Artigo
Entre seduções e consumos - a publicidade de cosmético no Brasil de 1968
Between seduction and consumption - cosmetic advertising in 1968 Brazil
Entre seduções e consumos - a publicidade de cosmético no Brasil de 1968
Anos 90, vol. 25, núm. 47, pp. 339-365, 2018
Universidade Federal do Rio Grande Sul, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Recepção: 26 Março 2017
Aprovação: 20 Outubro 2017
Resumo: Resumo: Análise de anúncio de batons Coty, com as devidas ferramentas metodológicas e teóricas, publicado na revista Manchete, em 1968. O estudo se propõe pensar como, no discurso visual e textual, os sentidos de feminilidade foram propostos consonantes à modernização das condições do uso da sexualidade e o direito adquirido de seduzir e ter iniciativa no campo afetivo, discutindo todo o universo discursivo constituído pelo exemplar analisado.
Palavras-chave: Feminino, Publicidade, Cosmética.
Abstract: Abstract: Analysis lipsticks Coty, with the appropriate methodological and theoretical tools, published in the magazine Manchete in 1968. The study aims to think in visual and textual discourse, the senses of femininity were proposed consonants to the modernization of the conditions the use of sexuality and the acquired right to seduce and take initiative in the affective field, discussing all the discursive universe of the analyzed specimen.
Keywords: Feminine, Advertising, Cosmetics.
Introdução
O ano de 1968 é emblemático de muitas reviravoltas, como a contestação juvenil nas ruas de Paris e o endurecimento da ditadura militar no Brasil. Todavia, neste texto, essa marca temporal serve de ponto de partida para pensar outras coisas. Discute-se um anúncio, a princípio apenas mais um da indústria cosmética, que circulava numa revista bastante popular ao leitor brasileiro da época - Manchete. Este texto apresenta uma pequena parcela de um estudo maior, que contempla a análise das publicidades de cosméticos no século XX, considerando-as como mediadoras entre os padrões comportamentais, instituídos como desejados pela cultura geral, e a sua aquisição, que ocorre via consumo direto ou indireto do produto anunciado. É oportuno salientar que o consumo é entendido, conforme as palavras de Baudrillard:
[...] o consumo é um modo ativo de relação (não apenas com os objetos, mas com a coletividade e com o mundo), um modo de atividade sistemática e de resposta global no qual se funda todo nosso sistema cultural. (BAUDRILLARD, 1995, p. 22)
Assim pressuposto, o objetivo do presente texto, nas restritas possibilidades de sua extensão, é analisar como, no discurso visual e textual, a feminilidade, ou lugar social do feminino, foi estabelecida consonante à modernização das condições do uso da sexualidade e o direito adquirido de seduzir e ter iniciativa no campo afetivo, a partir da leitura de um anúncio de batons da linha Metal Touch, da Coty, e seu posicionamento na geração de sentidos no suporte em análise - a revista Manchete, n. 833.
Tal abordagem justifica-se no campo historiográfico, mesmo utilizando aportes da linguística e dos estudos culturais, por se considerar que o objeto analisado é indagado a partir de sua condição de agente social de um período e espaço, pela qual tanto expressa como manipula valores constituídos socialmente, potencializando seu alcance social e cultural e, por isso, histórico. Assim, por meio de um anúncio singular se produz, metodologicamente, um inventário plural de uma sociedade em que o ver e ler, tanto hoje em dia como em outrora, agencia os sujeitos sociais e os justifica em seus fazeres históricos.
Metodologicamente, foi operada a leitura e análise da imagem, usando das ferramentas da semiologia, apontando as composições gráficas e textuais dos anúncios (elementos gráficos, escritos, posição em relação ao suporte, cores e texturas), conforme as orientações de Martine Joly (1996) e Jean Pirotte (2002), para, posteriormente, analisar a retórica da conotação, levando em conta as teses de Roland Barthes (1997). A retórica de conotação é entendida como o conjunto posto à leitura em suas relações de intericonicidade e intertextualidade, de acordo com as definições de Jean Pirotte (2002) e balizadas pelo pensamento de Jean-Jacques Courtine (2013). Por fim, identificando a poética do ter, proposta por George Péninou (1972), evidencia-se a dimensão histórica da análise de um anúncio publicitário.
