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A ausência das questões raciais na formação inicial de professores e a Lei 10.639/03

The absence of racial issues in initial teacher education and Law 10.639/03

Eliete Aparecida de Godoy
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brazil

A ausência das questões raciais na formação inicial de professores e a Lei 10.639/03

Revista de Educação PUC-Campinas, vol. 22, núm. 1, pp. 77-92, 2017

PUC-Campinas

Recepção: 02 Fevereiro 2016

Revised document received: 16 Junho 2016

Aprovação: 18 Julho 2016

Resumo: Este estudo aponta os desafios das políticas e diretrizes para formação inicial de professores, bem como o papel e compromisso das Instituições de Ensino Superior que ofertam curso de Pedagogia pelo Programa Nacional de Formação de Professores, a fim de promover a construção de conhecimento pedagógico que habilite os futuros docentes a dotar suas aulas de significado e valor voltados às diferentes culturas e à História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, conforme previsto pela Lei nº 10.639/03 e pelas regulamentações dela derivadas. Apresentam-se os resultados do levantamento de dados de instituições do estado de São Paulo, com o propósito de identificar a conformidade dos currículos de formação docente com as diretrizes e a temática citadas. A análise das matrizes curriculares dessas instituições mostrou que o modelo adotado de formação de professores é mediado por currículos conservadores e pouco acessíveis às mudanças, principalmente quanto ao aprofundamento do debate sobre a cultura africana e afro-brasileira na formação docente.

Palavras-chave: Ordenação do currículo, Formação de professores, Instituição de ensino superior.

Abstract: This study points out the challenges to implement the policies and guidelines for initial teacher education and the role and commitment of higher education institutions that offer Pedagogy courses, through the National Program for Teacher Education, to promote the construction of pedagogical knowledge that enables the future teachers to provide meaning and value to their classes by focusing on different cultures and on the History of Afro-Brazilian and African Culture, as established by Law nº 10.639/03 and regulations derived from it. We discuss the results of the survey carried out in institutions in the state of São Paulo, which had the purpose of identifying if the curriculum of initial teacher training was in compliance with the previously mentioned guidelines on the theme. The analysis of curricula of these institutions showed that the model adopted for teacher training is based on conservative curricula and not open to changes, particularly regarding a deeper debate on African and Afro-Brazilian Culture during teacher education.

Keywords: Curriculum structure, Teacher training, Higher education institution.

Introdução

A sociedade brasileira tem vivido um momento histórico nas discussões em torno do racismo, preconceito e discriminação racial. Todavia, ainda, se faz relevante nos dias atuais aprofundar as discussões acerca da persistente aceitação simbólica de que o Brasil é uma sociedade multirracial e de que a democracia racial2 está vigente em todos os contextos das relações sociais.

A democracia racial, supostamente baseada em relações com princípios democráticos de respeito e tolerância, na realidade, com grande frequência, remete ao questionamento de práticas de racismo e preconceito que têm se mostrado recorrentes e denunciam que ela está longe de se materializar concretamente. Para a literatura acadêmica, o mito da democracia racial foi e é ancorado na cultura. Ao se refletir sobre a realidade nacional identifica-se que o mito se mantém apesar das tentativas de desconstrução racional, pois, mesmo diante da existência do preconceito e do racismo, no Brasil a ideia de harmonia racial se sobrepõe aos fatos cotidianos e à própria consciência da sociedade.

Na atualidade social brasileira, os movimentos sociais têm conquistado centralidade na discussão e na proposição de ações políticas voltadas para regular o racismo e o preconceito étnico-racial. Assim, este artigo começa por dirigir o foco da discussão a partir do destaque das ações políticas da última década, que revelaram conquistas fortemente impulsionadas pela sociedade civil relativamente às políticas públicas, que, no contexto educacional vigente, podem ser representadas, por exemplo, pela criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), do Ministério da Educação (MEC), em 2004, a fim de contribuir para minimizar as relações raciais e sociais desiguais, presentes no sistema educacional brasileiro.

Vinculado à perspectiva educacional, o foco da discussão deste artigo está na repercussão da legislação educacional, que tem natureza reguladora e regulamentadora na estruturação curricular dos cursos de Pedagogia no que diz respeito à presença da temática étnico-racial. Destaca-se a legislação de natureza regulamentadora, como o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER) e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana; a Resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 1º de julho de 2015 (Brasil, 2015)3 , que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada; a Lei nº 10.639/03, que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996), que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. A função reguladora da Lei nº 10.639 (Brasil, 2003) implicou o desenvolvimento de um conjunto de regulamentações que impactaram não só a educação básica, para a qual é dirigida, mas indiretamente também as regulamentações voltadas para o ensino superior, mais precisamente para a formação de professores, no que se refere à composição curricular. Cumpre esse papel regulamentador a Resolução nº 1 do CNE, de 17 de junho de 2004, a qual institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana:

Art. 1° - A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas Instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores.

§ 1° As Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004.

§ 2° O cumprimento das referidas Diretrizes Curriculares, por parte das instituições de ensino, será considerado na avaliação das condições de funcionamento do estabelecimento (Brasil, 2004, p.1).

Essa legislação coloca a educação como uma importante variável para a compreensão dos fatores presentes na reprodução da desigualdade racial e social a partir da escola e, consequentemente, refletida na sociedade.

