioritária.

Um primeiro ponto a observar é que, do total de participantes, apenas 18% declararam já ter frequentado alguma atividade de formação continuada (como especialização, capacitação, aperfeiçoamento ou extensão) sobre relações étnico--raciais. A maioria (75%) realizou curso na modalidade à distância, com carga horária média de 120 horas.

Observada a proporção dos que já realizaram atividades de formação sobre relações étnico-raciais, interessava saber o quanto conhecem os documentos normativos que orientam o trabalho da temática nas escolas, como a Lei nº 10.639/03 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Constatou-se que é grande o desconhecimento do conteúdo desses documentos: quase metade dos gestores (46%) e mais da metade dos professores (51%) não conhecem o conteúdo da lei e das diretrizes, assim como menos de um quinto afirma conhecer bem o conteúdo. Observa-se que, mesmo entre aqueles que já realizaram atividades de formação acerca da temática, o conhecimento é ainda superficial, com a maioria afirmando conhecer pouco do conteúdo dessas normas.

Assim, o primeiro e principal obstáculo ao avanço na implementação dessa política pública é o desconhecimento de professores e gestores acerca do conteúdo da lei e das diretrizes curriculares sobre a temática, o que dificulta sua incorporação ao planejamento pedagógico.

[...] uma das principais estratégias de opressão de determinado grupo é a ausência ou o reconhecimento indevido da sua história. Segundo o autor, o processo de formação da identidade é dialógico; ou seja, a identidade é formada por meio da interação com outros grupos sociais. Nesse sentido, o indivíduo ou o grupo poderá sofrer verdadeiro dano se as representações associadas a ele forem depreciativas. A ausência ou o reconhecimento indevido pode se transformar na principal estratégia para exclusão desses grupos. No caso brasileiro, a ausência pode se manifestar no desconhecimento da história de resistência de negros e indígenas contra a opressão resultante do processo de colonização (Aguiar et al., 2015, p.384).

Foi perguntado aos participantes o quão confortáveis se sentiam para trabalhar a temática da diversidade e das relações étnico-raciais na escola, pedindo que dessem uma nota ao seu domínio para isso, numa escala de 1 a 10, em que 1 significa não ter nenhum domínio, e 10, domínio total. Os gestores atribuíram-se nota ligeiramente maior que os professores, mas em geral o domínio relatado foi baixo, ficando a média em 6 para gestores e 5 para professores, com três quartos deles dando-se nota inferior a 7. Mesmo aqueles que já haviam realizado algum curso na temática sentiam-se também pouco confortáveis, tendo-se dado nota média de 6,2, com mediana 6.

Ou seja, a falta de conhecimento da lei e das diretrizes, somada à falta de domínio de conteúdos ligados às relações étnico-raciais, contribui para que professores e gestores sintam-se pouco preparados para incorporá-los em sua prática pedagógica. Desconhecimento das normas e falta de domínio dos conteúdos não implica necessariamente desinteresse. Quando indagados acerca do seu interesse em conhecer e estudar mais a temática da diversidade e das relações étnico-raciais para poder trabalhá-la na escola, numa escala de 1 a 10, em que 1 significa que nenhum interesse, e 10, total interesse, a nota média dada por gestores foi 9,2, com metade deles dando nota 10; e, no caso dos professores, 8,9, com metade deles também dando nota 10. Assim, encontra-se aqui um indício de incentivo para o avanço da lei, revelando que é na promoção de conteúdos sobre a temática e na sua incorporação à formação inicial de professores que está um dos aspectos que devem ser explorados.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2005) trazem em seus princípios que os estabelecimentos de Educação Básica, em todos os níveis de ensino, deverão providenciar materiais sobre a temática, apoiando a elaboração de projetos, planos, conteúdos e divulgação de trabalhos na área. Por seu lado, as secretarias de educação deverão disponibilizar cursos de formação continuada para os professores com foco no tema para educação das relações étnico-raciais, bem como incluir as discussões da questão racial na matriz curricular; ou seja, a articulação entre os pares para divulgação e inclusão dos documentos normativos, assim como o incentivo dos órgãos educacionais na realização da formação continuada de professores e da comunidade escolar.

