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O PRONAF: UM VETOR TENDENCIAL À CONCENTRAÇÃO E SELEÇÃO PRODUTIVA NA AGRICULTURA FAMILIAR
Eliziário Noé Boeira Toledo; Valdecir José Zonin
Eliziário Noé Boeira Toledo; Valdecir José Zonin
O PRONAF: UM VETOR TENDENCIAL À CONCENTRAÇÃO E SELEÇÃO PRODUTIVA NA AGRICULTURA FAMILIAR
Revista grifos, vol. 30, núm. 51, pp. 141-162, 2021
Universidade Comunitária da Região de Chapecó
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Resumo: O artigo analisa os dados alusivos aos números nacionais conexos às operações e montantes contratados nas modalidades de custeio e investimento, disponibilizados pelo Pronaf entre os anos 1996-2019. Buscou-se concentrar a análise nas evidências que indicam a redução do número de contratos e na ampliação de volumes de crédito, que possam ser tomados como indícios que auxiliam e consolidam o processo de diferenciação social entre os agricultores familiares. As informações sobre as operações de crédito foram retiradas do Anuário Estatístico do Crédito Rural do Banco Central do Brasil. Com base nos dados analisados, foi possível inferir que o crédito rural expresso nas modalidades de custeios e investimentos do Pronaf que, apesar de ter se tornado uma importante política pública de inclusão creditícia, ao privilegiar os agricultores familiares com melhores condições socioeconômicas está, no entanto, consolidando e ampliando o processo de diferenciação social entre os agricultores familiares.

Palavras-chave:Agricultura familiarAgricultura familiar,diferenciação socialdiferenciação social,crédito ruralcrédito rural.

Abstract: The article analyzes the data referring to the national numbers related to the operations and amounts contracted in the costing and investment modalities made available by Pronaf between the years 1996-2019. It sought to concentrate the analysis on the evidence that indicates the reduction in the number of contracts and the expansion of credit volumes, which can be taken as evidence that help and consolidate the process of social differentiation among family farmers. Information on credit operations was taken from the Banco Central do Brasil Statistical Yearbook for Rural Credit. Based on the analyzed data, it was possible to infer that the rural credit expressed in Pronaf's costing and investment modalities, which, despite having become an important public policy of credit inclusion, by privileging family farmers with better socioeconomic conditions is, however, consolidating and expanding the process of social differentiation among family farmers.

Keywords: Family farming, social differentiation, rural credit.

Resumen: El artículo analiza los datos que se refieren a los números nacionales relacionados con las operaciones y los montos contratados en las modalidades de costos e inversiones, disponibles por Pronaf entre los años 1996-2019. Intentamos concentrar el análisis en la evidencia que indica la reducción en el número de contratos y la expansión de los volúmenes de crédito, lo que puede tomarse como evidencia que ayuda y consolida el proceso de diferenciación social entre los agricultores familiares. La información sobre operaciones crediticias se tomó del Anuario estadístico del Banco Central do Brasil para el crédito rural. Con base en los datos analizados, fue posible inferir que el crédito rural expresado en las modalidades de costos e inversión de Pronaf, que, a pesar de haberse convertido en una importante política pública de inclusión crediticia, al privilegiar a los agricultores familiares con mejores condiciones socioeconómicas es, sin embargo, consolidando y ampliando el proceso de diferenciación social entre los agricultores familiares.

Palabras chave: agricultura familiar, diferenciación social, crédito rural.

Carátula del artículo

O PRONAF: UM VETOR TENDENCIAL À CONCENTRAÇÃO E SELEÇÃO PRODUTIVA NA AGRICULTURA FAMILIAR

Eliziário Noé Boeira Toledo
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Brasil
Valdecir José Zonin
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Brasil
Revista grifos, vol. 30, núm. 51, pp. 141-162, 2021
Universidade Comunitária da Região de Chapecó

Recepción: 09/04/2020

Aprobación: 02/06/2020

ntrodução

A afirmação social e política da agricultura familiar foi demonstrada e efetivada, em grande parte, pela pressão e organização dos movimentos sociais e sindicais e com a absorção e interesse da academia (TOLEDO, 2009; NIEDERLE, 2007; CONTERATO, 2004; CARNEIRO, 2000; FOOD AGRICULTURE ORGANIZATION/INCRA, 1994 ABRAMOVAY, 2012; VEIGA, 1992), ao constituir linhas de pesquisas visando produzir conhecimentos dessa categoria de agricultores a fim de auxiliar, com suporte analítico e teórico, para a formulação de políticas públicas que se tornaram programas de curto prazo e de alcance limitado. Apesar disso, foi possível produzir um novo olhar para essa categoria de agricultores, historicamente discriminada e segregada dos interesses do Estado. Em consequência disso, logrou-se instituir uma rara atmosfera de aproximação e coalizão entre o governo federal, os movimentos sociais do campo e do sindicalismo da pequena produção rural (GRISA, SCHNEIDER, 2014). Essa convergência viabilizou as condições possíveis para a elaboração e criação do Programa de Valorização da Pequena Produção Rural (PROVAP), criado em 1994, considerado o marco e nascedouro da categoria social e produtiva da “agricultura familiar” no agro brasileiro. Esses agricultores historicamente foram agrupados em torno de uma miríade de denominações genéricas, utilizadas para nominar a eclética classificação de trabalhadores rurais, (os assalariados rurais, pequenos agricultores, meeiros, parceiros, arrendatários, mini fundiários, colonos, posseiros, etc.).