No entanto, a legislação, seja em seu caráter regulador ou regulamentador, nem sempre se revela suficiente para a implementação de uma política dessa envergadura. Após dez anos da Lei nº 10.639/03 e das regulamentações dela derivadas, ainda se pode indicar como relevante e urgente a discussão das relações étnico-raciais a partir dos currículos do ensino superior, uma vez que os pedagogos são profissionais que não apenas atuam na docência, mas são também desafiados nas ações de coordenação pedagógica e gestão escolar, em seus processos e práticas, estruturas e contextos educacionais de gestão das escolas, o que os torna sujeitos estratégicos no debate dessa temática de relevância social.

É importante destacar a necessidade de que as Instituições de Ensino Superior (IES) implementem e ampliem a discussão da temática étnico-racial nos currículos de formação inicial do professor, articulando-a com o contexto educativo. Tal necessidade está ancorada no Plano Nacional de Implementação das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, o qual tem como um dos principais objetivos fortalecer o papel promotor e indutor do MEC com relação à efetiva implementação daquelas diretrizes em todo o país. Nesse sentido, no âmbito das atribuições das IES, o plano atribui a elas a tarefa de “fomentar pesquisas, desenvolvimento e inovações tecnológicas na temática das relações étnicoraciais, contribuindo com a construção de uma escola plural e republicana” (Brasil, 2009b, p.43).

Segundo o Plano Nacional de Implementação das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, no âmbito das discussões sobre a política nacional de formação de professores, são parceiros no processo contínuo de implementação da Lei nº 10.639/03: MEC; CNE; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP); Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE); Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); e SECADI (Brasil, 2009b).

Além disso, destaca-se que tais parcerias também se regem pela política nacional de formação de profissionais do magistério da educação básica, que disciplina a atuação da CAPES no fomento aos programas de formação inicial e continuada e ao acompanhamento das IES quanto à necessidade de:

(a) desenvolver atividades acadêmicas, encontros, jornadas e seminários de promoção das relações étnico-raciais positivas para seus estudantes; (b) dedicar especial atenção aos cursos de licenciatura e formação de professores, garantindo formação adequada aos professores sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e os conteúdos propostos na Lei n° 11645/ 2008; (c) desenvolver nos estudantes de seus cursos de licenciatura e formação de professores as habilidades e atitudes que os permitam contribuir para a educação das relações étnico-raciais com destaque para a capacitação dos mesmos na produção e análise crítica do livro, materiais didáticos e paradidáticos que estejam em consonância com as Diretrizes Curriculares para Educação das Relações Étnico-raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana e com a temática da Lei n° 11.645/08; (d) fomentar pesquisas, desenvolvimento e inovações tecnológicas na temática das relações étnico-raciais, contribuindo com a construção de uma escola plural e republicana; (e) estimular e contribuir para a criação e a divulgação de bolsas de iniciação científica na temática da Educação para as Relações Étnico-raciais; (f) divulgar junto às secretarias estaduais e municipais de educação a existência de programas institucionais que possam contribuir com a disseminação e pesquisa da temática em associação com a educação básica (Brasil, 2009b, p.30).

A discussão do conteúdo curricular com viés étnico-racial no curso de Pedagogia, de maneira geral, tornou-se importante em razão de ser esse o curso que prepara o profissional para trabalhar na educação básica. Já no que se refere à delimitação do estudo apresentado, considera-se relevante e pertinente uma discussão sobre a reformulação de propostas curriculares nos cursos de licenciatura em Pedagogia, em especial os realizados em parceria com a CAPES que contemplem a temática étnico-racial, conforme fundamentado até aqui.

É interessante que se adote uma perspectiva de trabalho intersetorial entre os órgãos normativos e deliberativos, representados nessa discussão pela CAPES (coordenadora do Programa Nacional para Formação de Professores), pela SECADI e pelo MEC, no que tange à gestão da estrutura, organização e funcionamento dos cursos de formação inicial de professores. Entende-se que a esses órgãos caberia analisar as fragilidades dos currículos das instituições parceiras na formação inicial dos professores, especificamente em relação ao descumprimento das regulamentações derivadas da política de formação docente.

Assim, esta pesquisa propõe-se analisar as matrizes curriculares dos cursos de licenciatura em Pedagogia das instituições de ensino particulares e públicas do estado de São Paulo, que são parceiras da CAPES, no fomento a programas de formação inicial e continuada, a fim de verificar o reflexo da Lei nº 10.639/03 e das regulamentações pertinentes a ela em seus currículos, além de analisar como essa suposta valorização do conteúdo previsto pela Lei vem sendo implementada na formação inicial de pedagogos.

Já é conhecido e destacado por diferentes estudos sobre as relações raciais que, além do desconhecimento da Lei, questões fundadas no racismo e no preconceito presentes na sociedade causam desafios e entraves para que a temática ganhe lugar e seja legitimada nas matrizes curriculares das escolas e universidades. Considerando ainda o consenso de que a formação dos alunos da escola básica depende de professores bem formados, este estudo se justifica primeiramente pela necessidade de a pesquisa no campo educacional estar a serviço da erradicação das práticas discriminatórias, em cumprimento à Lei nº 10.639/03 e aos Pareceres do CNE nº 1 e 3 de 2004, que preveem a inclusão da temática da diversidade étnico-racial no currículo das escolas. Justifica-se ainda para averiguar se as propostas do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana impactaram a reformulação dos currículos das IES, especificamente daquelas que são parceiras no projeto de ampliar qualitativa e quantitativamente o recorte étnico-racial dentro da política nacional de formação de professores, seja de forma transversal, seja a partir da definição de disciplinas específicas.