Explorando um pouco mais o conhecimento dos participantes acerca da temática, foi-lhes perguntado o que entendiam por “diversidade étnico--racial”. Cerca de um quinto declarou não saber e, entre os que indicaram algum entendimento, a resposta mais frequente foi a de “diferença cultural” (27%), com respostas como “diferentes culturas”, “diferentes povos”, “diferenças religiosas”, “diferentes formas de organização da sociedade”. A segunda resposta mais comum foi a de “miscigenação” (25%), compreendendo entendimentos como “mistura de raças”, “mescla de povos” e “mistura de culturas”. Em terceiro lugar destacou-se a noção de “diversidade racial” (19%), com menções à “diversidade de raças”. Em quarta posição, a compreensão de diversidade cultural (12%) aproximou-se do sentido de “diferença cultural”, sendo agrupadas nessa categoria apenas aquelas respostas que utilizaram o termo “diversidade” em vez de diferença - “diversidade de culturas”, “diversidade de povos”, diversidade de modos de viver e de organizar a sociedade”. Com menor frequência aparecem definições ligadas à convivência e tolerância entre povos e culturas (6%) e à noção de igualdade racial e cultural (5%). Com 2% de incidência, apareceram afirmações de que falar em diversidade étnico-racial significa trabalhar as noções de preconceito e diferença como desigualdades impostas pela sociedade.

As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei nº 10.639/2003: desafios para a política educacional e indagações para a pesquisa.

Gomes e Jesus (2013), em pesquisa de âmbito nacional, apontam que o conhecimento dos docentes e gestores sobre relações étnico-raciais e História da África ainda é superficial. Entendem que a temática tem a finalidade de sensibilizar, alertar e informar os discentes quanto à dimensão ética do racismo, o que deriva do pouco conhecimento acerca da História da África e sua relação com a história afro--brasileira, de modo a não valorizar essa cultura e a ignorar a sua representatividade.

[...] o caráter emancipatório da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana tem contribuído para legitimar as práticas pedagógicas antirracistas já existentes, instiga a construção de novas práticas, explicita divergências, desvela imaginários racistas presentes no cotidiano escolar e traz novos desafios para a gestão dos sistemas de ensino, para as escolas, para os educadores, para a formação inicial e continuada de professores e para a política educacional (Gomes & Jesus, 2013, p.32).

E qual a imagem que esses profissionais têm da África? O que sabem sobre a organização dos países africanos? Pedido aos participantes que descrevessem qual a primeira ideia ou imagem que lhes vem à mente quando pensam na África ou nos africanos, as duas imagens mais recorrentes remetem primeiro à ideia de pobreza (25% de menções) e depois ao fenótipo do povo africano, como a cor negra da pele, o cabelo afro e a força física (18%). A paisagem do continente vem em terceiro lugar (12%), trazendo referências a savanas, safaris, florestas, desertos e selvas. A escravidão aparece em quarto lugar, acompanhada na maioria das vezes do comentário de que essa ideia foi formada a partir daquilo que eles aprendiam na escola; a ideia de sofrimento vem ligada à visão de um povo triste, resignado e marcado pela exploração. A riqueza e a diversidade cultural aparecem na sequência (6 e 4%, respectivamente). Depois, são mencionadas a fauna (animais selvagens, sobretudo) e a alegria do povo, ambas com 4%. Por fim, há uma diversidade de imagens que aparecem com menor incidência, como a imagem da África como país (3%) ou continente de grande extensão territorial (3%). Outras imagens são as de resistência, segregação, vestimenta, assim como a referência àquilo que se vê na mídia (2% cada uma); ou seja, mais um indício de que, por não terem acesso a informações sobre o continente, acabam sabendo apenas aquilo que aparece nos jornais impressos e veículos de comunicação.

Considerando as referências negativas (como sofrimento, escravidão, segregação), somadas às referências a dimensões de natureza (paisagem, animais, natureza, fenótipo), as respostas dos participantes reproduzem a imagem reduzida e preconceituosa do que são o continente e a cultura africanos. Isso reforça a necessidade de se avançar em formação que supere essa visão. Como esperar que professores e gestores implementem em sua prática pedagógica um ensino de História e de Cultura Afro-Brasileira e Africana em perspectiva positiva, se o que predomina em seu imaginário é a pobreza que atinge o continente ou os safaris, com a ideia de “África selvagem”? Ou, ainda, uma ideia de África cristalizada em um determinado período que se relaciona com a história do Brasil unicamente por meio do processo de escravidão.

