Recepción: 26/04/2020
Aprobación: 26/05/2020
Resumo: Tradicionalmente, os processos sociais e culturais que marcam o meio rural brasileiro atribuem papéis distintos aos homens e mulheres, vinculando a elas tarefas pouco valorizadas em termos monetários. Entretanto, essa realidade começou a ser alterada com a mobilização das próprias mulheres rurais, que passaram a conquistar seus direitos, passando a ser inseridas na agenda de políticas públicas. Este estudo tem como objetivo analisar o processo de acesso ao crédito rural por mulheres no Território da Cidadania Médio Alto Uruguai, no estado do Rio Grande do Sul. Os resultados obtidos demonstram que o ato de acessar o crédito, quando exercido por mulheres, tem o objetivo maior de melhorar a qualidade de vida da família, por meio do aumento da produção e, consequente, da renda familiar. A principal atividade produtiva a qual recebe investimentos dos projetos das mulheres é a atividade leiteira, que, comumente, já era desenvolvida no núcleo familiar. Nessa situação, a tomada de crédito se dá por meio de sistema produtivo já em curso, com o propósito de melhorá-lo. Os resultados permitem concluir ainda que o acesso ao crédito rural para investimento em atividade de interesse da mulher resulta em aumento da confiança, facilitando a comunicação e o relacionamento com outros atores sociais.
Palavras-chave: Desenvolvimento rural, Empoderamento, Igualdade de gênero, Mulheres agricultoras, Pronaf.
Abstract: Traditionally, the social and cultural processes that mark the Brazilian rural environment assign different roles to men and women, linking them with tasks that are not valued in monetary terms. However, this reality began to be altered with the mobilization of rural women themselves, who began to conquer their rights, becoming inserted in the public policy agenda. This study aims to analyze the process of access to rural credit by women in the Território da Cidadania Médio Alto Uruguai, in the state of Rio Grande do Sul. The results obtained demonstrate that the act of accessing credit, when exercised by women, has the greater objective of improving the family's quality of life, by increasing production and, consequently, family income. The main productive activity that receives investments from the women's projects is the dairy activity, which, commonly, was already developed in the family nucleus. In this situation, credit is taken through a production system already underway, with the purpose of improving it. The results also allow us to conclude that access to rural credit for investment in an activity of interest to women results in increased confidence, facilitating communication and relationships with other social actors.
Keywords: Rural development, Empowerment, Gender equality, Women farmers, Pronaf.
Resumen:
Tradicionalmente, los procesos sociales y culturales que marcan el entorno rural brasileño asignan diferentes roles a hombres y mujeres, vinculándolos con tareas que no se valoran en términos monetarios. Sin embargo, esta realidad comenzó a modificarse con la movilización de las propias mujeres rurales, que comenzaron a conquistar sus derechos y se insertaron en la agenda de políticas públicas. Este estudio tiene como objetivo analizar el proceso de acceso al crédito rural por parte de las mujeres en el Território da Cidadania Médio Alto Uruguai, en el estado de Rio Grande do Sul. Los resultados obtenidos demuestran que el acto de acceder al crédito, cuando lo ejercen las mujeres, tiene el mayor objetivo de mejorar la calidad de vida de la familia, a través del aumento de la producción y, en consecuencia, del ingreso familiar. La principal actividad productiva que recibe inversiones de los proyectos de mujeres es la actividad láctea, que, comúnmente, ya estaba desarrollada en el núcleo familiar. En esta situación, el crédito se toma a través de un sistema de producción ya en marcha, con el propósito de mejorarlo. Los resultados también nos permiten concluir que el acceso al crédito rural para la inversión en una actividad de interés para las mujeres resulta en una mayor confianza, facilitando la comunicación y las relaciones con otros actores sociales.
Palabras chave: Desarrollo rural. Empoderamiento. Igualdad de género. Mujeres agricultoras. Pronaf.
Introdução
Os dados recentemente divulgados do Censo Agropecuário brasileiro permitem ilustrar a diversidade do meio rural do Brasil. São contabilizados mais de cinco milhões de estabelecimentos rurais, dos quais 76,8% (3.897.408) são classificados como de agricultura familiar (IBGE, 2019). Tais resultados corroboram com estudos anteriores a divulgação dos dados, que destacavam a agricultura familiar enquanto importante forma de produção familiar rural, especialmente por sua contribuição para a produção de alimentos e para ocupação rural (SCHNEIDER, 2010; CRUZ; MATTE; SCHNEIDER, 2016; PLOEG, 2016).
No Brasil, o reconhecimento dessa categoria social passa pela criação da Lei n° 11.326, de 24 de julho de 2006. E, mais recentemente, pelas diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar orientado pelo Decreto nº 9.064, de 31 de maio de 2017 (BRASIL, 2006; 2017). De forma pontual, entre as medidas resultantes da Lei, está a constituição do Programa Nacional de Fortalecimento de Agricultura Familiar (PRONAF), que passa a ser operacionalizado em 2005. Conforme dados do Censo Agropecuário, do total de estabelecimentos rurais que acessam crédito no país, 40,9% são provenientes de programas de crédito do PRONAF (IBGE, 2019). Este reconhecimento envolve também os públicos da agricultura familiar como alvo de políticas de crédito específicas como é o caso dos jovens e das mulheres rurais.
Os dados do Censo Agropecuário de 2017 mostram que entre os estabelecimentos rurais de agricultura familiar, 19,7% (769.672) são atualmente dirigidos por mulheres (IBGE, 2019). Com relação ao trabalho que executam, as mulheres deste segmento possuem papel fundamental para a execução das atividades domésticas e agropecuárias realizados na propriedade rural, e consequente geração de renda para a família. Apesar da imagem de invisibilidade da mulher na produção, a realidade, mesmo que nem sempre reconhecida pelo sistema patriarcal, é de que as mulheres têm protagonismo central no desenvolvimento nos núcleos familiares, nas atividades produtivas e nas comunidades rurais, uma vez que atuam nesses espaços desempenhando papeis de agregação e de organização das atividades rurais (SILVA et al., 2015; SPANEVELLO; MATTE; BOSCARDIN, 2016).