Esses trabalhadores rurais passaram a ser denominados de agricultores familiares que, desse modo, se tornaram passíveis de enquadramento em operações de crédito rural em condições diferenciadas, por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Pronaf, criado em 1996 (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E ABASTECIMENTO, 1996; BRASIL, 1996). O programa rapidamente foi transformado em grife política, acadêmica, sindical e marco histórico para os governos, movimentos sociais e organizações da agricultura familiar, tornando-se a expressão máxima da política agrícola de crédito rural, destinado a atender as demandas da agricultura familiar. A partir do Pronaf, foi possível consolidar olhares e a atenção dos governos, cacifando as organizações da agricultura familiar, a reivindicar e disputar uma fatia do quinhão dos escassos recursos públicos e apoiar financiamentos agrícolas ao segmento. E é a partir do Pronaf que a agricultura familiar emerge, se firma como ator e protagonista em termos sociais, políticos e econômicos, considerados relevantes no cenário do desenvolvimento do agro brasileiro.

Antes da criação do Pronaf, o crédito rural aos agricultores da pequena produção rural, estava limitado devido à resistência dos agentes financeiros em financiar o segmento. Esses agricultores, na visão do segmento bancário, não ofereciam garantias consistentes para suportar os custos dos financiamentos, além da inexistência ou escassez na oferta de recursos públicos (CARMO, CLEMENTE, 2018; SERENO, 2012). No entanto, apesar do apelo, por vezes simplificador, deve-se adiantar que a disponibilização e a contratação de crédito rural em condições adequadas não significam, necessariamente, garantia de sucesso e viabilização socioeconômica dos empreendimentos rurais de qualquer natureza (TOLEDO, 2009, 2017, 2019). Para tanto, necessita de um conjunto articulado de condições e políticas de apoio do Estado, a fim de potencializar os recursos financeiros acessados. Contudo, no caso brasileiro, o apoio ficou na promessa ou tem sido notadamente insuficiente. Buainain e Garcia (2013) sustentam que esse fator revela que a aceitação da impotência do Estado e da política pública, não fazem parte das tradições e da experiência brasileira, marcadas pela precarização, populismo e por promessas não cumpridas que se renovam ad eternum, independente dos resultados alcançados, ou mesmo da corrente político-ideológica que governe o país.

Mesmo assim, um dos aspectos positivos da institucionalização do Pronaf foi a abertura de portas para a consagração social e jurídica dos agricultores familiares como categoria socioprodutiva, legitimando-os como alvos de interesse e foco de ação do Estado. Essa “preferência” conjuntural culminou com a promulgação da Lei 11.326/2006, a Lei da Agricultura Familiar, (BRASIL, 2006). Isso posto, ao institucionalizar a agricultura familiar, consagrou a tipificação dualista da agricultura brasileira: a patronal e a familiar, propostos pelo relatório Food and Agriculture Organization of United Nation (FAO) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), (FOOD AGRICULTURE ORGANIZATION/INCRA, 1994). Essa opção política legitimou a disputa pelos recursos públicos disponibilizados e adotados no enquadramento das operações de crédito rural.

Dessa forma, o Pronaf firmou-se como principal política de crédito para a agricultura familiar com o objetivo de apoiar os empreendimentos e torná-los competitivos na ótica concorrencial e, do mesmo modo, servir como instrumento na redução da pobreza rural e na geração de renda monetária oriunda dos empreendimentos apoiados. Entretanto, após vinte e cinco anos de implantação do programa e mais de R$ 258 bilhões contratados (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020), torna-se razoável indagar se, de fato, os recursos alocados contribuíram para a viabilidade socioeconômica da maioria dos agricultores familiares. Os recursos foram alocados para potencializar as iniciativas produtivas e econômicas dos empreendimentos, visando a reprodução social e material em cenários em que as atividades agropecuárias são de contínua e crescente competição e seletividade concorrenciais.

A viabilização e o fortalecimento socioeconômico da agricultura familiar têm se revelado um processo extremamente desigual, inclusive potencializado pelo crédito. Significa dizer, além da contínua irrigação financeira apoiada pelo crédito rural, os agricultores necessitam absorver e aportar continuamente o aprimoramento técnico, gerencial e mercadológico aos empreendimentos financiados e consagram o imperativo de “produzir dinheiro” (TOLEDO, 2009), necessário para ressarcimento continuado dos financiamentos agropecuários e para auxiliar a reprodução social e material dos estabelecimentos rurais. Essas exigências são expressões típicas da transformação da agricultura em atividade econômica expressa entre outras formas, na crescente mercantilização, fenômeno que, inclusive, monetariza as relações de produção e da sobrevivência imediata dos agricultores.