Com um pouco mais de precisão, pode-se esclarecer em que cada teórico adotado contribui neste trabalho. Em Roland Barthes, o entendimento de conotação aplicada à fotografia foi desenvolvido junto aos estudos da semiologia da imagem, nos anos 1960, o que deu forma ao modelo analítico utilizado neste texto, que propõe explicar a significação da imagem fotográfica no contexto publicitário em três níveis: linguístico, denotativo e conotativo. Como explicitado nas últimas páginas, não apenas o que está dito - mensagem linguística -, mas onde ele se encontra na composição publicitária junto às fotografias do produto e das modelos que o utilizam, é possível alcançar a mensagem denotativa do anúncio. Daí, considerando o suporte da revista como um todo, que interagiu com os leitores do anúncio em particular e que, por sua vez, expressam o contexto cultural e ideológico da época em estudo, se alcança a mensagem conotativa da imagem. Mediada por este último nível de produção de sentido, possível de ser mapeado pelas intertextualidades estabelecidas entre anúncios próximos à publicidade do batom Coty, e pela intericonicidade com as inúmeras imagens do exemplar da Manchete analisado, é então possível desprender a poética do ter proposta/imposta. Essa poética, apesar de em seu nível denotativo evidenciar a liberdade sexual e autonomia do feminino, em sua condição conotativa demonstra que o feminino deveria ainda continuar num lugar de submissão sexual e assegurar sua realização como sujeito por meio da admiração masculina.
Colaborando com esta metodologia, Martine Joly e Jean Pirotte contribuem com dois conceitos importantes: o da dimensão técnica do anúncio e o de intericonicidade. Diferentemente de seus antecessores, Pirotte (2002) enfatizou a importância do suporte físico e circunstancial de aparição da imagem, o que contempla o denominado “nível técnico” da linguagem. Nesse nível são observados elementos como a natureza do suporte; procedimentos gráficos utilizados; cores; qualidade de produção; tipo de moldura etc., defendendo que “[...] ao lado das múltiplas interpretações, variáveis e dependentes mais da subjetividade, a imagem oferece um conteúdo objetivo, estável, que ela trata de inventariar [...]” (PIROTTE, 2002, p. 24), logo, as técnicas e os materiais utilizados condicionam as formas e os conteúdos, implicando as possibilidades de significação e interpretação. Martine Joly alerta, por sua vez, explorando o conceito da mensagem linguística de Barthes e as proposições de Peirce, que o lócus discursivo deve ser investigado como composição arbitrária de direcionamento da interpretação, e, por isso, as condições de sua aparição são tão persuasivas quanto seu conteúdo formal.
Pirotte também nos fornece o conceito de intericonicidade que aqui se aplica, definido a partir dos conceitos de intertextualidade provindos da linguística de Julia Kristeva. Da mesma maneira que se concebe que a palavra é diálogo com outro e consigo mesmo, as imagens são também dialógicas. Assim, afirma Pirotte:
Como todo texto, toda imagem se inscreve numa sequência de imagens, trazidas de um contexto sociocultural, toda imagem é composição que se baseia sobre aquisições anteriores. A noção de intericonicidade se religa facilmente a essa intertextualidade para explorar as relações manifestas ou secretas ligadas às imagens. (PIROTTE, 2002, p. 21)
E concluindo sua conceituação, ele diz: “Toda imagem deve ser olhada à luz da memória iconográfica” (PIROTTE, 2002, p. 21).
Aprofundando o conceito inicial, Jean-Jacques Courtine afirma que “[...] toda imagem se inscreve numa cultura visual, e esta cultura supõe a existência junto ao indivíduo de uma memória visual, de uma memória das imagens onde toda memória tem um eco” (COURTINE, 2013, p. 43). Essa ideia tem fundamento dentro da noção de interdiscursos de Pêcheux, que nos ensina dizendo:
[...] o interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria prima na qual o sujeito se constitui como sujeito falante (PECHEUX, 1997, p. 167).
Logo, admite-se que toda imagem tenha inscrição numa cultura visual, e, por conta dessa sua origem, tanto as imagens como os objetos e até os comportamentos devem ser tratados a partir de uma extensa rede de significações. Tal experiência social produz nos sujeitos memórias sociais que os alfabetizam, entre outras coisas, para ler e compreender o mundo por imagens.
A “poética do ter” de Georges Péninou constitui-se numa dimensão existente no processo de apreensão do objeto publicitário. Nesse processo, ocorre uma operação de transferência do nível de conformidade para o nível de conformação, ou seja: “[...] a passagem da pragmática à poética, da prática à palavra, da função ao mito, do reflexo do ser ao desejo do ter” (PENINOU, 1972, p. 200). Sobretudo, consiste na transposição de um valor abstrato (mensagem de conformidade) para aquilo que será seu significante publicitário (informação de sua conformação). Para isso, o receptor deverá realizar a fruição receptiva na compreensão fruidora de essência retórica. O valor linguístico dos termos é conservado funcionalmente, ao mesmo tempo que é também convertido em abstração conceitual da propriedade do produto, revestindo o sentido absorvido numa constatação sedutora da mensagem.