No entanto, conforme estudos reunidos por Lopes e Butto (2008), independente do poder aquisitivo da família rural, a tomada de decisão ainda pertencente majoritariamente ao homem, tendo em vista a visão tradicional do papel feminino como de “parceria” ou de “ajudante”. É nesse sentido que se torna essencial avaliar se políticas públicas direcionadas a esse público, em específico, podem contribuir para modificar essa situação. Em estudo sobre o empreendedorismo rural das mulheres, concentrando-se nas cooperativas agrícolas femininas na Turquia, Kertege Sefer (2020) mostra que políticas públicas devem levar em conta a preexistência de normas de gênero, arranjos institucionais locais, percepção do trabalho das mulheres como complemento e agravamento das condições de trabalho para elas. Em especial, a autora reforça a necessidade de compreender que o acesso às políticas nem de longe assegura às mulheres o reconhecimento e a autonomia.
Com base nas discussões acima, busca-se saber: De que forma as mulheres acessam programas de crédito? Qual a finalidade do acesso? No que é investido o valor concedido? Quais os benefícios sociais e econômicos gerados a partir da tomada de crédito? Deriva destes questionamentos o objetivo norteador dessa pesquisa, que consiste em analisar o processo de acesso ao crédito rural por mulheres no Território da Cidadania Médio Alto Uruguai, no estado do Rio Grande do Sul.
Para responder a esse objetivo, o texto está estruturado em cinco seções, incluindo esta introdução. Na segunda seção são apresentados estudos e avanços no que diz respeito aos estudos de gênero e de políticas públicas para mulheres rurais. O método e instrumentos de pesquisa são detalhados na terceira seção. Os principais resultados e as discussões estão aprofundados na quarta seção, seguido das considerações finais.
Mulheres na agricultura familiar: trabalho e políticas de crédito rural
Gestão e trabalho feminino na agricultura familiar
A agricultura familiar é definida por Abramovay (1998) como um segmento no qual a gestão, a propriedade e a maior parte do trabalho provem de indivíduos que mantém entre si laços de sangue ou de casamento. Nesta mesma perspectiva, conforme a concepção de Wanderley (2001), a agricultura familiar refere-se a um estabelecimento produtivo no qual a família, além de proprietária dos meios de produção, assume o trabalho do mesmo. O reconhecimento econômico, social e político desta categoria foi marcado em dois momentos: 1) Criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar- Pronaf, em 1995, como marco inicial deste reconhecimento, sendo um importante meio da agricultura familiar para absorver mão de obra rural e ampliar a oferta de alimentos (SCHNEIDER, 2010; NIEDERLE, 2015); 2) Lei n. 11.326, de 2006 (BRASIL, 2006). Essa lei define oficialmente a agricultura familiar como categoria sociopolítica e estabelece as diretrizes para a formulação de políticas públicas. De acordo com a lei, são definidos agricultores familiares àqueles que praticam atividades no meio rural, não detenham área de terra superior a quatro módulos fiscais, utilize predominantemente mão de obra e gestão familiar nas atividades econômicas do estabelecimento e tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento (BRASIL, 2006).
Internamente, a agricultura familiar tem sido objeto de distintos estudos que perpassam a sua reprodução econômica e a função de produção de alimentos, com destaque para os seus públicos como é o caso dos jovens e das mulheres. Com relação as mulheres, o percentual de mulheres rurais brasileiras a frente das propriedades era de 13%, ficando abaixo de países como Bolívia (17%), Colômbia (21,7%), Peru (16,3%), Chile (25%), Panamá (25%) e Equador (25%) e mais próximo do percentual do Paraguai (13,4%), conforme informações divulgadas pela FAO (2011). Atualmente, conforme dados do IBGE (2019), esses dados melhoraram, atualmente 18,6% dos estabelecimentos rurais brasileiros são conduzidos por mulheres e ao direcionar olhar sobre a agricultura familiar, a presença das mulheres apresenta proporção levemente superior, predominando em 19,7% das propriedades rurais.
Enquanto as mulheres ocupadas em estabelecimentos agropecuários no Brasil alcançam aproximadamente 4,3 milhões, os homens, de longe, somam mais de 10,7 milhões de pessoas ocupadas no meio rural (IBGE, 2019). Ainda segundo esses dados, em média, um estabelecimento agropecuário brasileiro possui 0,86 mulheres e 2,11 homens ocupados. Tratando-se do Rio Grande do Sul, o cenário é semelhante, visto que, há um montante de 66,3% (641.145) de homens ocupados em estabelecimentos agropecuários, em detrimento de 33,7% (325.534) de mulheres ocupadas na atividade (IBGE, 2019). Em média, uma propriedade gaúcha possui 0,89 mulheres ocupadas e 1,756 homens.
Analisando a situação etária feminina do rural brasileiro, observa-se existir menos mulheres jovens no campo do que idosas (IBGE, 2010). Este fato, segundo estudo realizado por Brumer (2004), pode estar relacionado com dois fatores, principalmente: a diminuição do número de filhos por família, o que implica em um menor número de crianças no meio rural; e o aumento da migração das moças para as cidades, sendo esta uma característica atual do êxodo rural – um êxodo jovem –, com maior tendência a saída de mulheres. Conforme Brumer (2014) e Spanevello et al. (2014), a diminuição do número de mulheres no campo pode refletir nas dificuldades em constituição de novos casamentos no meio rural, e por consequência, de novas famílias. Este menor número resulta no que Camarano e Abramovay (1999) chamam de masculinização no campo, a exemplo do que foi encontrado no meio rural francês por Bourdieu (2002), na década de 1960.
No meio rural brasileiro, ainda com traços do patriarcalismo, se observa a dissociação de tarefas a serem exercidas por homens e outras exclusivamente por mulheres – serviços domésticos –, as tornam quase totalmente invisíveis quanto a força de mão de obra exercida em atividades que gerem renda para o grupo familiar (CAUMO et al., 2015; SILIPRANDI; CINTRÃO, 2015). Nestas situações, a mulher rural dedica-se a serviços domésticos e cuidados aos filhos, cuidados com a horta, pomar e alimentação de animais que servirão para o consumo da família. Esse tipo de atividade desenvolvida pela mulher rural comumente é pouco ou nada valorizada, uma vez que não contabilizam tais atividades em termos monetários. Dessa forma, comparado ao esforço que demanda a realização destas tarefas, não é visto como trabalho, mas como extensão de suas tarefas domésticas (HEREDIA; CINTRÃO, 2006).
