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A psicologia de Carl Rogers na formação e atuação de orientadores educacionais

The psychology of Carl Rogers in the training and activities of school counselors

Laurinda Ramalho de Almeida
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil

A psicologia de Carl Rogers na formação e atuação de orientadores educacionais

Revista de Educação PUC-Campinas, vol. 23, núm. 2, pp. 311-327, 2018

Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Recepção: 21 Dezembro 2016

Revised document received: 18 Novembro 2017

Aprovação: 12 Dezembro 2017

Resumo: O objetivo deste artigo é investigar a contribuição da Psicologia de Carl Rogers na formação e atuação de orientadores educacionais no Estado de São Paulo. O estudo realizado atende às características da abordagem qualitativa de pesquisa. Foram analisados depoimentos de duas ex-orientadoras educacionais, uma de escola pública e outra de escola particular. Para a análise dos depoimentos empregou-se a “análise da prosa”, proposta metodológica de Marli André. Para contextualizar a Orientação Educacional no Estado de São Paulo, evidenciando seu entrecruzamento com a abordagem rogeriana, é feita apresentação sucinta da Orientação Educacional na legislação brasileira e uma referência ao primeiro concurso público de ingresso de orientadores educacionais na rede pública estadual de ensino de São Paulo. A análise evidenciou que a psicologia de Rogers, em especial as condições ou atitudes facilitadoras, consideração positiva incondicional, autenticidade e empatia, fizeram parte do repertório formativo das orientadoras. Também evidenciou que, no contexto escolar, a incompreensão do não diretivismo da proposta rogeriana ocasionou a deturpação das ideias de Carl Rogers.

Palavras chave: Carl Rogers, Orientação educacional, Relações interpessoais.

Abstract: The aim of this paper was to investigate the contribution of Carl Rogers’ psychology to the training and activities of educational counselors in the state of São Paulo. The study was based on a qualitative research approach. The statements of two former school counselors, one from a public school and one from a private school, were analyzed. To understand the statements, the “prose analysis” was used, a methodological approach proposed by Marli André. In order to contextualize educational counseling in the state of São Paulo and discuss the association with the Roggerian approach, a succint presentation of the legislation of educational counseling in Brazil and reference to the first public selection for the admission of educational counselers in the public education network of São Paulo were addressed. The analysis showed that Rogers’ psychology, particularly the facilitating conditions or attitudes, unconditional positive regard, authenticity, and empathy were part of the educational training of the counselors. It is clear that the incomprehension of the concept of non-directivity has led to the misunderstanding of the ideas of Carl Rogers in the school context.

Keywords: Carl Rogers, Educational counseling, nterpersonal relationships.

Introdução

Na Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), em 1999, após dois anos como Grupo de Estudo, foi constituído o Grupo de Trabalho Psicologia da Educação – GT20 (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 20--). O grupo fundador considerou que se fazia necessário, nessa primeira reunião, que marcava a entrada da Psicologia da Educação entre os já constituídos Grupos de Trabalho da Anped, a apresentação de um balanço das contribuições das diferentes abordagens teóricas da Psicologia à Educação nas últimas três décadas (1970, 1980 e 1990).

A recuperação histórica da influência des-sas diferentes abordagens era importante, dado que a hegemonia de umas levava a interpretações sem fundamento e, por vezes, até de forma distorcida, da contribuição de outras. A mesa redonda apresentada naquela oportunidade resultou em evento muito rico, com olhares para autores diversos: Wallon, Vigotski, Piaget, Rogers e Skinner, além da contribuição da Psicanálise2.

Autores de reconhecida competência na abordagem que teriam como foco foram convidados, não sendo definida uma linha uniforme de apresentação. A autora responsável pela contribuição de Rogers à educação definiu três eixos para análise: contribuição para formação de orientadores educacionais, de professores e de psicólogos. Para discutir a conciliação/conflitos entre a proposta teórica e sua repercussão na prática, entrevistou profissionais que se apropriaram dos pressupostos rogerianos para embasar sua atuação. A partir disso, busca-se, neste artigo, ampliar a compreensão do eixo referente à formação e atuação dos orientadores educacionais, com foco nos aportes psicológicos rogerianos que foram predominantes nas falas das entrevistadas.

A decisão de aprofundar esses aspectos decorreu da constatação de que a Psicologia de Rogers na formação e atuação de orientadores educacionais no Estado de São Paulo é temática silenciada na literatura acadêmica. Poucos textos registram sua contribuição, entre os quais o de Pimenta (1990), que apenas aponta a presença de Rogers nas escolas experimentais nas décadas de 1960 e 1970. Este artigo terá, pois, como objetivo, aprofundar as contribuições de Carl Rogers para área da Orientação Educacional (OE) no Estado de São Paulo, buscando responder duas questões: (1) Por que a adesão de profissionais à proposta rogeriana? (2) Como foi percebida, por profissionais, a conciliação teoria-prática?

A contribuição de Rogers para a educação na visão de educadores contemporâneos

A Orientação Educacional, no Brasil, recebeu forte influência da literatura americana e francesa, nas quais Rogers era autor bastante considerado. Em 1994, foi publicada, na França, a obra “Quinze pédagogues: leur influence aujourd’hui” (Houssaye, 1994) e, em 1995, “Quinze pédagogues: textes choises” (Houssaye, 1995). Esses quinze estudiosos foram escolhidos por um júri internacional de especialistas que se pronunciaram sobre os pedagogos já desaparecidos os quais consideravam mais marcantes, depois de Rousseau. É importante registrar que, para Houssaye (1995, p.5): “O pedagogo é definido como aquele que procura articular a teoria e a prática a partir de sua própria ação”.

A primeira publicação (Houssaye, 1994) apresenta a emergência e o percurso das concepções, no campo educativo, dos seguintes pensadores: Rousseau, Pestalozzi, Fröbel, Robin, Ferrer, Steiner, Dewey, Decroly, Montessori, Makarenko, Ferrière, Cousinet, Freinet, Neill e Rogers. A segunda propõe “[...] colocar à disposição dos educadores um conjunto de textos que foram considerados pelos especialistas da primeira obra como os mais significativos para o estudo da história das ideias pedagógicas” (Houssaye, 1995, p.5).

