HISTÓRICO, CARACTERIZAÇÃO E DINÂMICA RECENTE DO PRONAF – PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR

HISTORY, CHARACTERIZATION AND RECENT DYNAMICS OF PRONAF - NATIONAL PROGRAM FOR STRENGTHENING FAMILY FARMING

HISTORIA, CARACTERIZACIÓN Y DINÁMICA RECIENTE DEL PRONAF - PROGRAMA NACIONAL PARA EL FORTALECIMIENTO DE LA AGRICULTURA FAMILIAR

Sergio Schneider
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Ademir Antonio Cazella
Universidade Federal de Santa Catarin, Brasil
Lauro Mattei
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

HISTÓRICO, CARACTERIZAÇÃO E DINÂMICA RECENTE DO PRONAF – PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR

Revista grifos, vol. 30, núm. 51, pp. 12-41, 2020

Universidade Comunitária da Região de Chapecó

Recepción: 14/07/2020

Aprobación: 03/08/2020

Resumo: Nesse artigo discutiu-se a importância e a trajetória do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), criado no ano de 1996. Após fazer uma breve discussão sobre o processo histórico de lutas das organizações dos trabalhadores rurais em prol de uma política agrícola específica para esse segmento social, analisou-se os objetivos e as principais características operacionais do programa, as mudanças institucionais que estavam em curso e o desempenho em termos de recursos financeiros destinados aos agricultores familiares até aquele momento. Dentre as principais conclusões, destacou-se que o programa possibilitou o acesso ao crédito rural a um grande número de agricultores familiares que não estavam inseridos no mercado financeiro, ao mesmo tempo em que o programa ganhou capilaridade nacional, estando presente em todas as regiões do país. Além disso, algumas distorções observadas precisariam ser continuamente corrigidas para que o programa cumprisse na íntegra todas as suas finalidades.

Palavras-chave: Brasil, Política Pública, Agricultura Familiar, Pronaf.

Abstract: In this article we discuss the importance and the trajectory of the National Program for Strengthening Family Farming (Pronaf), created in 1996. After making a brief discussion over the historical struggles of the organizations of rural workers' in favor of an specific agricultural policy for this social group, in the second section we analyzed the objectives and main operational characteristics of the program, the institutional changes that were underway and the performance in terms of financial resources allocated to family farmers. Among the main conclusions, we highlighted that the program allowed access to rural credit to a large number of family farmers who were not yet inserted in the financial market, and at the same time the program gained national capillarity, being present in all regions of the country. We also observed that some distortions would need to be continually corrected in order the program could fully accomplish all its purposes.

Keywords: Brazil, Public Policy, Family Farming, Pronaf.

Resumen: En este artículo, se discutió la importancia y la trayectoria del Programa Nacional para Fortalecer la Agricultura Familiar (Pronaf), creado en 1996. Después de una breve discusión sobre el proceso histórico de las luchas de las organizaciones de trabajadores rurales en favor de una política agrícola específicos de este segmento social, se analizaron los objetivos y las principales características operativas del programa, los cambios institucionales que estaban en marcha y el desempeño en términos de recursos financieros asignados a los agricultores familiares hasta ese momento. Entre las principales conclusiones, se destacó que el programa permitió el acceso al crédito rural a un gran número de agricultores familiares que no se insertaron en el mercado financiero, al mismo tiempo que el programa ganó capilaridad nacional, estando presente en todas las regiones del país. Además, algunas distorsiones observadas tendrían que corregirse continuamente para que el programa cumpliera plenamente con todos sus propósitos.

Palabras chave: Brasil; Política pública; Agricultura familiar; Pronaf.

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo consiste em elaborar uma síntese da trajetória do PRONAF desde seu surgimento até o presente e apresentar alguns de seus resultados mais importantes nas linhas de crédito e infraestrutura e serviços municipais. Não se pretende fazer uma avaliação ou uma abordagem crítica do programa e nem tão pouco dar conta de toda bibliografia recente produzida acerca do seu desempenho e significado. Busca-se apenas descrever o programa com a finalidade de realçar melhor sua trajetória e situá-lo apropriadamente em meio à discussão principal do livro no qual foi originalmente publicado, que se refere aos novos processos de gestão das políticas públicas que têm como alvo os agricultores familiares e o espaço rural brasileiro.

Dentre os acontecimentos mais marcantes que ocorreram na esfera das políticas públicas para o meio rural brasileiro, no período recente, pode-se destacar a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). O surgimento deste programa representa o reconhecimento e a legitimação do Estado, em relação às especificidades de uma nova categoria social – os agricultores familiares – que até então era designada por termos como pequenos produtores, produtores familiares, produtores de baixa renda ou agricultores de subsistência.

De um modo geral, se pode dizer que até o início da década de noventa não existia nenhum tipo de política pública especial, com abrangência nacional, voltada ao atendimento das necessidades desse segmento social da agricultura, o qual era, inclusive, caracterizado de modo meramente instrumental e bastante impreciso no âmbito da burocracia estatal.

É preciso lembrar que, no contexto do início da década de 1990, a agricultura brasileira, e particularmente a da região Meridional do Brasil, estava fortemente afetada pelo processo de abertura comercial e de desregulamentação dos mercados, fatores que a submetiam a uma concorrência intensa com os países do Mercosul. Em vista das sucessivas dificuldades decorrentes da crise da segunda metade dos anos oitenta, particularmente no que se refere à disponibilidade de crédito e da queda da renda, os agricultores familiares da região Sul do Brasil, e em menor medida os agricultores da região Nordeste (sobretudo os produtores de algodão), encontravam-se debilitados diante da nova conjuntura econômica e comercial.

Assim, a década de noventa é marcada por alguns fatores que foram decisivos para mudar os rumos do desenvolvimento rural, principalmente na esfera governamental. Por um lado, o movimento sindical dos trabalhadores rurais ligados à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) e ao Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da Central Única dos Trabalhadores (DNTR/CUT), especialmente dos três estados meridionais do país, passaram a organizar-se e direcionar suas reivindicações e lutas para a chamada “reconversão e reestruturação produtiva” dos agricultores familiares, que seriam afetados pelo processo de abertura comercial da economia, na ocasião influenciado pela criação do Mercosul. Assim, as reivindicações dos trabalhadores rurais, que já haviam começado a ter voz na Constituição de 1988[5], ganharam destaque nas “Jornadas Nacionais de Luta” da primeira metade da década de noventa, que a partir de 1995 passaram a ser denominadas de “Grito da Terra Brasil”[6].

