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A formação inicial de professores de sala de recursos multifuncionais a partir do olhar dos professores atuantes
The initial preparation of multifunctional resource room teachers in the perspective of working teachers
A formação inicial de professores de sala de recursos multifuncionais a partir do olhar dos professores atuantes
Revista de Educação PUC-Campinas, vol. 23, núm. 1, 2018
Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Recepção: 10 Outubro 2013
Revised document received: 14 Maio 2017
Aprovação: 29 Maio 2017
Resumo: A questão sobre a formação do professor de Educação Especial é controversa; alguns defendem que seja na formação inicial enquanto outros apontam a formação continuada. O presente estudo teve como objetivo investigar o que os professores que atuam no atendimento educacional especializado pensam sobre como deve ser a formação inicial em Educação Especial. O estudo, de natureza qualitativa, baseado na metodologia de pesquisa colaborativa, teve a realização de grupos focais com professores de 14 cidades do Brasil. Os dados se referem a 134 excertos, analisados e codificados no software ATLAS.ti, selecionados por se referirem especificamente à formação inicial ideal para atuar em Educação Especial. Os resultados mostram que os professores tendem a valorizar a própria formação, em sua maioria a Pedagogia. Ao mesmo tempo que defendem suas graduações como o melhor lócus de formação, também demandam muitas mudanças, como a inserção de conteúdos teórico-práticos específicos da Educação Especial, a ponto de se questionar se seria viável, e se a solução da formação seria a base generalista. Muitas dessas mudanças são decorrentes da complexidade do papel do professor de Educação Especial conforme a atual política de inclusão escolar, mas pouco se questiona se as atribuições que lhe são impostas são viáveis, se existe algum tipo de formação que leve a esse superprofissional, ou mesmo se é essa a política de atendimento que garante o direito à educação de alunos público-alvo da Educação Especial.
Palavras-chave: Educação especial, Educação inclusiva, Formação inicial de professores.
Abstract: The issue of training teachers to work in Special Education, of whether it should take place in the initial training or continuing education, is a controversial one. This study aimed to investigate what teachers who work in specialized educational services think about how their initial training in special education should be. The qualitative study was based on collaborative research methodology, with teachers in focus groups from 14 cities of Brazil. The data analyzed refers to 134 excerpts, analyzed and codified with the software ATLAS.ti. The selected excerpts contain specific mentions to their thoughts about the ideal initial training for Special Education. Results show that teachers tend to value their training, which is predominantly in Pedagogy. Although pedagogue teachers defend their training as the best training locus, they also believe a lot of changes are needed, such as the inclusion of specific theoretical and practical Special Education content, even questioning if general training is the best option and yet if it would be feasible. Many changes were due to the complexity of the special education teacher’s role in the current school inclusion policy, but without a reflection on whether the duties imposed on them are viable, if there is some kind of training that would give rise to this super professional, or even if this policy guarantees Special Education students their right to education.
Keywords: Special education, Inclusive education, Initial teacher education.
Introdução
O percurso histórico da formação dos professores de Educação Especial no Brasil demonstra uma diversidade de propostas ao longo do tempo nos diferentes estados, que em parte pode ser explicada pela falta de diretriz na política de formação ou mesmo de diferentes compreensões de como deve ser essa formação (Mendes, 2011).
Na Lei de Diretrizes e Bases nº 9.394/96 (Brasil, 1996), no Art. 59, apenas um item discursa superficialmente sobre a formação do professor de Educação Especial. A orientação é de que se disponha de “professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns” (Brasil, 1996, p.35). Entretanto, fora a especificação da necessidade de se prover formação para os dois tipos, o professor da classe comum e do atendimento especializado, ficou para a história definir como seria essa formação visando à capacitação e à especialização dos professores.
O documento Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (Brasil, 2001b), reconhecendo que a mudança proposta para a educação básica traz desafios para a formação de professores, afirma que a qualidade da formação inicial seria essencial para garantir um desempenho adequado nesse novo contexto. Assim, considerando que a educação básica deveria ser inclusiva, a formação dos professores deveria contemplar informações que garantam conhecimentos sobre a educação de estudantes Público-Alvo da Educação Especial (PAEE) (Brasil, 2001b).
A Resolução CNE/CEB nº 2 (Brasil, 2001a, online), que definiu as diretrizes da Educação Especial no contexto da Educação Básica, estabeleceu em seu Art. 18, Inciso 1º, que professores especializados em Educação Especial deveriam comprovar:
I – formação em cursos de licenciatura em educação especial ou em uma de suas áreas, preferencialmente de modo concomitante e associado à licenciatura para educação infantil ou para os anos iniciais do ensino fundamental;
II – complementação de estudos ou pós-graduação em áreas específicas da educação especial, posterior à licenciatura nas diferentes áreas de conhecimento, para atuação nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio.
Saviani (2009), ao abordar o contexto da formação de professores em Educação Especial, após a publicação desse documento, destacou:
Considerada a complexidade do problema inerente a essa modalidade, de certo modo evidenciada nos vários aspectos contemplados no próprio documento do Conselho Nacional de Educação que fixou as diretrizes curriculares nacionais para a Educação Especial na educação básica, será necessário instituir um espaço específico para cuidar da formação de professores para essa modalidade de ensino. Do contrário essa área continuará desguarnecida e de nada adiantarão as reiteradas proclamações referentes às virtudes da educação inclusiva que povoam os documentos oficiais e boa parte da literatura educacional nos dias de hoje
(Saviani, 2009, p.153).Até o ano de 2006, a formação do professor de Educação Especial poderia se constituir em habilitação específica do curso de Pedagogia. Entretanto, a Resolução CNE/CP nº 1, de 15 de maio de 2006 (Brasil, 2006), que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, dispôs que a formação dos professores nos cursos de Pedagogia se destinasse apenas para atuação na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, excluindo definitivamente a possibilidade de formações por habilitações, eixos ou áreas, como acontecia em alguns cursos de Pedagogia.