Os textos de Rogers foram selecionados por Yves Bertrand e Paul Valois (Ministère de L’Éducation du Quebec). Dois deles foram bastante significativos na formação de orientadores educacionais e estão incluídos no livro “Tornar-se Pessoa” (Rogers, 1999). O primeiro refere-se a uma apresentação que Rogers faz dele próprio e intitula-se “Este sou eu” (Rogers, 1999, p.3). Ao discorrer sobre o desenvolvimento de seu pensamento profissional e de sua filosofia pessoal, refere-se a três situações que vivenciou: a primeira, a possibilidade de erro por parte da autoridade dos mestres e o valor da experiência para o conhecimento; a segunda, o fato de perceber que estava se afastando de todo método coercitivo ou de pressão nas relações clínicas não por razões filosóficas, mas porque esses métodos de aproximação eram só superficialmente eficazes; a terceira, que: “[...] é o próprio cliente que sabe aquilo de que sofre, qual a direção a tomar, quais problemas são cruciais, que experiências foram profundamente recalcadas. [...] O melhor era deixar para o cliente a direção do movimento no processo terapêutico” (Rogers, 1999, p.3).

O segundo texto refere-se à visão de um terapeuta sobre a vida boa: a pessoa em pleno funcionamento (Rogers, 1999); discorre sobre as condições facilitadoras para o desenvolvimento de uma relação terapêutica ótima, a saber consideração positiva incondicional, autenticidade e compreensão empática, e afirma que quando existe liberdade psicológica para se mover em qualquer direção, esse processo traz como características uma abertura constante à experiência, um aumento da vivência existencial e uma crescente confiança no próprio organismo (Rogers, 1999). Dessa maneira, um aprofundamento dessas ideias será apresentado no tópico a seguir. Os demais textos selecionados pelos canadenses fazem parte de “Liberdade para Aprender” (Rogers, 1973).

A psicologia de Carl Rogers na formação de orientadores educacionais

A hipótese central da teoria rogeriana, quer se fale de terapia centrada no cliente, aconselhamento não diretivo, ensino centrado no aluno ou liderança centrada no grupo, é que o indivíduo tem, dentro de si, vastos recursos para a autocompreensão, para alterar seu autoconceito, para modificar suas atitudes e seu comportamento e que esses recursos podem ser liberados quando se conta com um determinado clima psicológico. Daí a possibilidade da transposição de descobertas do campo da terapia para outros campos, entre os quais, o da educação.

Essa força motivacional, denominada por Rogers tendência atualizante, é naturalmente positiva (o que rendeu ao autor inúmeras críticas), o que não significa uma visão otimista e simplista sobre a natureza humana. Na compreensão de Duarte (2004), trata-se de uma tendência à realização que se expressa como um processo natural para manutenção ou crescimento do organismo. Isso significa que, mesmo em condições desfavoráveis, o ser humano continua empenhado na busca de seu desenvolvimento. Mas há condições para promover um clima favorável a isso:

Há três condições que constituem esse clima promotor de crescimento, quer estejamos falando de relações entre terapeuta e cliente, pais e filhos, líder e grupo, professor e aluno, ou administrador e staff. As condições se aplicam, de fato, em qualquer situação, na qual o desenvolvimento da pessoa é o objetivo

(Rogers, 1978, p.18).

Essas três condições não são decorrentes do uso de determinadas técnicas. Elas se expressam em atitudes do facilitador. Rogers, embora tenha começado a praticar terapia desde 1927, e publicado artigos desde 1930, só a partir de 1940 percebe claramente que está entrando em uma nova forma de atuação:

Comecei a sentir que a minha ação, no campo clínico, era talvez mais do que um novo caminho que eu havia descoberto. O artigo apresentado por mim, em 1940 (mais tarde, o capítulo II de Counseling and Psychotherapy) foi a primeira tentativa consciente de desenvolver uma linha de pensamento relativamente nova

(Rogers, 1999, p.25).

Mas é só em 1957 que Rogers divulga, em uma palestra considerada por ele “uma das palestras mais rigorosamente pensadas, mais cuidadosamente formuladas” (Rogers, 1977, p.148), o que chamou de “condições necessárias e suficientes para a modificação terapêutica da personalidade” (em artigos posteriores ele passa a considerá-las apenas necessárias) todas no nível de atitudes pessoais e não de treinamento profissional. Essa palestra, transformada em artigo (Rogers, 1957), revelou sua preocupação em estabelecer, com objetividade, as condições necessárias e suficientes para iniciar o processo de mudanças. Sintetizando: (1) a mudança da personalidade não ocorre senão através de um relacionamento interpessoal; (2) algumas características são necessárias em cada um dos participantes desse relacionamento; (3) é necessário que, de alguma forma, cada um deles perceba o campo experiencial do outro.

Quais são essas condições, atitudes, características que devem estar presentes no facilitador, que pode ser o terapeuta, o professor, o orientador, o pai, o líder de um grupo, cada um na especialidade de seu papel? Cumpre registrar que embora o maior número de referências seja feito ao terapeuta, para Rogers “a relação terapêutica é apenas uma forma de relação interpessoal em geral, e que as mesmas leis regem todas as relações desse tipo” (Rogers, 1999, p.36).

Essas atitudes facilitadoras foram denominadas, no artigo de 1957, como Congruência ou Autenticidade, Consideração Positiva Incondicional, Empatia ou Compreensão Empática. O que Rogers postula – e isso vai aparecer em suas obras posteriores, incluindo situações diferentes daquelas da terapia (Rogers, 1973, 1977, 1978, 1983, 1999), é que a transformação pessoal é facilitada, ou seja, ocorreram mudanças benéficas para a personalidade não em decorrência do uso de teorias ou de técnicas, mas, sim, em função das atitudes do terapeuta, da relação humana que se estabelece entre as pessoas. O ingrediente básico concentra-se no tipo de relação estabelecida.

Três atitudes, então, são fundamentais para propiciar o clima emocional favorável para as mudanças. A primeira é uma atitude de congruência ou autenticidade. Quando o terapeuta é ele mesmo no relacionamento, quando suas relações com o cliente são autênticas, sem máscaras ou fachadas, quando ele vive e exprime abertamente os sentimentos que fluem nele nesse momento, ele está revelando essa atitude.

O que significa isso em termos práticos? Significa que, quando a cliente está sofrendo ou está aflita, a terapeuta é capaz de sentir ternura, compaixão ou compreensão. Mas em outros momentos do relacionamento, pode sentir tédio, raiva ou mesmo medo de uma cliente destrutiva. Quanto mais a terapeuta estiver cônscia de – e puder assumir e expressar esses sentimentos, sejam positivos ou negativos – mais provavelmente será capaz de ajudar a cliente. São os sentimentos e as atitudes que promovem a ajuda, quando expressos, e não as opiniões ou os julgamentos sobre a outra pessoa

(Rogers, 1978, p.18).