Por outro lado, os estudos realizados conjuntamente pela FAO/INCRA[7] definem com maior precisão conceitual a agricultura familiar e, mais ainda, estabelecem um conjunto de diretrizes que deveriam nortear a formulação de políticas públicas adequadas às especificidades dos diferentes tipos de agricultores familiares. Sabe-se que esses estudos serviram de base para as primeiras formulações do PRONAF.

Entretanto, para melhor compreender este conjunto de inovações, é preciso recuar no tempo e situar o processo de elaboração e consolidação desse Programa. Em larga medida, pode-se afirmar que o PRONAF foi formulado como resposta do Estado às pressões do movimento sindical rural, realizadas desde o final da década de 1980. O programa nasceu com a finalidade de prover crédito agrícola e apoio institucional aos pequenos produtores rurais que vinham sendo alijados das políticas públicas até então existentes e encontravam sérias dificuldades de se manter no campo.

Em 1994, em conseqüência das reivindicações dos agricultores familiares acima citadas, o governo Itamar Franco criou o Programa de Valorização da Pequena Produção Rural (PROVAP), que operava basicamente com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES). O PROVAP seria o embrião da primeira e mais importante política pública criada dois anos mais tarde e destinada aos agricultores familiares. Cabe frisar que, embora o PROVAP tenha tido resultados pífios do ponto de vista dos recursos aportados para os agricultores[8], sua importância consiste na transição que ali se inicia em direção a uma política pública diferenciada por categorias de produtores rurais. Deve-se lembrar, por exemplo, que até esta época, os pequenos agricultores eram enquadrados como “mini-produtores” pelas normas do Manual de Crédito Rural do Ministério da Agricultura, o que fazia com que tivessem que disputar recursos com os grandes proprietários, que historicamente foram os principais tomadores de crédito para agricultura.

A partir de 1995, já no Governo Fernando Henrique Cardoso, o PROVAP foi totalmente reformulado, tanto em termos de concepção como em sua área de abrangência. Essas modificações deram origem ao PRONAF, em 1996, cuja institucionalização ocorreu através do Decreto Presidencial nº 1.946, datado de 28/06/1996. Desse ano em diante, o programa tem se firmado como a principal política pública do Governo Federal para apoiar os agricultores familiares. Deve-se registrar, no entanto, que, no ano de 1996, apenas as ações relativas ao crédito de custeio foram implementadas e que a ampliação do programa para as áreas de investimentos, infra-estrutura e serviços municipais, capacitação e pesquisa, só ocorreu a partir de 1997, quando o PRONAF ganhou maior dimensão e passou a operar de forma integrada em todo território nacional.

OBJETIVOS E CARACTERÍSTICAS OPERACIONAIS DO PRONAF

Segundo o Manual Operacional do PRONAF, o programa visa o fortalecimento da agricultura familiar, mediante apoio técnico e financeiro, para promover o desenvolvimento rural sustentável. Seu objetivo geral consiste em fortalecer a capacidade produtiva da agricultura familiar; contribuir para a geração de emprego e renda nas áreas rurais e melhorar a qualidade de vida dos agricultores familiares. Quatro objetivos específicos complementam os propósitos do programa: a) ajustar as políticas públicas de acordo com a realidade dos agricultores familiares; b) viabilizar a infra-estrutura necessária à melhoria do desempenho produtivo dos agricultores familiares; c) elevar o nível de profissionalização dos agricultores familiares através do acesso aos novos padrões de tecnologia e de gestão social; d) estimular o acesso desses agricultores aos mercados de insumos e produtos.

Do ponto de vista operacional, o PRONAF apresenta, atualmente, quatro grandes linhas de atuação, a saber: a) Crédito de custeio e investimento destinado às atividades produtivas rurais; b) Financiamento de infra-estrutura e serviços a municípios de todas as regiões do país, cuja economia dependa fundamentalmente das unidades agrícolas familiares; c) Capacitação e profissionalização dos agricultores familiares através de cursos e treinamentos aos agricultores, conselheiros municipais e equipes técnicas responsáveis pela implementação de políticas de desenvolvimento rural; d) Financiamento da pesquisa e extensão rural visando a geração e transferência de tecnologias para os agricultores familiares.

Em relação à delimitação do público-alvo, o programa atende especificamente os agricultores familiares, caracterizados a partir dos seguintes critérios:

1) Possuir, pelo menos, 80% da renda familiar originária da atividade agropecuária;

2) deter ou explorar estabelecimentos com área de até quatro módulos fiscais (ou até 6 módulos quando a atividade do estabelecimento for pecuária);

3) explorar a terra na condição de proprietário, meeiro, parceiro ou arrendatário;

4) utilizar mão-de-obra exclusivamente familiar, podendo, no entanto, manter até dois empregados permanentes;

5) residir no imóvel ou em aglomerado rural ou urbano próximo;

6) possuir renda bruta familiar anual de até R$ 60.000,00.

As fontes de financiamento também foram ampliadas. Além do BNDES, o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) assumiu o lugar de principal provedor de recursos, representando cerca de 80% do total desde 1996 até hoje. As outras fontes são os Fundos Constitucionais do Nordeste (FNE) e do Centro-Oeste (FCO), criados pela Constituição de 1988 para favorecer o desenvolvimento das regiões mais pobres; as verbas vindas do Tesouro Nacional, alocadas no Orçamento Geral da União; a Exigibilidade Bancária (percentual de recursos captados pelos bancos comerciais e depositados no Banco Central) e, mais recentemente, os Bancos Cooperativos como o Bansicredi e o Bancoob[9], que operam com convênios com o Banco do Brasil. Para que os mecanismos de financiamento do PRONAF ganhassem efetividade, coube ao Estado desempenhar um papel crucial na equalização das taxas de juros, das despesas administrativas e, muitas vezes, avalizar as operações para cobrir o risco do sistema bancário. Mesmo assim, depois de mais oito anos de existência, os operadores do PRONAF restringem-se basicamente ao Banco do Brasil e ao Banco do Nordeste, duas instituições públicas.