Para Brumer e Spanevello (2008), essa divisão sexual do trabalho que tende a prevalecer, está entre as razões que levam as mulheres, especialmente as mais jovens, a deixar o campo, em destaque as mulheres e as tradições que priorizam o homem aos trabalhos especializados, de chefia, comercialização e herança. Nesse contexto, as mulheres preferem continuar os estudos nas cidades ou procurar trabalho assalariados para possuírem maior autonomia.
Inclusão das mulheres nas políticas públicas de crédito da agricultura familiar
O surgimento da política pública específica de financiamentos, de abrangência nacional, voltada para produtores familiares no Brasil surgiu no início da década de 1990. Foi no ano de 1996 que o Governo Federal, oficialmente, por meio do Decreto nº1.946, de 28 de junho, substituiu o Programa de Valorização da Pequena Produção Rural (PROVAP) pelo Pronaf, criado com a finalidade de apoiar o desenvolvimento rural e como objetivo maior o fortalecimento e incentivo à agricultura familiar (AQUINO; SCHNEIDER, 2015).
Dados analisados pelo extinto Ministério da Agricultura e Desenvolvimento (MDA) (BRASIL, 2017), demonstram a crescente evolução e concessão de crédito para o incentivo ao desenvolvimento da agricultura familiar. Desde o seu surgimento em 1996 até a emissão do primeiro plano safra (1999/2000) até o último plano safra vigente (2019/2020) o recurso via Pronaf ofertado aos agricultores tem sido crescente em termos de valores, pois em 1999-2000 foi de 2,1 bilhões e no atual Plano Safra o valor é de 31,22 bilhões, ainda que com oscilações durante os anos, pois na safra 2015/2016, o índice caiu em relação ao ano anterior, reduzindo de 23,86% para 22,12 %, comportamento que se repetiu nos anos seguintes, chegando a 22,09% no ano safra 2017/2018.
Um dos momentos marcantes, em especial para as mulheres está atrelado a criação de uma linha específica para as mulheres dentro do Pronaf. A partir do Plano Safra de 2003/2004, período no qual as mulheres foram incluídas como público específico na política pública Pronaf por meio da linha Pronaf Mulher. A finalidade é estabelecer a igualdade entre mulheres e homens no acesso a crédito agrícola voltado para a agricultura familiar, procurando contribuir para a superação das desigualdades de gênero no meio rural (ZORZI, 2008).
No entanto, além desta linha exclusiva para as mulheres, as mesmas podem tomar crédito dentro de outras linhas de investimentos. No Plano Safra 2019/2020, as linhas de crédito investimento, além do Pronaf Mulher, são representadas pelo Pronaf Jovem, Mais Alimentos, Agroindústria, Semiárido, Agroecolologia, Floresta, Eco, entre outros, sendo que cada linha tem sua particularidade em termos de prazos para pagamento, requisitos para acesso e taxas de juros.
Ressalta-se que, mesmo que as mulheres possam fazer uso do crédito na mesma proporção que os homens, as mulheres não tem acessado operações de crédito na mesma proporção embora os números de propriedades rurais com mulheres no comando tenham aumentado conforme o último Censo Agropecuário e já citado anteriormente. Considerando apenas os dados dos últimos dois anos, conforme dados do Banco Central (2020), número de contratos de crédito investimento via Pronaf no Rio Grande do Sul, em 2018 chegou a soma de 1923 contratos, com um valor total de investimentos de R$ 266.895.607,25, destes 270 contratos ou 14% foram feitos pelas mulheres com valor total de R$ 18.089. 231 ou 6,8% do valor total, enquanto o número de contratos efetivados pelos homens foi de 1.653 (ou 85,9%), com um valor total de R$ 248.797.375,87 representando 93,2%. Já no ano seguinte (2019), o número total de contratos foi de 2114 com um montante financeiro de R$ 227.439.994,07. Neste ano, as mulheres realizaram 670 contratos de investimentos (superior ao ano de 2018) representando 31,7%, já para os homens foram 1.444 contratos (ou 64,3%) com um valor de investimento de R$ 172.749.067,61 (ou 76% do total).
Estas diferenças podem ser explicadas sob distintos argumentos. O trabalho de Hernandez (2009) com mulheres que acessaram o Pronaf Mulher no Rio Grande do Sul deixa claro que as mulheres não tem a mesma experiência que os maridos ou cônjuges na tomada de crédito, por isso, têm dificuldade na organização da documentação, na elaboração do projeto produtivo, além do receio de acessar um recurso que representa uma dívida que precisa ser paga junto ao agente financeiro. O receio de não conseguir quitar esta dívida faz com que muitas vezes as mulheres desistam do crédito. Por isso, segundo Hernandez (2009), muitas vezes as mulheres tomam crédito para fazer a mesma coisa que já faziam na propriedade, por exemplo, investem o recurso na produção de leite porque já conhecem o trabalho, mas gostariam de ter investimento em atividades não agrícolas como máquinas de costura, agroindústria de bolachas que lhes permitissem uma renda ou a realização de uma individual satisfatória. Brumer e Spanevello (2012) também apontam outro fator de desmotivação a tomada de crédito é a relação estabelecida com os mediadores (agentes bancários, de extensão rural) que fazem a ligação entre o crédito e a mulher beneficiada, sendo que para estes é mais fácil, em alguns casos, ofertar para as mulheres que se destinam até a agência bancária um projeto produtivo de atividades já existentes do que elaborar projetos para atividades que exigem estudos de mercados, viabilidade econômica (sendo estes aspectos fundamentais para o êxito do crédito de investimento das mulheres beneficiadas).
Entretanto, apesar das dificuldades mencionadas acima, estudos realizados no âmbito das mulheres rurais demonstraram que a oportunidade de acesso ao crédito mostrou-se decisiva para o aumento da autoestima das trabalhadoras uma vez que as sentem capazes de poder participar efetivamente da renda da família, gerando ganhos materiais ou monetários e também simbólicos (ZORZI, 2008; SILVA et al., 2015; SILIPRANDI; CINTRÃO, 2015; SPANEVELLO; MATTE; BOSCARDIN, 2016). Isso conduziu o interesse de desenvolvimento desta pesquisa, de modo que os parâmetros metodológicos que orientam o estudo estão apresentados à seguir.