Em 2008, a publicação do documento Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE-EI) (Brasil, 2007) especificou que a formação do professor para atuar na modalidade de Educação Especial, deveria contemplar conhecimentos da docência e específicos da área, oferecidos na formação inicial e continuada. Entretanto, a extinção das habilitações nos cursos de Pedagogia limitou as possibilidades de formação inicial em Educação Especial, pois até então havia no país um único curso de Licenciatura específica nessa área, na Universidade Federal de Santa Maria.
Na tentativa de atender à demanda emergente de formação, tendo em vista a política de educação inclusiva, o Ministério de Educação lançou programas de incentivo, na década de 2000, sendo eles: “Programas, projetos e ações oficiais de formação de professores”, “Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade”, Programa de Formação em Educação Inclusiva” e “Programa de Apoio à Educação Especial”. A partir desse momento propunha-se que os conhecimentos sobre Educação Especial passariam a ser diluídos no decorrer dos cursos de licenciaturas, passando seu aprofundamento para a formação continuada, mais especificamente para o nível de especialização lato sensu. Assim, o professor de Educação Especial recomendado passou a ser um licenciado especialista, na maioria dos casos um pedagogo com especialização em Educação Especial, sendo esse o perfil de uma grande parcela dos professores em atuação. Entretanto, é possível encontrar alguns professores formados em Pedagogia com habilitação e, em menor escala, professores com Licenciatura em Educação Especial.
Essa configuração, como aponta Garcia (2011), indica a formação de um professor generalista, mais pedagógico que especializado, visto que a base desse profissional da educação especial e do ensino comum é a mesma. Na visão da autora, isso leva a crer em um professor mais aberto e disposto ao debate pedagógico e com atuação menos clínica, sendo mais próximo da escola comum.
No contexto atual, o curso de Licenciatura em Pedagogia forma o professor para o ensino comum e, de acordo com Fernandes (2012, p.284):
A formação inicial de professores para a inclusão escolar na atualidade deve-se pautar em matrizes curriculares que atendam princípios legais, filosóficos e epistemológicos que preparem o futuro docente para atuar em classes comuns tendo como possível diversidade do cotidiano escolar alunos com necessidades especiais.
No ano de 2007 foi lançada a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2007), que propulsionou o aumento da matrícula de alunos público-alvo da Educação Especial nas escolas comuns e a criação de salas de recursos multifuncionais para apoiar a escolarização desses alunos, trazendo novas demandas para a formação de professores.
Oliveira e Mendes (2016), analisando o cenário da formação inicial de professores de Educação Especial no país, identificaram a existência de onze cursos de licenciatura em Educação Especial, oferecidos por oito universidades, das quais seis de caráter comunitário/ filantrópico e duas de natureza pública. Segundo as autoras, os cursos encontrados nas universidades privadas ocorriam em parceria favorecida pelo Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Básica (PARFOR) (Brasil, 2009) e aconteciam em regime especial, sendo voltados à formação de professores que já atuavam na rede regular de ensino.
Apenas dois dos cursos de licenciatura eram ofertados em universidades particulares sem tais convênios (Universidade Regional de Blumenau [Furb] e Universidade do Oeste de Santa Catarina [Unoesc]), e havia ainda duas universidades públicas com ofertas de cursos de licenciatura plena em Educação Especial (Universidade Federal de Santa Maria [UFSM] e Universidade Federal de São Carlos [UFSCar]). O curso da UFSM – diurno foi criado em 1977 e se configurava como licenciatura plena com habilitação em deficientes intelectual e da audiocomunicação.
Na Universidade Federal de Santa Maria dois outros cursos de licenciatura plena em Educação Especial foram criados, um no período noturno e outro na modalidade à distância a partir do plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). A proposta do curso de Educação Especial na UFSCar também surgiu a partir do REUNI, em 2009. Assim, a maior parte desses cursos surgiu possivelmente para responder às demandas da politica educacional de inclusão escolar, e das lacunas decorrentes da extinção da habilitação em Educação Especial do curso de Pedagogia (Brasil, 2006).
A Conferência Nacional de Educação de 2010 (Brasil, 2010), abordando o tema da profissionalização docente, apontou tanto a necessidade de valorização quanto da formação, indicando que na formação de professores a teoria e a prática deveriam ser indissociáveis, permeando todo o curso, e disciplinas estando presentes durante toda a formação inicial. Além disso, essa conferência tratou da questão da educação inclusiva, referindo-se à necessidade de formação para o respeito à diferença, ao reconhecimento e à valorização da diversidade, além do compromisso com a aprendizagem e o desenvolvimento de todos os alunos.
Jesus e Alves (2011) apontam a importância do direcionamento da formação do professor de Educação Especial para uma atuação baseada na articulação do seu trabalho com a educação geral, com base em planejamentos, organização e coordenação dos espaços e práticas.
Oliveira e Mendes (2016) consideram que a questão sobre qual seria a formação ideal para professores especializados, se uma formação especializada desde o início, ou uma formação inicial comum agregada a uma formação continuada especializada, permanece sem respostas, uma vez que são escassos os estudos que focalizam esse problema ou comparam diferentes abordagens de formação.
No presente, os professores que atuam em Educação Especial são majoritariamente pedagogos, professores com outros tipos de licenciaturas e alguns poucos com formação específica adquirida nos extintos cursos de Pedagogia com habilitação de Educação Especial ou em cursos de licenciatura plena em Educação Especial (Mendes; Cia; Cabral, 2015).
O que esses professores em exercício têm a dizer sobre a formação ideal? O presente estudo teve como objetivo trazer luz a essa questão, investigando o que os professores que atuam no atendimento educacional especializado pensam a respeito da formação inicial em Educação Especial.