A modalidade denominada Financiamento da Produção – que comporta os recursos para custeio e investimentos - está voltada ao apoio financeiro dos agricultores familiares, segundo seis categorias de beneficiários[10]: Essa categorização decorreu da publicação de um estudo realizado no âmbito do convênio FAO/INCRA[11], em 1999, que sugeriu a segmentação dos agricultores familiares beneficiários do programa em grupos distintos, de acordo com o nível da renda bruta familiar anual. Essa classificação diferenciada dos agricultores permitiu que as regras de financiamentos fossem mais adequadas à realidade de cada segmento social, sendo que os encargos financeiros e os rebates (descontos) visam auxiliar mais aquelas parcelas com menores faixas de renda e em maiores dificuldades produtivas.

Grupo A: agricultores assentados da reforma agrária que, com a extinção do Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária (PROCERA), passaram a ser atendidos pelo PRONAF. Atualmente, pelas regras do Plano de Safra 2003/04[12], esses agricultores podem financiar até R$ 2.500,00 para custeio da safra e até R$ 13.500,00 para investimentos. No caso de crédito de custeio, o prazo para pagamento é de dois anos e as taxas de juros são de 2% ao ano. Já para o crédito de investimento esses números são de 10 anos (5 anos de carência) e 1,15% ao ano, respectivamente. Foi previsto, também, um desconto de 46% sobre o valor financiado, desde que o pagamento ocorra dentro dos prazos estipulados;

Grupo B: agricultores familiares e remanescentes de quilombos, trabalhadores rurais e indígenas com renda bruta anual atual de até R$ 2.000,00. Esse grupo inclui as famílias rurais com baixa produção e pouco potencial de aumento da produção no curto prazo localizadas em regiões com concentração de pobreza rural. Os valores dos financiamentos (custeio mais investimento) são limitados em até R$ 1.000,00 para qualquer atividade geradora de renda, com juros de 1% ao ano e prazo para pagamento de dois anos, sendo um de carência. Nessa modalidade de crédito, o tomador pode se beneficiar de um desconto de 25% sobre o valor financiado, quando os prazos de ressarcimento do empréstimo forem respeitados;

Grupo C: agricultores familiares com renda bruta anual atual entre R$ 2.000,00 a R$ 14.000,00, que apresentem explorações intermediárias com bom potencial de resposta produtiva. Os limites de financiamento para custeio são de R$ 2.500,00, com juros de 4% ao ano, desconto (rebate) de R$200,00 e prazo de pagamento de até dois anos. Já para investimentos, o limite é de R$ 5.000,00 e o prazo de pagamento de até oito anos, com a mesma taxa de juros. Além do rebate, o agricultor pode se beneficiar de um bônus de 25% sobre os juros, desde que observados os prazos;

Grupo A/C: agricultores oriundos do processo de reforma agrária e que passam a receber o primeiro crédito de custeio após terem obtido o crédito de investimento inicial que substituiu o antigo programa de apoio aos assentados. Os limites de financiamento de custeio variam de R$ 500,00 até R$ 2.500,00, com juros de 2% ao ano e prazo de pagamento de até dois anos. Esse grupo também é beneficiado por um desconto de R$ 200,00 sobre o valor emprestado desde que quitado dentro dos prazos estabelecidos;

Grupo D: agricultores estabilizados economicamente com renda bruta anual entre R$ 14.000,00 e R$ 40.000,00, sendo que o limite para custeio é de até R$ 6.000,00, com juros de 4% ao ano e prazo de até dois anos. Já para investimento o limite de financiamento é de até R$ 18.000,00, com prazo de até oito anos e juros iguais ao do custeio, podendo ser reduzido em 25% o valor referente aos juros para os pagamentos no prazo;

Grupo E (Proger Familiar Rural): agricultores com renda bruta anual entre R$ 40.000,00 a 60.000,00. Os limites de financiamento para custeio são de R$ 28.000,00, com juros de 7,25% ao ano e prazo de pagamento de dois anos. Já para investimento, o limite de financiamento é de R$ 36.000,00, com juros idênticos ao crédito de custeio e prazo de pagamento de até 8 anos, com 3 são de carência, sem previsão de descontos.

Posteriormente à adoção da segmentação dos beneficiários, ainda em 1999, foram criadas mais três linhas de crédito especiais para os agricultores familiares dos grupos B, C e D. A primeira é o chamado crédito rotativo, também conhecido como Rural Rápido, operado exclusivamente pelo Banco do Brasil. Esse tipo de crédito funciona como um cheque especial em que o agricultor vai utilizando os recursos segundo suas necessidades. Talvez por isto, ele acaba sendo utilizado majoritariamente pelo segmento dos agricultores familiares do grupo D, justamente os mais capitalizados. Segundo Abramovay (2002, p. 38), “em 1997 o crédito rotativo correspondia a 37% do valor dos financiamentos de custeio do PRONAF e em 2000 ele já chegava a 52% do total”. A segunda linha de crédito especial é o integrado coletivo, destinado a associações, cooperativas e outras pessoas jurídicas compostas exclusivamente por beneficiários do PRONAF. A terceira linha é o PRONAF-Agregar (Projeto de Agregação de Renda da Agricultura Familiar), destinado a financiar projetos individuais ou coletivos que envolvam infra-estrutura, prestação de serviços, marketing, beneficiamento de produtos, etc. Deve-se mencionar, ainda, que se enquadram nos grupos B, C e D, os pescadores artesanais, os extrativistas, os silvicultores e os aqüicultores, conforme os critérios de renda e dimensão da exploração. Para maiores detalhes consultar Picinatto et al. (2000), Sabbato (2000) e Granzirolli e Cardim (2000).