Métodos e instrumentos de pesquisa
Para a realização deste artigo fez-se uso da pesquisa qualitativa. A pesquisa qualitativa, segundo Deslandes (1994), tem como foco os significados das ações e relações humanas, geralmente não visível ou captável em equações, médias e estatísticas. Trata-se de uma pesquisa qualitativa exploratória, a qual segundo Gil (1991) tem por finalidade o contato (através de entrevistas, levantamento bibliográfico) com pessoas ligadas diretamente ao problema e objetivo da pesquisa. Desta forma, é possível o pesquisador obter maior aprofundamento sobre a temática de estudo em razão da possibilidade de captar as experiências e vivências dos entrevistados.
O espaço geográfico da pesquisa é o Território da Cidadania Médio Alto Uruguai, no estado do Rio Grande do Sul. O Rio Grande do Sul contabiliza 365.094 estabelecimentos rurais, em que 80,5% (293.892) são estabelecimentos de agricultura familiar, dos quais 12,2% são dirigidos por mulheres (IBGE, 2019). Particularmente, no Território da Cidadania Médio Alto Uruguai, no mesmo estado, que conta com 34 municípios[5] em sua composição, são contabilizados 21.314 estabelecimentos agropecuários, dos quais, 88,1% são de agricultura familiar (IBGE, 2019). Do total, 10,6% são dirigidos por mulheres, muito próximo ao valor em estabelecimentos agropecuários da agricultura familiar, em que 10,7% são gerenciados por mulheres. Para atender ao objetivo proposto neste estudo, foram realizadas entrevistas com mulheres rurais residentes no Território da Cidadania Médio Alto Uruguai que haviam acessado crédito rural. O Território da Cidadania Médio Alto Uruguai (TCMA) tem extensão territorial de 5.800 mil Km² (Figura 1). A população total do território é de 189.946 mil habitantes, dos quais cerca de 90 mil residem na área rural, isto é, mais de 48% do total (PELEGRINI et al., 2014).
A identificação de mulheres que haviam acessado crédito rural contou com apoio de agentes bancários. Após contato prévio com as agências bancárias, essas disponibilizaram lista contendo o nome das beneficiadas e os municípios a que pertencem.
Selecionaram-se mulheres rurais que haviam acessado o crédito Pronaf modalidade investimento nos últimos cinco anos (período compreendido entre 2014 a 2019), totalizando 14 mulheres que acessaram crédito rural. Todas foram contatadas, nove mulheres se disponibilizaram a participar do estudo. Sendo estas residentes nos municípios de Jaboticaba e Pinhal. Não há como saber os motivos das mulheres que se recusaram a participar, mas, como hipótese, para futuros estudos, supomos insegurança como principal motivo, gerada por investimento do recurso em outras atividades que não as previstas no projeto, ou pelo fato desse financiamento poder estar sendo gerenciado pelo homem. Entende-se que entrevistando mulheres para esse período de tempo, a beneficiada teve tempo de executar a aplicação do recurso e pode já estar alçando retorno econômico.
A coleta de dados ocorreu por meio da aplicação de um roteiro de entrevista semiestruturada. O roteiro teve como foco questões envolvendo a busca de informações sobre: idade, escolaridade, estado civil, tipo de trabalho agrícola e não agrícola exercido na propriedade, renda, modalidade de crédito acessada, auxílio técnico na elaboração do projeto de investimento, valor solicitado a agência bancária, projeto produtivo de destino do crédito, ano de obtenção do crédito, resultados econômicos gerados para a entrevistada, família e propriedade, resultados não econômicos gerados (autonomia no trabalho, facilidade no trabalho, possibilidade de compra de objetos ou bens pessoais ou para a família, entre outros) tempo que acessou, destino do crédito, renda gerada.
Os dados foram tabulados por meio do Software Microsoft Excel e após analisados seguindo a ordem do roteiro de entrevistas: 1. Caracterização das entrevistadas; 2. Caracterização das propriedades; 3. Acesso ao crédito; 4. Efeitos do acesso ao crédito. Ademais, os resultados quantitativos foram analisados por meio da estatística descritiva, e os dados qualitativos foram analisados (após a sistematização dos mesmos), com a técnica de análise de discurso, correlacionado a resultados de estudos relacionados ao tema.
Dinâmica da tomada de crédito pelas mulheres rurais
Esta seção contempla os resultados das entrevistadas realizadas e pontua informações referentes a caracterização das mulheres rurais entrevistadas, das propriedades e da relação com o crédito.
Caracterização das mulheres entrevistadas
As mulheres entrevistadas encontram-se na faixa etária entre 21 e 49 anos. Quanto à escolaridade, uma entrevistada possui ensino superior completo, outra está cursando graduação, quatro delas possuem ensino médio completo e as demais possuem ensino fundamental incompleto. Sete são casadas, das quais seis tem filhos, três das entrevistadas ainda não possuem filhos. Em apenas uma das propriedades um dos filhos já não reside no estabelecimento, nas demais famílias todos permanecem no meio rural. Entre as mulheres solteiras, a mais jovem (21 anos) mora com os pais e a outra (48 anos) reside com a mãe e o irmão.
Estes dados referentes à escolaridade se aproximam dos encontrados no trabalho de Spanevello, Matte e Boscardin (2016) sobre as mulheres tomadoras de crédito no Rio Grande do Sul, em que o grau de escolaridade também é variado, sendo as mulheres mais jovens as que apresentam maior grau de escolaridade. No entanto, Hernandes (2009), em um estudo com mulheres que acessaram crédito no município de Rodeio Bonito, no Rio Grande do Sul, apontam grau de escolaridade baixo (maioria com ensino básico completo) como resultado do pouco estímulo dado as mulheres para seguir no estudo, em razão de que os estudos era um privilégio dos homens para saber lidar com as demandas das atividades agrícolas posteriormente.