Procedimentos Metodológicos
O estudo, de natureza qualitativa, foi baseado numa metodologia de pesquisa do tipo colaborativa que, em sua acepção original, significa fazer pesquisa “com” os professores e não “sobre” eles (Lieberman, 1986). A pesquisa colaborativa se insere no conjunto de práticas de pesquisa de caráter participativo e envolveu quatro etapas, visando: (a) conduzir os procedimentos éticos; (b) coletar descrições dos professores, que no caso foi sobre a formação inicial; (c) intervir por meio da análise dos dados coletados na etapa anterior e promovendo reflexão sobre os dados, (d) avaliar a intervenção com a reconstrução de propostas de formação de professores especializados. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (Parecer n°382/2011).
O estudo foi desenvolvido simultaneamente em 56 municípios de 17 estados brasileiros: Alagoas, Amapá, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, São Paulo, Santa Catarina e Sergipe. A coleta de dados foi realizada mediante a organização de grupos de trabalhos coletivos e grupos focais com 203 pesquisadores das universidades envolvidas, e 760 professores de salas de recursos multifuncionais dos municípios participantes. Todos os pesquisadores que conduziram os grupos focais em suas localidades colaboraram na construção e validação do roteiro de questões disparadoras.
O estudo realizado com professores de Salas de Recursos Multifuncionais (SRM) tinha como alvo produzir conhecimento sobre três focos: os alunos, os professores em atuação e o ensino nessas salas. Para produzir os dados, uma série de encontros reflexivos foi realizada com os professores, usando a técnica de entrevistas com grupos focais. Para cada foco ou tema abordado (aluno, professor, ensino) foram realizados quantas sessões ou encontros fossem considerados necessários para a coleta de dados.
No presente estudo, os dados analisados se referem aos relatos de professores de salas de recursos, nos encontros que visavam às reflexões sobre o perfil do professor dessa sala. As questões disparadoras para esses encontros visavam conhecer como foi o ingresso do professor na área; sua formação inicial e continuada; as demandas para o professor especializado, decorrentes da política de inclusão escolar; opiniões sobre a formação ideal do professor especializado para atuar nas salas de recursos multifuncionais; indagação sobre se eles se sentiam aptos ou não para atuar nesses serviços para qualquer nível de ensino e com todos os tipos de alunos; e sobre o nível de satisfação com a profissão e a própria atuação.
O recrutamento dos professores das salas de recursos multifuncionais foi feito pelos diferentes pesquisadores em seus respectivos estados, a partir do interesse deles em fazer parte da pesquisa, sendo todos professores de Educação Especial atuantes, independentemente do tempo de experiência no cargo. Dessa forma, o perfil dos participantes é bastante variável, abrangendo desde o professor iniciante ao que estivesse em vias de se aposentar, possuindo apenas a formação inicial ou pós-graduação, seja lato sensu ou stricto sensu.
As falas dos participantes dos grupos focais foram gravadas e transcritas pelos pesquisadores e cedidas para compor um banco de dados do projeto, sendo que o presente estudo foi feito a partir das narrativas contidas nos arquivos desse acervo. Incialmente foi feito um tratamento prévio dos dados a partir da separação das entrevistas transcritas de todos os grupos de pesquisadores, nos três eixos temáticos do estudo: aluno, professor, e organização e funcionamento das salas de recursos multifuncionais. Cada um desses eixos contém respectivamente 82, 68 e 95 documentos para análise, sendo que cada documento se referia às sessões transcritas de grupos focais. Cada um desses documentos foi importado no ambiente do software visando à análise individualizada.
A análise desse tipo de dado qualitativo é baseada na técnica de codificação comumente utilizada, usando um conjunto de dez passos (Hancock, 2002): (1) Leitura dos trechos de dados de texto em busca de informações relevantes e identificação de códigos que representem essa informação; (2) Elaboração do sistema de códigos diferentes; (3) Estabelecimento de códigos de grupo ou categorias, devendo estes representar os códigos agrupados relacionados com o tema principal, e preparação de uma lista das categorias; (4) Se houver categorias relacionadas, criar uma nova categoria e definir a hierarquia entre essas categorias; (5) Analisar e comparar todas as classes, alterando a sua posição na hierarquia ou criando novas categorias, se necessário; (6) Repetir os passos 1-5 para todos os documentos de pesquisa; (7) Certificar-se de que todas as passagens do texto marcado com o mesmo código estão relacionadas; (8) Certificar-se de que as categorias, os seus nomes e as hierarquias são representativos; (9) Analisar possíveis relações entre categorias. Essas relações podem sugerir insights importantes sobre o estudo/pesquisa. Essa análise deve ser realizada depois de se certificar de que todos os códigos e citações estão nas categorias adequadas; (10) Rever os documentos, considerando as categorias criadas e verificar trechos de texto que não foram considerados antes, mas o que pode ser relevante nesse último momento.
Assim, os 68 documentos do eixo temático referente à formação de professores foram analisados utilizando-se o referido software, e a análise final gerou um sistema com 388 códigos. Cada um desses códigos contém ainda subcategorias e famílias, sendo que, ao se selecionar um código, o software disponibiliza todos os excertos incluídos, o que facilita a análise pelo pesquisador. O código seria uma unidade de análise, sendo vinculado a uma subcategoria e a categorias mais amplas, que seriam as famílias.