AS PRINCIPAIS MUDANÇAS OCORRIDAS NO PRONAF

A partir de 1999, com o início do segundo Governo FHC, o PRONAF passou por novas reformulações. Institucionalmente, o programa deixou de fazer parte do Ministério da Agricultura, onde estava vinculado à então Secretaria de Desenvolvimento Rural, passando a ser incorporado pelo recém-criado Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O MDA substituiu o Ministério Extraordinário de Assuntos Fundiários, criado em 1995, tendo antes a condição de Secretaria de Estado[13]. O MDA passou a abrigar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), instituição encarregada da política fundiária e de assentamentos da reforma agrária e, no lugar da Secretaria de Desenvolvimento Rural, foi criada a Secretaria da Agricultura Familiar (SAF), que passou a ser o guarda-chuva institucional das diversas linhas de ação do PRONAF e demais programas ligados à agricultura familiar brasileira. Nessa nova estrutura organizacional, o tema da agricultura familiar ganhou mais espaço, tanto na esfera pública federal como na sua visibilidade junto à sociedade civil.

Deve-se registrar que uma nova reformulação institucional foi realizada na SAF em 2003, no início do Governo Lula, com implicações sobre o PRONAF. No âmbito do MDA foi criada a Secretaria do Desenvolvimento Territorial (SDT), a qual passou a definir e gerenciar a modalidade do PRONAF infra-estrutura e serviços municipais. Maiores detalhes sobre as implicações dessa mudança serão abordados na seção seguinte.

Um terceiro grupo de reformulações concentra-se na esfera financeira, provocando uma série de mudanças no programa, principalmente no tocante às taxas de juros e às formas de pagamento dos empréstimos bancários. No que diz respeito aos juros, a resolução 2.766 de 2000, do Banco Central atendeu a uma antiga reivindicação dos agricultores familiares, ou seja, a definição de uma taxa fixa. Com isso, verifica-se que houve uma redução progressiva dos encargos financeiros, chegando-se ao estágio atual com taxas de juros que variam entre 1% (Grupo B) e 7,25% (Grupo E). Além disso, os prazos e carências foram sendo dilatados, conjuntamente com a elevação dos valores dos descontos sobre os valores referentes aos juros. Em grande medida, essas modificações visaram atender a um número maior de beneficiários e expandir a esfera de interferência da agricultura familiar nas tomadas de decisões acerca dos rumos da produção agropecuária do país.

As diversas reformulações legais que afetaram todas as diferentes modalidades do programa, sobretudo nos últimos anos, podem ser resumidas da forma como segue:

a) Criação, através da resolução 2.436 do Banco Central, de 1997, da linha especial de crédito de custeio conhecida como “Pronafinho” (Grupo C), destinando créditos (na época) de até R$ 1.500,00, com o objetivo de direcionar parte dos recursos de custeio aos agricultores mais necessitados;

b) Criação pelo Banco do Brasil, em 1997, da modalidade “BB Rural Rápido”, com o objetivo de agilizar a liberação de financiamentos para aqueles agricultores que possuem cadastro junto ao Banco do Brasil;

c) Criação, em 1996, do PRONAF Infra-estrutura e serviços municipais, com o objetivo de melhorar as condições de produção e de infra-estrutura nos municípios rurais, onde a agricultura familiar representa um papel estratégico na economia local;

d) Criação do PRONAF Agroindústria, no ano de 1998, com o objetivo de financiar projetos de grupos de agricultores;

e) Criação, em 1998, da linha de crédito de investimento conhecida como PRONAF Agregar, com o objetivo de agregar renda às atividades agropecuárias;

f) Fusão, através da resolução 2.766, de 2000, das linhas de crédito de investimento Agregar e Agroindústria em uma única, com o nome de Crédito de Investimento para Agregação de Renda à Atividade Rural. Essa modalidade, ainda conhecida como PRONAF Agregar tem como objetivo liberar recursos para o beneficiamento, processamento e comercialização da produção agropecuária, sendo destinada aos agricultores dos grupos B, C e D;

g) Extensão do crédito de custeio e das demais modalidades do programa, a partir de 2000, aos assentados da reforma agrária (grupo A/C), que já foram contemplados com recursos de investimentos para estruturação das unidades;

h) Criação, pela resolução 3.001 do Banco Central, de 2002, da linha de crédito de investimentos para silvicultura e sistemas agroflorestais (Pronaf Florestal), destinada aos agricultores dos grupos B, C e D, com o objetivo de apoiar os investimentos em florestas;

i) Criação, na safra 2003/04, de novas modalidades: PRONAF Alimentos, com o objetivo de estimular a produção de cinco alimentos básicos (arroz, feijão, milho, mandioca e trigo); PRONAF Pesca, com o objetivo de apoiar os pescadores artesanais; PRONAF Agroecologia, com o objetivo de apoiar a produção agropecuária que não utiliza produtos químicos e também os agricultores que se encontram em transição para este tipo de produção; PRONAF Turismo Rural, com o objetivo de apoiar a implantação de atividades turísticas nas propriedades rurais; PRONAF Mulher; PRONAF Jovem Rural; PRONAF Semi-Árido e PRONAF Máquinas e equipamentos.

Outra reestruturação do programa foi com relação às declarações de aptidão fornecidas aos agricultores. No caso do crédito para custeio e investimento para os beneficiários da reforma agrária, enquadrados no Grupo A, elas passaram a ser fornecidas pelo INCRA. Para os demais grupos de agricultores, o Ministério do Desenvolvimento Agrário habilitou os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, os serviços públicos de extensão rural e os Sindicatos Rurais a emitir essas declarações.

Em face destas mudanças, o PRONAF passou a ter uma importância decisiva para a agricultura familiar brasileira, a partir da segunda metade da década de 1990. Malgrado possíveis críticas em relação à execução orçamentária destinada ao programa, os dados mostram que o volume de recursos destinados e aplicados na agricultura familiar vem aumentando sucessivamente desde a safra 1996/97, quando o PRONAF passou a ter abrangência nacional. Além disso, parece indiscutível que essa política pública está ainda em construção e que continuará exigindo adaptações contínuas devido à diversidade social dos agricultores familiares e às diferenças regionais.