Ao questioná-las sobre sua profissão, oito delas identificam-se como agricultoras, duas dessas denominam-se “agricultoras e donas de casa”, o que evidencia entendimento que distingue as duas funções como profissões distintas. Em parte, isso pode ser compreendido como positivo, na medida em que entendem que são trabalhos diferentes e a função doméstica – que envolve afazeres cotidianos – é um segundo trabalho, para além daquele exercido na propriedade. A única mulher que não assinala ser agricultora tem 21 anos e está cursando curso superior, por isso avalia que sua contribuição na propriedade não a classifica como agricultora. Entre as demais mulheres, duas atuam em outras atividades, uma é também agente de saúde e a outra trabalha em uma cooperativa no município.
O trabalho desenvolvido pelas mulheres envolve as tarefas domésticas (lavar roupa, cozinhar, limpar a casa), produção de alimento panificados (pães e bolachas), cuidados com os filhos, preparo de alimentos, cuidados com a saúde e bem estar da família, produção de hortifrutigranjeiros para subsistência, trato de animais, execução das atividades na produção leiteira (ordenha das vacas, limpeza dos equipamentos de ordenha e alimentação dos animais relacionados).
Além das atividades descritas acima, as entrevistadas relatam que atuam no auxílio dos maridos nos trabalhos da lavoura. A imagem que as próprias mulheres atribuem a sua função como de auxiliar dos companheiros reflete um padrão enraizado no imaginário dessas mulheres e da sociedade, que comumente classificam graus de importância para o trabalho, a partir da responsabilidade que cada um assume sobre ele. De maneira geral, mesmo que essas mulheres considerem que realizam atividades que merecem reconhecimento, não se percebe uma reivindicação por essa valorização. As implicações remetidas à diversidade de tarefas desenvolvidas pelas mulheres é a figura de uma dupla ou tripla jornada de trabalho, por se dedicarem às atividades domésticas, como também auxiliarem nas atividades agrícolas. Outra particularidade encontrada dentre as entrevistadas é a execução de atividades agrícolas e não agrícolas, descrito por Schneider (2003; 2010) como pluriatividade. É o caso de duas das entrevistadas que possuem empregos fora da propriedade, sendo uma coordenadora de loja da cooperativa do município e outra agente de saúde.
Caracterização das propriedades
Esta seção contempla características das propriedades estudadas, com informações relativas às atividades produtivas desenvolvidas, renda mensal familiar e outros rendimentos como aposentadorias. Estas informações são apresentadas no Quadro 01:
As atividades produtivas desenvolvidas nas propriedades são distribuídas entre bovinocultura de leite e de corte, suinocultura e produção de grãos. O predomínio da atividade leiteira – presente em nove estabelecimentos rurais –, evidência sua relevância enquanto importante atividade econômica para a região do Médio Alto Uruguai, uma vez que as entrevistadas encontram-se localizadas entre uma das regiões maiores produtoras de leite do Rio Grande do Sul (RELATÓRIO SOCIOECONÔMICO DA CADEIA PRODUTIVA DO LEITE NO RIO GRANDE DO SUL, 2017).
Quanto às rendas mensais das famílias, estas estão entre 1 mil e 15 mil reais, representando significativas disparidades entre as entrevistadas. A presença de rendas não agrícolas não atinge a totalidade das mulheres. No caso das Entrevistadas 2 e 3 a renda não agrícola é proveniente de uma jornada de trabalho realizada fora da propriedade, as quais justificam que “apenas a renda da atividade leiteira e/ou da lavoura não são suficientes para pagar as contas”. Nesse caso, a atividade que realizam não representa renda extra, muito menos renda que será destinada apenas às mulheres, trata-se de recurso que passa a ser destinado ao bem estar da família. Spanevello, Matte e Boscardin (2016) e Silva et al. (2015) encontraram resultados similares em suas pesquisas. As primeiras estudaram mulheres agricultoras que acessaram Pronaf Mulher no Rio Grande do Sul. As autoras colaboradoras de Silva focaram no Semiárido brasileiro, também com mulheres que acessaram a mesma linha de crédito. Ambas apontam que muitos dos projetos das mulheres e da renda obtida em retorno a seus financiamentos, são destinadas, prioritariamente, para o bem estar das famílias, incluindo filhos e trabalho dos maridos. Não queremos, com isso, dizer que a renda provinda de investimentos realizados por homens não seja destinada ao bem estar da família. O que se observa é ações em que os recursos são destinados primeiro ao bem estar dos filhos e maridos, para, posteriormente ser usado para alguns bem ou uso que seja em benefício da própria mulher.
Além disso, no caso da entrevistada 2, há presença de aposentado rural, em que, apesar do beneficiário não possuir capacidade de gerar renda por meio das atividades agrícolas, contribui indiretamente com o valor recebido da aposentadoria como complemento à renda familiar. Nesse contexto, a entrevistada está diante de uma jornada tripla de trabalho, realizando três turnos de atividades: pela manhã dedica-se à atividade leiteira, à tarde atua como agente de saúde, e durante a noite realiza tarefas domésticas. Em paralelo a isso, despende cuidado necessários à mãe idosa. Mais do que apenas desempenhar tais atividades, essa mulher ainda é responsável por preocupar-se com as compras e decisões que dizem respeito ao núcleo familiar, ficando isenta apenas das decisões que dizem respeito ao marido, nas atividades agropecuárias. No entanto, ainda que a carga ou a jornada de trabalho seja alta e exaustiva, observa-se que as entrevistadas não pensam em deixar o campo ou buscar no meio urbano trabalhos com horários fixos, pois apreciam o modo de vida e os atributos positivos de viver no rural.
Estudos sobre a carga emocional das mulheres, tanto no âmbito rural como no urbano, vem emergindo e, com isso, cresce estudos que avaliam a divisão sexual do trabalho. Sousa e Gueddes (2016), ao analisar diferentes regiões do Brasil a partir dos dados do Programa Nacional Por Amostra de Domicílios (PNAD), constatam que a divisão sexual do trabalho é desigual e desfavorável para as mulheres brasileiras, não havendo muita heterogeneidade entre as regiões. O conceito de divisão sexual do trabalho tem longa história, mas, recentemente, tem ganhado força diante do aumento de análises econômicas que definem como economia feminina trabalhos domésticos pouco valorizados. De acordo com Hirata e Kergoat (2007), ao revisitar a história e avanços do conceito, o definem como “forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos”, as autoras ainda complementam que se trata de “fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos”. Portanto, é uma forma de ordenamento social que resulta em designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (HIRATA; KERGOAT, 2007).