Esse processo inaugura um espaço retórico, uma espécie de mediação entre a pragmática do ser (o objeto) e a poética do ter (o sujeito), transformando uma informação em [in]formação publicitária - na qual essa mediação transita na constante tensão entre a conformidade dada pela verdade do objeto e a conformação dada pelas exigências do desejo.
Passar da letra (processo verbal da conformidade) à figura (invenção de uma conformação) equivale a passar do entendimento à sensibilidade, de uma afirmação motivada pelas propriedades de um bem a uma afirmação motivada por um consumidor, do caráter objetivo ao desejo subjetivo, e, transformação não menos importante, do valor anônimo à apropriação privada do valor. (PÉNINOU, 1972, p. 200)
Portanto, considera-se que o trabalho investigativo do historiador a partir de imagens deve, como pressuposto básico, considerar o processo gerativo de sentidos que a imagem proporcionou no contexto de sua aparição e apreensão pelo leitor. Para tal, a análise da imagem por si só é sempre precária. Torna-se necessário compreender o entorno da imagem e o conjunto de informações que circulavam ao lado dela.
Essas discussões e esses aportes teóricos, como as próprias datas mencionadas anteriormente, não são recentes, contudo continuam vibrantes num contexto em que as imagens se volatilizam em determinadas plataformas e circulam com a velocidade de uma sociedade em rede. Todavia, cabe ressaltar que Régis Debray (1993) e Guy Debord (1967; 1997), infinitas vezes citados em textos com temáticas semelhantes a essa, produziram discussões relacionadas à circulação do anúncio publicitário em estudo. Os autores franceses consagrados alertaram, à sua época, de que o mundo midiático, que se expandia velozmente, poderia engolir consciências e condicionar formas de pensar o mundo. Mais recentemente, autores como George Didi-Huberman (1998; 2008; 2014) fazem contribuições com menor teor de denúncia diante de uma sociedade assaltada por imagens, e enfatizam um olhar mais complexo diante da produção, mas especialmente da compreensão da imagem, que não se restringe ao século XX em diante, como deixam claro os estudos de Jean-Claude Schmitt (2007) e, estes, como muitos outros autores contemporâneos (DAGOGNET, 1986; FABRIS, 1998), deixam sempre em aberto as possibilidades de compreender as imagens como agentes sociais, categoria base deste texto.
Virando as páginas
A Revista Manchete era produzida pelas Empresas Bloch, tendo como presidente Adolpho Block. Ela surgiu em 1952, inspirada no semanário francês Paris-Match, donde o seu nome foi criado. Block era, inicialmente, proprietário de gráfica e, na medida em que seu parque gráfico cresceu, passou a sonhar em imprimir sua própria revista, conforme suas palavras:
Sempre sonhara ter uma revista semanal que não dependesse das encomendas. Tínhamos capacidade para imprimir 200 mil exemplares. Os acontecimentos eram históricos e eu queria participar deles. O mercado de revistas, no Brasil, era liderado pelo O Cruzeiro, dos Diários Associados. (BARBOSA, 2010, s/p)
O grupo Block, além do ramo editorial, era composto por diversos segmentos, como as Tintas Block Color S.A., que se ajudavam mutuamente. Além disso, as relações de amizade e apoio político com Juscelino Kubitschek favoreceram a expansão de seus negócios rapidamente, durante os anos sessenta. Posteriormente, afeito às relações de boa vizinhança, conseguiu expandir o grupo editorial publicando outras revistas, como Pais & Filhos, Ele Ela, Mulher de Hoje, Conecta, Manchete Rural (BARBOSA, 2010, s/p).
A Manchete colocou-se desde o início como concorrente da Revista O Cruzeiro, sendo ambas publicadas na cidade do Rio de Janeiro (BARBOSA, 2001). Assim como sua concorrente, a Manchete recorreu à linguagem do fotojornalismo, incluindo em todos os números fotorreportagens bem elaboradas. O uso das cores e o grande formato eram diferenciais positivos em relação às revistas mais antigas e modestas.
Segundo Andrade e Cardoso:
Não por coincidência, o processo de decadência de O Cruzeiro se iniciou quando a Manchete, em meados dessa década, contratou jornalistas que se demitiram da revista concorrente e aprimorou a qualidade gráfica para ficar cada vez mais colorida, atraente e fácil de ler. Eram as condições exigidas para manter e conquistar mais leitores (ANDRADE; CARDOSO, 2001, p. 247).