No quadro a seguir apresenta-se a base de dados para o presente estudo, compreendida por relatos dos professores especializados, cujos códigos selecionados para a análise fazem parte da família “Como a formação inicial deve ser”, correspondendo a um total de 134 excertos de falas dos professores de salas de recursos multifuncionais participantes da pesquisa (Quadro 1).
| Códigos da família: “Como a formação inicial deve ser” | Excertos (n) | |
|---|---|---|
| FInicial_DeveSer_Generalista | 30 | |
| FInicial_DeveSer_Teórico-Prática | 20 | |
| Finicial_DeveSer_Pedagogia | 19 | |
| FInicial_DeveSer_GraduaçãoEducaçãoEspecial | 12 | |
| FInicial_DeveSer_DiversidadePAEE | 11 | |
| FInicial_DeveSer_Aprofundada_Deficiências | 10 | |
| FInicial_DeveSer_EEemTodaLicenciatura | 8 | |
| FInicial_DeveSer_CursoAEE | 7 | |
| FInicial_DeveSer_Específica | 5 | |
| Finicial_DeveSer_Prática | 5 | |
| FInicial_DeveSer_ExperiênciaSalaDeAula | 3 | |
| FInicial_DeveSer_LIBRAS | 3 | |
| FInicial_DeveSer_Aprofundada_CiênciasBásicas | 1 | |
| Total | 134 |
Os excertos que fazem parte dos códigos utilizados para este artigo são de uma amostra de professores de 14 cidades diferentes, pertencentes a sete estados representando três regiões do Brasil, o que caracteriza apenas uma parte de todos os participantes da pesquisa. Para efeito de confidencialidade, as cidades não serão identificadas, sendo citadas apenas por números. Como se trata de um recorte de uma pesquisa maior, a seleção do assunto partiu da escolha da família de códigos; por isso, não é possível delimitar o número de participantes que opinaram acerca do assunto, dentro do universo de 760 professores participantes da pesquisa. Por questão de confidencialidade, eles não são identificados, considerando-se ainda que a base do estudo é documental, pois tem como fonte o acervo do projeto das entrevistas transcritas.
Ressalta-se também que o estudo está fundamentado na Grounded Theory ou Teoria fundamentada nos dados, desenvolvida por Glaser e Strauss (1967), em defesa da descoberta indutiva de teorias a partir dos dados analisados sistematicamente, e como alternativa às práticas hipotético-dedutivas nas pesquisas sociológicas (Petrini; Pozzebon, 2009). Ressalta-se ainda que o software ATLAS/ti foi desenvolvido para apoiar as interpretações e organização documental, e foi desenvolvido e é recomendado como ferramenta para o desenvolvimento de estudos baseados na Grounded Theory (Bandeira-De-Mello; Cunha, 2003).
Resultados e Discussão
A Figura 1 mostra a diferença de representatividade de cada código dentro da família “Como a formação inicial deve ser”, explicitando o pensamento acerca da temática expresso nas falas dos professores participantes e sua representatividade dentro dos 134 excertos selecionados. Destaca-se a preocupação com uma Formação Generalista, ao mesmo tempo que se demonstra menos importante uma Formação Aprofundada em Ciências Básicas.

Dentre os códigos a partir dos quais se organizaram os dados, foram identificadas as principais categorias nas falas dos professores participantes da pesquisa. A partir dessas considerações, as categorias serão discutidas a seguir.
Formação generalista
Quando se referem à possibilidade da formação inicial do professor especializado, aparece a necessidade de um bom embasamento para o trabalho com todas as categorias de alunos, ou seja, um preparo para desenvolver um trabalho pedagógico com qualquer tipo de aluno do PAEE. A proposta pode ser um reflexo do modelo de atendimento educacional especializado adotado no Brasil, no qual os professores atendem a todos os alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/ superdotação matriculados na escola, e que necessitarem desse tipo de acompanhamento. Tal perspectiva gera busca por todo tipo de conhecimento que fundamente uma prática abrangente:
Eu acredito que nesse início a gente precisa muito ter a possibilidade de estar conhecendo cada deficiência, cada transtorno porque cada caso é um caso, se [...] desde o início a gente não tem noção do que é cada coisa, que cada coisa é uma coisa independente uma de outra, então a necessidade é conhecer para depois que você conhecer você partir para a prática [...] Como trabalhar isso ou aquilo, então pra começar mesmo tem que saber o que é cada deficiência (Participante Cidade 7).
A sala de recurso multifuncional, lócus do professor de educação especial, requer um profissional também multifuncional, e as opiniões dos professores sinalizam que ser capaz de conhecer bem todas as deficiências é uma tarefa quase impossível. Porém, como a demanda existe, eles opinam que, para atuar nesse espaço com o público-alvo da Educação Especial, é necessário ter uma base de conhecimento sobre todas as categorias, pois, só assim, a formação caminha na mesma direção indicada pelas políticas públicas para a prática docente: “[...] porque cada aluno traz uma necessidade específica, então é tem que ter uma boa formação básica, essa formação básica pode estar no curso de graduação” (Participante Cidade 6).
É interessante destacar que uma parcela dos professores que recomenda essa base generalista, ao mesmo tempo, critica a formação inicial recebida, por sua superficialidade no que se refere aos conhecimentos da Educação Especial, em função da oportunidade de ter tido acesso apenas a algumas disciplinas sobre a área na sua licenciatura. Martins (2009) destaca essa situação sobre a pouca oferta de disciplinas sobre o tema nas licenciaturas, incluindo a Pedagogia, ainda que seja obrigatório ofertá-las. Por outro lado, também ressalta que essa formação não deve se esgotar em uma situação inicial, tornando-se o princípio de uma formação continuada e dinâmica ao longo da carreira.
O problema dessa proposta é o de como aumentar o conteúdo sobre Educação Especial, de modo a preparar o professor para ensinar a qualquer aluno do PAEE e, ao mesmo tempo, garantir o que é recomendado nas diretrizes curriculares dos cursos de licenciatura dos professores da educação comum.
Ainda em relação a essa superficialidade, alguns fazem comparação e críticas à formação inicial na modalidade a distância por seus limites na transmissão e aprofundamento de conhecimentos: “[...] nós, as mais novas aqui, quando nós nos formamos só fizemos apenas um ano específico de formação para Educação Especial, o que realmente é pouco. [...] hoje o curso de formação de pedagogia, primeiro não pode ser EaD” (Participante Cidade 9).
Martins (2011), que fez um estudo sobre a opinião dos licenciandos em Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, também aponta as mesmas críticas em relação a essa superficialidade, destacando a necessidade de maior investimento, nesse sentido, em conteúdos mais concretos que forneçam uma base sólida aos professores tanto de classe comum quanto da educação especial.