Esse ponto de vista de relação das mulheres pode indicar a necessidade de estudos mais detalhadas, antes mesmo de avançar somente sobre a elaboração de novas políticas públicas. O que os resultados desta pesquisa já permitem apontar é que não basta criar políticas direcionadas às mulheres, se não houver um trabalho em paralelo com as famílias, especialmente com jovens e homens. Iniciativas nesse sentido acontecem de forma isolada, no entanto não compõem um programa ou uma política de estado.
A respeito das entrevistadas, cabe mencionar que no cenário em que se encontra a família da Entrevistada 1, apesar de não haver renda gerada por atividade não agrícola, há o desdobramento para o início de uma sucessão familiar a médio prazo. O filho mais velho cursa Agronomia no período noturno e ajuda com as atividades agrícolas ao longo do dia. Por isso, o processo de sucessão familiar só poderá ser finalizado nessa família quando o filho encerrar a graduação, uma vez que precisará de tempo integral na propriedade para assumir as atividades ali desempenhadas.
Relação da atividade produtiva com o crédito
O objetivo de avaliar o destino para o qual as mulheres acessaram o crédito do Pronaf está diretamente relacionado à autonomia ou não que as beneficiadas possuem para tomar essa decisão. No Quadro 2, são apresentados, de forma sucinta, os motivos do acesso ao crédito e o destino dado ao mesmo.
As entrevistadas 3 e 4 não souberam responder em relação a modalidade do crédito, as demais mulheres acessaram a modalidade investimento. Os motivos que levaram as mulheres a acessarem o crédito foram distintos, dentre eles: aumentar a produtividade e, consequentemente, a renda familiar. Como resultado, passaram a adquirir bens, como utensílios e móveis domésticos (como balcão de pia, geladeira, camas, televisores, entre outros) essenciais para o grupo familiar, melhorando a qualidade de vida da família.
Pode-se, assim, observar que as mulheres, ao decidirem acessar o crédito foi essencialmente pensando no bem estar da família, o que é naturalizado como comportamento afetivo da mulher. Este panorama assemelha-se aos dados encontrados por Matte (2010), em que a o fato da mulher acessar o crédito não demonstra apenas o interesse pela aquisição de bens pessoais e/ou implementos agrícolas, mas também a preocupação com o bem estar do coletivo, afirmando que as mulheres ainda pensam mais na família do que em si mesmas. No caso deste trabalho, os projetos produtivos aos quais foram destinados os créditos são, na maioria, direcionados para a atividade leiteira (seis entrevistadas), enquanto outra destinou a bovinocultura de corte e outras duas não souberam informar.
Houve mudança na realização das tarefas domésticas realizadas pelas mulheres após a tomada de crédito, em que cinco das entrevistadas relataram que passaram a exigir a ajuda dos cônjuges e filhos para a realização das atividades domésticas, antes executadas apenas pela figura feminina, em que passaram a dividir entre os membros do grupo familiar. Sem dúvida, esse resultado é um importante avanço no cenário rural. As mulheres passam a exigir o que é de direito delas, especialmente do que concerne a divisão sexual do trabalho.
A relação entre o acesso ao crédito e a mudança nas condições financeiras da mulher e da família são evidenciadas neste estudo, na medida em que as mesmas relatam que o acesso ao crédito trouxe significativas mudanças financeiras para a família. De acordo com os relatos, o crédito possibilitou retorno financeiro capaz de melhorar a realidade do grupo familiar, permitindo a realização de reformas, aquisição de móveis, eletrodomésticos, entre outros.
O retorno financeiro proporcionado pelas melhorias na atividade leiteira conquistadas com o acesso ao crédito, possibilitaram ainda, no caso da Entrevistada 7, custear a faculdade de seus dois filhos, bem como a aquisição de um automóvel para a família. Estes resultados demonstram que o acesso ao crédito rural pelas mulheres possibilita o suprimento de necessidades de todo o grupo familiar.
Ao analisar aspectos relacionados à autonomia das mulheres, especialmente com relação ao acesso ao crédito e ao destino dado ao recurso, pode-se constatar que, conforme apresentado no Quadro 3, seis das entrevistadas afirmam que a decisão compete a elas, de modo que para quatro delas essa decisão é partilhada com o restante da família. Apenas duas mulheres informaram que a decisão permanece sendo do pai e outra que a decisão é da família.
Como se pode denotar, a decisão tomada pela mulher e família abrange os casos 1 e 8. Quando é tomada em conjunto com o marido, contempla as entrevistadas 5 e 9. As mulheres entrevistadas de números 3 e 4, não possuem poder para decidir sobre o crédito acessado, é nesta situação em que o pai é quem decide sobre a tomada de crédito. Ao observar a entrevistada de número 2, entende-se que a decisão é dada juntamente com o irmão, isso ocorre, pois além destes há apenas a mãe já de idade avançada no grupo familiar. Destacam-se os casos 6 e 7, em que as entrevistadas apresentam total autonomia, cuidando integralmente da atividade produtiva desenvolvida.
O fato de haver apenas duas das entrevistadas que relatam participar significativamente ou de modo integral da gestão das propriedades e/ou atividade desenvolvida aproxima-se dos dados obtidos por Boscardin (2013). Nesse contexto, estudos realizados por Hernández (2009) também relata a crescente autonomia das mulheres por conta da trajetória do acesso ao crédito, em que as mesmas passam saber o retorno financeiro que atividade leiteira traz e começam a decidir em onde investir o valor gerado. No caso da Entrevistada 7, a mesma afirma que ela própria foi em busca de uma agência bancária para tomar um crédito a ser aplicado na produção de leite. A partir desta iniciativa, conforme ela mesma, foi possível melhorar a atividade através da compra de animais com melhor genética e mecanizar a ordenha, além da contratação de mão de obra para auxiliar nas tarefas da produção já que a gestão fica por sua conta.
