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O PRONAF PÓS-2014: INTENSIFICANDO A SUA SELETIVIDADE?
Revista grifos, vol. 30, núm. 51, pp. 89-113, 2021
Universidade Comunitária da Região de Chapecó



Recepción: 01/04/2020

Aprobación: 20/05/2020

Resumo: O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), após anos consecutivos de crescimento nos recursos aplicados, teve uma redução de 24% no seu valor entre 2014 e 2018. Neste contexto, o objetivo deste artigo é analisar os resultados do Pronaf ao longo dos anos, com maior destaque ao período recente (2014 – 2018), percebendo se algumas atividades, regiões e produtores foram mais ou menos afetados com a queda no volume de recursos. Para tanto, foram utilizados os dados do Banco Central do Brasil (BCB), em especial a Matriz de Dados do Crédito Rural, e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com destaque aos Censos Agropecuários de 2006 e 2017. Os resultados deste trabalho indicam que, entre 2014 e 2018, o “enxugamento” dos recursos do Pronaf não foi generalizado, afetando principalmente as atividades diferenciadas, os produtores menos capitalizados e as regiões Nordeste, Sudeste e Norte. Além disso, a cobertura do Pronaf também teve um importante decréscimo, alcançando apenas 8% dos estabelecimentos agropecuários familiares brasileiros em 2017. Nesse sentido, se intensificou a seletividade do Pronaf e a concentração ficou ainda mais forte (em termos de regiões, produtos e produtores), justamente em um contexto socioeconômico de maior vulnerabilidade e de enfraquecimento de outras políticas públicas para agricultura familiar.

Palavras-chave: Pronaf, Políticas públicas, Agricultura familiar, Desenvolvimento rural.

Abstract: The National Program to Strengthen Family Farming (Pronaf), after consecutive years of expansion in applied resources, had a reduction of 24% in its value between 2014 and 2018. In this context, the objective of this paper is to analyze the results of Pronaf over the years, with greater emphasis on the recent period (2014 - 2018), realizing if some activities, regions and producers were more or less affected by the drop in the volume of resources. For this purpose, data from the Central Bank of Brazil (BCB), in particular the Rural Credit Data Matrix, and from the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE) were used, with emphasis on the Agricultural Census of 2006 and 2017. The results of this work indicate that, between 2014 and 2018, the reduction of Pronaf's resources was not widespread, mainly affecting differentiated activities, less capitalized producers and the Northeast, Southeast and North regions. In addition, Pronaf coverage also decreased significantly, reaching only 8% of Brazilian family farms in 2017. In this sense, the selectivity of Pronaf intensified and the concentration became even stronger (in terms of regions, products and producers), precisely in a socioeconomic context of greater vulnerability and weakening of other public policies for family farming.

Keywords: Pronaf, Public policies, Family farming, Rural development.

Resumen: El Programa Nacional de Fortalecimiento de la Agricultura Familiar (Pronaf), después de años consecutivos de expansión en los recursos aplicados, tuvo una reducción del 24% en su valor entre 2014 y 2018. En este contexto, el objetivo de este artículo es analizar los resultados del Pronaf en los últimos años, con mayor énfasis en el período reciente (2014-2018), percibiendo si algunas actividades, regiones y productores fueron más o menos afectados por la caída en el volumen de recursos. Para este propósito, se utilizaron datos del Banco Central de Brasil (BCB), en particular la Matriz de Datos de Crédito Rural, y del Instituto Brasileño de Geografía y Estadística (IBGE), con énfasis en los Censos Agropecuario de 2006 y 2017. Los resultados de este trabajo indican que, entre 2014 y 2018, la reducción de los recursos del Pronaf no fue generalizada, afectando principalmente actividades diferenciadas, productores menos capitalizados y las regiones Noreste, Sudeste y Norte. Además, la cobertura del Pronaf también disminuyó significativamente, llegando a solo el 8% de las fincas familiares brasileñas en 2017. En este sentido, la selectividad del Pronaf se intensificó y la concentración se hizo aún más fuerte (en términos de regiones, productos y productores), precisamente en un contexto socioeconómico de mayor vulnerabilidad y debilitamiento de otras políticas públicas para la agricultura familiar.

Palabras clave: Pronaf, Políticas públicas, Agricultura familiar, Desarrollo rural.

Introdução

As políticas públicas para a agricultura familiar passaram por um período próspero entre 1995 e 2014 no Brasil (Bonnal e Maluf, 2009; Bergamasco, Borsatto e Souza-Esquerdo, 2013; Grisa e Schneider, 2015; Miranda, Torrens e Mattei, 2017; Sabourin, 2017). O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi precursor neste âmbito, pois, ao ser criado em 1995, se tornou a primeira política agrícola nacional direcionada especificadamente para agricultores familiares (Schneider, Cazella e Mattei, 2004). Posteriormente vieram outras iniciativas que incluem esta categoria social como público, como o Seguro da Agricultura Familiar (SEAF), Programa de Garantia de Preço da Agricultura Familiar (PGPAF), Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pronater), Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCR), Programa Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (Pronat), Programa Territórios da Cidadania (PTC), Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), entre outros.