Yela, professor da Universidade de Madri, que elaborou o prólogo para a edição espanhola de “Psicoterapia y Relaciones Humanas: teoria y practica de la terapia no directiva” (Yela, 1967), livro que também foi estudado nos cursos de especialização em OE, considera congruência a mais importante das atitudes e entende, com base em Rogers, a convergência de três níveis dentro da mesma: organismo, consciência e comunicação. Isso porque só se é congruente quando se é capaz de perceber e comunicar a vivência dos próprios estados e processos orgânicos. Refere-se à citação de Rogers sobre Kierkegaard: “ser o que efetivamente se é” e Buber “ser pura experiência autêntica na relação eu-tu”. Para Yela (1967, p.xv), congruência é o aspecto vivencial da autenticidade, “O único processo real da congruência é a autenticidade”. Brito e Moreira (2011) discutem detalhadamente a afirmação de Kierkegaard referida por Rogers: Ser o que se é na psicoterapia de Rogers: um estado ou um processo?

A segunda atitude importante na criação de um clima para a mudança, segundo Rogers, é a aceitação – a consideração positiva incondicional. Trata-se de um sentimento positivo que se exterioriza sem reservas e sem avaliações.

Quando o terapeuta está vivenciando uma atitude calorosa, positiva e de aceitação para com aquilo que está no seu cliente, isso facilita a mudança. Isto implica que o terapeuta esteja realmente pronto a aceitar o cliente, seja o que for que este esteja sentindo no momento – medo, confusão, desgosto, orgulho, cólera, ódio, amor, coragem, admiração. Significa que o terapeuta se preocupa com seu cliente de uma forma não possessiva, que o aprecia mais na sua totalidade do que de uma forma condicional, que não se contenta com aceitar simplesmente o seu cliente quando este segue determinados caminhos e desaprová-lo quando segue outros. Trata-se de um sentimento positivo que se exterioriza sem reservas e sem avaliações

(Rogers, 1999, p.72).

Porque Rogers usa, em seus escritos, uma linguagem rica, espontânea, com variações estilísticas nas diferentes obras, Almeida (1980) buscou aprofundar a compreensão do sentido atribuído por Rogers à Consideração Positiva Incondicional e propõe a expressão desse constructo:

Consideração positiva incondicional é a atitude calorosa de aceitar o outro como ele é no momento, permitindo-lhe a expressão de qualquer sentimento, apreciando-o em sua totalidade, sem estabelecer comparações, e estimando-o, de forma não possessiva. Essa atitude é o resultado da confiança no organismo humano e, para que seja eficaz, na relação de ajuda, é necessário que seja percebida pelo outro a comunicação dessa atitude

(Almeida, 1980, p.102).

A autora discute ainda a dificuldade de o professor expressar Consideração Positiva Incondicional no contexto escolar, dado que o relacionamento ocorre em uma instituição, portanto em uma situação sujeita a normas específicas. Argumenta, ainda, que se o professor não pode sempre apresentar consideração positiva incondicional, apresentar Consideração Positiva é, inegavelmente, melhor que indiferença.

Rogers (1978) discute que, mesmo na situação de terapia, não é possível sentir aceitação incondicional o tempo todo. Um terapeuta autêntico, congruente, frequentemente terá sentimentos muito diferentes, positivos e negativos, em relação a seu cliente, portanto não é “dever” dele sentir consideração positiva incondicional. “Trata-se simplesmente do fato de que a mudança construtiva da cliente é menos provável se esse elemento não ocorrer com alguma frequência no relacionamento” (Rogers, 1978, p.19).

O terceiro aspecto facilitador é empatia ou compreensão empática. Quando o terapeuta é sensível aos sentimentos e às significações pessoais que o cliente vivencia a cada momento, quando consegue colocar-se no lugar do outro, para apreendê-los como o cliente os vivencia, mas com a clareza de que conserva o seu plano de referência e quando consegue comunicar isso de alguma forma ao cliente, está apresentando compreensão empática. Em um ponto máximo de compreensão, o terapeuta pode não somente esclarecer os significados dos quais o cliente está consciente, mas também aqueles dos quais não está.

Julgo que cada um de nós já descobriu que esse tipo de compreensão é extremamente raro. Nem nós a oferecemos nem somos objetos dessa compreensão com muita frequência. Recorremos a outro tipo de compreensão que é muito diferente. ‘Eu compreendo o que o levou a agir dessa maneira’ ou então ‘Eu também passei por esse problema e reagi de modo muito diferente’, esses são os tipos de compreensão que estamos habituados a dar e a receber, uma compreensão que julga do exterior

(Rogers, 1999, p.72).

Rogers se pergunta por que uma pessoa que está de alguma forma vulnerável muda para melhor quando está em um relacionamento que apresenta as três condições descritas. E responde: “Durante anos, pude ver cada vez com mais clareza que o processo de mudança no cliente é uma recíproca das atitudes do terapeuta” (Rogers, 1978, p.20). E fala da repercussão dessas atitudes em si próprio, relatando experiências com as quais muito aprendeu sobre relações interpessoais:

(1) A alegria em conseguir realmente ouvir alguém:

Quando digo que gosto de ouvir alguém estou me referindo evidentemente a uma escuta profunda. Quero dizer que ouço as palavras, os pensamentos, a totalidade dos sentimentos, o significado pessoal, até mesmo o significado que subjaz às intenções conscientes do interlocutor

(Rogers, 1983, p.5).

(2) A alegria em ser ouvido:

Várias vezes em minha vida me senti explodindo diante de problemas insolúveis ou andando em círculos atormentadamente, ou ainda, em certos períodos, subjugado por sentimentos de desvalorização e desespero. Acho que tive mais sorte que a maioria por ter encontrado, nesses momentos, pessoas que foram capazes de me ouvir e assim resgatar-me do caos de meus sentimentos. Pessoas que foram capazes de perceber o significado do que eu dizia um pouco além do que eu era capaz de dizer. Estas pessoas me ouviram sem julgar, diagnosticar, apreciar, avaliar. Apenas me ouviram, esclareceram-me em todos os níveis em que eu me comunicava [...]