Pode-se considerar a Manchete como uma revista moderna, que professava com entusiasmo o progresso e os novos hábitos instituídos na sociedade brasileira da segunda metade do século XX, e que, segundo Mello e Novais, estava marcada pela crença de que “[...] faltava dar uns poucos passos para finalmente nos tornarmos uma nação moderna” (2000, p. 560). Essa lógica social, constituída em ideologia, foi reforçada pelo Regime Militar e, conforme as ideias dos mesmos autores, fez com que “[...] a visão de progresso [fosse] assumindo a nova forma de uma crença na modernização, isto é, de nosso acesso iminente ao ‘Primeiro Mundo” (MELLO; NOVAIS, 2000, p. 560).
O exemplar em análise é o n. 833, Ano 15, datado de seis de abril de 1968. O formato da revista é grande, 26 cm X 35 cm, usando papel jornal de qualidade superior, com tipografia em preto e branco e chamadas em cores, especialmente uso do vermelho nos títulos. Há sete reportagens que trazem fotografias em cores, estando entre elas as anunciadas na capa e outras quatro que devem ter recebido apoio externo para a publicação.
Em sua capa, vê-se uma mulher deitada com os braços estendidos segurando um bebê nu, que sorri para a câmera. A mulher jovem, bem maquiada e sorridente, está deitada sobre lençóis de cetim com renda de algodão e sem camisola ou outra roupa, e sugere ser uma parturiente no leito hospitalar. Essa imagem relaciona-se com o tema central do exemplar: “A emocionante aventura do primeiro filho”. Ainda nessa capa de fundo azul, duas outras chamadas são apresentadas, nas seguintes cores e proporções de tipos: “em cores TODA A BELEZA DA ARGENTINA” e “SALÃO DE GENEBRA 68 TODOS OS AUTOMÓVEIS DO MUNDO”.
Tal como escrito anteriormente, a diferença dos tipos e o uso de cores distintas destacavam o que havia de mais atraente para o leitor apreciar na revista, contemplando, assim, diferentes públicos: a jovem que iria se aventurar na maternidade; o casal que escolhia seu futuro destino turístico e os homens que gostariam de estar informados sobre o que de mais inovador acontecia no mundo automobilístico. Enfim, interesses de um grupo social de poder aquisitivo médio para alto e de vida cultural sintonizada com a modernidade de sua época.
No próximo gesto de leitura, o leitor, ultrapassando a capa, via na contracapa o anúncio da empresa Supergasbras, que dizia: “Sùbitamente (sic) você passou a ter uma frota de centenas de veículos para levar gás à sua casa”, acima de uma foto aérea de um grande pátio, onde dezenas de caminhões da cor laranja, com carrocerias cheias de botijões de gás, estavam estacionados. Ainda, abaixo, em dez linhas, era explicada a união de duas empresas fornecedoras de gás - Gasbras e Supergaz.
Na primeira folha propriamente dita, encontra-se “Conversa com o leitor”, assinada por Justino Martins. Num breve editorial, Justino destaca a ação dos repórteres Durval Ferreira e Armando Bernardes, que haviam percorrido a Argentina em 32 dias, de norte a sul e de leste a oeste, cobrindo quinze mil quilômetros, para produzir uma das reportagens centrais do exemplar, que tinha como objetivo “[...] dar uma visão plástica do segundo país mais importante da América Latina”. Acima do texto de quatorze linhas, o leitor poderia apreciar seis fotografias feitas na Argentina, com seus diferentes pontos geográficos, econômicos, culturais e esportistas.1 O editor-chefe finaliza o texto recomendando o artigo “Fleming, uma vida contra a morte”.
Justino, gaúcho e cunhado de Érico Veríssimo, começou sua carreira na Revista do Globo, de onde partiu para trabalhar em Paris como correspondente da Revista Manchete (ALMEIDA, 2007, s/p). Como diretor da revista, foi responsável por dar o estilo que a marcava: muitas fotografias coloridas, em grande formato, com textos leves e rápidos. Era considerado pelos colegas de redação a alma e o motor da revista tanto quanto das demais publicações da Bloch, e esse era o peso de suas considerações ao assinar “Conversa com o leitor”.
Além dessa “Conversa com o leitor”, ainda encontra-se na primeira página o “Expediente”; no sopé e no alto, o local, a data e a logo da revista.
Modernidade, progresso industrial e comercial, aventura, locais inóspitos, imagens inéditas são as primeiras impressões e experiências sensoriais com as quais os leitores se confrontam adentrando a revista.
Após essa primeira folha, segue-se a revista com as matérias anunciadas na capa e em muitas outras. O sumário encontra-se na página 163, ao lado esquerdo da sessão “O leitor em Manchete”, que traz algumas cartas enviadas pelos leitores à redação”, e onde se encontra anúncio de “4 sensacionais lançamentos das Edições Bloch”.