Quanto à autonomia para comercialização e uso do recurso, pode dizer que a grande maioria das entrevistadas decidem em conjunto com a família, com exceção das Entrevistadas 3 e 4, em que permanece a decisão paterna. Afirmam as Entrevistadas que “não sei onde ou em que é investido e aplicado os recursos que são financiados no meu nome”, as mulheres apenas concedem o nome. Esses casos também foram constatados por Boscardin (2013) e Spanevello, Matte e Boscardin (2016), em que o interesse pelo acesso ao crédito e o projeto a ser destinado o investimento não parte das entrevistadas, mas sim unicamente por conta de maridos e/ou pais.
As Entrevistadas 5, 6 e 7 tomam as decisões sozinhas, nesses três casos prevalece a autonomia total da mulher, pois, segundo elas, os maridos e/ou filhos confiam-nas após o diálogo para um melhor investimento e aproveitamento do recurso aplicado. Essa realidade aproxima-se à encontrada por Matte (2009), onde os casos em que as mulheres são consideradas “chefes de famílias” cabe às mesmas decidirem pelo uso e destino do recurso.
Segundo relatos das entrevistadas 6, 1 e 9, a oportunidade de acesso das mulheres a distintas linhas de crédito é um elemento fundamental em especial para aquelas que se encontravam em situação de total dependência do cônjuge. Estas mulheres relataram ainda que o fato de terem de ir a uma agência bancária, cartórios, tabelionatos, prefeituras por diversas vezes, com a finalidade de aprovar um projeto de crédito rural, passaram a se comunicar com uma gama maior de pessoas, o que, segundo elas, as deixaram mais confiantes e encorajadas para situações adversas, inclusive para atender o técnico ou representante comercial em suas residências.
Em relação as dificuldades para acessar e obter crédito rural constatou-se que, as entrevistadas sinalizam que não encontraram, visto que contaram com a assessoria de órgãos de assistência técnica e de extensão rural, facilitando o acesso por mediarem as relações das mulheres com as agências bancários, esclarecendo os documentos necessários para a solicitação do crédito. Este cenário mostrou-se fundamental para a trajetória das entrevistadas.
Considerações Finais
Este artigo tem como propósito analisar o processo de acesso ao crédito rural por mulheres Território da Cidadania Médio Alto Uruguai – RS. O acesso ao Pronaf apresenta resultados relevantes para o grupo de entrevistadas que estava a frente da tomada do recurso, embora tenham aplicado na atividade já desenvolvida na propriedade, percebe-se que o acesso das mulheres a linhas de crédito rural as tornou mais seguras quanto à gestão da propriedade, encorajando-as a tomar frente de decisões importantes, tanto no âmbito da gerência doméstica, como produtiva e econômica. Neste caso, o crédito rural passa ser a ser visto com um importante aliado para amenizar as diferenças entre homens e mulheres no referente à gestão e trabalho das propriedades analisadas, além de relatarem mais confiança para falar com outras pessoas, inclusive homens, sobre assuntos relativos à produção agropecuária.
Tais resultados também apontam que o ato de acessar o crédito, quando exercido por mulheres, tem o objetivo maior de melhorar a qualidade de vida da família, por meio do aumento da produção e, consequente, da renda do núcleo familiar. Ainda assim, a mulher quando acessa o crédito objetiva sempre beneficiar um membro da família e/ou o coletivo em si. Por isso, a totalidade das mulheres estudadas que tomam crédito para melhorar a qualidade de vida no meio rural encontra-se casadas e com filhos, enquanto aquelas que são solteiras e não tem filhos possuem como renda principal a atividade não agrícola e as atividades no campo são complemento de renda.
No entanto, é preciso ponderar que os achados desta pesquisa sugerem outros questionamentos, podendo ser tema de outros trabalhos com vistas a compreender melhor a relação entre politicas públicas de crédito e as mulheres. Um dos principais questionamentos reside no fato das mulheres tomarem o crédito Pronaf para aplicar em atividades já exercidas nas propriedades, como é o caso da produção leiteira, ou seja, já apresentam um domínio do sistema de produção. Outra questão que pode ser levantada, é que elas investem em algo já conhecido pelo medo do novo, de investir em algo que não possa gerar renda ou que não tem mercado para posterior escoamento da produção e, com isso, não ter retorno econômico para saldar o investimento realizado. Ainda, um percentual de entrevistadas afirma não sabe o destino no crédito retirado em seu nome, comprovando sua condição de intermediária do recurso, sendo muitas vezes uma operação realizada pelos maridos ou cônjuges restando a elas apenas o empréstimo do cadastro de pessoa física, conforme já mostraram os estudos de Hernandez (2009) e Zorzi (2008).
Ademais, o acesso das mulheres rurais a políticas de crédito no Território da Cidadania do Médio e Alto Uruguai indica poucos registros de acesso, visto que a totalidade de mulheres que tomaram crédito nos últimos cincos anos é apenas 14 mulheres em um cenário com mais de 34 municípios e com 18.785estabelecimentos agropecuários de agricultura familiar, constatando que há vasto percurso a ser percorrido para que mais mulheres tenham autonomia e acessem o crédito para atividades que almejem. É preciso ampliar estudos focados na análise dos efeitos do crédito e das políticas públicas para as mulheres quanto a autonomia, reconhecimento e empoderamento.
Referências
ABRAMOVAY, R. et al. Juventude e agricultura familiar: desafios dos novos padrões sucessórios. Brasília, DF: Unesco, 1998.
AQUINO, J.R.; SCHNEIDER, S. O Pronaf e o desenvolvimento rural brasileiro: avanços, contradições e desafios para o futuro. In.: GRISA, Catia; SCHNEIDER, Sergio (Org.) Políticas Públicas de Desenvolvimento Rural no Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2015.
BANCO CENTRAL DO BRASIL. Matriz de Dados do Crédito Rural. Dados Abertos. 2020.
BOSCARDIN, M. Efeitos do crédito rural sobre a sucessão geracional de jovens mulheres. Trabalho de Conclusão de Curso em Zootecnia, UFSM, 2013.
BOURDIEU, P. Le bal des célibataires. Crise de la societé paysanne em Béarn. Paris: Seuil, 2002.
BRASIL. Decreto nº 9.064, de 31 de maio de 2017. Dispõe sobre a Unidade Familiar de Produção Agrária, institui o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar e regulamenta a Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e empreendimentos familiares rurais. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Secretaria Geral. Brasília: Casa Civil, 2017.