(Rogers, 1983, p.7)

As três condições facilitadoras, evidentemente adensadas pelo estudo dos demais conceitos rogerianos, foram subsídios valiosos para atuação dos orientadores educacionais em seu trabalho. Temperadas com outras propostas que foram se tornando conhecidas, alimentaram as propostas de ação dos orientadores, tanto no atendimento individual quanto no aconselhamento em situação de grupo.

Gatti (1976), que exerceu a função de orientadora educacional no Colégio de Aplicação da Universidade de São Paulo (USP) de 1962 à 1969, esclarece:

Compreende-se por Orientação a ação de um profissional que, trabalhando com indivíduos ‘normais’, com eles estabelece uma relação de ajuda, assistindo-os nas decisões a tomar. As atividades de Orientação podem ser exercidas no âmbito da escola ou fora dela, ostentando objetivos mais vinculados a atividades escolares ou a atividades profissionais ou outras, oferecendo sempre, porém, aos indivíduos em geral, uma ajuda em seus problemas vitais

(Gatti, 1976, p.168).

A autora argumenta que, à medida que os valores passaram de modelos morais baseados em códigos de ação estabelecidos por diferentes instituições da sociedade para valores personalizados, a maneira de encarar a Orientação mudou muito e enfatiza a influência de Rogers nesse processo:

Sob este aspecto é preciso notar a influência do pensamento de Carl Rogers. O melhor juiz de si mesmo, de seu ajustamento pessoal, é o próprio indivíduo e é em si mesmo que encontra todos os recursos necessários à realização deste ajustamento. Isso conduz à concepção segundo a qual o indivíduo é a maior autoridade em seu processo de Orientação. Baseadas nessas ideias apareceram as práticas de Orientação não diretiva ou – utilizando a expressão que o próprio Rogers prefere – centrada no cliente

(Gatti, 1976, p.172).

Procedimentos Metodológicos

O estudo realizado atende às características da abordagem qualitativa da pesquisa, a qual, segundo André (2005) valoriza o papel ativo dos sujeitos na produção de conhecimento e, por isso, tem como foco os significados atribuídos por eles às suas experiências cotidianas, articulações sociais e produções culturais. Foram retomados os depoimentos de duas ex-orientadoras educacionais entrevistadas por Almeida (2007) para comunicação na mesa Anped, já referida na introdução: Vera, que atuou na rede pública, e Ana, que atuou na particular. Embora cinco depoimentos estejam registrados (Placco, 2007), sendo, portanto, de domínio público, foram selecionadas duas profissionais, pois ambas trabalharam no Estado de São Paulo. Para a compreensão dos depoimentos, empregou-se a “análise de prosa”, proposta por André (1983). Nessa modalidade de análise estão contempladas:

mensagens intencionais e não intencionais, explícitas ou implícitas, verbais ou não verbais, alternativas ou contraditórias [...]. Em lugar de um sistema pré-especificado de categorias eu sugiro que tópicos e temas vão sendo gerados a partir do exame de dados e de sua contextualização no estudo (1983, p.67).

Para situar a OE no Estado de São Paulo, foi realizada pesquisa documental: livros e artigos que focalizam a temática nas décadas de 1960 e 1970, bem como a legislação pertinente conforme o registro feito por Penteado (1976) no livro da autora e apresentado nos anexos.

Do entrecruzamento da psicologia de Rogers com a Orientação Educacional

A Orientação Educacional veio a ser considerada habilitação do curso de Pedagogia em 1969, com a Lei n° 5.540/1968 – Lei da Reforma Universitária. No entanto, na USP, em 1961, Maria José Garcia Werebe passou a reger a disciplina primeiramente como matéria opcional do curso de Pedagogia e depois como matéria integrante da especialização em OE. Werebe foi a coordenadora deste último desde 1962, o qual, segundo a própria, teve grande demanda por sua qualidade (Garcia, 2002).

A formação psicológica teórica e prática do curso de especialização em OE era fortemente embasada nos pressupostos rogerianos, sendo o mesmo referência para outros que se foram instalando. O fato de, à época, ser considerado como pós-graduação permitiu que muitos egressos desses e de outros cursos fossem aprovados pelo então Conselho Federal de Educação para serem professores titulares no Ensino Superior. Isso se deu, principalmente, nas disciplinas de Princípios e Métodos de Orientação Educacional, de Princípios e Métodos de Supervisão Escolar e de Psicologia da Educação, repassando, via de regra, a formação recebida nas especializações para os alunos.

Na legislação brasileira, a Orientação Educacional foi introduzida através da Lei Orgânica do Ensino Industrial (Decreto Lei nº 4.073, de 30/01/42), aparecendo depois na Lei Orgânica do Ensino Secundário (Decreto Lei nº 4.244 de 09/04/42), a seguir na Lei Orgânica do Ensino Comercial (Decreto Lei nº 6.141 de 28/12/43) e, posteriormente, na Lei Orgânica do Ensino Agrícola (Decreto Lei nº 9.613 de 20/08/46). É reafirmada pelas Leis nº 4.024 de 20/12/61 e Lei nº 5.692 de 11/08/71 (Penteado, 1976). A Orientação Educacional é, pois, consagrada como instituição escolar obrigatória desde 1942. Os textos legais reconhecem a necessidade de o orientador cooperar ou se articular com professores e família. A Lei nº 5.962/71 é mais explícita estabelecendo, para o orientador, uma atuação cooperativa com professores, família e comunidade.

Observa Werebe (1970) que as Leis Orgânicas não estipularam as exigências quanto à formação e seleção dos candidatos e que só o Ensino Industrial encarou a questão com maior seriedade, realizando concursos internos para provimento efetivo dos cargos de Orientação Educacional em suas escolas, tendo realizado o primeiro em 1951. Além disso, o professor Oswaldo de Barros Santos organizou o Serviço de Orientação Educacional no Ensino Industrial, ao qual competia o acompanhamento do trabalho dos orientadores. Este, segundo sua própria afirmação foi um dos pioneiros que introduziram o pensamento de Rogers no Brasil, após estudos na década de 50, nos Estados Unidos (Santos, 1988).

No Ensino Secundário do Estado de São Paulo, a introdução da Orientação Educacional nas escolas foi mais tardia e o primeiro concurso para cargos de OE foi realizado em 1968. Da bibliografia para o concurso, constava a obra de Carl Rogers “Psicoterapia Centrada en el cliente” (1966), bem como o livro de Santos, “Orientação e Seleção Profissional” (1963), no qual o autor focalizava as três técnicas de aconselhamento (clínico ou diretivo, não diretivo e eclético), esclarecendo que o aconselhamento não diretivo tinha em Carl Rogers seu principal representante.