A primeira reportagem é a principal estampada na capa, com o título “Uma criança vai nascer O MAIS BELO DIA”, sendo a reportagem assinada por Marisa Raja Gabaglia, e as fotografias de Richard Sasso e Paulo Scheuenstuhl. Na página da esquerda, avançando sobre a folha direita, uma jovem, bem maquiada, de cabelos pretos, longos e lisos, ajeitados com um pequeno laço branco no alto da cabeleira, trajando um vestido plissado bem curto, estampado com flores, nos tons rosa pink, laranja e verde, arruma a mala sobre uma cama de casal de sólida madeira e arranjada com uma colcha rosa-claro decorada com passamanaria branca. Acima da cama, encontra-se uma representação da crucificação de Cristo, tendo aos pés Maria e dois apóstolos, em metal. Os tons de rosa e azul predominam na cena, e na mão direita da fotografada está registrada a presença da aliança matrimonial, apesar de não ser nessa mão que, tradicionalmente, a aliança é colocada.
Na continuação dessa composição fotográfica e editorial, vê-se a mesma jovem, com o mesmo traje, agora com óculos escuros e mostrando as pernas, trazendo a aliança na mão convencional, acompanhada de uma senhora que segura a mala anterior fechada. Elas estão na frente de uma casa de aspecto requintado, descendo alguns degraus ao lado de um canteiro de folhagens. A senhora, cujos ares correspondem ao da mãe e futura avó, olha com atenção a filha, que lança um olhar ao longe numa expressão de certa preocupação. O texto inicia-se com o uso do sujeito indeterminado, para, nas próximas folhas, adquirir a primeira pessoa do singular, em que a nova mamãe narra as experiências de sua maternidade desde o primeiro momento, em que se soube grávida, até o parto. Fotografias seguem-se numa narrativa própria de como foi a instalação no hospital, os procedimentos médicos, o parto e o bebê já no berçário, e, depois, finaliza com a mãe tendo o bebê ao colo, com sua sombra azul piscina expressiva, seus cílios postiços, rouge e batom impecáveis. Nessa composição nada espontânea, a maternidade combina-se perfeitamente com juventude e beleza, em que maquiagem e penteado irretocáveis garantem o efeito de sentido desejado.
Após oito páginas e dezenas de fotografias, a reportagem é encerrada e uma nova se inicia: “Quatro anos depois”. Texto de Murilo Melo Filho e fotografias de Jáder Neves, que trata dos quatro anos do regime militar implantado no Brasil. Começa dizendo que “nesta semana, Jango era deposto e o Brasil mudava de mão”, para continuar, no parágrafo principal, narrando uma suposta prova de cunho comunista, de um professor primário, encontrada por um Coronel e examinada com assombro. Nas páginas seguintes, o texto continua, e, no alto, a chamada ostenta: “quatro anos depois, o esquema militar do governo oferece-lhe segurança e tranqüilidade” (sic). Essa matéria finaliza e se seguem outras: “MCARTHY O CANDIDATO DOS JOVENS”; “JACKIE FIM-DE-SEMANA NO MÉXICO”; “O AZAR DE CARY GRANT”; “WESTMORELAND o repouso do guerreiro”; “VIVARÁ EM NOITE DE GALA”; “CAMÕES OS LUSÍADAS TEM QUATRO SÉCULOS”; “BASQUETE O PRIMEIRO PULO PARA O MÉXICO”; “ARMANDO MARQUES UM INSTANTE DE MAESTRO”, e, na página 34, a primeira publicidade que se encontra no corpo da revista, do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social do Pará - IDESP -, na página ao lado, um anúncio da “Loção vitaminada Pantene”.
A revista segue em suas 174 páginas com reportagens das mais diversas categorias, destinadas a públicos distintos, mas com uma linguagem sempre homogênea, marcada pela jovialidade, pelo entusiasmo, certo quê de fofoca e muita atualidade. A mais extensa das matérias é a que se ocupa de revelar a Argentina, com 21 páginas ao total.
Nenhuma reportagem trata de fatos relacionados à violência urbana, aos problemas de ordem social ou à política. Quando há algum assunto relacionado à política, este não é tratado de forma polêmica, mas sim informativa (Eleições nos USA, “Angola vida nova” e “Blake o espião fantasma”, ou a história de heroísmo de um comandante norte-americano no Vietnã). As matérias alternam-se entre vida das estrelas (Andrey Hepburn, Cary Grant, Jackie Kennedy, Sofia Loren, Vicky), eventos midiáticos e culturais (Apresentação de Elis Regina em Paris, abertura de um novo restaurante-boate no Rio de Janeiro, Salão do automóvel de Genebra); cinema, teatro e shows no Brasil (Dercy - Agente secreto); assuntos gerais (Fleming, Convento das Carmelitas de Lisieux); um pouco de esportes (Armando Marques, equipe nacional de basquete) e curiosidades em geral.