Esse artigo pretende refletir se a disponibilização massiva de crédito rural por meio das modalidades disponibilizadas pelo Pronaf, nos moldes propostos pelo programa, está ampliando e consolidando a diferenciação social entre os agricultores familiares por meio do acesso ao crédito e aplicado para apoiar os empreendimentos rurais. Utilizamos como base de análise os números disponibilizados pelos órgãos oficiais das operações de crédito (de custeio e de investimentos), contratos e volumes financeiros contratados.

O artigo está estruturado, além dessa introdução geral, em quatro seções. A primeira trata da agricultura familiar, suas necessidades econômicas e crédito rural; a segunda reflete sobre o acesso ao crédito e o retardamento da exclusão; a terceira seção versa sobre a seletividade do crédito operado por meio do Pronaf e, por fim, as considerações finais sobre as informações encontradas nos dados analisados, anotando possíveis estudos posteriores.

Agricultura familiar: necessidades econômicas e crédito rural

No Brasil, a trajetória da modernização da agricultura foi efetivada por meio de um longo e histórico processo articulado e desempenhado por vários atores sociais (Estado, sistema financeiro, instituições de pesquisa, indústria de insumos e máquinas, agentes de assistência técnica e extensão rural e agricultores). O processo percorreu distintos movimentos, direções, velocidades, tempos e distinções afeitas às caraterísticas regionais. Não obstante, têm sido inúmeros os esforços e tentativas dos estudiosos do desenvolvimento rural, em buscar interpretar a extensão e os efeitos desses fenômenos nas regiões rurais brasileiras, procurando demonstrar a extensão das transformações na ordem socioeconômica e cultural nos comportamentos sociais das populações rurais e no interior dos estabelecimentos rurais, especialmente, a partir da ótica das necessidades econômicas, em grande parte negligenciada e expresso por uma visão anticapitalista da agricultura, especialmente pelos cientistas sociais (NAVARRO, PEDROSO, 2014; NAVARRO, 2016).

As necessidades econômicas dos agricultores não representam nenhum ineditismo. Cândido (2003), ao estudar os caipiras de Bofete, no interior de São Paulo, na década de 1950. Foi pioneiro ao captar parte das transformações e antecipou um campo promissor para os estudos rurais, a caracterização e a transformação dos meios de vida no meio rural brasileiro. Observou de primeira mão, as estratégias de reorganização social e estrutural da vida familiar a fim de enfrentar as necessidades emergentes e cotidianas, da rudimentar e incipiente reflexos do mercado na vida dos agricultores. Aquele grande sociólogo e crítico literário percebeu a penetração ainda que embrionária de uma nova racionalidade econômica e monetária, que se imiscuía crescentemente na vida cotidiana dos agricultores.

Surge daí uma situação inédita: a construção necessária dum orçamento, ainda que virtual, como base da economia doméstica. A uma fase em que o dinheiro é quase ausente desta, sucede outra, em que ele assume vulto cada vez mais poderoso pelo incremento da compra e da venda. O consumo de bens produzidos in loco; a troca de bens e serviço, todo o ritmo tradicional de vida, em suma, condicionavam um comportamento econômico por assim dizer instintivo, onde o cálculo, no sentido estrito, inexistia praticamente. A situação atual impõe um mínimo de racionalidade, manifestada pela previsão, a ordenação (por embrionária que seja) duma receita e duma despesa, pois a avaliação monetária se estende a setores cada vez mais numerosos. (CÂNDIDO, 2003, p. 211, grifos do autor).

Merece destaque a expressão “avaliação monetária” enfatizada pelo autor, ao interpretar que a prática de trocas diretas por meio do escambo, comum entre os agricultores à época, já não respondia às necessidades mais urgentes. A citação acima é reveladora do fato social espontâneo representado pelo comportamento econômico rudimentar, e põe em relevo a centralidade das estratégias e o âmago da questão: garantir minimamente a viabilização da subsistência do grupo familiar por meio do ingresso de alguma renda monetária. Essa necessidade de aporte foi ampliada com a modernização da agricultura, consolidando a predominância e a influência da esfera financeira dos agricultores, modernamente traduzida nos processos de externalização e cientifização produtivas (PLOEG, 1990, 1992). A externalização produtiva ocorre por meio de aportes contínuos de recursos do crédito rural alocados na compra de insumos, máquinas e serviços. A cientifização se dá pela ampliação contínua do uso da ciência na agricultura, por meio de técnicas químicas e biológicas. Porém, o lado deletério dessas opções é que ela, paulatinamente, retira a autonomia produtiva e redunda, inclusive, no alargamento da mercantilização da sobrevivência imediata dos agricultores (BERNSTEIN, 2011).

É fato que as atividades agropecuárias devem ser assunto de políticas de Estado, a fim de oferecer proteção consistente por meio de políticas agrícolas e garantir a produção de alimentos, matéria-prima e renda aos agricultores para além da oferta de crédito subsidiado. Por outro lado, a estratégia de inclusão produtiva por meio da oferta de crédito rural é uma forma expressa de mercantilização, monetarização e bancarização dos empreendimentos rurais. O objetivo do crédito é torná-los competitivos às demandas do mercado, sendo capazes de produzir excedentes, ressarcir os investimentos contratados e gerando renda extraordinária aos estabelecimentos rurais. No entanto, essa virtude é potencializada e convertida em possibilidades, de forma diferenciada entre os agricultores. Esse fator depende da posse e do uso dos ativos sociais, culturais e econômicos de cada indivíduo que redunda em diferenciação social entre eles. Uma parte reduzida tem mais chances de utilizar adequadamente os recursos. A outra grande parte fragiliza as condições socioeconômicas, na medida em que já está debilitada economicamente, mas ganha tempo ao retardar a exclusão.