ALGUNS INDICADORES DE DESEMPENHO DAS PRINCIPAIS LINHAS DE AÇÃO DO PRONAF

Em relatório de pesquisa sobre o PRONAF, Abramovay (2002, p.2) ressaltou que, ao longo dos seus seis anos de existência, o programa forjou três importantes inovações, a saber: o reconhecimento dos agricultores familiares como protagonistas das políticas públicas; a criação de um processo de negociação entre os agricultores e suas organizações e o governo; e o estabelecimento de um enfoque territorial para as políticas públicas, ressaltando-se, neste caso, o papel dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDR) criados por demanda do PRONAF Infra-estrutura e serviços municipais. Nesta seção pretendemos explorar essas questões. Para tanto, serão abordados os principais aspectos relativos a duas das grandes linhas de intervenção do programa, já citadas anteriormente: crédito de custeio e investimento e o PRONAF Infra-estrutura e serviços municipais.

Crédito de custeio e investimento

A sistemática de concessão de crédito vem sofrendo contínuas alterações desde o início dessa política, sobretudo no que diz respeito aos valores dos financiamentos para custeio e para investimento, bem como no que se refere às taxas de juros que incidem sobre os recursos alocados no programa. Desse modo, a discussão que apresentamos a seguir contemplará o primeiro período do programa (1995-1998), com ênfase para a distribuição dos recursos por categorias de agricultores iniciada em 1999, conforme descrito na seção anterior.

É importante destacar, em primeiro lugar, que a modalidade de crédito para custeio representa um valor expressivo do volume total de recursos efetivamente aplicados nos últimos anos no quadro do PRONAF, enquanto que a modalidade de crédito para investimentos começou a operar de forma mais significativa somente após o ano de 1997. Isso significa que o programa apresentou, no primeiro período, um forte direcionamento do crédito para o financiamento das safras anuais e uma intervenção bem menor sobre os problemas relacionados à infra-estrutura dos sistemas de produção.

A evolução do programa, em termos do número de contratos efetivados e do volume de recursos aplicado, é mostrada pela Tabela 1, que segue. Inicialmente, observa-se que no primeiro ano do programa (1995) houve um pequeno número de financiamentos, com baixo uso de recursos, sendo que o total disponibilizado foi destinado para o crédito de custeio da safra agrícola. Em grande medida, a explicação para o comportamento pouco expressivo do PRONAF naquele ano diz respeito às dificuldades enfrentadas pelos agricultores diante das condições de financiamento vigentes.

A partir de 1996, nota-se um forte incremento do total de recursos aplicados no programa e da própria procura pelo crédito rural, a qual se expressa através da elevação do número de contratos. Essa alteração deve-se a um somatório de fatores que atuaram positivamente. Por um lado, o Conselho Monetário Nacional (CMN) adotou uma série de medidas para estimular os agentes financeiros a operar o PRONAF e, por outro, reduziu-se bastante os encargos financeiros que incidiam sobre o crédito de custeio (os juros praticados na safra de 1995 foram de 16% ao ano, enquanto que na safra seguinte caíram para 12% ao ano). Deve-se destacar que essa mudança foi efetivada devido à forte pressão exercida pelas organizações dos trabalhadores rurais que exigiram melhores condições de financiamento.

Em termos do valor médio dos contratos, verifica-se que em todas as regiões esse valor não atingiu o teto máximo do programa que era de R$ 5.000,00. Entretanto, a dinâmica regional revela dois casos extremos: por um lado, a região Sul apresenta os menores valores e, por outro, a região Centro-Oeste detém os maiores valores médios dos contratos. De alguma forma, esses resultados indicam que tanto na região Sul como na região Nordeste, que possuem um grande número de contratos, a escala produtiva dos agricultores familiares é menor, comparativamente aos agricultores das regiões Centro-Oeste e Norte, que possuem contratos com valores maiores.

O segundo período que estamos considerando compreende as safras agrícolas pós-1999, ano em que o programa foi bastante reformulado e, como dissemos anteriormente, os recursos passaram a ser estratificados por categorias de beneficiários, de acordo com as regras de enquadramentos vigentes desde então.

A Tabela 3, a seguir, apresenta o montante de crédito rural para custeio e investimento para o período pós-1999. Inicialmente observa-se que os recursos para custeio das safras agrícolas correspondem a mais de 60% do total de recursos previstos em cada safra, significando que o programa tem uma maior influência no financiamento das safras agrícolas Além disso, deve-se registrar que o montante total dos recursos para custeio no período considerado se manteve praticamente constante. Em termos do número de contratos nota-se, inclusive, uma redução na última safra, o que significa que os valores médios passaram de R$ 1.849,56, em 1999, para R$ 2.115,69, em 2003.

Em termos do enquadramento dos beneficiários, percebe-se um comportamento bem distinto para cada uma das modalidades de crédito da tabela acima. Na safra de 1999-2000, dos 735.454 contratos de custeio, 303.127 foram para o grupo C (41%) e 337.626 foram para o grupo D (46%). O restante dos contratos foi para a categoria “sem enquadramento”, que são os recursos da exigibilidade bancária. Já na safra de 2002-2003, dos 654.160 contratos de custeio, 389.580 foram para o grupo C (60%) e 243.727 foram para o grupo D (37%). Ainda nesta safra, 10.550 contratos (1,5% do total) foram destinados ao grupo A/C, que são os beneficiários egressos dos assentamentos de reforma agrária. Essas informações revelam que os recursos do crédito de custeio, que são a maioria absoluta, apresentam uma tendência a beneficiar de forma crescente um segmento da agricultura familiar brasileira que, até bem pouco tempo, encontrava-se praticamente excluído da política de financiamento agrícola. Trata-se dos agricultores familiares enquadrados no Grupo C, que apresentam renda bruta anual atual entre R$ 2.000,00 a R$ 14.000,00.

Quanto ao crédito para investimentos nota-se um comportamento um pouco distinto no período considerado. Assim, dos 192.155 contratos executados na safra 1999-2000, 116.796 foram para o grupo A (61%); 21.525 para o grupo C (11%); 53.790 para o grupo D (28%). Os demais contratos estão na categoria “sem enquadramento”. Em termos da participação de cada grupo no montante dos recursos os percentuais foram, respectivamente, de 54%, 8% e 37%.