Cabe aqui refletir sobre como a gestão da política de formação de professores tem se traduzido em práticas e se materializado no que se refere à Lei nº 10.639/03 e às regulamentações dela derivadas que compõem a política nacional de sustentabilidade da inclusão social.

Perspectivas para formação do professor - das Diretrizes Curriculares às concepções que marcam os Projetos Pedagógicos

A formação de professores e as tendências pedagógicas foram sofrendo, ao longo dos tempos, modificações que buscaram atender aos objetivos de formação do indivíduo para uma sociedade em processo de desenvolvimento e transformação. Em diferentes momentos, observa-se também que as políticas educacionais pautadas sempre em diferentes interesses também marcaram os projetos de formação de professores. Assim foram se delineando historicamente diferentes tendências com claros condicionantes sociopolíticos. Essa ideia é confirmada por Libâneo (1995, p.19) ao explicitar que:

[...] A prática escolar tem atrás de si condicionantes sociopolíticos que configuram diferentes concepções de homem e de sociedade e, consequentemente, diferentes pressupostos sobre o papel da escola, aprendizagem, relações professor-aluno, técnicas pedagógicas etc.

O autor supracitado também descreve que esse processo formativo nem sempre foi regido por uma tendência com paradigmas emancipatórios, conforme se percebe nas propostas pedagógicas atuais. Dentre as tendências classificadas pelo autor em contraposição a essa nova, destaca-se aquela em que o professor era formado para saber reproduzir a cultura historicamente construída. Havia também predominância da palavra do professor, das regras impostas, do cultivo exclusivamente intelectual. As tendências foram historicamente derrubando umas às outras com seus argumentos, limites e falhas, moldado assim a formação docente.

Todavia, o que parece ser recorrente nesse processo histórico é que o professor ainda não ocupa, a partir do seu processo de formação, o status de intelectual que sua profissão exige (Libâneo, 1995). Com a nova perspectiva para formação crítica, reflexiva e transformadora dos estudos no campo educacional, realiza-se a discussão sobre as diferentes dimensões que devem pautar a formação de professores. Essa nova concepção defende que o professor é construtor de conhecimentos a partir de sua prática pedagógica, e que a crítica e a reflexão são as bases fundamentais e necessárias quando se trata da formação desses profissionais.

Nessa nova concepção cabem as relevantes dimensões, a política e a humana, sem que estas percam de vista a intrínseca relação com a prática pedagógica. Nesse contexto, cabem críticas ao currículo tradicional que muitas vezes fragmenta os saberes docentes, quando não considera a prática social como ponto de partida e de chegada, que possibilite a (re)significação dos saberes na formação de professores.

Esse modelo de formação cuidadosa e reflexivamente construído destaca o desafio de sua concretização. Estudiosos, a partir da década de 80 na Europa, e posteriormente no Brasil, destacam a perspectiva histórico-cultural e apontam a necessidade de formar o professor compreendendo-o como um agente social mediador da cultura humana e construtor de conhecimentos. Assim, ele pode contribuir para a construção de uma sociedade de fato democrática e humana, opondo-se aos objetivos políticos e econômicos da sociedade capitalista, que interfere no modo como as pessoas pensam e constroem suas vidas, doutrinando-as e usando-as para atingir seus fins, que certamente não são a realização plena de todos os homens. Por isso, o grande desafio posto a partir dessa concepção (Arroyo, 2011).

Tal desafio também está posto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura-2006, sucedida pela de 2015, na medida em que ambas destacam que o egresso do curso de Pedagogia deverá estar apto a atuar com ética e compromisso para construção de uma sociedade mais justa e igualitária, e também apto a utilizar instrumentos próprios para construção de conhecimentos pedagógicos e científicos em sua prática educativa.

A partir desse conteúdo, é possível entender que tanto as diretrizes quanto os currículos marcam um processo que cumpre um compromisso oficial e que nem sempre costuma ser discutido para que se torne reflexo do pensamento do professor e demais pessoas ligadas ao cotidiano das escolas, sendo possível identificar ainda que tais currículos frequentemente se apresentam como um conjunto de prescrições a serem implementadas, o que nem sempre acontece.

A presença de um currículo concebido pelas leis não implica a sua execução total e irrestrita, ocorrendo muitas vezes de forma parcial, adaptada e (re)significada.

O currículo escrito não passa de um testemunho visível, público e sujeito a mudanças, uma lógica que se escolhe para, mediante sua retórica, legitimar uma escolarização. Como tal, o currículo escrito promulga e justifica determinadas intenções básicas de escolarização, à medida que vão sendo operacionalizadas em estruturas e instituições. Tomemos esta convenção comum, que é a matéria escolar, num currículo pré-ativo: enquanto o currículo escrito estabelece a lógica e a retórica da matéria, o que aparece é apenas o aspecto mais tangível, abrangendo padronização de recursos, meios financeiros, exames, iniciativas correlatas e interesses de carreira. Nesta simbiose, é como se o currículo escrito oferecesse um roteiro para a retórica legitimadora da escolarização, à medida que esta mesma retórica fosse promovida através de padrões para a alocação de recursos, atribuição de status e classificação profissional. Em síntese, o currículo escrito nos proporciona um testemunho, uma fonte documental, um mapa do terreno sujeito a modificações; constitui também um dos melhores roteiros oficiais para a estrutura institucionalizada da escolarização (Goodson, 2005, p.21).