A competição intercapitalista exige a adoção de estratégias racionalizadas no uso dos recursos, na produção de excedentes, como se a agricultura fosse uma empresa industrial, mas que na verdade não é. A produção agrícola é um sistema complexo e de trabalho penoso e que necessita de apoio e proteção do Estado, o mercado é imperfeito, a maioria dos contratempos dos empreendimentos é privada e, nos últimos cinquenta anos, os riscos da agricultura vêm aumentando à medida que o setor se moderniza (BUAINAIN et al., 2014) e o apoio do Estado ao segmento é pontual e marginal (GASQUES, BASTOS, 2014).

Para a maioria, o acesso ao crédito pode significar ganhar tempo!

A criação do Pronaf em 1996 buscou inserir a agricultura familiar como ator social e produtivo, como alvo de interesses e ações do Estado por meio do acesso ao crédito. Os critérios de entrada ao programa ocorrem por meio da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), ao identificar os agricultores familiares que possuam estabelecimentos rurais de até quatro módulos fiscais; residam na propriedade rural ou em local próximo; exploram o estabelecimento, seja como proprietário, posseiro, arrendatário, parceiro ou como assentados pelo Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA); tem como base o trabalho familiar; possuir ao menos 50% da renda familiar bruta originária da atividade rural, possuir renda bruta familiar de até R$ 415 mil auferida nos últimos 12 meses. Além disso, o uso da mão de obra de terceiros é facultado apenas com base na sazonalidade da produção e, se for utilizar empregados permanentes, devem ser em número menor do que o dos integrantes que compõem a família do estabelecimento rural (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020).

Na Tabela 1, foi anotado o número de contratos e montantes desde o surgimento do Pronaf. No período em análise (1995-2019), foram realizados 32.730.172 contratos, sendo 15.958.296 (48,75%) alocados em custeio e 16.771.876 (51,24%) em investimentos e, em ambas as modalidades, foram disponibilizados R$ 258,6 bilhões. Os dados permitem aludir que efetivamente o programa cumpriu a missão de se firmar como alternativa necessária de acesso ao crédito rural. Contudo, Gazolla e Schneider (2013), ao estudarem os financiamentos na região do Alto Uruguai (RS), relatam a existência de fortes preocupações por parte dos agricultores familiares em contrair dívidas bancárias, sem a devida capacidade em gerar excedentes monetários em termos líquidos, para cobrir a necessidade de provimento financeiro dos contratos e garantir a reprodução produtiva, social e material do estabelecimento. O fato é que as necessidades econômicas dos agricultores familiares se expressam no imperativo (embora não seja o único) de gerar renda monetária que exigem e justificam as demandas contínuas e crescentes de acesso ao crédito rural. Dessa forma, amplia e consolida a monetarização da esfera financeira dos estabelecimentos (NIEDERLE, 2007).

A incapacidade de honrar os compromissos bancários, evidenciada em números estudados pelos autores (NIEDERLE, 2007; GAZOLLA, 2004, TOLEDO, 2009), pode ser atribuída à pequena margem de manobra dos agricultores, ocasionada por frustração da safra, doenças na família, estrutura produtiva deficiente, projetos técnicos e produtivos que atendem somente a formalização exigida pelos agentes financeiros ou por desvios de finalidade de parte dos recursos ao ser alocados para outros fins, inclusive para a subsistência familiar (GAZOLLA, 2004, TOLEDO, 2009). Nessa modalidade, os agricultores premidos pela urgência da ocasião podem acenar com outros destinos aos recursos do Pronaf. Essas possibilidades tendem a assumir sentidos e significados bem distintos do objetivo do programa e dos projetos financiadas, e vão ao encontro visando atender as variadas necessidades financeiras imediatas dos diversos tipos de agricultores. Toledo (2009), ao estudar os agricultores familiares do município de Salvador das Missões (RS) enfatizou que o uso dos recursos alocados pelo crédito rural, estão conectados com as condições sócio produtivas dos agricultores familiares, podendo ser utilizados para itens da manutenção familiar ou se transformar em capital de giro para os agricultores mais capitalizados.

Por vezes, as prioridades produtivas são mascaradas e frustradas pela ausência de condições estruturais dos agricultores, pela condução inadequada dos empreendimentos contratados ou por eventos climáticos. Essas opções, não raro, redundam em endividamento crônico dos agricultores (familiares e não familiares). A escalada contínua de endividamento (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2018), comprova a tese de quanto as atividades agropecuárias estão submissas e regidas cada vez mais pelo amplo processo de mercantilização e monetarização em quase todas as esferas, inclusive da própria sobrevivência e da produção agrícola, que ocorre por meio do ingresso continuado ao crédito rural, sem o qual, a produção agrícola do ciclo seguinte se torna inviável de ser concretizada.