BRASIL. Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006. Estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. Brasília: Casa Civil, 2017.
BRASIL. Ministério Da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Secretaria da agricultura familiar e cooperativismo. Pronaf completa 22 anos com números importantes para a história do Programa. 2017.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA. Secretaria de Desenvolvimento Territorial – SDT. Perfil Territorial: Médio Alto Uruguai – RS. 2015.
BRASIL. Ministério Do Desenvolvimento Agrário. Cartilha de crédito para trabalhadoras rurais. Mais alimentos. Plano Safra para a agricultura familiar 2009/2010. 2010.
BRUMER, A. Gênero e agricultura: a situação da mulher na agricultura do Rio Grande do Sul. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 12, n. 1, p. 205-227, 2004.
BRUMER, A.; SPANEVELLO, R.M. Jovens agricultores da Região Sul do Brasil. Relatório de Pesquisa. Porto Alegre e Chapecó: UFRGS e FetrafSul/CUT, 2008.
BRUMER, A. Os jovens e a reprodução geracional na agricultura familiar. In: MENEZES, Maria Aparecida. de; STROPASOLAS, Valmir. Luiz; BARCELLOS, Sergio. Botton. (Org.). Juventude rural e políticas públicas no Brasil. n. 1. Brasília, DF: Presidência da República, 2014. p. 215-233.
CAMARANO, A. A.; ABRAMOVAY, R. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama dos últimos 50 anos. Rio de Janeiro: IPEA, 1999.
CAUMO, A.J. et al. Distribuição espacial das trabalhadoras rurais na agricultura familiar no nordeste do Brasil. Retratos de Assentamentos, v. 18, n. 1, 2015.
CRUZ, F.T.; MATTE, A.; SCHNEIDER, S. Produção, consumo e abastecimento de alimentos: desafios e novas estratégias. Porto Alegre: Editora da UFRGS (Série Estudos Rurais), 2016.
DESLANDES, S. F. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Suely Ferreira Deslandes, Otavio Cruz Neto, Romeu Gomes, Maria Cecília de Souza Minayo (Org).- Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
FAO. Food and agriculture organization of the United Nation. Agricultura y Desarollo Rural. manual sobre Género en Agricultura. 968 p.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 3. ed. São Paulo: Altas. 1991.158 p
HEREDIA, B. M. A.; CINTRÃO, R. P. Gênero e acesso a políticas públicas no meio rural brasileiro. NERA: Estudos, pesquisas e projetos de reforma agrária. ISSN 1806 – 6755. Acesso em 06 jul. 2019.
HERNÁNDEZ, C.O. Política de crédito rural com perspectiva de gênero: um meio de “empoderamento” para as mulheres rurais? Tese (Doutorado em Desenvolvimento Rural). Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Rural. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
HIRATA, H.; KERGOAT, D. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, Sept./Dec. 2007.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Agropecuário 2017. Plataforma Sidra. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.
KURTEGE SEFER, B. A gender- and class-sensitive explanatory model for rural women entrepreneurship in Turkey. International Journal of Gender and Entrepreneurship, Bingley, Reino Unido, Feb.2020. doi.org/10.1108/IJGE-07-2019-0113
LOPES, A. L.; BUTTO. A. Mulheres na reforma agrária – a experiência recente no Brasil. Brasília: MDA, 2008. 240p.; (Nead Debate, 14).
MATTE, A. Mulheres rurais e o acesso a programas de crédito rural – o caso do Pronaf Mulher. Trabalho de Conclusão de Curso em Zootecnia, Universidade Federal de Santa Maria, Palmeira das Missões, 2010.
NIEDERLE, P. A. et al. A pesquisa sobre agricultura familiar no Brasil - aprendizagens, esquecimentos e novidades. Rev. Econ. Sociol. Rural, 2014, vol.52, suppl.1, pp. 9-24.
PELEGRINI, G.; SILVEIRA, P.P.; HILLESHEIM, L.P. Rede escola de governo: especialização em desenvolvimento rural e agricultura familiar. Frederico Westphalen: Editora URI – Frederico West, 2014.
PLOEG, J.D. Camponeses e a arte da agricultura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016.
SCHNEIDER, S. Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2015. p. 571-594.
SCHNEIDER, S. Situando o desenvolvimento rural no Brasil: o contexto e as questões em debate. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 30, n. 3, jul./set. 2010.
SCHNEIDER, S. Teoria Social, Agricultura familiar e Pluriatividade. RBCS, RS, v. 18 n. 51, 2003.
SECRETARIA DE PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. Atlas socioeconômico do Rio Grande do Sul: Leite. 2019, 4 ed.
SILIPRANDI, E.; CINTRÃO, R. Mulheres rurais e políticas públicas no Brasil: abrindo espaços para o seu reconhecimento como cidadãs. In: GRISA, C.; SCHNEIDER, S. Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2015.
SILVA, M.R. et al. Mulheres do Sertão: avaliação dos impactos do Pronaf Mulher para a autonomia feminina do Semiárido Cearense. In: CHACON, S.S.; NASCIMENTO, V.S.; LIMA JÚNIOR; J.F. (Org.). Participação, Protagonismo Feminino e Convivência com o Semiárido. 1 ed. Rio de Janeiro: Garamond, IABS, 2015. p. 11-34.
SOUZA, L. P. de; GUEDES, D. R. A desigual divisão sexual do trabalho: um olhar sobre a última década. Estudos Avançados [online]. 2016, vol.30, n.87, pp.123-139. ISSN 0103-4014.
SPANEVELLO, R. M. et al. Os impasses no destino do patrimônio entre agricultores familiares sem sucessores no Rio Grande do Sul. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 52., 2014, Fortaleza. Anais... Fortaleza: SOBER, 2014.
SPANEVELLO, R. M.; MATTE, A.; BOSCARDIN, M. Crédito rural na perspectiva das mulheres trabalhadoras rurais da agricultura familiar: uma análise do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Polis, Santiago/Chile, v. 44, p. 1-15, out. 2016.
WANDERLEY, M.Z. Raízes históricas do campesinato brasileiro In: TEDESCO, J. C. (Org.). Agricultura familiar: realidades e perspectivas. 3. ed. Passo Fundo: Editora da UPF, 2001. p. 21-55.