A revista é encerrada com reportagem em cores2 sobre a alta-costura francesa. Com texto de Marisa Raja Gabaglia e fotografias de Sheibe, a matéria intitula-se “Paris obras-primas da elegância e do luxo”. Possui seis páginas, com poucos textos, cujas linhas referenciam a alta-costura e desdenham do prêt-à-porter recém-lançado na capital da moda mundial: “Os grandes costureiros continuam sendo os criadores da verdadeira moda, copiada pelo ‘prêt-à-porter” (p. 170). Mostra sete modelos lançados em Paris, desde Nina Ricci, a Lanvin e Givenchy apontados como mais clássicos, a Saint-Laurent, apresentado como “o mais saudosista dos costureiros”.
A publicidade é bastante reduzida se comparada aos periódicos atuais. São, no total, 32 anúncios, sendo que apenas dois ocupam mais de uma página. Muitos anúncios são de caráter institucional, como a do IDESP, Banco Nacional do Norte S.A. e SUDAM/SUDENE e outros de produtos da própria Revista e seu grupo empresarial. É possível encontrar oito anúncios de produtos ligados à aparência corporal: Pantene, Esmalte Colorama, Batons Coty, Pentes Flamengo, Tergal La Mazelle, Malha Rhodiela, Textil Rhodianyl (Rhodia Ind) e Creme dental Gessy. Desses, apenas quatro são diretamente relacionados à cosmética.
Por meio dessa descrição, ainda que limitada pelas palavras, é possível delimitar o universo de recepção imediata do leitor do suporte em análise. Tendo em vista o conteúdo semântico construído tanto por meio dos elementos visuais como os textuais e, sobretudo, a partir do horizonte de expectativa (JAUSS, 1979; KOSELLECK, 2006) que envolve o contexto da revista, do editor e da “nação” que o recebia, pode-se considerar, portanto, que a revista era destinada à família em geral, sem ser exclusiva de um único gênero, e voltada para os interesses dos grupos sociais urbanos, intelectualizados, de poder aquisitivo relevante e que partilhavam das convicções pautadas pelas ideologias desenvolvimentistas e de direita vigentes no Brasil do final da década de 1960 (BARBOSA, 2001). Nessas páginas, por seus conteúdos e formas discursivas adotadas, é evidente a contradição primordial vivida na sociedade brasileira do período, que se considerava moderna e ao mesmo tempo vivia em uma ditadura militar.
O exemplar apresenta em suas primeiras páginas a maternidade moderna, assegurada pelos avanços da medicina, combinada com a liberdade e a vaidade feminina, enquanto no último artigo exalta a tradição da alta-costura francesa e tudo que ela simboliza em termos de conservadorismo e poder das elites.
Páginas 92 e 93
O anúncio da linha de batons “Metal Touch”, fabricada pela Coty, foi produzido pela Standard Propaganda. É um anúncio em cores que ocupa duas páginas inteiras e se apresenta num papel mais encorpado,3 cujos versos, página 91 e 94, são usados para outros dois anúncios - na página ímpar, das tintas Ypiranga, e, na folha par, dos móveis Lafer, que revendiam os produtos Kelson’s.
A empresa responsável pelo anúncio foi a Standard Propaganda, fundada em 1933, na cidade do Rio de Janeiro, por Cícero Leuenroth, formado em propaganda e administração pela Universidade de Colúmbia. Essa formação acadêmica produziu um diferencial no mercado publicitário brasileiro, pois introduziu modelo operacional com padrões norte-americanos4 (Disponível em: Bloganda.com.br). Esse know-how é visível no layout, no texto, na qualidade gráfica e fotográfica e, principalmente, na abordagem inusitada, que associa um lugar não tradicional para o feminino e a beleza com o produto cosmético, motivo do anúncio.
Nas páginas onde encontra-se o anúncio, o que predomina são três rostos femininos, cujas cabeças estão cobertas por uma textura plástica preta e um foco de luz. São mulheres vestidas com um uniforme de minerador. Os rostos são portadores de uma beleza clássica, com olhos, narizes e lábios em proporções simétricas. Os três rostos são tão semelhantes que chegam a sugerir que poderia se tratar da mesma modelo, fotografada com batons de diferentes tons. Os olhos são castanhos, variando um pouco a tonalidade, indo do verde ao mel. As sobrancelhas muito finas estão redesenhadas com lápis, os olhos são maquiados com tons terrosos e o rímel destaca profundamente os olhares. A pele recebeu base, corretivos e rouge, dando à plástica do rosto naturalidade, porém perfeição, também. Os lábios inferiores são mais volumosos que os superiores e esboçam um sorriso de Monalisa, enfatizando a textura do batom que exibem e deixando bem evidentes as tonalidades, que vão de um laranja mais claro a um mais escuro e, ainda, um outro, que seria de um rosa-claro metálico. Ainda nesses rostos, há de três a quatro manchas de pó de ouro espalhadas.