Contudo, deve-se considerar que sem o apoio do crédito rural, grande parte da agricultura familiar não teria condições realizar a produção, suportar e sobreviver às exigências concorrenciais do mercado no curto prazo. O crédito não soluciona o problema estrutural, mas retarda a exclusão no curto prazo dos mais fragilizados. Conterato (2004) chamou a atenção do fato, ao analisar os agricultores familiares especializados e mercantilizados no estudo de caso realizado em Três Palmeiras (RS), enfatizou que em muitas situações o acesso ao crédito rural faz mais do mesmo ao seguir:

[...] o padrão de desenvolvimento agrícola [...] tornam-se tão importantes que para muitos agricultores familiares seja a única condição para viabilizar as atividades produtivas, uma vez que as rendas, principalmente a agrícola, não possibilitam o auto-financiamento. (CONTERATO, 2004, p. 28, grifo do autor).

De fato, parte expressiva dos empreendimentos, por razões socioeconômicas e estruturais, não conseguem produzir capacidade de pagamento por meio das atividades financiadas. O que enganosamente se escamoteia é que o objetivo inicial do Pronaf se destinava a financiar os agricultores de maior renda, com a intenção de torná-los competitivos por meio da potencialização do desenvolvimento agrícola aspirando inseri-los ao mercado (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E ABASTECIMENTO, 1996). E e nessa perspectiva que Abramovay (2012, p. 129) enfatiza que “A competição e a eficiência convertem-se em normas e condição de reprodução social”. A opção política buscava apoiar os agricultores em melhores condições econômicas, como uma estratégia que visava a fortalecer “[...] aqueles que apresentavam potencialidades de serem transformados em “empresas familiares viáveis”, através da incorporação de tecnologia e da racionalidade econômica, voltada para atender as demandas do mercado” (CARNEIRO, 2000, p. 133-134).

Grande parte desse objetivo está sendo atendido e, de fato, potencializando os agricultores “melhores e mais eficientes”. Alves e Rocha (2010) com base nos dados do Censo Agropecuário de 2006, afirmaram que 8,19% dos estabelecimentos brasileiros produzem 85% do Valor Bruto da Produção (VBP), para os demais, alegam se as estratégias adotadas podem ganhar tempo. O trabalho realizado por Guanziroli, Buainain e Sabbato (2012), utilizando a base de dados tabulados pelos Censos Agropecuários (CA) de 1996 e 2006, (IBGE, 2009, 1996), e aqui é pertinente lembrar sobre os impactos e reflexos causados pela primeira década de operacionalização do Pronaf. No trabalho, os autores tipificaram a rendas monetária liquida anual por estratos, e indicaram e conformaram essa tendência histórica. Em 1996, havia cerca de 406.291 do estrato A, (8,4%) estabelecimentos familiares com renda líquida anual de R$ 33.333,00, e produziam 50,6% do VBP. Em 2006 representavam 452.750 estabelecimentos (8,7%) e produziram 69,5% do VBP de um universo de 4,5 milhões, cujas rendas líquidas da agropecuária foram de R$ 53.236,00/ano. O mesmo estudo em termos estatísticos, segundo os autores, manteve-se a faixa menor de 9% como os agricultores “top de linha” no quesito de aferição de renda. Na outra ponta (os agricultores familiares em situação de fragilidade), mostraram que cerca de 1.715.980 (39,6%) estabelecimentos do grupo D com VBP menor que R$ 265,14. Esse grupo passou para 2.560.274 (49,5%), e 10,1% do VBP em 2006, (IBGE, 2009) cuja renda líquida anual foi de R$ 255,00/ano. Nesse grupo houve o aumento de 644.494 estabelecimentos em situação de fragilidade (25,1%) em relação ao Censo de 1996, (IBGE, 1996). Dessa forma, nem mesmo com o acesso ao crédito rural, as condições estruturais não induziram a transformação dos investimentos produtivos em ampliação substancial de renda.

Em outro estudo mais recente, ao investigar dois municípios de cada estado (Pará, Pernambuco, Bahia, Paraná e Santa Catarina), totalizando 219 agricultores entrevistados, apontou que cerca de 20% da amostra (os mais capitalizados), os agricultores familiares apresentaram condições objetivas de viver efetivamente das atividades desenvolvidas nos estabelecimentos rurais (TOLEDO, 2017). Por outro lado, esse resultado permite inferir: se não fosse o acesso aos recursos do Pronaf, os agricultores “inviáveis economicamente” já teriam sido eliminados; mas a problemática da seletividade e exclusão ainda permanece, inclusive, na escolha dos agricultores familiares que podem captar os recursos do crédito.