Após 20 anos do reconhecimento e fortalecimento da agricultura familiar enquanto público de diferentes políticas, os anos recentes marcam uma guinada. Segundo Bracagioli e Grisa (2018, p. 189), as ações políticas adotadas nos últimos anos, principalmente após o impeachment da Presidente Dilma, “questionam esta trajetória de reconhecimento por meio da realização de mudanças nas institucionalidades e nas políticas públicas, redução de recursos públicos, revisão de direitos e minimização do diálogo e dos espaços de participação social”. Neste período o “Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) foi extinto, algumas políticas públicas foram paralisadas, outras foram minimizadas politicamente, e alguns instrumentos foram alterados ou colocados em revisão” (p. 174).

O estudo de Mattos (2017) confirma esse processo de enfraquecimento, desestruturação, paralização e desmonte das políticas públicas para agricultura familiar. O autor aponta, a partir de uma análise do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP), uma grande redução no volume de recursos do PAA, PNHR, P1MC, Pronater, PNCF, SEAF, PTC, Pronat, reforma agrária, entre outros. No caso dos recursos específicos do Pronaf, o volume de recursos aplicados entre 2014 e 2018 (em valores constantes de 2018) teve uma redução de 24,4% (BCB, 2019), o que significa um arrefecimento bem menos intenso quando comparado aos valores dos outros programas (Mattos, 2017). Se por um lado esse resultado indica maior capacidade do crédito rural de seguir aplicando recursos mesmo em um contexto político-institucional mais frágil para agricultura familiar, por outro lado a retração no Pronaf pode não ser homogênea, com resultados internos distintos. Daí deriva a questão deste artigo: a redução no montante de recursos aplicados no Pronaf pós-2014 foi generalizada ou afetou de maneira mais intensa algumas atividades, regiões e produtores?

O objetivo deste artigo é analisar os resultados do Pronaf ao longo dos anos, com maior destaque ao período recente (2014 – 2018), percebendo se algumas atividades, regiões e produtores foram mais ou menos afetados com a queda no volume de recursos. Além disso, este trabalho problematiza a cobertura do Pronaf no conjunto da agricultura familiar brasileira. Vale destacar que os resultados do Pronaf já foram objeto de muitos estudos, inclusive nos anos mais recentes (Souza et al., 2013; Grisa, Wesz Jr. e Buchweitz, 2014; Aquino e Schneider, 2015; Bianchini, 2015; Mattei e Fossá, 2017; Araujo e Vieira Filho, 2018; Capellesso, Cazella e Búrigo, 2018; Ghinoi, Wesz Jr. e Piras, 2018; Fossá, Badalotti e Tonezer, 2018; Pretto e Horn, 2020; Troian e Machado, 2020). Apesar disso, considera-se importante retoma-los nesse contexto de redução do valor aplicado. A hipótese é de que esta queda afetou de maneira desigual as atividades, regiões e produtores, tornando o Pronaf mais seletivo que outrora.

Para tanto, utiliza-se como principal fonte de dados o Banco Central do Brasil (BCB), que dispõe do Anuário Estatístico do Crédito Rural (dados até 2012) e da Matriz de Dados do Crédito Rural (informações de 2013 a 2018[2]). Também foram consultados os Censos Agropecuários (2006 e 2017) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as resoluções sobre crédito rural do Banco Central do Brasil (BCB) e os Planos Safras da Agricultura Familiar publicados pela Secretaria da Agricultura Familiar (SAF), do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Os valores monetários foram deflacionados pelo IGP-DI mensal da Fundação Getúlio Vargas (FGV), estando todos os dados do Pronaf em valores constantes de 2018.

Este artigo está organizado em três seções, além desta Introdução e das Considerações finais. A primeira apresenta as mudanças nas regras do Pronaf entre 2014 e 2018, bem como o seu peso no Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR). A seção seguinte discute os resultados do Pronaf em termos de atividades, regiões e produtores ao longo dos anos, com maior destaque ao período recente (2014 - 2018). Na sequência o foco recai sobre a cobertura do Pronaf no conjunto da agricultura familiar a partir dos dois últimos Censos Agropecuários (2006 e 2017).

Mudanças nas regras do Pronaf (2014-2018) e o seu peso no SNCR

O Pronaf passou por inúmeras transformações entre 1995 e 2014: i) restringiu-se às ações de crédito rural (deixando de atuar no apoio a capacitação, infraestruturas e serviços básicos); ii) diversificou o público beneficiário do programa (além dos chamados “produtores rurais”, incluiu assentados da reforma agrária, mulheres, jovens, ribeirinhos, extrativistas, indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, cooperativas, etc.); iii) passou a apoiar novas atividades econômicas (além da agropecuária propriamente dita, incluiu agroindústria, turismo rural, pesca, etc.); iv) flexibilizou as regras financeiras (redução da taxa de juros, expansão do prazo de pagamento, aumento do limite de recursos por contrato etc.); v) simplificou as condições de acesso (redução de alguns entraves bancários, maior facilidade de obtenção dos documentos, eliminação da classificação por grupos de agricultores etc.); vi) aumentou a renda para fins de enquadramento dos agricultores no programa (que passou de R$ 60 mil para R$ 360 mil) (Delgado, Leite e Wesz Jr., 2010; Grisa, 2012; Grisa, Wesz Jr. e Buchweitz, 2014; Mattei, 2014).