A indicação bibliográfica dessas obras permite a seguinte inferência: a Comissão Organizadora do Concurso, da qual faziam parte Maria José Garcia Werebe e Oswaldo de Barros Santos, entendia que o conhecimento da obra de Rogers poderia fundamentar a ação dos orientadores educacionais na rede pública estadual de ensino; e que a abordagem teórica de Rogers era entendida como possível contribuição para a prática da orientação educacional, pois seus princípios visavam a atualização das potencialidades dos indivíduos, objetivo da Orientação Educacional.

Santos quando da morte de Rogers, em artigo publicado na revista Psicologia: Ciência e Profissão, refere-se à obra do mesmo:

Faleceu em 5 de fevereiro de 1987, em La Jolla, nos Estados Unidos, o maior psicólogo e psicoterapeuta que o mundo conheceu na era pós-freudiana. Sua experiência, sua doutrina e suas ‘técnicas’ expressas em seu famoso livro, Counseling and psychotherapy. Newer concepts in pratice, publicado pela H. Miffin Company, em 1942, causaram uma das mais notáveis revoluções no campo da psicoterapia e da orientação educacional, desde a época de Freud e das diversas versões da Psicanálise

(Santos, 1988, p.96, grifo meu).

Os orientadores aprovados no concurso começaram a trabalhar nas escolas em 1970. Vários foram aprofundar seus estudos sobre a abordagem rogeriana na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde, de 1971 a 1987, a professora Abigail Alvarenga Mahoney, recém-chegada dos Estados Unidos, ministrava cursos sobre Rogers (Almeida, 2007). Também o Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP, que trabalhava na linha rogeriana, coordenado inicialmente por Oswaldo de Barros Santos e sua assistente Rachel Rosenberg, chamava a atenção dos orientadores desde a década de 1960.

É importante lembrar que a década de 1970 foi um período áureo para a Orientação Educacional. Constituiu-se a Federação Nacional dos Orientadores Educacionais (Fenoe) e Associações Estaduais, entre elas a Associação dos Orientadores Educacionais do Estado de São Paulo.

A mobilização dos orientadores educacionais em encontros regionais e nacionais levou à regulamentação da profissão através do Decreto nº 72.846, de 26 de setembro de 1973 que Regulamenta a Lei nº 5.564, de 21 de dezembro de 1968, que prevê o exercício de profissão de Orientador Educacional (Penteado, 1976). Todavia, nem o decreto nem o artigo 10 da Lei nº 5.692/71, a qual previa a obrigatoriedade da OE nas escolas de 1º e 2º graus, garantiram a realização de um segundo concurso, cuja discussão foge ao escopo deste artigo.

Resultados e Discussão

O que os depoimentos revelam

Os depoimentos das duas ex-orientadoras geraram três tópicos: adesão das orientadoras educacionais à abordagem rogeriana, dificuldades/facilidades em conciliar teoria e prática e deturpação das ideias de Rogers. Esses tópicos serão discutidos a seguir.

A adesão das orientadoras à abordagem rogeriana

Eis a justificativa de Vera Placco3:

O que explica minha adesão à teoria?

Acho que o próprio confronto entre as propostas – havia o grupo de Skinner e o grupo dos rogerianos. Rogers respondia melhor ao que eu acreditava, na época. Havia também a questão política: o pessoal de Orientação Educacional, na USP, naquele momento, tinha um posicionamento político que contrastava com outros grupos profissionais dentro da Universidade. Então, aderir à abordagem do grupo de OE era uma coisa natural. Por outro lado, minha personalidade, meu modo de lidar com as coisas se afinava com o que via na teoria rogeriana: a não diretividade, o respeito, os valores humanos – que eram também coerentes com o que a Orientação Educacional propunha como modo de trabalho e atividades no trabalho de Orientação Educacional

(Almeida, 2007, p.82).

Placco refere-se à década de 1960, quando foi aluna do curso de especialização em OE na USP. Esse período é historicamente tido, nos Estados Unidos, como anos de contestação da sociedade e do poder, sobretudo pela juventude, que questionava a desumanização do homem, consequência da tecnocracia. Havia a pretensão de mudar o mundo para torná-lo mais humano, mais sensível, menos insensato. Foi essa contestação que permitiu o aparecimento, nos Estados Unidos, da Psicologia Humanista ou Terceira Força em Psicologia (em contraposição ao Behaviorismo e à Psicanálise), da qual Rogers foi um dos articuladores e fundadores. A proposta da Psicologia Rogeriana, quando chegou ao Brasil, foi aceita por pessoas vanguardistas, com posições claramente definidas a favor do respeito à pessoa, aos seus direitos e valores humanos (Campos, 2003). Ainda segundo Campos (2003), sem levar em conta as características daquela época, não se pode criticar a abordagem rogeriana como alienante, individualizante, sem preocupação com o social.

Em depoimento dado em 2016, Placco acrescenta:

Rogers foi, sim, uma presença forte em minha formação. No curso de especialização em OE da USP a formação psicológica teórica foi na linha rogeriana. Comecei minha atuação com influência de minha formação, portanto usava Rogers como referência. No meu caso, logo que entrei no Experimental da Lapa, a influência foi temperada com outras, mais na linha pedagógica e crítico-social

(Placco, depoimento oral).

Se para Placco a adesão à abordagem rogeriana deu-se no percurso da formação, para Ana Gracinda Queluz4 isso aconteceu na situação de estágio.

A adesão não se deu de cara. Não foi uma adesão emocional. Inicialmente seria como uma referência, um convite a uma reflexão maior, e que ficou meio que em maturação, enquanto estudava outras correntes. Mais tarde, em 1971, 1972, fui estagiar e depois trabalhar no colégio particular onde estudei. Pela primeira vez entrei em contato direto com a Orientação Educacional, como estagiária. A Orientação Educacional trabalhava na ACP. Unindo a experiência do estágio com as leituras feitas na Universidade, deu um amálgama muito forte e poderoso, no momento em que percebia a evolução dos alunos

(Almeida, 2007, p.73).

O depoimento de Queluz traz duas evidências: colégios particulares, no Estado de São Paulo, tinham orientadoras educacionais que trabalhavam com a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) (que é o nome dado pelo próprio Rogers à sua proposta) as quais, abertas à oferta de estágio, difundiam a abordagem. A adesão à psicologia de Rogers por Ana deu-se a partir da percepção da evolução dos alunos.