A seletividade do crédito rural

A Figura 1 mostra o comportamento das operações de crédito rural contratadas na modalidade de custeio (agrícola e pecuário), desde o ano fiscal de 1996 até dezembro de 2019. O efeito observado enfatiza o visível aumento das contratações de operações desde o surgimento do programa em 1996, chegando ao ápice em 2004 com 917.498 operações. A partir de 2004, houve uma redução sistemática no número de contratos e chegou ao patamar de 454.672 em 2019, (diminuição de 49,5%). A diminuição pode inferir que a contratação de custeio bateu no teto. Por outro lado, o “voo de galinha”, expresso na redução no número de operações contratadas no programa, na modalidade de custeio. Contudo, é sabido que existe um número expressivo de possíveis agricultores familiares tomadores de crédito. Contudo, são recusados por não apresentarem “garantias reais” que os habilitem a acessar os recursos. Os agricultores preteridos ao crédito são os que possuem fragilidades estruturais (documentos legais de posse da terra, escassez de mão de obra, infraestrutura, etc.).

Quando a análise se foca no montante de recursos contratados no mesmo período, apresentado na Figura 2, na modalidade de custeio (agrícola e pecuário), o comportamento quantitativo verificado é o inverso do ocorrido ao número de contratos nas operações de investimentos (Figura 3, adiante, tendendo a ser mais regular, a partir de 2007). Os dados da Figura 2 evidenciam e confirmam o aumento contínuo do montante. Ao adotar o ano de 2004 como ponto de corte, o incremento foi de 432,71%, (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020, 2020b). A necessidade de ampliar os recursos por contrato pode ser atribuída à elevação dos custos e necessidades tecnológicas dos financiamentos de custeio agrícola. Grisa, Júnior e Buchweitz (2014b) defendem que o Pronaf manteve e ampliou a concentração na produção especializada de commodities (principalmente milho, soja e café).

Além disso, os recursos tendem a serem dirigidos aos agricultores familiares mais capitalizados e estruturados das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Esse fator auxilia a consolidar o processo de diferenciação social e produtiva entre as regiões rurais e entre os agricultores. Essa opção, segundo Bittencourt (2003) e Leite (2001) ocorre, em grande parte, quando as estratégias reproduzem o modelo adotado, ressalvado as devidas proporções, em que o crédito rural alocado no período da modernização da agricultura disponibilizou recursos, concentrando nos empreendimentos dos médios e grandes produtores, localizados nas regiões do Centro-Sul do país, cuja vocação e objetivos foram ajustados para consolidar e ampliar a produção destinada à exportação de commodities e menos aos agricultores familiares localizados nas regiões Norte e Nordeste (MONTEIRO, LEMOS, 2019).

De certa forma, é possível considerar que esse aumento em volume de recursos e número de contratos, (figuras 2 e 3 respectivamente), na modalidade de investimentos, podem ser explicados pela “onda” de necessidades de investimentos que a matriz tecnológica impôs e incutiu aos agricultores familiares, especialmente nas últimas duas décadas. Ou seja, ou o agricultor familiar financia e torna-se dono dos meios produtivos ou toma o rumo do desaparecimento lento e gradual (a fórmula consagrada da diferenciação social), primeiramente tornando-se um arrendatário (pois não detém em condições desfavoráveis máquinas, equipamentos e acesso às tecnologias) e após, vende o estabelecimento. Diga-se aqui, que “meios produtivos” para além da terra e do capital, está a tecnologia embarcada e empregada nas máquinas agrícolas, na genética diferenciada e no uso de fertilizantes e produtos químicos. Essas tecnologias vêm aumentando os custos consideravelmente nas décadas, mas por outro lado, tem sustentado e remodelado a indústria de máquinas e equipamentos, que nos anos 2000 se encontrava em plena decadência no país.

A diferenciação social se expressa de igual modo em termos tecnoprodutivos e revela o tamanho do desencontro entre os agricultores mais capitalizados, os fragilizados e a indústria de máquinas e insumos agrícolas, mas o modelo, mesmo equivocado e apoiado pelo Estado se aplica a todos os agricultores. A diferenciação, inclusive, é apoiada por expressiva bancada parlamentar e pelos sucessivos governos, independente da filiação ideológica, como se não houvesse alternativa e alheios a um projeto de médio e longo prazo para a agricultura e para as regiões rurais. O processo torna-se incompreensível, na medida em que há um contingente expressivo de agricultores que poderiam ser incluídos. Sobre os mais fragilizados recai a obrigatoriedade de serem capazes de “reinventar-se” ao se adaptar na perspectiva competitiva e concorrencial do ponto de vista social e produtivo por si mesmos.

A diferenciação social e a especialização produtiva transformaram os recursos do Pronaf a fazer mais do mesmo. Nesses termos, eles indiretamente auxiliam e induzem a “desintegração produtiva” de muitos agricultores familiares, primeiramente, pelos mais empobrecidos (AQUINO, SCHNEIDER, 2015). Essa opção vem se consolidando pela oferta única e específica de crédito rural de acordo com os dados elencados (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020, 2020b), (sem o aporte de outras políticas substantivas de suporte e apoio), utilizado para potencializar cadeias produtivas de culturas de exportação. Vale citar, que as iniciativas de apoio pela via de comercialização do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), foram tentativas de viabilização de mercados preferenciais para o segmento da agricultura familiar, e buscava a diversificação produtiva e a valorização de produtos locais e comercializáveis. Contudo, o PAA atingiu um percentual pequeno de agricultores e o PNAE, apesar de alocar recursos expressivos, carece de processos organizativos dos agricultores para atender a demanda que exige regularidade (FREITAS, 2019; VILHENA et al. 2015; SOARES et al. 2015), embora se reconheça que existem experiências que obtiveram algum sucesso.