Nessa perspectiva, acrescenta-se que o atual texto curricular (proposto/instituído e implementado) nos diferentes níveis de ensino é carregado de representações sociais, que, segundo Jodelet (2001), se constituem no pensamento a partir do qual o sujeito se relaciona com o objeto (pessoa, ideia, evento social ou natural), ou seja, a maneira como os grupos sociais constroem e organizam diferentes significados dos estímulos do meio social e as possibilidades de respostas que podem acompanhar esses estímulos. Assim entende-se que o texto curricular pode conservar estigmas que confirmam a superioridade e o privilégio de identidades, em termos de representação racial da herança colonial, que não se anula pelo simples fato de se acrescentarem informações superficiais sobre as diferentes culturas e identidades nacionais (Silva, 1999).

Os estudos culturais trouxeram para o centro da discussão científica os temas raça e etnia, assim como o real vínculo entre conhecimento, identidade e poder, que ganharam lugar na teoria do currículo, numa perspectiva crítica e fundamentada nas teorias sociais que questionam a construção social de raça, etnia e identidade. Silva (1999, p.104) destaca que “um currículo crítico que se preocupasse com a questão do racismo poderia precisamente colocar no centro de suas estratégias pedagógicas a noção de representação tal como definida nos estudos culturais”. Concorda-se com Silva (1999) quando, em seu artigo “O currículo como narrativa étnico-racial, numa perspectiva pós-crítica”, ele afirma que não se pode deixar de questionar sobre o que está no centro dos currículos, e que ainda é preciso reconhecer que estes podem ser racialmente enviesados ou esvaziados com relação a essa questão.

A partir do entendimento de currículo até aqui discutido, infere-se que transportá-lo da esfera do prescrito para a esfera do realizado ainda tem sido um desafio, especialmente quando se refere à temática étnico-racial, por se tratar de uma dimensão educacional e social - portanto, ainda mais complexa. As resistências silenciosas, que dão a falsa impressão de concordância com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) quanto à formação de professores, tornam ainda mais difícil a perspectiva de um currículo coerente. Tais diretrizes precisam ganhar força e ultrapassar a mera função formal, normativa e inócua.

No contexto de formação inicial do professor, enquanto as diretrizes não adquirirem significado, as regulamentações se caracterizarão apenas como indicações. O trabalho de significação exige uma empatia com a questão e passa pela discussão, compreensão e legitimação da sua necessidade ou não. Entendese que a quebra do silêncio em relação às regulamentações voltadas à educação étnicoracial no contexto acadêmico já seria um grande avanço, pois possibilitaria a ampliação da discussão, desconstruindo o silêncio dos currículos dos cursos de licenciaturas, que funcionam como mecanismo de manutenção das desigualdades raciais e sociais no interior também das universidades.

É evidente a fragilidade tanto na estruturação dos cursos de formação inicial como na formação continuada de professores, no que se refere à composição curricular das IES quanto à obediência tanto às DCN para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura (Brasil, 2015), quanto à Lei nº 10.639 (Brasil, 2003) e ao Parecer nº 1 do CNE (Brasil, 2004) - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER). Nessa perspectiva, também se questiona se os currículos dos cursos de licenciatura em Pedagogia criam espaços para essas reflexões emergentes.

A presença da Lei nº 10.639/03 nos currículos das Instituições de Ensino Superior que oferecem a Licenciatura em Pedagogia - Programa Nacional de Formação de Professores (PARFOR) 4 no estado de São Paulo

A presente pesquisa tem delineamento qualitativo de caráter descritivo-exploratório. O estudo documental buscou respostas para os seguintes questionamentos: após uma década da promulgação da Lei nº 10.639/03 e a partir das Diretrizes Curriculares das Relações ÉtnicoRaciais, como a temática é tratada nos currículos de IES parceiras da CAPES, em atendimento à política nacional de formação de professores? As diretrizes continuam sendo uma possibilidade ou já são fato nessas instituições?

De acordo com os objetivos do estudo, foram utilizados como metodologia o levantamento documental e a análise de conteúdo (Bardin, 2009) para tratar os dados coletados. As diferentes fases da análise de conteúdo organizam-se em torno de três polos, conforme Bardin (2009, p.121): 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; e, por fim, 3) o tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação.

Inicialmente, para obtenção inicial dos dados, realizou-se um levantamento das IES ofertantes do curso Pedagogia, o que possibilitou definir como amostra representativa da população estudada, as IES do estado de São Paulo ofertantes de cursos de licenciatura em Pedagogia, realizados em parceria com a CAPES, por meio do Programa Nacional de Formação de Professores (PARFOR). Tais dados estão disponíveis no portal da CAPES.

Realizada a seleção da amostra, procedeu-se à análise propriamente dita dos dados, mediante a leitura geral e preliminar dos currículos, obtidos nos respectivos portais das IES. Buscou-se identificar no material, especificamente, a presença das orientações da Lei n°10.639 (Brasil, 2003); da Resolução nº 1 do CNE, de 17 de junho de 2004, que instituiu as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana; do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (Brasil, 2009b); e das DCN para o Curso de Graduação em Pedagogia, Licenciatura (Brasil, 2015).