Os marcos legais para educação das relações étnico-raciais direcionam para mudanças nas matrizes curriculares dos cursos de formação inicial dos professores, sem as quais seriam reforçados os estereótipos do ideal do branqueamento e o mito da democracia racial, presentes nas práticas pedagógicas, silenciando as práticas racistas nas escolas. “Cumprir a Lei é, pois, responsabilidade de todos e não apenas do professor em sala de aula. Exige-se, assim, um comprometimento solidário dos vários elos do sistema de ensino brasileiro [...]” (Brasil, 2005, p.26).

A pesquisa investigou também o conhecimento de aspectos da cultura brasileira que tenham sido influenciados pela cultura africana, sendo que 90% dos participantes souberam citar pelo menos um elemento. A culinária é o aspecto mais citado, lembrado por 52% dos participantes, sendo a feijoada o elemento mais recorrente, tendo 10% de menções, seguida da canjica, cocada, tapioca e acarajé. Em segundo lugar aparece a capoeira, mencionada por 39% dos entrevistados. Vem em terceiro lugar, com 34% de citações, a dança, que aglutina referências ao gingado, ao maculelê e até mesmo à zumba - pensada por alguns dos participantes como tendo influência africana. A religião foi lembrada por 28% dos participantes, trazendo os orixás, a umbanda, o candomblé e a macumba. Há menções também aos ritmos musicais, como reggae, o samba e o axé, com 22% de incidência no total. A cultura, com elementos como folclore e carnaval, o vocabulário e vestimentas (coloridas e estampadas) aparecem com 4% de incidência cada um.

Perguntado aos participantes se saberiam citar algum aspecto próprio da cultura africana, 70% responderam positivamente, sendo a capoeira e a religião os dois elementos mais recorrentes, citados por 36% e 35% dos participantes, respectivamente. A dança vem em terceiro lugar, com 19% de incidência, sendo mencionados o gingado, o maculelê e o olodum. Mas a maior parte das menções, aqui e nas outras categorias, são mais genéricas, apontando áreas de influência e não aspectos culturais específicos. A culinária vem na sequência, com 16% de menções, sendo trazidos elementos como temperos e especiarias, e repetindo-se muito do que trouxeram para a cultura afro-brasileira, como o vatapá, a tapioca e a canjica. A música aparece com 7% de incidência, com cantigas de ninar e ritmos como samba e reggae. Depois vêm as menções à cultura e à vestimenta, exatamente nos mesmos termos já mencionados para o caso da cultura afro-brasileira (4% cada uma). A garra do povo africano aparece na fala de 2% dos participantes, assim como a menção a instrumentos musicais (agogô e conguê). Referências à linguagem e às artes africanas aparecem com apenas 1% de incidência, estando agrupadas em “outros” todas as menções únicas.

As referências mais recorrentes à cultura afro--brasileira e africana endereçam a influência dos negros na culinária, na religião, na dança e na musicalidade, de forma genérica. Apontam, assim, para a continuidade do que habitualmente se encontrava em livros didáticos antes da lei, centrados em destacar contribuições e trocas culturais dos negros escravizados, sendo ausentes as referências às contribuições técnicas e à produção científica, artística e política da atualidade, como apontam as diretrizes e, sobretudo, o Parecer do Conselho Nacional de Educação de 2004.

As Diretrizes orientam para que a História da África seja tratada em perspectiva positiva, e “não só de denúncia da miséria e discriminações que atingem o continente” (Brasil, 2005, p.21). Propõem ainda que o ensino contemple as contribuições do Egito para a ciência e a filosofia ocidentais, assim como das universidades africanas Timbuktu, Gao, Djene, que floresciam no século XVI, das tecnologias de agricultura, beneficiamento de cultivos, mineração e edificações trazidas pelos escravizados, além da produção científica, artística e política da atualidade (Brasil, 2005, p.22).