Por outro lado, o modelo de verticalização produtiva preconizada e viabilizada por meio das “empresas integradoras agroindustriais” (especialmente nas cadeias produtivas de aves, suínos e leite), transferem os riscos econômicos e as responsabilidades ambientais aos agricultores familiares e afetam, de forma direta, as relações sociais no interior dos estabelecimentos rurais. Esses processos potencializam o risco de desintegração estrutural da agricultura familiar como função social, econômica e cultural (ZONIN, MARTINS, 2016), que atingem de forma mais aguda, quase sempre, os agricultores familiares mais fragilizados.

Os dados apresentados na Figura 3 referem-se ao número de operações contratadas realizadas nas modalidades de investimentos (agrícola e pecuário), no período analisado. As operações apresentaram um crescimento modesto até o ano de 2003 (166.495 operações). Contudo, a partir de 2004 (428.215 operações) e seguindo o aumento expressivo nas operações atingindo a faixa acima de até 1,65 milhão de contratos em 2006; e nos anos subsequentes consolidou a relativa estabilidade no número de operações. A manutenção dos patamares de contratação em investimentos sustentou a cifra revelada a partir de 2007 (1.061.042 operações) até 2019 (898.433 operações), auferindo a média dos 13 anos em 969.691 operações contratadas por ano. Esse fator pode ser atribuído à criação do programa “Pronaf Mais Alimentos”, criado em 2007 para a aquisição de máquina e equipamentos agrícolas, amparado pelo Programa de Sustentação de Investimento Rural (PSI-Rural), operacionalizado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Os dados mostrados na Figura 4, enfatiza que o montante de contratação, tendo por base o ano de 2007, partiu de pouco mais de R$ 3,2 bilhões em recursos, chegando a R$ 14,3 bilhões em 2014, permanecendo no patamar entre R$ 10 e 11 bilhões em contratação na modalidade “investimentos”, a partir de 2015. A iniciativa do “Mais Alimentos” ampliou significativamente a oferta de recursos para o crédito, destinados à aquisição de tratores, máquinas, equipamentos, veículos e até motos (estas foram incluídas no ano safra de 2018). O Programa Pronaf Mais Alimentos, na visão de Aquino e Schneider (2015), deu ânimo e fôlego novo ao processo de modernização desigual da agricultura familiar, concentrando esforços, especialmente nas propriedades do Grupo Variável (os mais capitalizados e estruturados produtivamente e que podem oferecer garantia reais aos agentes financeiros), localizadas nas regiões Sul e Sudeste do país (as mais desenvolvidas).

Essa opção vem reforçando o processo de diferenciação social entre os agricultores e entre as regiões rurais do país. As necessidades estruturais, sociais, econômicas e produtivas para o desenvolvimento das regiões rurais e, sobretudo, dos agricultores familiares vulneráveis pelo critério de ingresso de renda monetária mensal. Toledo (2017) demonstrou essa fragilidade no trabalho realizado por amostragem em cinco unidades da Federação (PE, PA, BA, PR e SC), em que 60% dos agricultores familiares pesquisados auferiram renda inferior a R$ 180 por mês. A fragilidade de ingresso de renda monetária é de natureza complexa, multifatorial e necessitam de investimentos estruturantes. Mas de qualquer modo, essas necessidades ultrapassam de longe a simples oferta e facilidades para a aquisição de máquinas, veículos e outros equipamentos agrícolas. Esses investimentos utilizados para potencializar a produção, apesar de importantes, mas por si só não representam soluções sustentáveis e nem duradouras para a maioria dos agricultores familiares.

Dessa forma, ao analisar os problemas históricos na condução das políticas públicas para a agricultura (que na verdade tem muito mais a ver com programas fragmentados e de curto prazo, operacionalizado por meio de planos agrícolas renovados anualmente), adotadas para as regiões rurais brasileiras e, mesmo considerando a necessidade de modernização produtiva e contínua da agricultura. Conclui-se que nessas circunstâncias, o Programa Mais Alimentos pode ser tomado como mais um apanágio simplificador e equivocado, criado para atender em primeira ordem as demandas do mercado cativo da indústria de máquinas agrícolas. O acesso facilitado à modernização por meio da mecanização, apesar de necessário, mas por outro lado apresenta um traço deletério, potencializa um grupo seleto de agricultores familiares em melhores condições socioeconômicas, na medida em que as necessidades históricas (infraestrutura produtiva, social, agrária, garantia de renda, especialmente dos agricultores familiares fragilizados) das regiões rurais e da agricultura, ainda permanecem quase intocadas e em busca de alternativas (TOLEDO, 2017).