Ainda neste tópico, vale a pena citar o depoimento de Abigail Alvarenga Mahoney5, já referida neste texto,

Porque minha atração por Rogers? Uma das coisas de que me lembro é que durante minha formação toda eu implicava bastante com a ênfase exagerada no cognitivo. Achava que faltava alguma coisa, que eu não sabia o que era. [...] Lendo Rogers pensei: Encontrei alguém que, além do cognitivo, pensa no afetivo e dá recursos ao professor para trabalhar com o lado afetivo, que não pode ser ignorado

(Almeida, 2007, p.71).

Em depoimento dado em 2016, Mahoney afirma:

O que chamou minha atenção e do público em geral foi a ênfase dada por Rogers à parte emocional, o que não era feito antes. Foi um autor importante que deixou marcas nas pessoas que conheceram sua obra. No meu caso, mesmo quando fui para outros autores, ele estava presente, para comparações, para discussões

(Mahoney, depoimento oral).

É interessante observar que as marcas não se deram somente em pessoas que tiveram contato vom a obra do autor na década de 1970, como foi o caso de Mahoney. Também outras que o conheceram em época recente atestam a vitalidade de seus princípios. Josso (2004, p.225) afirma “Carl Rogers, mais recentemente surgido no meu itinerário como formadora de adultos, forneceu-me um conjunto coerente de princípios de ação com vista a facilitar a atualização das potencialidades de cada aprendente”.

Dificuldades/facilidades para conciliar teoria e prática

No depoimento de Placco preponderam dificuldades:

Comecei a trabalhar em Orientação Educacional no Experimental da Lapa – Gepe II, no noturno. Usava abordagem não diretiva. Tentava usar, mas era muito difícil, até pelo tipo de alunos. Na mesma época, fui para a PUC, trabalhar na Pedagogia, Habilitação em Orientação Educacional.

A concepção de Orientação Educacional que se queria na PUC era uma concepção humanista, desenvolvimentista, de aborda-gem integradora, centrada no currículo e não apenas de atendimento individual, mas de cunho humano muito grande. Tinha também um cunho político. Era uma abordagem nova. Porque nova: o orientador educacional sempre tinha sido formado numa fundamentação psicológica. Agora, nossa ênfase não era só psicológica, mas trazia também a parte pedagógica, de trabalhar com currículo; era uma abordagem mais preventiva que terapêutica. Ainda era uma influência rogeriana, especialmente naquilo que nós chamamos de atitudes facilitadoras: empatia, congruência, consideração positiva incondicional. Quanto à consideração positiva incondicional, a gente questionava muito, trabalhando no Gepe II, com noturno. A ideia do não diretivismo – a gente punha muito em xeque. Pegar uma turma de alunos de mais de 14 anos, com 20, 25, até 40, que moravam em bolsões paupérrimos, alguns trabalhadores, alguns favelados – gente muito acostumada com autoritarismo, com uso de força, de violência. Trabalhar a não diretividade com esses alunos causava um choque. Não respeitavam de jeito nenhum. Queriam a manifestação do diretor, da orientadora educacional, dos professores. Nós trabalhávamos as atitudes facilitadoras, mas, ao mesmo tempo, cuidando para que os alunos passassem paulatinamente da heteronomia para a autonomia

(Almeida, 2007, p.82).

O Ginásio Estadual Pluricurricular Experimental (Gepe), com seis unidades, começou a funcionar em 1966 por força da Lei nº 4.024/1961, a qual permitiu a organização de cursos ou escolas experimentais no contexto do então denominado ensino renovado. Ficou conhecido como Experimental da Lapa, porque funcionava nesse bairro da Capital paulista. O Gepe II destinava-se a atender adolescentes e adultos, a partir de 14 anos, com ausência ou atraso de escolaridade. Placco está se referindo, portanto, ao trabalho de OE em uma escola experimental, a qual contava com recursos humanos e materiais diferenciados das demais escolas da rede pública estadual.

O Experimental da Lapa, bem como o Colégio de Aplicação da USP e os Ginásios Vocacionais contaram com Serviço de Orientação Educacional antes da introdução da OE nas escolas da rede comum do Ensino Secundário do Estado de São Paulo. Isso aconteceu após o concurso realizado em 1968 e os orientadores empossados em 1970.

Dois pontos merecem destaque no depoimento de Placco: a formação do orientador educacional em uma perspectiva psicológica, na linha de atendimento individual, não era mais possível nem desejável, pois precisava atender à demanda significativamente maior de alunos que chegavam à escola. Algumas instituições, entre elas a PUC-SP, quando passam a oferecer as habilitações no curso de Pedagogia a partir de 1969, trazem uma abordagem mais preventiva que terapêutica, trabalhando via currículo. A influência rogeriana persistiu, mas a dificuldade de os princípios rogerianos serem operacionalizados na prática se fazia sentir.

A influência, segundo Placco, se concentrava particularmente na aplicação das atitudes ou condições facilitadoras que, embora desejáveis por se aceitar que a transformação pessoal é facilitada em função das relações humanas por elas estabelecidas, mostravam-se complicadas de praticar no contexto escolar. Dentre as três condições facilitadoras, a mais difícil de se expressar era a Consideração Positiva Incondicional. O próprio Rogers (1978) traz a discussão de que, mesmo em situação de terapia, não é “dever” do terapeuta, sentir Consideração Positiva Incondicional o tempo todo. Almeida (1980) discute a questão argumentando que, em situação de ensino, por estar o professor sujeito a regras e pressões da instituição, é muito difícil apresentar Consideração Positiva Incondicional. No entanto, de acordo com a autora, expressar Consideração Positiva é sempre melhor que indiferença.

Placco refere-se também à questão da formação de professores e retoma as dificuldades de se trabalhar a Consideração Positiva Incondicional.

A formação para os professores serem não diretivos não existia. Assim como hoje temos dificuldade na formação de professores, tínhamos na época. Os professores não sabiam ser não diretivos, e atuavam de modo laissez-faire. Uma das dificuldades para a prática era essa: a confusão entre o diretivo e laissez-faire.

A questão de a Consideração Positiva Incondicional ser inadequada era outra. Muito difícil, muito complicada, mesmo autenticidade do professor ou do orientador educacional, que é extremamente valiosa e desejável – precisava ser muito bem trabalhada, o professor precisava ser formado para exercer. A confusão entre autenticidade e privacidade (vida particular do professor) era outra complicação. Muitos professores não deram conta. Agora, trabalhando com os orientadores, os problemas eram os mesmos. Assim, para ser autêntico com meu orientando, precisava tomar muito cuidado

(Almeida, 2007, p.82).