De 2014 a 2018 houveram outras mudanças importantes nas regras de financiamento. Uma das alterações refere-se a taxa de juros, que era, em geral, pelo valor do contrato (havia distinção do juro entre faixas de valores financiados, sendo que a taxa era menor conforme mais baixo fosse o valor do contrato) e passou a ser pelas atividades financiadas (taxa menor para cultivos alimentares - arroz, feijão, mandioca, trigo, etc. - e sistemas de produção de base agroecológica ou em transição), na tentativa de fomentar a produção de alimentos destinadas ao mercado doméstico e formas produtivas mais sustentáveis. Além disso, a taxa de juros apresentou um crescimento na maioria das linhas, sobretudo no Pronaf Agroecologia, Semiárido, Floresta, Jovem, Mulher e Produtivo Orientado, que passaram de 1,0% a.a. para 2,5% a.a. As linhas mais tradicionais também tiveram um aumento da taxa. No Pronaf Custeio a taxa de juros passou de 1,5% - 3,5% a.a (variação em função do valor do contrato) para 2,5% - 5,5% a.a. (variação em função da atividade) e no Pronaf Investimento (Mais Alimentos) saltou de 1,0% - 2,0% a.a. para 2,5 - 5,5% a.a. As únicas linhas que não tiveram aumento na taxa de juros foram a reforma agrária e o microcrédito (Pronaf A e B, respectivamente) que tiveram seus valores mantidos: 1,5% a.a. no custeio e 0,5% a.a. no investimento (MDA, 2013; SEAD, 2017; BCB, 2019).

Além da taxa de juros, outras alterações merecem destaque: o limite de financiamento aumentou na maioria das linhas, com destaque para o Pronaf Custeio, que foi de R$ 100 mil para R$ 250 mil (Pronaf A, Produtivo Orientado e Custeio Agroindustrial foram os únicos que mantiveram os valores); a renda bruta familiar anual para enquadramento no Pronaf passou de R$ 360 mil para R$ 415 mil; os beneficiários do Pronaf puderam acessar créditos do Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp), na tentativa de ampliar os volume de recursos disponíveis para os agricultores familiares (MDA, 2013; SEAD, 2017; Bianchini, 2018; BCB, 2019).

Em termos dos resultados do crédito rural no Brasil, é importante dizer que o volume de recursos aplicados no SNCR entre 1996 e 2018 alcançou seu pico em 2014, quando superou os R$ 200 bilhões (em valores de 2018), seguido por uma queda nos anos consecutivos (Tabela 1). Entretanto, a variação no montante de recursos não foi igual entre os agricultores familiares (Pronaf) e os médios e grandes produtores (SNCR menos os valores do Pronaf). De 2014 a 2018 o SNCR (sem Pronaf) teve queda de 11%, enquanto que no Pronaf a redução foi mais intensa, chegando a 24%. Ou seja, a queda de recursos do financiamento agropecuário foi mais forte na agricultura familiar, o que tem reflexo na participação do Pronaf dentro do volume de recursos do crédito rural, que cai de 18% para 15%, menor peso desde 2004 (BCB, 2019).

Focando no Pronaf, percebe-se que os valores aplicados tem, desde sua criação, um resultado impressionante, com crescimento praticamente ininterrupto de 2001 a 2014, quando alcança seu pico, com um montante superior a R$ 30 bilhões (em valores de 2018). Em relação ao número de contratos do Pronaf, percebe-se que o pico foi em 2006, com 2,5 milhões, momento em que o programa estava sendo expandido para novas regiões e havia uma série de iniciativas para reduzir a burocracia e facilitar o acesso de novos beneficiários, permitindo maior cobertura do Pronaf B no Nordeste (Souza et al., 2013). Nos anos mais recentes, de 2013 a 2018, há uma queda significativa, passando de 2 milhões de contratos para pouco mais de um milhão. Vale dizer que o número de contratos de 2018 é o menor desde 2005 (mais adiante retomaremos esse debate). Outro dado pertinente é o valor médio dos contratos do Pronaf, que aumentou de maneira substantiva nos últimos anos, alcançando R$ 20.163 em 2018, o maior valor já registrado (Tabela 1).

Os dados do BCB (2019) também demonstram que o Pronaf teve um aumento dos recursos aplicados via contratos maiores, sobretudo naqueles com mais de R$ 50 mil, que representavam 31% em 2014 e passaram para 47% em 2018, enquanto que nos contratos de menos de R$ 30 mil esses números quase se invertem, pois, no mesmo período, passa de 46% para 35%. Em relação à fonte de recursos, é visível que a poupança rural perde peso (vai de 64% para 45% entre 2014 e 2018), pois o Conselho Monetário Nacional (CMN) reduziu o porcentual de direcionamento para aplicação em crédito rural dos recursos captados por meio da poupança rural (de 65% para 60%). Por outro lado, cresce a participação dos Recursos Obrigatórios (de 13% para 17%), dos Fundos Constitucionais (de 14% para 16%), BNDES/Finame (de 7% para 15%) e do Instrumento Híbrido de Capital e Dívida/IHCD (de 0% para 5%), este último representado por diversos tipos de títulos ou contratos emitidos para captação de recursos pelas instituições financeiras.