Na sequência realizou-se maior exploração do material, que consistiu nos recortes dos textos em unidades de registros (as informações textuais, representativas das características do conteúdo). Foi verificada a frequência com que, nos documentos analisados, apareceram disciplinas e/ou temáticas que indicavam uma abordagem das relações étnico-raciais. Assim, o processo de análise foi realizado a partir de registros documentais, apresentados pelas ementas, pelas matrizes curriculares e pelos Projetos Político-Pedagógicos das IES.

O tratamento dos resultados (inferência e interpretação) consistiu em identificar os conteúdos manifestos no conjunto dos materiais citados, ou seja, analisou-se a inclusão da discussão étnico-racial objeto de legislação educacional específica, a partir da matriz curricular e do Projeto Pedagógico dos cursos. Buscou-se identificar a invisibilidade - o silêncio acerca dos temas, caracterizado pela ausência de disciplinas voltadas para discussão da temática, e o não tratamento pedagógico na organização curricular -, bem como a inclusão de temáticas e/ou disciplinas revelando o reconhecimento (porém ainda tratado de forma descontextualizada) e a discussão da temática fazendo parte do currículo e dos núcleos de formação e considerando o referencial estudado (legislação e estudos pertinentes à área, conforme citado anteriormente).

Como resultado da amostra constituída das IES ofertantes de cursos de licenciatura em Pedagogia e integrantes do sistema PARFOR, foram identificados 22 cursos em andamento em 2014, com um total de 63 turmas funcionando em 22 unidades de ensino superior distribuídas em 20 municípios, pertencentes a 12 regiões administrativas do estado de São Paulo, com maior concentração na região noroeste do estado. A maioria dos municípios integrantes do PARFOR estão entre as cidades mais populosas do estado de São Paulo (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2014). Na sequência, apresenta-se a caracterização das IES pelo tipo e pela natureza (Quadro 1).

Observa-se a predominância de universidades privadas, parceiras da CAPES, ofertantes de cursos de licenciatura em Pedagogia no estado de São Paulo. Com relação ao número de turmas em andamento à época do levantamento, conforme quadro a seguir, a maioria está sob a responsabilidade das instituições de ensino superior privadas, representando 80% (Quadro 2).

Quanto à caracterização dos cursos, foram buscadas informações sobre as matrizes curriculares, ementário e Projeto Político-Pedagógico das IES. Conforme já indicado, o acesso se deu a partir da página oficial (portais) das respectivas instituições, no período de abril a maio de 2014.

Das Instituições de Ensino Superior pesquisadas, apenas oito disponibilizam publicamente o Projeto Pedagógico do curso com as respectivas matrizes curriculares e ementário; apenas três disponibilizam o ementário e a matriz curricular; e onze instituições só disponibilizam as matrizes curriculares.

Todas as instituições possuem curso autorizado, atendendo às Diretrizes Curriculares Nacionais - Resolução CNE nº 1, de 2006. Portanto, os cursos denominam-se “Pedagogia Licenciatura”, conforme os Artigos 2º e 4º da mesma Resolução, e destinam-se à formação de professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, bem como atividades que compreendam participação na organização e gestão de sistemas e instituições de ensino. Também todas as instituições oferecem o curso na modalidade presencial, a grande maioria no período noturno.

Quanto à duração dos cursos, do total de 22 instituições, 6 possuem curso com duração de três a três anos e meio. Nas demais instituições, o período mínimo de integralização do curso é de quatro a quatro anos e meio. No que se refere à carga horária mínima de 3.200 horas prevista pela legislação, ela é adotada por 4 instituições, enquanto as demais possuem entre 3.220 e 4 mil horas, divididas nos núcleos de Estudos Básicos, Aprofundamento e Diversificação de Estudos e Estudos Integradores. Os cursos apresentam diferentes percursos formativos do pedagogo, implicando variação do número de créditos/horas-aula, arranjos disciplinares e, consequentemente, carga horária.

Número de Instituições de Ensino Superior caracterizadas pelo tipo e natureza.
Quadro 1
Número de Instituições de Ensino Superior caracterizadas pelo tipo e natureza.
Fonte: Dados organizados pela autora a partir de informações disponíveis nos portais (Brasil, Ministério da Educação/Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

Número de turmas em andamento nos cursos por tipo de instituição.
Quadro 2
Número de turmas em andamento nos cursos por tipo de instituição.
Fonte: Dados organizados pela autora a partir de informações disponíveis nos portais (Brasil, Ministério da Educação/Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), com acesso em maio de 2014.

Realizou-se um levantamento do Projeto Pedagógico dos cursos estudados, com o objetivo de identificar os princípios e objetivos do curso de Pedagogia. Destaca-se que oito instituições disponibilizam as referidas propostas, enquanto os demais portais traziam apenas uma breve apresentação do curso, com algumas informações. Diante dos dados levatados, identificou-se, com relação aos princípios declarados, que de maneira geral há ênfase quanto a: indissociabilidade entre teoria e prática; articulação entre ensino, pesquisa e extensão; interdisciplinaridade; interação entre teoria e prática; contextualização, democratização, ética e sensibilidade estética no desenvolvimento do conhecimento plural; organização curricular direcionada ao desenvolvimento reflexivo, crítico, dinâmico e criativo; experiência investigativa visando à reflexão acerca de aspectos políticos e culturais da ação educativa; formação humanista crítica e reflexiva, visando à construção de valores éticos e humanizadores.