Já na safra 2002-2003, dos 247.177 contratos de investimento, 46.797 foram para o grupo A (19%); 139.786 para o grupo B (56%); 31.721 o grupo C (13%); 28.864 contratos para o grupo D (12%). Em termos da participação de cada grupo no montante dos recursos os percentuais foram, respectivamente, de 47%, 7%, 19% e 26%. Essas informações retratam as disparidades socioeconômicas da agricultura familiar brasileira, uma vez que os agricultores do Grupo B, de menor capacidade produtiva, representam 56% dos contratos, mas detém apenas 7% do total dos recursos da modalidade, ao passo que os do Grupo D, segmento da agricultura familiar inserido nos mercados, com apenas 12% dos contratos, foram beneficiados com 26% dos recursos. Dessa forma, chama a atenção a expressiva participação dos agricultores familiares já consolidados no montante de recursos financeiros do PRONAF.

Embora o financiamento à produção nas modalidades de crédito para custeio e investimento seja o mais destacado e reconhecido entre as ações do PRONAF, a linha de financiamentos para Infra-estrutura e serviços municipais representa uma grande inovação. Na realidade, se é possível afirmar que o PRONAF se caracteriza como um programa de desenvolvimento rural, essa assertiva certamente assume contornos mais nítidos na linha de Infra-estrutura e serviços, conforme discutimos no item seguinte.

Financiamento de infraestrutura e serviços municipais

Segundo Lima Neto (2000), os objetivos do PRONAF Infra-estrutura e serviços municipais buscam estimular a implantação, ampliação, modernização, racionalização e relocalização de infra-estrutura e serviços públicos municipais necessários ao fortalecimento da agricultura familiar, tais como: recuperação de estradas vicinais, linha tronco de energia elétrica, construção de armazéns comunitários e obras hídricas de uso coletivo. Essa linha do PRONAF visa contribuir para a eliminar gargalos que estejam retardando ou impedindo o desenvolvimento de zonas onde predomina a agricultura familiar, promovendo melhorias nos canais de escoamento da produção, no acesso a novas tecnologias e na competitividade no mercado.

Essa linha do PRONAF foi criada em 1996, pelo Decreto Presidencial nº 1946 de 28 de junho. Nesse ano, ela foi implementada em 389 municípios do Brasil, contando basicamente com a ajuda das organizações de agricultores familiares, Conselhos e Secretarias executivas estaduais do PRONAF. O principal problema dessa primeira fase é que não tinham sido definidos os critérios de seleção dos municípios a serem beneficiados e tão pouco uma metodologia de trabalho.

Para resolver essa situação, foi constituído o Conselho Nacional do PRONAF e, a partir dele, estabelecidas as normas gerais para a seleção dos municípios beneficiários do programa[14]. Estas normas para seleção constam da Resolução nº 4, de 10 de julho de 1997, do Conselho Nacional do PRONAF, podendo-se destacar os seguintes aspectos:

1. a relação entre o número de estabelecimentos agropecuários com área até 200 ha e o número total de estabelecimentos do município tem que ser maior que a relação entre o número de estabelecimentos com área até 200 ha e o total de estabelecimentos do estado;

2. a relação entre a população rural e a população total do município deve ser maior que a mesma relação no âmbito do estado;

3. o valor da produção agrícola por pessoa ocupada no município deve ser menor que a mesma relação no plano estadual;

4. caso o número de municípios selecionados a partir desses três critérios fosse inferior ao número previsto para o estado, o Conselho Estadual do PRONAF tem a prerrogativa de selecionar os municípios restantes dentre os que atendiam a apenas dois dos três critérios, dando prioridade aos municípios contemplados no programa Comunidade Solidária e aos que tivessem maior número de famílias assentadas e/ou de pescadores artesanais[15].

Desde o princípio, ficou definido que os municípios escolhidos teriam acesso ao valor médio anual de R$ 150.000,00 previsto para um período de quatro anos. A partir do estabelecimento desses critérios, o número de municípios beneficiados aumentou rapidamente, conforme indicam, a seguir, os dados da Tabela 4. A grande inclusão de municípios ocorreu entre os anos de 1997 e 1999, uma vez que em 1999 o programa foi ampliado para mais de mil municípios. Já a partir do ano de 2000 ocorreu um ligeiro recuo, o que de alguma forma pode estar revelando as dificuldades dessa modalidade de política para atender as demandas do universo dos municípios onde a agricultura familiar representa a base do setor produtivo local, estimado atualmente em mais de quatro mil municípios.

Interessante observar a distribuição dos recursos, pois as regiões mais pobres, como o Nordeste, foram priorizadas, numa tentativa de reduzir as desigualdades regionais. A análise dos Planos de Trabalhos dos municípios dessa região revela que os mesmos contêm os maiores valores médios do país, especialmente os planos dos estados da Bahia e do Piauí. Dentre as razões que explicam esse comportamento encontra-se o financiamento de obras mais dispendiosas, como são os casos ligados ao abastecimento de água, considerado um problema crucial em muitos estados da região Nordeste.

A Tabela 5, a seguir, mostra como está a distribuição dos recursos entre as grandes regiões do país. Inicialmente, percebe-se que a participação percentual de cada região manteve-se praticamente inalterada ao longo de todo o período considerado, com a região Nordeste detendo aproximadamente 40% dos recursos liberados a cada ano pelo programa, exceto no ano de 2001, quando essa região concentrou 66% do total dos recursos liberados. O mesmo fato também foi verificado para a região Norte que aumentou seu percentual de participação na distribuição dos recursos de 12%, em 2000, para 16%, em 2001. Com isso, as demais regiões sofreram uma forte retração na participação percentual dos recursos, sendo que no Sul o percentual se reduziu de 17%, em 2000, para 5%, em 2001; no Sudeste a participação passou de 23% para 11%; e no Centro-Oeste de 10% para 3%, no mesmo período.

A partir 1999, com a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, os critérios de seleção dos municípios sofreram uma nova reformulação. A primeira delas ocorreu através da Resolução nº 15, de maio de 2001, que, dentre outras coisas, precisou as incumbências do Conselho Estadual do PRONAF, como a elaboração da lista final dos municípios contemplados e a previsão de contrapartidas dos municípios beneficiados com recursos do PRONAF Infra-estrutura[16].