Em termos das instituições financeiras, a principal alteração foi o crescimento da participação das cooperativas de crédito no volume de recursos (saltam de 12% para 24% entre 2014 e 2018), como destaque ao Sistema das Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária (Cresol), Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil (Sicoob), Sistema de Cooperativas de Crédito Rural (Crehnor) e Sistema de Crédito Cooperativo (Sicredi). Também cresceu o peso dos bancos privados (de 5% para 10%), mas segue majoritária a presença dos bancos públicos (2 de cada 3 reais aplicados no Pronaf) (BCB, 2019). A partir dessa breve apresentação dos resultados gerais do Pronaf e da alteração nas suas regras financeiras, entraremos na questão central deste trabalho no próximo item.

Os resultados recentes do Pronaf: atividades, regiões e agricultores

Neste item serão analisados os resultados do Pronaf ao longo dos anos, com maior destaque ao período recente (2014 - 2018), percebendo se algumas atividades, regiões e produtores foram mais ou menos afetados com a queda no volume de recurso

Atividades financiadas pelo Pronaf

Os estudos realizados apontam que no princípio o Pronaf destinava grande parte do seu recurso para o custeio agrícola, mas que ao longo dos anos vai perdendo espaço para o investimento agrícola e pecuário, sobretudo com a criação de linhas que facilitaram a compra de maquinas e equipamentos (como Mais Alimentos) (Grisa, Wesz Jr. e Buchweitz, 2014; Bianchini, 2015; Araújo e Vieira Filho, 2018; Troian e Machado, 2020). Enquanto que em 2014 o investimento absorvia 60% dos recursos, em 2018 há uma maior paridade entre custeio e investimento (praticamente meio a meio). Em 2018 o custeio agrícola ainda é a modalidade com maior peso (31%), seguido pelo investimento pecuário (29%), investimento agrícola (21%) e custeio pecuário (18%) (BCB, 2019).

No investimento pecuário, um terço dos recursos é direcionado à aquisição de animais (com participação importante do Pronaf B), 29% para melhoria da unidade de produção e 8% compra de máquinas e equipamentos (como ordenhadeira). Já o custeio pecuário é usado basicamente para cria e engorda de animais (88%), sobretudo bovinos. O investimento agrícola, por sua vez, tem como principal destino a compra de máquinas e equipamentos (57%), com destaque a aquisição de trator, enquanto 27% segue para melhoria da unidade de produção (semelhante ao investimento pecuário) e 11% para formação de cultivos permanentes (sobretudo café, mas também ganha destaque a uva no Sul, o açaí no Norte, a banana no Nordeste e a cana-de-açúcar no Sudeste) (BCB, 2019).

Já o custeio agrícola – finalidade com maior volume de recurso do Pronaf – financia cerca de 125 produtos. Ao olharmos os vários anos, vamos perceber que o fumo começa como principal cultivo, é substituído pelo milho nos anos seguintes e desde 2013 a soja assume a dianteira (Pretto e Horn, 2020). E é justamente esta oleaginosa que alcança, em 2017 e 2018, o seu peso recorde: mais de R$ 3 bilhões aplicados no custeio agrícola, respondendo por 40% dos recursos da modalidade. E é importante dizer que os valores empenhados neste cultivo concentram-se no Rio Grande do Sul (51% do recurso aplicado na soja) e no Paraná (39%), restando 10% para os demais estados (BCB, 2019).

Entretanto, se focarmos no cultivo que recebe mais recursos por estado em 1999, 2008 e 2018, é perceptível que há grande variação entre os anos e os estados, como já haviam destacado Grisa, Wesz Jr. e Buchweitz (2014). Em 1999 os cultivos mais presentes eram milho, mandioca e fumo, mas também havia algodão e arroz (que não aparecerão mais em 2008 e 2018). Em 2008 predomina o milho e a mandioca, além de “outras lavouras”, que são cultivos que não estavam cadastradas no sistema. Em 2018 o que prevalece é a soja em 8 estados (do Rio Grande do Sul ao Pará), seguido pela mandioca (em 6 UFs) e pelo café (em 4 UFs). Mas chama atenção que em alguns locais são outros produtos que predominam, como caju (Ceará e Rio Grande do Norte), tomate (Rio de Janeiro e Distrito Federal), cará (Pernambuco) e abacaxi (Paraíba) (Figura 1).

Figura 1 - Cultivo com maior volume de recurso empregados no custeio agrícola de lavouras do Pronaf nos estados da Federação e Distrito Federal (1999, 2008 e 2018)

Fonte: BCB (2019). Elaboração própria.

Apesar de haverem diferentes cultivos que lideram o volume de recurso empregados no custeio agrícola do Pronaf entre os estados, apenas três deles (soja, milho e café) controlam 74% dos valores totais nacionais, sendo o maior percentual das três principais lavouras desde 2003. Vale destacar que essa concentração ocorre mesmo quando há taxa de juros maior para soja e milho comercial. Outros cultivos, como arroz, feijão e mandioca, que tem grande importância no abastecimento alimentar interno, já tiveram maior peso no custeio de lavouras (20% dos recursos em 2003), mas desde 2015 não ultrapassam a casa dos 5% (BCB, 2019).