Ao contrário da opinião favorável a uma formação inicial de cunho mais generalista, para a formação continuada surgem propostas de formação mais categoriais, direcionadas para alguma área ou deficiência específica pela qual se tem mais interesse ou afinidade para trabalhar. Com esse tipo de fala, identifica-se uma consciência do professor de que não se pode ficar apenas com a formação inicial, sendo necessário se aprimorar e aprofundar os conhecimentos nas áreas da Educação Especial:
Então acredito que a gente tem que ter sim esse conhecimento e ter um geral das deficiências, mas depois ter uma oportunidade de escolher uma área, porque eu também acredito nessa coisa de se identificar mais com um ou com outro e que você nunca vai conseguir fazer braile e libras ao mesmo tempo, acho que é muita dedicação pra você ficar um especialista, ficar bom numa área, então penso que tendo o conhecimento de todas para você saber qual você mais se identifica e depois ter uma parte diversificada de você ficar especialista mesmo sabendo que você vai ser ‘multi’ (Participante Cidade 9).
Formação teórico-prática
Em relação aos conhecimentos teóricos, há professores que reafirmam a importância e a necessidade de serem ministradas as disciplinas relativas às ciências básicas na Pedagogia, como Sociologia, Filosofia e História da Educação, pois são elas que levam à compreensão do sujeito PAEE na atualidade, através de todas suas conquistas e trajetória. É por meio desse conhecimento que se tem noção da evolução ou dos retrocessos que se têm ao longo da história, pois ele permite saber acerca do percurso pelo qual passaram as pessoas com necessidades diferenciadas e de que forma elas foram atendidas ou não, chegando ao modelo educacional oferecido hoje em dia: “[...] eu acho importante que tenha essa questão da formação, da questão sociológica de como o deficiente se dá na sociedade, a questão até da filosofia, né, eu fico pensando assim, a questão da história” (Participante Cidade 9).
Mesmo sendo Pedagogia o curso com mais indicações, ainda assim há críticas acerca de formações oferecidas, consideradas sem a qualidade necessária, principalmente no que se refere à relação entre teoria e prática, bem como aos cursos dessa graduação ofertados na modalidade a distância.
Outro ponto importante destacado se refere ao conhecimento necessário sobre as deficiências e a questão da prática. Há afirmações de que os cursos de formação inicial devem ter mais proximidade com a prática docente para que o professor, quando inicia sua carreira, tenha condições de avaliar melhor todo o contexto no qual será inserido:
Eu acho que pra quem está começando na sala de recursos e eu tomo como base minha formação mesmo, acho que é fundamental o estágio, eu acho assim: professor fez um concurso e vai começar a dar aula, acho que antes dele começar a dar aula, ele precisava passar por alguns estágios pra vivenciar aquilo. Porque às vezes a gente começa a dar aula na área da educação especial e não tem muita noção daquilo que você vai ter pela frente, como agir [...] (Participante Cidade 9).
Um dos caminhos indicados para isso é o estágio supervisionado realizado no curso de graduação, considerado de suma importância para vivenciar situações nas quais ainda há supervisão e a possibilidade de corrigir erros e tirar dúvidas antes de ser efetivamente responsável pela aprendizagem dos alunos. Os momentos de supervisão são compreendidos pelos professores participantes como a intersecção entre teoria e prática, na qual a base de conhecimentos se constrói. A observação e a experiência em sala de aula são consideradas momentos de reconstrução desse conhecimento, diminuindo a distância entre teoria e prática, queixa tão comum entre os professores atuantes:
[...] precisa ter bastante estágio e na parte da formação tem de se ver todas as deficiências, o professor que está se formando precisa ter um pouco de conhecimento sobre o que ele vai encontrar e como ele pode trabalhar com aquele aluno, e a inclusão é importante também de ser trabalhada porque depois você acaba ficando sem saber como orientar o professor na inclusão, na sala comum (Participante Cidade 9).
Sobre o estágio supervisionado, Oliveira e Pinto (2011) reforçam a visão dos professores, destacando a importância e a contribuição significativa que esse momento tem na formação docente. O que vem junto a essa discussão é como os estágios são conduzidos, o que indica a necessidade de um olhar cuidadoso dos formadores de professores para que essa aproximação da prática pedagógica seja realmente proveitosa e edificante na construção da carreira docente.
Lócus da formação especializada
Não é unânime a ideia de que deva haver um curso apenas da área, como a Licenciatura em Educação Especial, porque grande parte desconhece essa possiblidade de formação, e uma parcela ainda defende que para ser professor é necessário formar-se em Pedagogia, curso que oferece os conhecimentos sobre o desenvolvimento da criança. Essa visão corrobora as ideias defendidas por Garcia (2011), quando a autora explica que a formação generalista vem de uma base comum, ou seja, formação igual para todos os professores na Pedagogia, o que permite um diálogo mais aproximado entre o professor da educação especial e o do ensino comum dentro da escola.
Por outro lado, a grande maioria defende que a maior parte do curso de Pedagogia deveria ser direcionada para os temas relacionados à Educação Especial, se quiser formar o profissional habilitado para trabalhar na SRM. Nesse caso, a formação seria em Pedagogia e em Educação Especial, sendo esse o modelo mais indicado pelos professores participantes:
O professor tem que ter a pedagogia, ele tem que estar apto a trabalhar numa sala de aula, independente de recurso ou sala comum. Aí sim, eu acredito que o professor da sala de recurso ele tem que ter as especificidades nas suas, nas suas diferentes áreas, das deficiências (Participante Cidade 10).