Além disso, essa Resolução acrescentou critérios adicionais visando privilegiar os municípios mais pobres e mais rurais, utilizando-se de indicadores como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)[17]. Mas a mudança mais relevante, que consta no Artigo 9º da referida Resolução, passou a ser a exigência de se instituir os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDR) e a elaboração de Planos Municipais de Desenvolvimento Rural (PMDR), assim como tornar disponível uma infra-estrutura mínima para garantir o funcionamento desses Conselhos[18], tais como a alocação de espaço físico identificado com os dizeres “Sala do Agricultor Familiar – PRONAF”; um servidor para atendimento público; um técnico para acompanhar e supervisionar os beneficiários e a criação de um programa municipal de compras para a agricultura familiar.

A ênfase dada à constituição de CMDR deve-se ao fato que o PRONAF Infra-estrutura, diferentemente da linha de crédito rural, tem como pressuposto básico o envolvimento das comunidades rurais e dos agricultores familiares na concepção, gestão e fiscalização das políticas públicas. Essa prerrogativa, em grande parte, advém da necessidade crescente do Estado estimular formas de gestão descentralizadas que promovam, ao mesmo tempo, maior eficiência no uso dos recursos e ampliação dos mecanismos de acesso da população, levando a uma maior democratização.

Nesse sentido, para que os municípios pudessem acessar os recursos do Programa, criou-se uma metodologia de elaboração de projetos que previa não apenas a participação de múltiplas instituições locais da sociedade civil (sindicatos, ONGs, associações de produtores, etc), mas a constituição formal de um espaço público de negociação cuja atribuição maior seria coordenar e planejar as ações e políticas públicas destinadas aos agricultores. Através dos CMDR, esperava-se constituir um espaço institucional cujas incumbências não se restringiam a uma arena de atuação política das entidades da sociedade civil, mas também a de ser uma estrutura com poderes para legitimar a condução das iniciativas locais, administrar os recursos existentes e zelar pela sua correta aplicação.

A importância dos CMDR enquanto célula gestora de base do Programa foi reforçada pela Resolução nº 28, de 28 de fevereiro de 2002. Na ocasião se estabeleceram as premissas para o reconhecimento e a valorização desses Conselhos, indicando a centralidade que essas instâncias de planejamento, coordenação e fiscalização passariam a assumir para o programa.

Percebe-se, portanto, que os CMDR assumiram um papel de destaque na condução do PRONAF Infra-estrutura no âmbito local. Entre 1996 e 2002, foram promovidos diversos cursos de capacitação de conselheiros municipais, envolvendo formadores de Universidades, dos serviços públicos de extensão rural e de ONGs com atuação nas áreas rurais.

Para que um município se habilitasse, efetivamente, a receber os recursos do PRONAF Infra-estrutura, ele precisava seguir algumas etapas, resumidas por Lima Neto (2000) e reproduzidas a seguir:

a) levantamento das demandas dos agricultores familiares em obras e serviços públicos de apoio ao desenvolvimento;

b) elaboração do PMDR, com base nas demandas levantadas pelos agricultores familiares em suas comunidades;

c) análise do PMDR pelos diferentes fóruns responsáveis pela gestão do Programa: CMDR, Conselho Estadual e Secretaria Executiva Nacional do PRONAF;

d) elaboração anual do Plano de Trabalho (PT) no município a partir do PMDR;

e) aprovação do PT pelo CMDR e encaminhamento à Secretaria Executiva Estadual para emissão de parecer técnico;

f) análise do PT pelo Conselho Estadual;

g) análise e parecer conclusivo do PT pela Secretaria da Agricultura Familiar bem como aprovação pelo Ordenador de Despesas do PRONAF.

h) encaminhamento do PT à Caixa Econômica Federal (CEF) para formalização do contrato com o Poder Executivo Municipal.

A atuação deste Banco junto ao PRONAF iniciou em 1997 e, em parte, pode ser explicada por se tratar do segundo banco público mais importante do país e porque o Banco do Brasil e o Banco do Nordeste atuam nas linhas de crédito para financiamento à produção do PRONAF. Contudo, a razão principal dessa escolha reside no fato de que a CEF é uma instituição que possui um corpo técnico que, há muito tempo, acompanha e fiscaliza obras e aquisição de equipamentos, sobretudo nos programas públicos de habitação. Na medida em que o PRONAF Infra-estrutura opera com esse tipo de ações, a contratação da CEF para realização do repasse de recursos e a sua fiscalização tornou-se funcional ao Programa.

A partir de novembro de 2001, começa a se esboçar uma reformulação no Programa no sentido de promover ações que não se limitem à esfera municipal. A Resolução nº 27 trouxe como novidade a previsão da utilização de 5 a 10% do valor da cota de cada estado para apoio a projetos de desenvolvimento rural e fortalecimento da agricultura familiar apresentados por organizações intermunicipais e a exclusão do programa dos municípios com mais de 100 mil habitantes. Previu-se, porém, uma regra de exceção para os municípios com população acima desse patamar desde que integrados em ações intermunicipais e que os demais municípios parceiros tivessem menos de 100 mil habitantes.

As mudanças recentes e o desenvolvimento dos territórios rurais

No entanto, a mudança mais recente e, quem sabe, a de maior impacto, se deu em 2003. Com a posse do novo Governo Federal, a estrutura do MDA foi reformulada, sendo criada a Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT). Responsável pela gestão do PRONAF Infra-estrutura, a SDT passou a associar essa modalidade do programa à noção de “desenvolvimento territorial”. Com isso, o município deixou de ser a unidade de referência dessa linha de crédito passando a beneficiar iniciativas intermunicipais. Segundo a própria SDT, na maior parte das vezes, o município isolado é uma unidade administrativa pouco adequada para gerir a rede de relações necessárias ao desenvolvimento rural. Nesse sentido, por meio de ações intermunicipais as organizações podem ampliar o raio de relações sociais dos agricultores familiares e dos assentamentos da reforma agrária. Na avaliação da SDT, o município seria uma instância decisiva de controle social, mas insuficiente para responder ao estímulo de uma proposta de desenvolvimento (SDT, 2003).