Percepções, hábitos e atitudes sobre a temática racial

Esta seção explora hábitos e atitudes de professores e gestores com relação ao racismo.

A maioria dos profissionais, seja branco ou negro, reconhece a existência de racismo na sociedade brasileira. Porém, quando o assunto é racismo na escola, predomina a visão de que nela o problema é menor, a ponto de ele ser negado por mais de um quarto dos participantes. A percepção de inexistência de racismo no ambiente escolar leva à importante reflexão sobre como desenvolver pedagogias de combate ao racismo quando professores e gestores não conseguem identificá-lo dentro da instituição, situando-o como algo externo. O racismo, assim, é visto como um problema de outros espaços sociais, e não da escola.

Foram apresentadas aos participantes sete afirmações, solicitando-lhes que declarassem seu grau de concordância ou discordância. Essas afirmações foram adaptadas a partir de escalas de mensuração de racismo simbólico e estrutural, tendo como principal referência Sears e Henry (2005). A escala de mensuração de racismo simbólico foi trabalhada em torno de quatro temáticas centrais: negação de discriminação; éticas de trabalho e responsabilidade por resultados; exigências excessivas; e vantagens imerecidas (Sears & Henry, 2005, p.102-103).

Observa-se baixa concordância com afirmações que apontam vantagens imerecidas (“Nos últimos anos, os negros ganharam mais vantagens do que eles merecem”) ou falta de ética de trabalho e responsabilidade por resultados (“Não existe discriminação de raça, a maioria dos negros é que não se esforça o bastante para conseguir melhorar de vida”) - cerca de um décimo dos respondentes concordaram com essas afirmações.

Mas é preocupante observar que praticamente um terço dos profissionais concorde que “Os negros são os mais responsáveis pelo racismo existente na sociedade” e que mais de um terço negue a existência de discriminação racial, concordando com a afirmação de que “No Brasil não existe preconceito de cor e raça e sim de classe, então não é justo dar vantagens aos negros, como cotas em universidades ou empregos públicos”. Mais ainda, quase dois terços são contrários às políticas reparatórias, afirmando que elas contribuem para aumentar o preconceito. Ao mesmo tempo, dois terços concordam que “Gerações de escravidão e discriminação criaram condições que tornam mais difícil para os negros melhorarem de vida”. Ou seja, concordam que há injustiças sociais que persistem com relação à população negra, mas discordam que tenham que atuar para minimizá-las, na manutenção de uma postura individualista perversa de reproduzir a lógica da meritocracia. Percebe-se que ainda há essa cultura de que os indivíduos são responsáveis pela criação de oportunidades e de que essas dependem somente do esforço próprio, pois há o mito de igualdade de oportunidades para todos.

Transformando essa escala de concordância em uma escala de racismo simbólico que varia de 1 a 10, sendo que quanto mais próximo de 10, maior o nível de racismo simbólico expresso pelos respondentes, alcança-se uma média de 4,7 pontos, com mediana de 4,6, sendo que 25% dos entrevistados alcançaram pontuação acima de 5,7.

Esses resultados são um forte indício de que os profissionais responsáveis por implementar a política de diversidade racial nas escolas têm valores e atitudes pouco condizentes com a valorização da diversidade. Como esperar que eduquem cidadãos para a diversidade étnico-racial, se não compreendem o direito à diferença como um dos pilares dos direitos sociais, como expresso nas normativas que orientam as políticas afirmativas? Existe ainda uma rejeição muito grande por parte desses profissionais às políticas de ação afirmativa, como, por exemplo, as cotas - veem os africanos e a África como lócus de pobreza, sofrimento e exploração (escravidão), mas resistem em aceitar fazer algo a esse respeito.

Considerando que um dos pilares da Lei nº 10.639 é desenvolver a consciência política e histórica da diversidade, as Diretrizes Curriculares Nacionais apontam que o papel da escola é levar

[...] à desconstrução, por meio de questionamentos e análises críticas, objetivando eliminar conceitos, ideias, comportamentos veiculados pela ideologia do branqueamento, pelo mito da democracia racial, que tanto mal fazem a negros e brancos; à busca, da parte de pessoas, em particular de professores não familiarizados com a análise das relações étnico-raciais e sociais com o estudo de história e cultura afro-brasileira e africana, de informações e subsídios que lhes permitam formular concepções não baseadas em preconceitos e construir ações respeitosas (Brasil, 2005, p.9).