Tendo como base que os professores participantes da pesquisa são professores de Educação Especial e que muitos deles têm algumas especializações, uma parcela deles indica como ideal, na formação inicial, um curso de formação continuada, o Curso de Atendimento Educacional Especializado (AEE), hoje oferecido como aperfeiçoamento com carga horária de 180 horas pelo Ministério da Educação e Cultura na modalidade a distância. As falas sinalizam que o curso aborda todas as deficiências, mas que, como formação inicial, deveria ter mais horas e mais aprofundamento para que o professor possa ter uma base mais consistente acerca dos assuntos tratados, tanto na teoria quanto na prática:
Eu penso que essa formação inicial é o curso de AEE ele [...] já nos dá um rumo pra trabalhar, mas também penso que esse curso de AEE poderia ser mais amplo, ter uma carga horária maior, porque nós percebemos que, como ele abrange todas as deficiências e transtornos, o tempo ainda é curto pra que você de fato consiga aprender um pouco mais, ele pode ser um pouco mais amplo esse curso [...] (Participante Cidade 7).
Em alguns momentos, esse curso chega a ser comparado com uma licenciatura em Educação Especial. Os conteúdos aprendidos, na visão dos professores, dariam a amplitude de conhecimento necessária para a atuação na SRM. Essa perspectiva volta à ideia de se aprofundar em todas as deficiências, mas, ao mesmo tempo, confunde formação continuada com formação inicial, sem demonstrar clareza acerca do que seria, efetivamente, uma licenciatura em Educação Especial: “Eu acredito que o curso do AEE é uma excelente formação inicial e se tivesse também a graduação em educação especial seria excelente” (Participante Cidade 7).
Formação inicial especializada
Em relação à Licenciatura em Educação Especial, o principal argumento de defesa de alguns é que o professor recebe uma formação específica na área, e não uma formação generalizada como na Pedagogia, por exemplo. A justificativa se baseia no conhecimento que esse curso pode oferecer acerca do públicoalvo, de suas características e dos recursos disponíveis na SRM, fazendo com que o professor saia apto a trabalhar nesse espaço a partir de todas as dimensões que ele abrange: “Eu acredito que deveria ser a graduação em educação especial porque se nós estamos atuando numa área especifica nada melhor se fôssemos formados nessa área especifica” (Participante Cidade 7).
Em contrapartida, é possível observar em algumas falas o desconhecimento da oferta de formação inicial nessa modalidade, o que, somado à oferta insuficiente de cursos de formação gratuitos demonstrada neste estudo, poderia atrapalhar a escolha adequada:
Eu penso assim, que a formação inicial tinha que ser graduação em educação especial para nós, mais assim, hoje atualmente a gente tem outras graduações pra ofertar. Tinha que ser assim: ofertar graduação em educação especial gratuito pra gente porque já tem uma outra graduação, isso que eu penso (Participante Cidade 7).
Formação inicial de professores da educação geral
Há falas que indicam que a formação inicial do professor da classe comum deve ser voltada para conhecer e atender a diversidade de alunos que compõem o público-alvo da Educação Especial. Para isso, o indicado pelos professores é a mescla entre teoria e prática, desde assuntos como legislação e informações sobre as deficiências, até o estágio supervisionado. Acredita-se que, com isso, o futuro professor vai construindo seus conhecimentos acerca dos alunos PAEE e do seu próprio trabalho, antes mesmo de chegar à prática efetiva. Nesse momento, algumas falas se voltam para o curso de Pedagogia, destacando a importância de que esses conhecimentos sejam transmitidos para todos os futuros professores, incluindo os de sala comum, pois eles também precisarão lidar com essa população:
[...] eu acredito que a formação na graduação introduziu plena importância, porque esse aluno está chegando na sala, então [...] tem que contemplar esse aluno na graduação. Já que a graduação é um pré-requisito pra sala de aula, então se já é um pré-requisito, ela tem que contemplar todos os alunos, educação para todos! Então vamos contemplar todos! (Participante Cidade 5).
Eles consideram necessário tratar do assunto em todas as licenciaturas, já que delas sairão os futuros professores que em algum momento terão alunos PAEE e, sendo assim, eles precisam saber alguma coisa sobre o assunto, mas esse modelo se mostra insuficiente. Em contrapartida, é importante destacar que todos os professores concordam com a ideia de que apenas uma disciplina em todo um curso de licenciatura é pouco para formar um professor e prepará-lo para lidar com os alunos PAEE na escola regular:
Assim, eu acredito que isso não tem que ser só no curso de Pedagogia, mas em todos, todas as áreas, é, exatamente, todas as licenciaturas e passar também pra quem vai pensar em atuar em supervisão e orientação, né? Também tem que ter, a disciplina de educação especial, porque afinal de contas eles que vão estar, é, na gestão da escola, né? E se eles não tiverem os conhecimentos mínimos, não vai pra frente o trabalho da escola (Participante Cidade 5).
O conhecimento sobre a diversidade de alunos que hoje estão dentro da escola, segundo Dorziat (2011), vem junto com o respeito às suas limitações, bem como a identificação de possibilidades de trabalho e desenvolvimento de todos. A formação de professores em geral, quando aborda o tema das diferenças e das capacidades, agrega competência à atuação em sala de aula e leva a um diálogo e a uma parceria com os outros setores de atendimento ao aluno PAEE. Na mesma direção, Fernandes (2012) também aponta que a formação em Pedagogia deve dar a base para a formação do professor, mas com conhecimentos acerca da diversidade e de como trabalhar com ela.
São recorrentes as falas que reforçam a necessidade da formação inicial do professor de sala comum ser relacionada também à Educação Especial, pois os professores SRM acreditam que, dessa forma, seja possível estabelecer parcerias mais consistentes entre eles, além de garantir mais comprometimento desses professores com os alunos PAEE matriculados em suas turmas:
[...] a formação específica tem que estar no curso da pedagogia, porque afinal de contas o professor que vai pra sala regular, ele vai receber de todo tipo de deficiência (Participante Cidade 10).
Acho que como a visão da educação especial já é uma realidade, acho que já lá no curso de formação de professores você tem que mudar, antes desse professor chegar à sala de aula realmente. Antes de a gente pensar na sala de recursos, a gente tem que pensar neste professor na sala de aula e ele também tem que ter, no mínimo, algo para poder doar. Se esse professor lá no curso de formação de professores, lá no curso de pedagogia, teve uma educação visando à educação para todos, eu não preciso pensar numa formação tão específica para a sala de recursos. Essa é a minha opinião (Participante Cidades 11).