A autenticidade também é questionada por Placco, considerando que, no contexto educacional, os professores confundiam autenticidade com abertura à privacidade, o que não era bom. Dentre as três condições, Placco não se refere à dificuldade com a empatia, o que é compreensível: colocar-se no lugar do outro para compreendê-lo seria uma possibilidade de se chegar mais próximo ao aluno que atendia e, com isso, facilitar o estabelecimento de uma relação favorável ao desenvolvimento.

Queluz, diferentemente de Placco, não encontra dificuldade em conciliar teoria e prática.

[...] fui trabalhar numa escola em que o índice de agressividade era extremamente alto. Essas crianças vinham da experiência de uma escola especializada que trabalhava com dificuldades de aprendizagem, com crianças com muito potencial intelectual. A agressividade era assustadora. Comecei então a construir um trabalho a partir do credo pedagógico de Rogers, do humanismo da forma que ele colocava, que fundamentalmente contava com a aceitação, a autenticidade, a consideração. Essas coisas foram básicas. O resultado do trabalho fortaleceu minha convicção – a escola foi mudando, as crianças foram mudando. Produzimos um texto – as crianças mais velhas – para apresentar num Festival de Música que organizei. Foi um desabafo sobre educação:

‘Aqui o prédio é pequeno, mas aprendi a crescer por dentro’.

‘Aqui a gente pode perguntar, sem ser chamado de burro’.

‘Aqui as pessoas dão bronca, mas com amor’.

‘Nós queremos deixar nossa marca nesta música, porque não dá para passar pela vida sem deixar marcas’.

Eram crianças de apenas 10 anos e estavam condenadas a serem sempre inadequadas. A Abordagem Humanista foi um holofote iluminando questões, fazendo refletir sobre adequação/inadequação, aluno/ambiente. E parece que em Rogers eu encontrava autorização para questionar, mudar e pensar currículo em outra dimensão. Quan-do aconteceu o festival, escrevi uma carta a Rogers. Minha maior surpresa – fui convidada a falar sobre isso em um encontro nos Estados Unidos, em 1980

(Almeida, 2007, p.73).

O depoimento de Queluz permite constatar a possibilidade de realização de um trabalho baseado no “credo pedagógico de Rogers”, ou seja, com a presença das condições ou atitudes facilitadoras para criar um clima adequado ao desenvolvimento e à aprendizagem. Percebeu que o trabalho com a abordagem rogeriana possibilitava mudanças nos alunos de dez anos e com alto potencial intelectual, diminuindo a agressividade e engajando-os no trabalho; notou, ainda, que a abordagem promovia sucessos não só para os alunos, mas para si própria.

Deturpação das ideias de Rogers

Placco se reporta à década de 1970 e questiona as duras críticas feitas à OE e à abor-dagem rogeriana:

Na década de 70, tínhamos congressos, a Fenoe (Federação Nacional dos Orientadores Educacionais) forte, as Associações fortes. Nesses encontros, Rogers era muito discutido. Na década de 70, talvez até por reação ao tecnicismo imposto pela 5692, os orientadores conservaram a abordagem rogeriana, até 78, 79, quando ampliam-se as críticas à educação. Um dos alvos dessas críticas foi a Orientação Educacional, um dos alvos prediletos, dizendo-se que a abordagem rogeriana era individualista, que não respeitava o coletivo, o social, e, de fato, ela não tinha essa discussão mais voltava para o social e o político. O social que ele abordava (na literatura disponível, na época) era mais o social interacional. Foi um alvo forte, assim como Piaget, como Skinner. Com Rogers foi especialmente forte, talvez porque os orientadores educacionais fossem mais frágeis, porque falavam de um não diretivismo que as escolas não permitiam que vivessem. Ao se fazer Orientação Vocacional, na escola pública, fala-se da escolha pelo aluno, quando na realidade o que ele considerava mais adequado era o que pudesse ser do ponto de vista financeiro e social, era mesmo complicado.

Então, havia razão para algumas críticas, mas outras foram desmedidas. Porque diziam de um orientador educacional responsável pelo autoritarismo, pelo engano da Orientação Educacional, quase responsável por todos os males da educação. O que eu acho é que o orientador educacional não tinha esse poder, essa influência toda. O orientador educacional não era esse não diretivo que se dizia. Aliás, não dava para ser não diretivo com 2.000 alunos ‘para tomar conta’. Expressão que se usava na época. Ainda se usa?

(Almeida, 2007, p.83).

Vários pontos aparecem no depoimento de Placco: (1) a crítica feita à abordagem rogeriana como individualista, sem levar em conta o social; a concordância de que a literatura de Rogers, à época, levava a essa leitura, pois focalizava mais o “social interacional”; (2) a questão do não diretivismo e sua relação com o contexto socioeconômico das classes populares na Orientação Vocacional; (3) a democratização quantitativa do ensino que, se de um lado foi bem recebida por ser justa e necessária, por outro não trouxe, do Estado, condições para sua efetivação. As exigências impostas pela democratização, pelo acesso do povo à escola, não sensibilizaram os governos para oferecerem condições à uma modalidade de OE que fosse útil à escola. Os orientadores foram criticados por não contribuírem para essa escola que surgia, bem diferente da antiga elitista, talvez por terem demorado a compreendê-la.

Placco volta a uma questão bastante discutida nos anos 1970, a do uso inadequado do conceito de não diretividade:

Por outro lado, o que estava acontecendo, naquele momento, em escolas particulares, era a aplicação da Abordagem naquilo que ela tinha de mais negativo – a libertinagem – criança manda, criança faz, criança quer e então se atende. Enquanto a gente tentava, na abordagem rogeriana, passar da heteronomia para a autonomia, em muitas escolas era a passagem da libertinagem para mais libertinagem. Se a criança resolvesse fazer uma cena de agressividade, o professor não podia fazer nada. Muitas escolas particulares tinham essa postura: a criança sempre tem razão. Escolas particulares estavam aderindo de maneira inadequada – é proibido proibir. Na realidade, estavam perdendo critérios do ponto de vista da formação. Não era o que Rogers queria, não era o que ele propunha quando falava em não diretividade. Sabemos que ele estava propondo uma confiança na capacidade organísmica do indivíduo na direção da auto-realização. Mesmo isso, se as condições facilitadoras existissem. Se as condições não existem, o que você pode fazer é libertinagem mesmo. Porque sem critério, sem padrão, ninguém cresce

(Almeida, 2007, p.82).