Assim, as opiniões e atitudes expressas por esses profissionais da educação permitem afirmar que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que essa política atinja seu objetivo central.

Relações étnico-raciais na escola

Investigou-se também como professores e gestores avaliam a qualidade do material didático com o qual trabalham em relação à temática étnico--racial. A grande maioria relatou que o material utilizado trabalha muito pouco (61%) ou não trabalha (29%) com a temática. Grande parte também discorda que haja disponibilidade de materiais com foco em questões africanas e afro-brasileiras para serem utilizados em sala de aula - opinião de 43% dos gestores e de 52% dos professores. Esse parece ser outro grande obstáculo à implementação da lei, pois, tendo os profissionais relatado a sua falta de conhecimento sobre o assunto, a carência de material disponível para ser trabalhado cria uma barreira adicional.

Esta pesquisa buscou observar valores e atitudes dos profissionais quanto à inclusão da temática das relações raciais na grade curricular, a partir da sua percepção sobre o tema como instrumento de prática pedagógica e da sua disposição para essa incorporação. É muito positivo que a vasta maioria dos entrevistados discorde da afirmação de que “Racismo e preconceito não deveriam ser temas para a escola e sim para os movimentos sociais”, assim abrindo as portas da escola para uma educação das relações étnico-raciais.

Todavia, no que se refere à forma como tal trabalho e a inclusão da temática devem ser feitos, já começa a haver um pouco mais de resistência, com 17% dos gestores e 21% dos professores concordando com a afirmação de que “a cultura negra deve ser estudada como parte do folclore do Brasil e na história da escravidão, e não como um instrumento da prática pedagógica”, e 21% dos gestores e 22% dos professores concordando que “promover o orgulho ao pertencimento racial dos alunos só vai servir para aumentar a tensão racial e criar mais preconceito”. Ou seja, acredita-se na importância da incorporação dessa temática na escola, mas muitos educadores ainda acreditam que o espaço e a forma de sua inclusão devam ser menores, embora haja grande concordância quanto ao fato de que a forma como hoje se trabalha com isso deixa a desejar. Além de apontar que os materiais didáticos trabalham pouco a questão da história da cultura afro-brasileira e africana, metade dos participantes concordou com a afirmação de que “a maioria dos livros e materiais didáticos existentes hoje promovem visões estereotipadas sobre o negro”.

Outro aspecto positivo observado é que a maioria discorda que haja resistência em tratar a questão racial na sala de aula, tanto por parte dos gestores (84% dos gestores e 83% dos professores) quanto dos professores. Mas, quando se trata da inserção da temática no planejamento pedagógico da escola, predomina entre os professores a visão de que suas escolas não procuram “incorporar a temática racial nas discussões de reuniões pedagógicas”, enquanto predomina entre os coordenadores a visão oposta.

Por fim, o presente estudo buscou compreender a percepção dos profissionais acerca de como se dão as relações raciais hoje na escola, observando a perspectiva dos tratamentos dos alunos. Há dados preocupantes nesses relatos, sendo que quase metade dos gestores (49%) e 44% dos professores declararam concordar que seja comum na rotina da escola situações que envolvem xinga-mentos, piadas e apelidos pejorativos contra alunos negros. Outros 37% concordaram que é comum observar cenas de preconceito contra alunos negros na escola - inclusive 12% daqueles que afirmam não existir racismo na escola, concordaram serem comuns essas cenas de preconceito.

Cerca de 21% dos participantes concordam que, na escola, quando se afirma que uma pessoa é negra, a afirmação é feita de forma negativa e depreciativa, e cerca de 16% dos gestores e 21% dos professores discordam que seja verdade que alunos negros recebam carinho, elogio e atenção dos professores e agentes escolares tanto quanto os demais alunos. Mais preocupante ainda é a percepção, por parte de 40% dos professores e 26% dos gestores, de que não existem estratégias de prevenção e combate à discriminação racial que ocorre em diferentes espaços da escola, da sala de aula ao pátio.