Papel do professor do AEE
Nesse momento duas vertentes se mostram claras. Uma delas é a opinião de que para ser professor é necessário ter experiência em sala de aula. A ideia defendida indica que, com esse tipo de saber, o professor de SRM é capaz de desenvolver seu trabalho, inclusive orientar o professor de sala comum com muito mais propriedade. Para os participantes, o diferencial da vivência de uma sala de aula comum permite ao professor de Educação Especial compreender as limitações do professor quanto ao emprego de estratégias em situações de sala de aula com mais de trinta alunos, por exemplo:
Eu acho que é a experiência em sala de aula. Não dá pra formar, intervir com o professor, orientar esse professor se você não tem a visão de quem está do outro lado. De como é difícil estar com trinta alunos e, entre eles, ter um especial, ter um ou dois alunos especiais e conseguir gerir isso com o tempo que você tem (Participante Cidade 1).
Os professores demonstram saber que o seu papel é de articulação com o ensino comum, porém eles se limitam a orientar e ajudar o professor de sala comum, sem aprofundar sua atuação desde o planejamento conjunto e elaboração de atividades, como apontam Jesus e Alves (2011), bem como os pressupostos do ensino colaborativo descrito por Mendes, Vilaronda e Zerbato (2014). Essa perspectiva indica os limites da atuação do professor de Educação Especial, que são consequência tanto da formação quanto do engessamento da estrutura escolar vigente no país.
Em casos pontuais, alguns professores argumentam que a formação inicial do professor da sala de recursos multifuncionais pode ser qualquer licenciatura, desde que ele tenha essa experiência em sala de aula, pois isso já o habilitaria a trabalhar com Educação Especial ou com os alunos PAEE. Nesse caso, esse seria um dos quesitos que traçam o perfil do professor da sala de recursos multifuncionais. A respeito da formação inicial voltada ao conhecimento da prática de sala de aula, os professores fazem críticas negativas apenas em relação à qualidade da formação oferecida:
[...] acredito que tem que ser muito focado na experiência, sabe, não importa se você fez pedagogia, se fez letras, se fez biologia, até porque a gente tem aí experiência de bons profissionais que atuam em sala de recursos e que têm formação que não é em pedagogia. Eu acho que isso não é um critério determinante de jeito nenhum (Participante Cidade 1).
A outra vertente diz que para ser professor de Educação Especial é necessário apenas gostar da área e conhecer bem a teoria. Esse argumento tem base na ideia de que o professor de SRM deve se ater somente ao trabalho ligado ao desenvolvimento do aluno e não deve interferir nas práticas realizadas pelo professor de sala comum, mesmo que essas sejam dirigidas ao aluno PAEE:
Eu particularmente acho que não há essa necessidade de estar em sala de aula. O que acho é que tem que ter a identificação. Até mesmo porque o professor de sala de recursos vai buscar recursos que possam contribuir com aquele desenvolvimento cognitivo (Participante Cidade 1).
Conhecimentos específicos
Um ponto destacado pelos professores como importante para estar presente na formação inicial, não só do professor de Educação Especial, mas de qualquer licenciatura, são os conhecimentos sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras), pois se trata da segunda língua do país. Identificam que faltam intérpretes de Libras nos espaços públicos, como delegacias, hospitais e, principalmente, nas escolas dentro da sala de aula, inviabilizando o acesso do aluno surdo à educação. Dessa forma, esse conteúdo é visto como essencial na formação de qualquer professor para o atendimento dos alunos, pois a qualquer momento um surdo pode ser matriculado numa escola, em qualquer turma; por isso, esse conhecimento deve ser oferecido desde a formação inicial. De qualquer forma, os professores não descartam um aprofundamento na temática em cursos de formação continuada, porém veem como extremamente importante o professor receber uma base sobre LIBRAS desde a formação inicial para poder se comunicar com esse aluno:
Eu acho que enquanto formação inicial a gente tinha que ter libras, o básico que fosse, porque é a segunda língua do país. E isso ainda é uma coisa esquecida. Não tem. Não tem nos lugares. A gente não tem os intérpretes nas escolas, nem em sala de aula. A gente não tem os intérpretes nos hospitais, a gente não tem nas delegacias. A gente não tem. Então, teria que ter eu acho sim enquanto formação inicial [...] (Participante Cidade 3).
Tal discussão certamente parte do Decreto Nº 5.626 (Brasil, 2005), que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais, instituindo seu ensino em todas as licenciaturas e fazendo com que todo professor tenha contato com esse conteúdo já na formação inicial. Autores como Lacerda, Santos e Caetano (2013) discutem a importância da Libras, mas, ao mesmo tempo, questionam a superficialidade com que ela é tratada, sendo obrigatório apenas um semestre desse conteúdo na formação inicial. A fala da participante mostra o quanto é preocupante e danoso para o aluno surdo o tratamento superficial do tema, já que faltam profissionais capacitados para atender a esse segmento público-alvo da Educação Especial.
Considerações Finais
Como conclusão, destaca-se a alta incidência de falas dos participantes acerca da valorização da formação inicial para atuar no atendimento educacional especializado, que em geral é a licenciatura em Pedagogia. Cabe destacar que professores com formação inicial em Educação Especial, seja em Licenciatura Específica ou nos cursos de Pedagogia em Habilitação Especial, eram minoria no conjunto dos professores entrevistados e, por esse motivo, a quantidade de relatos a respeito dessa possibilidade de formação foi limitada, fosse porque as habilitações no âmbito da Pedagogia foram extintas, fosse porque os cursos de licenciaturas especificas são escassos e relativamente novos no cenário nacional.