As linhas do Pronaf (Produtivo Orientado, Agroecologia, Semiárido, Eco e Floresta) que fazem um contraponto à lógica produtivista e ao uso do crédito para a produção de monoculturas convencionais e ambientalmente insustentáveis, ainda que sua construção e implementação possa ser considerada uma inovação, possuem poucos recursos aplicados, baixo número de contratos e se defrontam com grande resistência dos agentes bancários, que preferem operacionalizar as linhas tradicionais (Aquino, Gazolla e Schneider, 2017; Fossá, Badalotti e Tonezer, 2018). Além da modesta participação das linhas acima mencionadas no conjunto do Pronaf, elas perdem espaço nos últimos anos. Em 2016[3] o Pronaf Produtivo Orientado, Agroecologia, Semiárido, Eco e Floresta respondiam por 3,0% dos contratos e 1,4% dos recursos, enquanto que em 2018 esses valores caem para 1,3% e 1,0%, respectivamente (BCB, 2019).

Portanto, em relação às atividades financiadas pelo Pronaf, pode-se dizer que entre 2014 e 2018 houve uma maior proporcionalidade entre custeio e investimento. E, embora exista uma diversidade de atividades sendo fomentadas em diferentes estados, os recursos estão concentrados em alguns produtos (sobretudo soja no custeio e gado no investimento) e na compra de máquinas e equipamentos, cujo peso nos últimos anos é maior que outrora. O mesmo ocorre com as “linhas alternativas do Pronaf” (Fossá, Badalotti e Tonezer, 2018), que estão cada vez menos expressivas em termos de recursos e contratos.

Regiões beneficiadas pelo Pronaf

Mesmo sendo consenso entre os estudiosos a concentração do Pronaf no Sul do país (Souza et al., 2013; Grisa, Wesz Jr. e Buchweitz, 2014; Capellesso, Cazella e Búrigo, 2018; Pretto e Horn, 2020; Troian e Machado, 2020), interessa-nos saber se a queda de recursos do Pronaf intensificou ou não essa característica. Os dados do BCB (2019) indicam justamente uma retomada da participação do Sul nos últimos anos, que chega a absorver quase 60% dos recursos em 2017 e 2018, maior peso desde o ano 2000. Já os valores do Nordeste para esses dois anos (10 a 12%) também são os menores desde 2000 – com destaque a 2017, quando houveram alguns problemas na execução do Pronaf B. Em termos absolutos, o Sul mantém o seu valor ao longo dos anos (próximo dos R$ 12 a R$ 13 bilhões), enquanto há menos recursos sendo aplicados no Programa.

Sudeste e Norte também perdem espaço (respondendo a 17% e 7% em 2018, respectivamente), enquanto Centro-Oeste tem um crescimento, alcançando em 2018 o seu maior peso (7%) desde 2004. Em termos de contratos, segue maior a participação do Nordeste (44% em 2018), seguido pelo Sul (34%) e Sudeste (14%). Enquanto o Nordeste, que tem 47% dos agricultores familiares do Brasil (dados do Censo Agropecuário de 2017), aplica somente 12% dos recursos em 2018, o Sul absorve 57% do montante do Pronaf detendo 17% dos agricultores familiares (nas outras regiões a disparidade não é tão grande) (IBGE, 2019; BCB, 2019).

Entre os dez estados com maior participação nos recursos do Pronaf, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso ampliaram sua participação de 2014 a 2018, enquanto Minas Gerais, Espirito Santo, São Paulo e Bahia perderam espaço, e Goiás e Rondônia mantiveram praticamente o mesmo percentual. Cabe destacar que Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais absorveram 67% dos recursos do Pronaf em 2017 e 2018, percentuais similares ao início dos anos 2000. Outro ponto a ser evidenciado é que o Rio Grande do Sul, sozinho, absorveu 26% dos recursos em 2018, o mesmo valor alcançado pela soma das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste.

Na escala municipal é possível ver maiores detalhes. A Figura 2 traz o volume de recursos aplicados no Pronaf por município para 2014 e 2017, sendo que quanto mais escuro a cor, maior é o valor do crédito. Nesse intervalo de tempo é possível perceber uma expressiva redução dos recursos em algumas localidades, principalmente aquelas no Semiárido e na Amazônia. Por outro lado, nos municípios da região Sul, Rondônia, Mato Grosso e Espirito Santo não se vê esse mesmo efeito, mantendo nos dois anos a aplicação de mais de R$ 15 milhões por localidade (ainda que haja diferenças importante dentro do próprio estado e entre localidades geograficamente próximas).

Em suma, o Sul segue como a principal região de destino dos recursos do Pronaf, mas nos últimos anos, no contexto de enxugamento de recursos, assume ainda maior peso, pois praticamente mantem o mesmo volume de crédito, não sofrendo o efeito que outras regiões tiveram, como o Nordeste (principalmente, mas também Norte e Sudeste). Centro-Oeste cresce em participação, mas responde por menos de 10% do total de recursos. O Rio Grande do Sul, que detém 8% dos agricultores familiares do país, aplica um quarto dos recursos do Pronaf, o mesmo valor que foi empregado nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, que abrigam 65% dos agricultores familiares brasileiros. E, quando o foco desce para a escala municipal, as localidades do Semiárido e Amazônia foram aquelas que mais perderam recursos do Pronaf entre 2014 e 2017.