Considerações Finais

O diagnóstico apresentado mostrou que os professores e gestores das escolas participantes do curso de formação ainda se deparam com o tema de forma inédita, com pouco ou nenhum conhecimento acerca das normativas e do ensino sobre a temática.

Durante o curso de formação, a percepção é que o tema precisa ser apresentado de maneira a sensibilizar os profissionais e que, somente após essa sensibilização, a temática aflora para uma discussão sobre a questão racial no Brasil. O desconhecimento da História do Brasil implica também essa percepção inicial, pois o que aparece nos questionários é o desconhecimento sobre tal parte da história. Desconstruir preconceitos sobre a África também aparece nos dados coletados, na medida em que o imaginário que se tem sobre o continente dificulta a elaboração de propostas pedagógicas sobre o tema. Isso indica a necessidade da inclusão de disciplinas na formação inicial e continuada de professores e gestores, pois ainda se encontram declarações de que a África é um país, e não um continente.

Outro ponto importante nesse diagnóstico aponta também o silenciamento sobre as práticas racistas na escola e a postura desses professores e gestores com relação a estratégias de combate e prevenção à discriminação racial.

Portanto, indaga-se se, repetida esta pesquisa daqui a uma década, será observado avanço nessas questões. Ou a escola brasileira ainda estará na fase de sensibilização para o tema? Até quando os cursos de formação inicial e continuada silenciarão a questão racial? Os professores e gestores, mesmo tendo contato com a temática, desenvolverão o trabalho durante todo o ano letivo? Ou só em datas comemorativas? Ficam colocadas tais questões, como reflexões e possíveis oportunidades de continuidade nas pesquisas sobre a educação das relações étnico-raciais.

A Portaria Normativa nº 21, de 28 de agosto de 2013, expedida pelo Ministério da Educação, ao orientar as instituições de ensino superior sobre a inclusão da temática étnico-racial, do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, desafia todas as instituições de ensino superior a repensarem os currículos do ensino superior e a pensarem de que maneira esses conteúdos poderão integrar de forma interdisciplinar ou disciplinar em todos os cursos de graduação do Brasil.

Referências

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Brasil. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília: Mec, 2005. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf>. Acesso em: 26 jan. 2016.

Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Sobre a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. Diário Oficial da União, Brasília, 10 jan. 2003. p.1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 26 jan. 2016.

Brasil. Presidência da República. Lei nº 12.711 de 29 de agosto de 2012. Sobre a reserva de vagas nas universidades e institutos federais. Diário Oficial da União, Brasília, 30 ago. 2012. Seção 1, p.1-2. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cotas/docs/lei_12711_2012.pdf> Acesso em: 26 jan. 16.

Farias, I.M.S. et al. Didática e docência: aprendendo a profissão. Brasília: Liber Livro, 2009.

Gomes, N.L.; Jesus, R.E. As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei nº 10.639/2003: desafios para a política educacional e indagações para a pesquisa. Educar em Revista, n.47, p.19-33, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/er/n47/03.pdf>. Acesso em: 27 jan. 2016.

Sears, D.O.; Henry, P.J. Over thirty years later: A contemporary look at symbolic racism and its critics. Advances in Experimental Social Psychology, n.37, p.95-150, 2005. Available from: <http://condor.depaul.edu/phenry1/pubpage.htm>. Cited: Jan. 28, 2016.

Notas

1 Artigo apresenta dados de um projeto de extensão intitulado “Curso de aperfeiçoamento em educação e relações étnico-raciais”, desenvolvido no âmbito do Programa Rede Nacional de Formação de Profissionais da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação, entre os anos de 2014 e 2016.
4 Art. 1º A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A e 79-B: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.
5 Foi perguntado aos participantes com que frequência costumavam realizar cada uma das atividades, sendo as opções de resposta: nunca; raramente (até 3 vezes por mês); poucas vezes (de 4 a 9 vezes por mês) e sempre (mais de 9 vezes por mês).

Autor notes

Colaboradores Todos os autores colaboraram em todas as etapas do artigo.

Correspondência para/Correspondence to: T.C. RODRIGUES. E-mail: <tatiane.cosentino@gmail.com>.

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