Quanto aos objetivos gerais e específicos, observa-se a referência direta ao artigo 5º da Diretriz Curricular Nacional para o curso de graduação em Pedagogia, licenciatura (Brasil, 2006). Destaca-se a indicação de formação de profissionais capazes de: analisar e interferir na realidade educacional a partir da formação sólida e consistente para o exercício da docência e atuação na gestão da educação básica com perspectiva inclusiva; exercício da pesquisa em sua prática pedagógica; atuar na perspectiva multidisciplinar para enfrentar os desafios produzidos pelas novas demandas surgidas na sociedade moderna; identificar problemas socioculturais e educacionais com postura investigativa e propositiva; compreender o fenômeno educativo na sua diversidade e complexidade; participar ativamente nos processos de transformação social para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e solidária.

Cabe destacar que, embora o referido artigo da DCN (Brasil, 2006) seja sempre apontado como referência dos objetivos dos cursos, os incisos V, IX e X não aparecem como contemplados nas grades curriculares, à exceção de quatro instituições. Na maioria das grades curriculares das instituições, não aparecem de forma direta, em nenhum dos núcleos estruturantes do curso, conteúdos/temáticas sobre as relações étnico-raciais. Somente quatro instituições atendem em sua grade curricular ao que definem as DCNERER (Brasil, 2004), incluindo disciplinas que abordam diretamente a temática.

No que se refere à matriz curricular, a partir dos dados disponíveis nos portais dessas quatro instituições, identificou-se a descrição de disciplinas que fazem referência à temática étnico-racial no currículo, bem como sua incidência no curso, carga horária e localização no semestre, como ilustra o Quadro 3.

Disciplinas que compõem as matrizes curriculares com a temática étnico-racial.
Quadro 3
Disciplinas que compõem as matrizes curriculares com a temática étnico-racial.
Fonte: Dados organizados pela autora a partir de informações disponíveis nos portais das Instituições de Ensino Superior.

Das Instituições de Ensino Superior destacadas no Quadro 3, três delas - as indicadas pelos números (2), (3) e (4) - apresentam disciplinas com temática étnico-racial, que compõem o Núcleo Básico para formação docente, com carga horária de 26 a 40 horasaulas, distribuídas entre o 4º e 6º períodos do curso. A IES indicada pelo número (1) apresenta em sua matriz curricular uma disciplina oferecida como optativa no primeiro período, porém não consta a carga horária.

Destaca-se ainda que, dessas quatro instituições privadas, somente uma delas, a de número (3), disponibiliza a ementa da disciplina “Educação para as Relações Étnico-Raciais”, prevista com 26 horas, compondo o Núcleo Temático - formação docente, no 6º período do curso. A disciplina propõe a análise das relações sociais e étnico-raciais no Brasil, a partir de aspectos conceituais, históricos e políticos. Propõe ainda, de forma crítica, a articulação entre o referencial teórico e o desenvolvimento de práticas pedagógicas relativas a uma educação para as relações étnico-raciais.

Quanto à possibilidade de outras disciplinas tratarem a temática de forma transversal ou interdisciplinar, a mesma instituição (3) apresenta na grade curricular e no ementário as disciplinas Educação e Alteridade I e II, com total de 52 horas, que também compõem o núcleo temático formação docente, propondo o estudo da construção social da alteridade e da educação no contexto da globalização e dos extremos, pela ótica da diversidade, da pluralidade cultural e do multiculturalismo, com vista à ação pedagógica no espaço escolar e à formação do professor. Os demais 18 cursos apresentam em suas matrizes curriculares disciplinas que, de acordo com o levantamento, permitiram identificar algumas possibilidades que se infere como oportunidades para discussão da temática de forma transversal. No entanto, torna-se difícil confirmar tal inferência, pois não foi possível analisar as ementas, por não estarem disponíveis.

A partir do levantamento realizado, como aqui se contextualizou, sobre a questão étnico-racial nos currículos dos cursos de formação de professores, buscou-se refletir sobre o que define a resistência ao cumprimento da legislação (regulatória ou regulamentária) no que concerne à organização curricular dos cursos de formação de professores. E ainda a quem cabe cobrar a coerência desses currículos com relação aos princípios e objetivos definidos não só pelas diretrizes, mas também pelas próprias instituições formadoras. As diretrizes da política de formação para professores têm sido questionadas pelos órgãos competentes quanto à ausência/presença da temática das questões raciais nos currículos voltados para formação do perfil crítico e reflexivo do profissional professor?

Ao se discutir e reconhecer que tanto as diretrizes quanto os currículos marcam um processo que cumpre uma determinação oficial, atenta-se para a perspectiva de que estes normalmente se apresentam como um conjunto de prescrições a serem implementadas, o que nem sempre acontece. Os princípios e objetivos dos cursos aqui destacados apresentam em seus currículos escritos a representação de um documento legal, no qual estão declaradas as intenções políticas em termos oficiais e, embora sejam fontes documentais imprescindíveis para o funcionamento institucional, ele está sujeito às subjetividades, à negação e a um jogo de forças.