Figura 2 – Volume de recursos aplicados no Pronaf por município (2014 e 2017)

Fonte: BCB (2019). Elaboração própria.

Produtores atendidos pelo Pronaf

s dados do Banco Central dificultam a identificação dos beneficiários do Pronaf. Ainda que se tenha dados sobre o “tipo de beneficiário”, eles só estão disponíveis para 2017 e 2018, além de serem categorias genéricas que não se sabe se estão corretamente preenchidas. O que os dados oficiais indicam é a supremacia da categoria “produtor rural”, com 99,6% dos contratos e 94,7% do recurso, enquanto cooperativas respondem por 0,03% dos contratos e 4,8% dos recursos[4]. Já os pescadores, aquicultores, extrativistas, silvicultores, quilo

Os dados do Banco Central dificultam a identificação dos beneficiários do Pronaf. Ainda que se tenha dados sobre o “tipo de beneficiário”, eles só estão disponíveis para 2017 e 2018, além de serem categorias genéricas que não se sabe se estão corretamente preenchidas. O que os dados oficiais indicam é a supremacia da categoria “produtor rural”, com 99,6% dos contratos e 94,7% do recurso, enquanto cooperativas respondem por 0,03% dos contratos e 4,8% dos recursos[4]. Já os pescadores, aquicultores, extrativistas, silvicultores, quilombolas e indígenas tem um peso bem limitado, próximos a 0,4% dos contratos e dos recursos.

Outra forma para tentar se aproximar do público do Pronaf é a partir das suas linhas: Pronaf A, B e demais agricultores familiares[5]. Como não há informações desta natureza para todo o período, optou-se por selecionar um intervalor de tempo similar (2000, 2008 e 2018). Apesar do Pronafianos B serem o grupo mais numeroso (55% dos agricultores familiares no Censo Agropecuário de 2006 e 70% no Censo Agropecuário de 2017[6]) e terem um aumento na absorção dos recursos no intervalo apresentado (de 1% em 2000 para 6% em 2018), a cobertura ainda está muito baixa (Figura 3). Em termos do total de contratos, o Pronaf B alcança 36% em 2018. Os pronafinos A foram os que mais perderam participação no volume de recursos, pois tinham 21% dos recursos do Pronaf em 2000 caem para 0,8% em 2018 (Figura 3). O Pronaf A representa 2,4% dos contratos, mesmo sendo 13% dos agricultores familiares brasileiros, segundo o Censo Agropecuário de 2006 (este grupo não consta na tipologia do Censo Agropecuário de 2017). Como bem coloca Mattei (2014, p. 68), “a lógica operacional do Pronaf, associada aos interesses bancários, acaba atuando também como instrumento de exclusão de importantes segmentos da própria agricultura familiar, particularmente dos agricultores familiares assentados pelas políticas agrárias.”

Figura 3 – Volume de recursos aplicados por grupo do Pronaf (2000, 2008 e 2018)

Fonte: BCB (2019). Elaboração própria.

Os demais agricultores familiares foram aqueles com maior ampliação nos recursos do Pronaf, sobretudo nos anos mais recentes. Apensar de representarem 32% dos agricultores familiares do Brasil em 2006 e 29% em 2017 (dados dos Censos Agropecuários), controlam 62% dos contratos e 93% dos recursos em 2018 (Figura 3). Esses dados mostram um grande desequilibro entre o número de estabelecimentos familiares no Brasil e o percentual de contratos e de recursos acessados no Pronaf, sobretudo entre os agricultores com níveis de renda inferiores. Portanto, este resultado confirma as evidências de outras pesquisas (Grisa, Wesz Jr. e Buchweitz, 2014; Mattei, 2014; Aquino e Schneider, 2015; Aquino, Gazolla e Schneider, 2018; Pretto e Horn, 2020; Troian e Machado, 2020) e aponta para uma intensificação da seletividade entre os produtores mais capitalizado nos últimos anos.

A cobertura do Pronaf entre os agricultores familiares brasileiros

Os resultados desta pesquisa indicam que a concentração dos recursos do Pronaf (em termos de regiões, atividades e agricultores) ficou ainda mais intensa com a redução dos recursos do Pronaf, indicando que a seletividade do Programa se acentuou após 2014. Mas outra questão surge após este debate: Qual a cobertura do Pronaf entre os agricultores familiares brasileiros?

O MDA fazia o cálculo a partir do número de contratos e de estabelecimentos familiares recenseados. Com isso, estimava que o Pronaf beneficiava em torno de 40% dos agricultores familiares brasileiros em 2006 (MDA, 2007). Entretanto, como é muito comum, sobretudo entre os agricultores mais capitalizados, ter no mesmo estabelecimento mais de um contrato por ano-safra, este percentual era superestimado. Capellesso, Cazella e Búrigo (2018), por sua vez, inovaram ao fazer uma análise do alcance do Pronaf por CPF. Com esta metodologia de cálculo, o Pronaf cobria 26% dos estabelecimentos familiares em 2006. “Embora a quantidade de CPF também não reflita exatamente o número de estabelecimentos beneficiados, pois pode haver mais de um CPF contemplado em uma mesma unidade agrícola familiar, esse indicador de acesso demonstra com mais precisão o alcance do programa em termos sociais” (p. 448).