O aumento do volume de recursos financeiros aplicados concomitantemente à diminuição de contratos explicita, como já foi afirmado, viabiliza a concentração de contratos em um número cada vez menor de agricultores familiares assistidos (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020, 2020b). Uma explicação para isto pode estar aliada ao aumento dos custos de produção o que eleva, necessariamente, o montante de recursos necessários para contratação dos custeios das lavouras. Um breve exemplo desse fator, é a expressão dos custos de produção (os custos intermediários) das lavouras de milho (especialmente, os de média tecnologia), considerados elevados entre os agricultores familiares (CONTERATO et al, 2014). Por outro lado, é possível observar que, mesmo aumentando a disponibilidade de agentes técnicos que elaboram os projetos produtivos, o regramento e critérios para a concessão do crédito rural, de forma geral, ficaram mais restritivos. Essa estratégia aumentou o rigor na concessão e na aplicação dos recursos, evitando desperdício, desvio de finalidade que redundam em endividamento, preferindo os agricultores familiares consolidados e que possuem portfólio de ativos junto aos agentes financeiros.

Por fim, é possível constatar que houve tentativas visando a oferta e a diversificação de crédito por meio de outras linhas de crédito como o Pronaf Florestas, Agroecologia, mas os agricultores são ressabiados em apostar em novidades sem comprovação de resultados, e dessa forma, são pouco conhecidas e contratadas (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2013). Buscou-se incluir as modalidades Pronaf Jovem e Pronaf Mulher, pensadas com alternativas a fim de ampliar os tomadores de crédito e como políticas complementares de terceira geração (GRISA; SCHNEIDER, 2014). Contudo, essa alternativa esbarra na capacidade endividamento da unidade familiar de produção (que é a mesma do chefe da família) e foi pouquíssima operacionalizada. Essas modalidades possuem o caráter embrionário, e visam apoiar, ampliar e diversificar buscando agregar valor a matriz produtiva dos estabelecimentos rurais da agricultura familiar, fugindo de certo modo, do processo meramente mercantilizado, sinalizado e consagrado pela opção das commodities.

Considerações finais

O artigo pretendeu refletir se a disponibilização do crédito rural do Pronaf está de fato consolidando a diferenciação social entre os agricultores familiares. O caminho percorrido baseou-se na opção corroborada pela análise dos números oficiais das operações de crédito rural nas modalidades de custeio e investimentos e sobre os volumes financeiros contratados.

Foi possível concluir, especialmente na modalidade de custeio evidenciados pelos dados quantitativos, que o número das operações contratadas vem diminuindo no decorrer do tempo de existência do programa, ao mesmo tempo, em que se amplia o volume de recursos contratados. Considera-se que a pressão por aumento de recursos financeiros tem sido quase objeto e estratégia única dos representantes sociais e sindicais, para continuar a fazer mais do mesmo, por ocasião dos debates preparatórios de lançamento do Plano Safra da Agricultura Familiar de cada ano agrícola, por conta do contínuo aumento dos custos de produção das culturas tradicionalmente produzidas. Essa opção vem ampliando o valor individual das operações e, ao mesmo tempo, vem privilegiando os agricultores familiares mais capitalizados das regiões rurais mais dinâmicas economicamente.

Argumentou-se que a disponibilização e a ampliação de volumes de crédito contratado, desde a implantação do programa, ainda que do ponto de vista de valorização da função produtiva, social e política da agricultura familiar, tenha sido uma iniciativa importante, mas se consolidou em uma modalidade equivocada de apoio governamental, a qual precisa ser repensada, especialmente, em razão da estratégia ficar restrita, em grande parte, à oferta de crédito rural. Essa opção escamoteia e negligência as questões estruturais dos agricultores e das regiões rurais que necessitam de política de suporte e apoio governamental. Apesar das contínuas promessas, esse fator revela a aceitação, a impotência ou mesmo a má vontade do Estado em produzir políticas públicas consistentes. Pode-se dizer que isso, faz parte da tradição e da experiência brasileira, em que a precarização, a complacência e o populismo se renovam continuamente, independente dos resultados alcançados, ou mesmo da corrente político-ideológica que governe o país.

Por fim, em que pesem os benefícios socioeconômicos do Pronaf, apesar da concentração em uma parcela restrita de agricultores e a concepção política do programa ser de curto prazo, mesmo assim, proporcionou o desenvolvimento da agricultura familiar, mesmo que de forma desigual. Conclui-se que o programa tem sido conduzido a funcionar como uma estratégia compensatória que visa “ganhar tempo”, ao tardar a exclusão produtiva dos agricultores familiares em situação de fragilidade social e estrutural em curto prazo. Parte desses efeitos pode ser atribuídos aos obstáculos estruturais e socioeconômicos impostos pelo mercado competitivo e concorrencial que, agregado às fragilidades estruturais e produtivas dos estabelecimentos rurais, e que não foram ainda tocadas, não são favoráveis à maioria dos agricultores familiares. A opção do Estado, grande parte apoiada pelos representantes políticos da agricultura familiar, basicamente ficou restrita na ação preferencial e simplista em ampliar a oferta contínua de recursos financeiros para o crédito rural.

Por fim, compreende-se que a temática sobre as extensões e reflexos no uso do crédito rural, deve ampliada na perspectiva de estabelecer relações de causas e efeitos, como expressão de potencialidades/limitações da política creditícia.

Material suplementario
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