A não diretividade perpassa toda a proposta rogeriana em consequência de seu pres-suposto: todo ser humano tem uma tendência à atualização, portanto a melhor forma de contribuir para o desenvolvimento é contar com essa força natural que tem dentro de si, aceitando que o melhor juiz de si mesmo é ele próprio. Apresentando, na relação interpessoal, as condições Consideração Positiva, Autenticidade e Empatia, essa força positiva motivacional se manifesta. Não significando que a escola deva eximir-se da responsabilidade de apontar limites, de estabelecer critérios.

Queluz refere-se à mesma questão, defendendo a inadequação das críticas feitas à proposta rogeriana aplicada à educação:

Na década de 70 havia um paradoxo – dar voz ao jovem e calá-lo, pelas questões políticas, e o Orientador Educacional estava sofrendo uma crise de vitalidade. Dizia-se do método que era um laissez-faire, que era muito fácil ser rogeriano, bastava deixar tudo nas mãos dos alunos, e que Rogers tinha trabalhado tendo como eixo o indivíduo e que com isso o coletivo se perdia. Então, que os livros eram muito simples, que não tinham nada por trás, que a teoria do Self era muito simplesinha. Havia um certo descaso. Parecia que o rogeriano estava sempre vendo o mundo com lentes cor-de-rosa, sem uma postura crítica. Obviamente, isso me irritava, porque não era assim que eu sentia (Almeida, 2007, p.74).

Queluz avança até os anos 1980, quando Rogers começa a trabalhar com grupos e fala do quanto aprendeu participando de workshops.

[...] lá em La Jolla, com tudo que acontecia em outros países, e pela postura segura do próprio Rogers – e até porque ele começava a trabalhar com os grandes grupos – que foi se mostrando que o que estava em construção era o homem na sua humanidade, inserido no seu contexto socioeconômico, em que ele sempre esteve. Não havia esse deslocamento do homem para um lugar seguro, onde ele pudesse retornar ao mundo. Como se a Abordagem fizesse da escola uma ilha da fantasia. Não era isso. Tive oportunidade de participar com ele de um evento cross-cultural, e fui uma das pessoas, em parceria com outro facilitador, que trabalhou com uma comunidade de mulheres que discutiam sua condição. Inicialmente, a abordagem de Rogers era mesmo individual, porque era terapêutica. Na década de 80, entra em discussão a questão do Poder pessoal e do Jeito de ser, que são dois livros extremamente importantes para se compreender o que é colocar a pessoa como centro. Não é uma atitude ingênua pensar que a pessoa no centro não carrega nada do social. É impossível essa imagem. É impossível ver a si mesmo sem ver os outros. A busca desse bem-estar, desenvolvimento do humano, implica enfrentar conflitos que envolvem as pessoas. Isso fica claro nas experiências dos workshops

(Almeida, 2007, p.74).

Na década de 1980, poucos orientadores educacionais permaneceram na rede estadual de ensino de São Paulo. Muitos dos concursados migraram para outros cargos, como de diretor ou de supervisor. Alguns ficaram atuando somente no ensino superior. Apesar do esforço dos orientadores para desenvolver um trabalho de qualidade, valorizando as atitudes facilitadoras de Rogers e amalgamando-as com outras propostas teóricas que nessa década haviam chegado ao Brasil e às escolas, a OE não se expandiu na rede; pelo contrário, foram rareando as escolas públicas com orientadores educacionais. Mas, como já afirmado, essa discussão foge ao escopo deste artigo, o qual buscou responder às questões sobre a adesão de profissionais à proposta rogeriana e sobre a conciliação teoria-prática.

Conclusão

A rede pública estadual paulista não conta mais com orientador educacional no módulo de suas escolas, embora muitas escolas particulares ainda o possuam. No entanto, para orientadores e demais profissionais que se familiarizaram com as novas avenidas abertas por Rogers para a relação de ajuda àqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade pela dificuldade de fazer escolhas, ficou uma certeza: as atitudes de congruência, consideração positiva, empatia expressas pelo facilitador criam um clima emocional que reduz as tensões e levam o indivíduo a encontrar caminhos mais adequados à satisfação de suas necessidades.

Esses profissionais, que se entusiasmaram com as propostas de Rogers, perceberam a fecundidade de um clima emocional livre de ameaças e pressões. Ao confiarem no postulado de que os indivíduos têm dentro de si mesmos recursos para autocompreensão e autodireção e que um clima emocional favorável ao desenvolvimento e à aprendizagem libera esses recursos, investiram na aplicação dos princípios rogerianos, em particular, nas atitudes de autenticidade, consideração positiva e empatia, pois perceberam que rendem lucros: a partir dessas atitudes se constrói uma relação para desenvolver o potencial do outro e de si mesmos.

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Notas

2 As comunicações apresentadas foram reunidas em um livro, organizado por Vera Placco em 2000.
3 Vera Placco é, atualmente (2016), professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Educação e do Mestrado Profissional Educação: Formação de Formadores, ambos da PUC-SP. Sua dissertação de mestrado, defendida em 1978, “Um estudo do conceito de congruência em Carl Rogers”, e a tese de doutorado, defendida em 1992, “Formação de orientadores educacionais: questionamento da sincronicidade consciente e confronto com a mudança”, foram desenvolvidas na PUC-SP.
4 Ana Gracinda Queluz foi coordenadora do curso de mestrado da Unicid (Universidade Cidade de São Paulo). Sua dissertação de mestrado, defendida em 1981 na PUC-SP, “A pré-escola centrada na criança”, deu origem ao livro “A pré-escola centrada na criança: uma influência de Carl Rogers” (Pioneira, 1984).
5 Abigail Alvarenga Mahoney é professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Educação da PUC-SP desde 1969, do qual foi coordenadora em várias gestões. Sua tese de doutorado, “Análise lógico-formal da teoria da aprendizagem de Carl Rogers”, foi defendida em 1976 na PUC-SP. Aposentou-se em 2010.
Como citar este artigo/How to cite this article: Almeida. L.R. A psicologia de Carl Rogers na formação e atuação de orientadores educacionais. Revista de Educação PUC-Campinas, v.23, n.2, p. 311-327, 2018. http://dx.doi.org/10.24220/2318-0870v23n2a3838
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