No topo, da esquerda para a direita, ultrapassando a folha da esquerda, a frase-chamada se encontra, em letras grandes e brancas: “Coty foi buscar a 5 mil metros de profundidade os metais preciosos que estão na sua nova linha de batons: Metal Touch”. Na folha da direita, num tipo bem menor, ainda em branco, segue um texto explicativo-provocativo. No topo à direita desse texto e da folha, outra fotografia estampa seis frascos de batom, em cores diferentes, abertos, em meio a pepitas e pó de ouro. Atrás deles está a lanterna do capacete de minerador. Abaixo dessa foto, uma legenda anuncia outros produtos da mesma marca. No canto direito, mais inferior e com letras minúsculas, encontra-se o nome da empresa publicitária.
Provavelmente, o leitor ou leitora, ao chegar nesse anúncio, via primordialmente os olhares provocativos, olho no olho, das modelos, para depois deslizar seu olhar para o canto esquerdo superior, onde lia a frase de impacto, para, na sequência, correndo o olhar para a direita, apreciar os tipos de tonalidades e, quem sabe, se deter um pouco mais para ler os textos, à esquerda e abaixo dessa fotografia, cujo dourado dos frascos dos batons, reforçado pelo das pepitas de ouro, destacava-a em meio a todo o anúncio. O seu fundo mais escuro do que o da grande imagem também servia de moldura e para dar relevo deste conjunto sobre o outro. Certamente, as mulheres se deteriam em apreciar os novos tons, enquanto os homens, talvez, se tivessem sido captados pelo anúncio, retornariam para apreciar o olhar penetrante e os lábios convidativos das modelos fotografadas.
Neste percurso gerativo de sentido, também importa lembrar o que antecede a leitura do anúncio. Na página 86 iniciava uma matéria: “Candy é o máximo”, cujas fotografias são enviadas pela Cinerama Releasing Co. Portanto, não se tratava de uma reportagem, mas de uma matéria paga pela empresa responsável pela divulgação de um novo filme, cujo título nem é mesmo comentado no texto. O que importava era mostrar uma atriz jovem, loira, de “olhos grandes e abertos, lábios cheios”, seminua em várias fotografias, ao lado de homens a quem teria provocado com sua sedução, firmada numa “diabólica mistura de inocência e pecado, fragilidade e tentação”. Na maior fotografia colorida da matéria, a atriz Ewa Aulin está apenas de botas brancas e uma boina da mesma cor, em frente ao painel de comando de um avião, com os braços abertos, pernas flexionadas e fechadas, tendo os cabelos a tapar os seios e trazendo na fisionomia a dita mistura diabólica. A “encantadora Candy” está em todas as fotografias, como em todas as cenas, conforme a matéria, ao lado de homens ou demonstrando sua irresistível inocência, e, sempre, muito bem maquiada com sua sombra azul, seus cílios negros e sua boca marcada por batons metálicos e tentadores.
Os inversos das folhas do anúncio em análise também são curiosos, pois as tintas Ypiranga poderiam despertar o interesse do público masculino da revista, tendo em vista que pintar paredes é uma ocupação tradicionalmente de homens, porém, esse anúncio destaca muito mais a ideia da decoração do que da pintura, e, logo, se ocupa das mulheres como suas potenciais consumidoras, oferecendo, inclusive, de forma gratuita, o folheto “Cor e decoração” a quem escrevesse para o endereço indicado. A frase principal do anúncio dizia: “Você fala com o pintor. O pintor fala com Ypiranga. Ypiranga fala com as paredes. E todos se entendem”, garantindo, assim, a esse público feminino, que novas cores poderiam ser aplicadas às paredes da casa com harmonia, e tudo ficaria perfeito.