Em razão dessas limitações da esfera municipal, a nova Secretaria passou a atuar com base na idéia de territórios, entendo-se os territórios rurais como um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, caracterizado por critérios multidimensionais que se relaciona interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial (MDA/SDT/CONDRAF, 2003)[19].

A partir dessa nova unidade de referência o atual governo (iniciado em 2003) pretende mudar o enfoque das políticas públicas. Se antes os objetivos do programa eram mais centrados no provimento de infraestrutura agora deverão passar a atuar mais no fortalecimento da organização social dos agricultores familiares e estimular a participação das instituições de representação. Além disso, o novo formato prevê que as iniciativas locais e municipais se submetam a uma lógica de elaboração dos projetos a partir das demandas dos territórios em que estão inseridos ou a partir de agências ou instituições que já estejam formalmente constituídas na forma de consórcios ou associação.

De certo modo, este novo formato de atuação do programa vai de encontro a algumas recomendações que se faziam no sentido de evitar a excessiva pulverização dos investimentos em infraestrutura e serviços tomando-se como suporte e referência os municípios. Contudo, de outra parte, resta saber como os atores locais (prefeituras, cooperativas, sindicatos, associações, movimentos sociais, etc) vão reagir a esta nova proposição que pressupõem um mínimo de consenso, acordo e criação de uma estrutura de planejamento microrregional em torno das prioridades dos territórios.

Outra expectativa é com relação aos critérios para se efetuar a transição da gestão do programa. A nova lógica prevê que os “projetos de caráter regional serão apreciados e aprovados diretamente pelos Conselhos Estaduais”. Assim, toda a ênfase dada anteriormente aos CMDR se enfraquece e esta instância tende a se tornar obsoleta. Neste sentido, cabe aguardar como a SDT procederá para habilitar as instituições a formular e a gerenciar os projetos intermunicipais bem como definir melhor qual será o papel dos CMDR nesse novo desenho institucional, uma vez que até então eles eram considerados o núcleo básico do Programa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo fazer uma síntese do principal programa de apoio à agricultura familiar existente no Brasil, que é o Pronaf. Uma análise sobre sua trajetória recente indica que é um programa que está em evolução e em processo de aperfeiçoamento. Os avanços registrados pelo PRONAF nos últimos anos estão diretamente relacionados às mudanças implementadas no programa, tanto institucionais como financeiras, as quais deram maior capilaridade às diversas modalidades de crédito e tipos de financiamento aos agricultores familiares brasileiros.

Um dos aspectos centrais derivados dessa nova conjuntura é que o volume de recursos vem aumentando progressivamente desde 1997, o que significa uma possibilidade concreta de acesso ao crédito a um número maior de agricultores familiares, considerando os diferentes graus de inserção nos mercados e as distintas regiões do país. Desde a sua criação, o Programa tem sofrido constantes ajustes visando corrigir a forte concentração dos recursos do programa na região Sul do país verificada nos seus primeiros anos de existência. Nota-se que atualmente está havendo uma melhor distribuição dos recursos financeiros não somente entre as regiões brasileiras, mas também entre os diferentes níveis de renda dos agricultores familiares. Com isso, pode-se afirmar com segurança que o PRONAF se transformou em uma política pública de abrangência nacional.

Esse maior número de beneficiários também está relacionado às condições de financiamento que foram sendo melhoradas progressivamente. Hoje, a institucionalização de mecanismos compensatórios, a exemplo dos rebates e das taxas de juros fixas e abaixo das taxas praticadas pelo mercado financeiro, facilita o maior acesso aos recursos disponibilizados pelo programa.

No entanto, deve-se reconhecer que, mesmo com as mudanças implementadas na sistemática operacional do programa após 1999, ainda persistem algumas distorções que precisam ser continuamente corrigidas, como é o caso da elevada concentração dos recursos de custeio das safras nas duas categorias mais bem posicionadas da agricultura familiar, em detrimento das demais categorias geralmente em maiores dificuldades. Estes fatos, somados a outros de natureza estrutural, fazem com que o programa seja continuamente reformulado e repensado.

Em relação ao PRONAF infra-estrutura e serviços municipais, não é novidade para quem trabalha com o tema do desenvolvimento rural que a ampla maioria dos estados brasileiros não dispõe de fóruns regionais que se ocupem do planejamento e gestão do desenvolvimento. Dentre as exceções figuram os estados do Rio Grande do Sul, que desde 1994 possui os Conselhos Regionais de Desenvolvimento, e de Santa Catarina, que a partir de 2003 dispõem das Secretarias de Desenvolvimento Regional. Além disso, a capilaridade dos serviços públicos de extensão rural encontra-se, na atualidade, profundamente abalada, após quase duas décadas de enxugamento do seu quadro de funcionários. Mesmo naqueles estados onde se preservou uma estrutura mínima de funcionamento das empresas de assistência técnica e extensão rural, essas unidades restringem-se, quase que exclusivamente, a promover o desenvolvimento agrícola stricto sensu, dispondo de poucos profissionais capacitados a promover o desenvolvimento rural. Da mesma forma, o trabalho das ONGs, além de limitado do ponto de vista geográfico, se caracteriza pela dispersão, fragmentação e pontualidade, portanto ineficaz para gerir um programa com a envergadura e importância do PRONAF infra-estrutura e serviços municipais.

O quadro atual dessa modalidade do Programa, afora as dúvidas de dirigentes municipais sobre como o mesmo será operacionalizado daqui para frente, passa a impressão de que acertaram aquelas administrações municipais que pouco apostaram nos conselhos municipais de desenvolvimento rural. A máxima que a cada novo governo tudo muda, justificando a precaução na adoção das orientações externas, mais uma vez se fez valer.

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[1] Artigo publicado originalmente como capítulo do livro organizado por Sergio Schneider, Marcelo Kunrath Silva e Paulo Eduardo Moruzzi Marques, “Políticas Públicas e Participação Social no Brasil Rural” (Ed. UFRGS, 2004, p. 21-49). A atual versão passou por ligeiros ajustes para fins de enquadramento às normas da Revista Grifos e sua republicação foi autorizada pela Editora da UFRGS a pedido dos autores.

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