A partir dos dados apresentados, evidencia-se que em 45% dos currículos das IES estudadas ainda impera a invisibilidade, o silêncio caracterizado pela ausência de disciplinas voltadas para discussão da temática e, consequentemente, o não tratamento pedagógico ou ainda o tratamento superficial do tema na organização curricular. Com relação à inclusão de temáticas e/ou disciplinas abordadas de forma transversal ou interdisciplinar, 50% das matrizes curriculares parecem ter potencial para tal reconhecimento, porém a referida temática ainda é tratada de forma não sistematizada e, muitas vezes, oferecida em disciplinas optativas. Quanto à discussão da temática contextualizada por disciplinas que fazem parte do núcleo de formação para a prática docente, ela está caracterizada por apenas 5% das IES em suas matrizes curriculares. Isso revela que a presença de um currículo concebido pelas leis não implica a execução total e irrestrita do mesmo, ocorrendo esta muitas vezes de forma parcial, adaptada e (re)significada.

Se as instituições formadoras não forem chamadas a pensar sobre a questão de como superar os desafios postos pelos profissionais - que justificam a ausência da temática étnicoracial na sua prática cotidiana por não terem referências e formação para trabalharem, o círculo vicioso da invisibilidade do preconceito e racismo não será rompido. Os dados apontados pelo levantamento realizado por este estudo indicam que a Política Nacional para formação de professores e as pretensões do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, ainda encontram dificuldades para avançar. Quanto à formação de um perfil profissional com atuação voltada para a superação do paradigma social da falsa democracia racial presente nas instituições de ensino em todos os níveis, seu impacto - efeito de primeira e de segunda ordens -, não se faz presente nos currículos, uma vez que somente 5% dessas IES incluem a discussão do tema.

Como contraponto ao explicitado neste estudo, Vieira (2007, p.4) especifica:

As políticas que traduzem as intenções do Poder Público, ao serem transformadas em práticas, se materializam na gestão. A gestão pública é integrada por três dimensões: o valor público, as condições de implementação e as condições políticas. O valor público, como a própria expressão revela, dá conta da intencionalidade das políticas. Quando a Constituição afirma a educação como um “direito de todos e dever do Estado e da família” (Art. 205) está professando um valor público que, para ganhar materialidade, precisa se traduzir em políticas. Estas, uma vez concebidas, são operacionalizadas através de ações que concretizam a gestão.

Isso significa dizer que uma política materializada somente pela prescrição legal não é suficiente para promover as transformações necessárias. Mais que isso, é preciso gestão das prescrições legais para que a intencionalidade se concretize em ações. Além disso, outro aspecto a ser destacado insere-se especificamente no campo do currículo, enquanto expressão cultural, política e social a ser decifrada. Teóricos da área do currículo como Sacristán (2000) o descrevem como um campo conflituoso, de lutas e contradições, assim os definindo:

Os currículos são a expressão do equilíbrio de interesses e forças que gravitam sobre o sistema educativo num dado momento, enquanto que através deles se realizam os fins da educação no ensino escolarizado. [...] O currículo, em seu conteúdo e nas formas através das quais se nos apresenta e se apresenta aos professores e alunos, é uma opção historicamente configurada, que se sedimentou dentro de uma determinada trama cultural, política, social e escolar; está carregado, portanto, de valores e pressupostos que é preciso decifrar (Sacristán, 2000, p.17).

Para que a política nacional de formação de professores e as diretrizes obtenham impacto nos currículos das IES, ainda será necessário que o contexto da estratégia de gestão identifique um conjunto de atividades sociais e políticas levadas a termo pelos atores envolvidos, com vistas a lidar com esse desafio que não se esgota com o termo prescritivo das legislações.

A esse respeito Silva e Ferreira (2006, p.2) expõem:

[...] no tocante à formação inicial realizada pelos cursos de Pedagogia e demais licenciaturas, porém, desde a promulgação da Lei em 2003, pouco tem sido feito para sua operacionalização. O que se percebe é certo descaso das instituições na construção de um projeto político-pedagógico com o objetivo de instrumentalizar os futuros educadores [...] para a inclusão da história e cultura do negro no currículo da escola, através de um processo de mobilização, de modo a redimensionar as ações educativas em relação a conteúdos, metodologias, recursos didáticos e práticas avaliativas que valorizem e difundam os conhecimentos oriundos da matriz negro-africana e, principalmente, ao tratamento adequado das questões raciais em sala de aula.

Com base nessa perspectiva sobre modelos e concepções de currículos que foram sendo redefinidos ao longo do tempo, os currículos dos cursos de licenciaturas, embora tenham sofrido transformações no sentido de ampliar a dimensão formativa de professores no que se refere à educação para as relações étnico-raciais, ainda ficam subentendidos a uma visão sócio-histórica da educação.

Considerações Finais

Considerando os dados divulgados pelo MEC (Brasil, 2016), em 2013 o PARFOR chegou a 70.220 professores matriculados. Verifica-se que as políticas de expansão do ensino superior, a partir do referido programa nacional, estão surtindo o efeito quantitativo; porém, coloca-se em questão o descuido dessa política quanto à não observância da legislação apontada no decorrer desta reflexão. Entretanto, levando em conta as características dos currículos analisados, destaca-se que a qualidade da formação proposta pelos currículos dos cursos, almejada pela política nacional de formação de professores, necessita de uma gestão mais cuidadosa junto às instituições parceiras.

Faz-se necessário avançar na discussão desses currículos, sendo necessários ajustes na estrutura curricular dos cursos para introduzir componentes curriculares e conteúdos relativos ao tema das relações étnico-raciais, considerando a sua importância para os futuros pedagogos. Mesmo sendo exigida a preparação do professor para trabalhar com a temática da Cultura Afro-Brasileira, ainda se observa sua incipiente presença nos currículos dos cursos de licenciatura oferecidos pelas IES que integram o PARFOR no estado de São Paulo.