Outra opção para mensurar o grau de cobertura do Pronaf é usando os dados do Censo Agropecuário, pois em 2006 e 2017 havia no questionário a pergunta sobre o acesso a este Programa. Além disso, os dados já classificam os estabelecimentos agropecuários em tipologias, podendo selecionar apenas os estabelecimentos familiares segundo os critérios da lei 11.326 de 2006. Assim como os levantamentos realizados por MDA (2007) e Capellesso, Cazella e Búrigo (2018), o agricultor responde sobre o acesso ao Pronaf no ano de referência da pesquisa. Portanto, o produtor que acessou o Programa em outro momento, mas não o fez no ano do Censo, ele não constará como beneficiário.

O penúltimo Censo Agropecuário aponta que 615.592 estabelecimentos agropecuários familiares acessaram o Pronaf em 2006, ou seja, 14% do total, indicando um valor muito abaixo daquele estimado pelo MDA ou calculado pelo número de CPF dos beneficiários. E a cobertura tem importantes variações regionais. No Sul o Pronaf chegou a praticamente um terço dos estabelecimentos familiares, enquanto que no Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste ficou por volta de 10%. O menor alcance foi entre os agricultores familiares no Norte, com 6%. Entre os estados fica ainda mais presente a disparidade, sendo que o Rio Grande do Sul (38%) apresentou a maior abrangência, enquanto a menor cobertura ficou no Amazonas (1%) (Figura 4).

Em 2017 o acesso ao Pronaf caiu ainda mais, alcançando apenas 320.922 estabelecimentos agropecuários familiares (8% do total), mostrando uma cobertura ainda menor sobre o público potencial. Tanto os valores absolutos como relativos caíram quase pela metade nesses 11 anos de intervalo entre os Censos. E esta redução ocorreu em todas as regiões. No Sul apenas um de cada cinco agricultores familiares acessou o Pronaf em 2017, enquanto que em 2006 era um de cada três produtores. No Norte e Nordeste a queda foi mais intensa, enquanto no Sudeste e Centro-Oeste a redução foi mais sutil. Em nível estadual, apenas São Paulo ampliou o acesso em termos relativos (passou de 7% para 8% do total), enquanto Mato Grosso do Sul manteve igual (seguiu no 7%). Nas outras 25 unidades da federação houve uma redução na cobertura do Programa. Em 2017 o Rio Grande do Sul segue sendo o estado com maior grau de acesso – ainda que em um percentual inferior a 2006 – e o Amazonas também continua com o menor nível (Figura 4).

Portanto, a redução da cobertura do Pronaf entre os agricultores familiares brasileiros ocorre em paralelo a uma maior seletividade do Programa, como visto no item anterior. O fato do Programa estar mais concentrado (em termos de regiões, produtos e produtores) e restrito (do conjunto dos agricultores familiares) é um debate central. Entre os estudos realizados, muitas razões são colocadas para explicar tal resultado, com destaque à: dependência da trajetória do crédito rural tradicional executado nas décadas de modernização da agricultura brasileira; presença de obstáculos burocráticos impostos pelo sistema bancário que dificultam o acesso de agricultores familiares com níveis de renda inferiores ou que apresentem projetos de financiamento não convencionais; a criação do programa foi orientada por ideias que buscavam atender ao público de agricultores familiares consolidados ou em transição modernizante; dificuldades, entre os agricultores mais pobre e a afastados do centros urbanos e dos mercados dinâmicos, de dispor de documentação, garantias, projetos técnicos, etc. (Schons, Azevedo e Alencar, 2013; Grisa, Wesz Jr. e Buchweitz, 2014; Aquino e Schneider, 2015; Aquino, Gazolla e Schneider, 2018; Capellesso, Cazella e Búrigo, 2018; Fossá, Badalotti e Tonezer, 2018; Troian e Machado, 2020).

Figura 4 – Percentual de acesso ao Pronaf entre estabelecimentos agropecuários familiares (2006 e 2017)

Fonte: BCB (2019). Elaboração própria.

Sempre que aparece o tema da seletividade, da concentração e da menor cobertura do Programa, outra questão deve ser pautada: os agricultores familiares não querem ou não conseguem acessar o Pronaf? Apesar de extremamente relevante, esta pergunta foi retirada do Censo Agropecuário de 2017. Mas, em 2006, quando a questão estava presente, o resultado indica que entre os agricultores familiares que não acessaram o Pronaf, 50% disseram não precisar de crédito rural. As razões podem estar vinculadas à necessidade de outras ações anteriores ao crédito, como acesso à terra, água, energia, mercado, assistência técnica, etc. Além disso, alguns produtores podem dispor de recursos próprios ou acessar financiamento em outras fontes ou programas. Também podem haver agricultores que não precisavam do crédito em 2006 por já terem acessado, por exemplo, recursos do Pronaf para aquisição de máquinas, equipamentos e/ou construção de infraestrutura em anos anteriores.