Foi possível perceber que ainda existe um desconhecimento dos participantes acerca da Licenciatura em Educação Especial e o tipo de formação que ela oferece. A situação é compreensível, visto que se trata de um curso inicialmente restrito a determinadas regiões do país (sul e sudeste), além de relativamente novo. Dessa forma, os professores de Educação Especial em exercício tomam como base para opinar aquilo que conhecem e vivenciaram.
Entretanto, esses professores também se referem à necessidade de incrementar muito a formação inicial recebida em licenciatura, e sugerem a inserção de mais conteúdo e experiência prática nos estágios sobre Educação Especial (fundamentos da Educação Especial, o ensino nas diferentes categorias do público-alvo, língua brasileira de sinais etc.). A esse respeito, nota-se a divergência de opiniões dos professores acerca daquilo que entendem como essencial para a formação do professor de Educação Especial atuar na escola regular. Faz-se importante evidenciar que, apesar de divergentes, as opiniões se mostram complementares no intuito de garantir a formação de um profissional completo, tal como os participantes compreendem que deve ser o professor da SRM. Mas no conjunto das reivindicações percebe-se que somente uma licenciatura específica, ou o retorno das habilitações em Educação Especial, poderiam atender a essa demanda.
A respeito da questão da formação inicial, se essa deve ser generalista ou categorial, os professores do atendimento educacional especializado defendem a preparação inicial para o trabalho docente generalista, ou seja, baseada no conhecimento possível acerca de todas as deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Assim, a demanda do trabalho no atendimento educacional especializado com qualquer tipo de público acaba direcionando a opinião dos professores no sentido de que essa formação inicial deve ser generalista. Entretanto, eles não descartam a necessidade e a possibilidade de que as especializações por categoria aconteçam na formação continuada.
Ainda a respeito da formação generalista x categorial, destacam-se algumas falas sobre os cursos de Pedagogia com Habilitação em Educação Especial. Para os participantes, esses cursos também não correspondem à demanda atual do trabalho pedagógico no atendimento educacional especializado, uma vez que eles eram tradicionalmente categoriais, e atualmente se exige que o professor especializado atenda a todos os tipos de estudantes público-alvo da Educação Especial.
Embora o curso de Pedagogia – destinado a formar professores para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental nas séries iniciais – seja o mais indicado como o ideal de formação inicial para atuar na Educação Especial pelo conjunto dos professores, caberia questionar se esse Professor-Pedagogo teria condições de apoiar a escolarização de estudantes público-alvo da Educação Especial que estivessem matriculados na segunda etapa do Ensino Fundamental, ou no Ensino médio, ou mesmo no Ensino Superior. Essa preocupação não apareceu no conjunto das falas, possivelmente porque a grande maioria desses alunos encontra-se nas séries iniciais do Ensino Fundamental e esses professores ainda não têm enfrentado a responsabilidade pelo trabalho com estudantes em níveis mais avançados de ensino.
As falas com sugestões sobre como deveria ser a formação inicial dos professores de SRM indicam que a demanda de alunos estabelecida pela política, parece fazer com que os professores se sintam os únicos responsáveis pela formação e preparo para atendê-los. Eles não dão indicativos de que a própria política ou o governo deveria prover tal formação, apesar de identificar que os cursos de formação inicial são insuficientes para a atuação do professor de Educação Especial.
A necessidade de formação também do professor da sala comum aparece nas falas dos participantes que demonstram interesse em compartilhar o trabalho e estabelecer parcerias entre os dois profissionais em prol do aluno. Isso evidencia o tipo de formação inicial recebida pelos participantes.
Percebe-se ainda a confusão dos professores entre os cursos de formação inicial e continuada. Sendo eles, geralmente, profissionais com muitos cursos de extensão, aperfeiçoamento e especializações, alguns chegam a mencionar cursos de formação continuada como ideal para serem oferecidos no nível de graduação. Essa situação mostra certo desconhecimento dos participantes acerca da importância do processo de formação contínuo que a carreira docente exige. Isso significa que, para ser professor, os conhecimentos necessários não se esgotam na formação inicial. A formação continuada é extremamente importante para a dinâmica da profissão, existindo espaço nessa área para complementação após a formação inicial.
Concluindo, pode-se dizer que a análise dos excertos relacionados sobre como deve ser a formação inicial do professor do atendimento educacional especializado, na visão dos professores que atuam nas salas de recursos multifuncionais, aponta muitas contradições e pouca análise crítica sobre a política de formação e sobre como ela define o papel do professor de Educação Especial na perspectiva da inclusão escolar.
Os professores tendem a valorizar a própria formação, em geral o curso de Pedagogia, mas fazem críticas a ela e sugerem mudanças curriculares que implicariam em descaracterizar esse curso. Ao mesmo tempo que defendem uma base generalista na formação inicial para atender à demanda diversificada que encontram no atendimento educacional especializado, sustentam a necessidade de especializações categoriais para um futuro trabalho com populações específicas. Finalmente há que se destacar que há muita demanda por novas formações na área, por parte desses professores, tanto em termos de formação inicial quanto continuada, em função da natureza do trabalho nas salas de recursos multifuncionais (Mendes; Cia; Cabral, 2013).
Ao mesmo tempo há pouca reflexão crítica sobre a complexidade do papel que lhes é exigido pela política, de atender a todos os tipos de alunos público-alvo da Educação Especial, estudantes em todos os níveis de ensino, e, além disso, de atuar como o principal articulador da política de inclusão escolar, junto à família e a outros setores da sociedade. Enfim, os professores pouco questionaram se essas atribuições são viáveis, ou se existe algum tipo de formação, seja ela inicial ou continuada, que permita formar esse superprofissional que a política exige, ou mesmo se é essa a política, a de atendimento educacional especializado em salas de recursos multifuncionais, que se necessita para garantir o direito à educação de alunos público-alvo da Educação Especial.
Colaboradores
Todos os autores participaram e contribuíram na realização de todas as etapas de construção e redação do artigo.
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