Não seria essa uma oportunidade para os órgãos competentes interferirem nesses currículos dos centros acadêmicos parceiros? Esse não posicionamento da instituição não agrava ainda mais o velho problema de formação docente, que é a desarticulação entre teoria e prática reflexiva, consolidando velhos discursos que refletem diretamente na ação educativa?

Entende-se que retirar o currículo da esfera do prescrito para trazê-lo à esfera do realizado pode ser uma questão tanto de ordem subjetiva quanto objetiva. No entanto, no que se refere à temática étnico-racial, o processo é ainda mais complexo, pois é mais difícil agregar um coletivo para fazer frente às resistências silenciosas que dão a falsa impressão de concordância com as diretrizes. Estas precisam ganhar força e sair da situação de mera formalidade normativa. Dentro do contexto de formação inicial do professor, enquanto as diretrizes não adquirirem significado, a lei se caracterizará apenas como uma indicação. O trabalho de significação exige um contexto empático e passa pela discussão, compreensão e legitimação da sua necessidade ou não. A imposição da quebra do silêncio em relação à lei no contexto acadêmico já seria um grande avanço, pois possibilitaria a ampliação dos âmbitos da discussão.

Pensar a licenciatura significa pensar uma formação docente mais completa, a fim de que o professor tenha oportunidade de construir conhecimentos ligados ao processo de constituição das relações humanas em uma perspectiva antropológica e filosófica, que permita entender o complexo processo ensino-aprendizagem (e por que não dizer?) em uma perspectiva moral e ética. Uma formação deve ser capaz de empoderar o sujeito no sentido de dispor-se a evidenciar o silenciado, aquilo que a sociedade fez e faz questão de invisibilizar, como os mecanismos históricos de dominação e de exploração entre grupos humanos, e assim obter a possibilidade de participar do processo de desconstrução de percepções, juízos e valores que descaracterizam categorias humanas.

É certo que a formação inicial não dá conta de formar com excelência na matéria. Entretanto, não vem ocorrendo nem mesmo a estruturação de um repertório informativo capaz de promover o enfrentamento e questionamento sobre o mito da democracia racial vigente no imaginário da sociedade, o qual, por sua vez, contribui para que o professor se situe enquanto mero consumidor de crenças e teorias alheias perpetuadas. Esse problema desvela, faz emergir e ainda sugere o desafio a ser enfrentado e a necessidade de ações políticas intersetoriais e/ou transversais, que sejam capazes de romper as fronteiras raciais e étnicas que vão sendo produzidas no interior dos currículos das IES e que, consequentemente, reforçam a invisibilidade e o estereótipo da Cultura Africana e Afro-Brasileira nas práticas pedagógicas da Educação Básica, o que repercute em todos os níveis educacionais.

Ainda que a atual Resolução nº 2 do CNE (que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação docente inicial em nível superior e para a formação continuada) reafirme os princípios e procedimentos a serem observados nos cursos de formação; ainda que ela reafirme que o projeto de formação deva contemplar questões relativas à diversidade étnico-racial e sociocultural; ainda assim se entende que adequar o Projeto Pedagógico de Curso é pouco para a real efetivação da Lei nº 10.639/03. Embora tal lei esteja voltada para a educação básica, a partir dela também ficam implicados os currículos dos cursos de formação de professores, pois a questão envolve formandos e formadores.

Por fim, buscar nas matrizes curriculares o prescrito traz a necessidade de diferenciar o silêncio e a ausência de posição acerca da temática étnico-racial. Assim, este estudo enfatiza que, embora a Lei nº 10.639/03 seja relevante no contexto histórico em que foi promulgada, ela não é suficiente para atingir o intuito de corrigir distorções históricas sofridas por negros e afrodescendentes. É preciso acrescer um intenso trabalho de acompanhamento, pelos órgãos gestores competentes, em relação às ações previstas, especialmente no que tange aos currículos que compõem os programas de formação docente, no sentido de suscitar entre educadores o interesse e significação para o trabalho de mudança em sua prática profissional.

Referências

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Notas

2 Schwarcz (1999) sintetiza tal posição esclarecendo que o mito da democracia racial aparece ancorado na cultura. “Mito”, no sentido em que os antropólogos empregam, é um conjunto de ideias e valores poderosos que se enfraquecem, porém não desaparecem. Isso significa dizer que o mito da democracia racial se mantém par a além da desconstrução racional, ou seja, no Brasil, mesmo reconhecendo a existência do preconceito, a ideia de harmonia racial se impõe aos dados e à própria consciência da discriminação.
3 Destaca-se que, durante o processo de elaboração e aprovação deste artigo, foi publicada a Resolução do CNE nº 2, de 1º de julho de 2015, como documento que atualiza e complementa o Parecer nº 3 do CNE, de 21 de fevereiro de 2006 (Brasil, 2006).
4 O PARFOR, na modalidade presencial, é um programa emergencial instituído para atender ao disposto no artigo 11, inciso III, do Decreto nº 6.755, de 29 de janeiro de 2009, e implantado em regime de colaboração entre a CAPES, os estados, municípios, o Distrito Federal e as Instituições de Educação Superior (Brasil, 2009a).
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