Entretanto, devemos dar maior atenção a outra metade dos agricultores familiares, ou seja, aqueles que afirmaram que precisavam do crédito, mas não conseguiram acessar por motivos diversos, como excesso de burocracia, falta de garantias para o empréstimo, inadimplência, ausência de documentação, medo de dívida, etc. É uma demanda que precisa ser atendida e, para isso, o Pronaf necessita de algumas inovações. Nesse sentido, dois caminhos parecem chaves. O primeiro seria a realização de ajustes no Programa, para que contemple um maior público (sair do “mais do mesmo” e do “mais para os mesmo”) via redução de burocracias, facilitação de algumas garantias, financiamento da unidade de produção (e não apenas de produtos comerciais específicos), etc. Em paralelo, o segundo caminho envolve uma melhor articulação e integração do Pronaf com outros tipos de programa/ação, como a assistência técnica e extensão rural, garantia de preços e políticas de comercialização, além do acesso à terra, água, documentação e serviços básicos. Estas ações articuladas permitiriam, inclusive, ampliar o interesse de alguns agricultores que, em um primeiro momento, não se pré-dispõe a buscar pelo financiamento por não terem condições básicas de vida e de produção.

Apesar dessas colocações, deve-se ponderar o grande desafio que envolve a incorporação das sugestões acima descritas. Isso porque, dos anos 2000 em diante, houveram importantes (ainda que insuficientes) movimentos nesses dois caminhos. Ou seja, ocorreram tanto ajustes no Pronaf como a construção de outros programas e a busca de articulações entre eles. Mas, mesmo assim, a seletividade tem se intensificado, sobretudo pós-2014, e a cobertura do Pronaf está bem inferior a 2006. E, no Governo Bolsonaro, a possibilidade de incorporar tais sugestões se mostra praticamente nula.

Considerações finais

Após a análise dos dados, pode-se dizer que, nos últimos anos, o “enxugamento” dos recursos do Pronaf não foi generalizado, afetando principalmente: as atividades diferenciadas que fazem um contraponto à lógica produtivista e ao uso do crédito para a produção de monoculturas convencionais e ambientalmente insustentáveis; os produtores menos capitalizados, sobretudo agricultores em situação de pobreza, beneficiados pela reforma agrária, pescadores, aquicultores, extrativistas, silvicultores, quilombolas e indígenas; e as regiões Nordeste, Sudeste e Norte, com maior intensidade nos municípios do Semiárido e da Amazônia. Assim, a hipótese inicial do trabalho foi confirmada: o Pronaf, com a redução no volume de recursos aplicados, se tornou mais seletivo que outrora.

Em suma, os resultados já conhecidos do Pronaf – de que se concentra no centro-sul, na produção de commodities e nos produtores mais capitalizados – não só se confirmam novamente, como indicam uma intensidade ainda maior do que outrora. Além disso, a cobertura do Pronaf também teve um importante decréscimo, alcançando apenas 8% dos estabelecimentos agropecuários familiares em 2017. Nesse sentido, cresceu a seletividade do Programa e a concentração (em termos de regiões, produtos e agricultores) ficou ainda mais forte, justamente em um contexto socioeconômico de maior vulnerabilidade e de enfraquecimento de outras políticas públicas para agricultura familiar.

Esses resultados tornam necessárias novas medidas para ampliar o acesso ao crédito entre aqueles agricultores que gostariam de acessa-lo, mas foram impedidos por diferentes motivos (desinteresse do banco, elevada burocracia, falta de garantia, inadimplência, falta de documentação, etc.). Até o momento, as medidas realizadas pelo Governo Bolsonaro não caminham na direção de solucionar esses desafios do Pronaf. O Plano Safra 2019/20 teve poucas alterações, e entre elas está a ampliação do volume de recursos disponibilizados (algo que se repete ao longo dos últimos anos, sem necessariamente atingir mais agricultores) e a opção dos beneficiários usarem o empréstimo para reforma e construção de casa (que antes ocorria via PNHR). A taxa de juros, em relação à safra 2018/19, foi mantida, com as principais linhas de Custeio e Investimento oscilando entre 3,0% e 4,6% a.a., enquanto o setor esperava a sua redução, dado que a taxa Selic tem decrescido nos últimos anos, alcançando seu menor patamar da história (estava em 6,5% a.a. em julho de 2019, quando foi lançado o Plano Safra, mas chegou a 3,0% a.a. em maio de 2020). Isso significa uma redução drástica nos custos do Estado com a equalização no Pronaf, dado que em 2015, quanto a Selic alcançava 14,2% a.a., as principais linhas de Custeio e Investimento do Pronaf estavam com taxa de juros de 3,5% a.a.

Além desta inércia para com o Pronaf, o Governo Bolsonaro não tem avançado na criação, estruturação e/ou fortalecimento de outras políticas públicas para agricultura familiar. Ao contrário. Tanto os agricultores familiares que demandam o acesso ao crédito, mas não conseguem efetiva-lo, como aqueles que necessitam de outras políticas públicas (de acesso à mercado, assistência técnica, terra, água e serviços básicos) seguem a margem e sem perspectiva de serem atendidos no atual governo. Este cenário indica que a seletividade e a concentração do Pronaf devem seguir crescendo nos próximos anos.

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