Na página 94, o jogo de estofados em anúncio é de linhas modernas, utilizando uma linha contínua entre encosto e acento, contornos orgânicos, em corvin “opala”. Os pés e a estrutura eram em madeira, réguas finas que se cruzavam em X, com parafusos em metal aparente. O texto principal começava dizendo “imagine isto em seu living”, e terminava com o verbo no imperativo: “Peça também, para ver as moderníssimas cores, Tabaco e Café”. Mais uma vez, eram as mulheres convocadas ao consumo de cores e do moderno, a abandonar a casa com sua antiga decoração, com suas cores “singelas”, não modernas, talvez “cafonas”. E utilizar cores, colorir a vida, fosse nas paredes da casa, nos estofados da sala ou nos lábios. Era um convite que reverberava de um anúncio a outro, para que se pudesse ser moderno. Essas considerações sobre os sentidos dos anúncios são pautadas numa noção de público feminino compilado pelo próprio meio publicitário e não pelos estudos sociológicos, pois, para as técnicas da publicidade, há um grupo focal definido por estilo de vida, linguagem e poder aquisitivo, que supostamente se constitui como leitor ideal (ISER, 1996; PALACIOS, 2006). Segundo Carvalho (1996), a publicidade destina ao público feminino explorar continuadamente a mesma noção: “[...] para ser feliz e bem-sucedida, a mulher precisa estar sempre bela e ser (parecer) jovem” (CARVALHO, 1996, p. 13), fazendo com que os anúncios e campanhas publicitárias dirigidas para esse público sejam centradas no sucesso pessoal, na vaidade e na aparência.
Entre modelos de um feminino que enlouquece os homens e convites de consumos “coloridos”, a Coty trazia de “5 mil metros de profundidade” o que havia de mais novo e interessante para o consumo daquela mulher que poderia ser um pouco Candy ou, ao menos, desejar uma sala mais moderna e colorida para a sua casa. Os novos batons anunciam-se como produtos para uma mulher moderna ao colocar as modelos vestidas de mineradores, sujas de ouro, inseridas num universo de trabalho pesado, masculino, nada bonito, mas que serve perfeitamente para dizer sobre essa inovação da linha Metal Touch. O convite implícito sugeria à leitora que ultrapassasse os muros dos lares e adentrasse ao mundo do trabalho e do masculino, algo reivindicado pelas lutas feministas do mesmo período. Todavia, nesse mesmo campo discursivo, ao assim fazer, elas não poderiam jamais perder a beleza, o dever de seduzir o masculino e de reforçar seu papel social de atentas aos desejos masculinos. Ao contrário, as novas fronteiras devastadas deveriam servir para ainda mais reforçar sua beleza, sua sedução e seu lugar social.
O texto explicativo reforça a impressão sensorial que as imagens desencadeiam. “Dez atrevidos tons metálicos […]. Combinam com você porque a moda exige metal”. As tonalidades não eram apenas diferentes e novas, mas eram também atrevidas como a Candy ou Paco Rabanne, que desde 1967 havia apostado em pastilhas de metal ou plástico para propor vestidos-túnica, curtíssimos, destinados a um público jovem e “atrevido”. Inclusive, o irreverente costureiro, rebatendo as críticas que recebia, disse: “Para trabalhar as mulheres devem vestir roupas cômodas, mas para conquistar um homem, não deve haver limites para o sacrifício” (RABANNE apud ROMIO, 1997, p. 83). E não teria sido esse sacrifício que a Coty poupou às mulheres, indo buscar os metais nas profundezas da terra?
Continuando, o texto afirma na sexta linha: “Elas têm [as cores] aquele mesmo brilho suave e frio de um metal precioso ainda na sua forma mais selvagem. Ponha ouro, ponha brilho metálico nos seus lábios, você sabe que os homens sempre ficaram malucos por causa disso”. A sensualidade, a “mistura diabólica” de Candy, também se encontra nessas entrelinhas tanto quanto a de Sophia Loren, estampada na página 122 e difundida em diversos filmes,5 nos quais seus personagens caracterizam a sedução suave e fria, quase selvagem, que colocam homens malucos, como malucos ficavam os personagens do filme publicizado.
As modelos com seus olhares diretos ao leitor, cujas cabeças estão um pouco inclinadas para baixo, o que força seu olhar a estar ainda mais aberto e intenso, combinados com seu sorriso sutil, misto de seriedade e provocação, promulgam uma expressão de mulher moderna que, arriscando-se em minas ou nas aventuras amorosas, temperando suavidade com frieza e sedução com atrevimento, colocam-se abertas à experimentação do novo, do colorido, do intenso e inusitado que a revista Manchete, com suas diferentes reportagens e matérias, coloca em pauta para o ano de 1968 como expressão do moderno. Todavia, essa modernidade feminina é também contradição. A liberdade ou ousadia feminina expressada reforça, por elementos icônicos como esse olhar que se inclina para baixo para expressar maior sedução, o papel social de submissão feminina aos desejos masculinos.
Dessa forma, a feminilidade que está proposta como ideal começa a ser apresentada na capa da revista, em que uma jovem bonita se aventura na experiência da maternidade, a qual é consagrada com alegria e beleza porque acompanhada de conhecimento e informação, desfazendo-se dos velhos tabus e preconceitos do passado. Inclusive, é uma aventura particular, individual, pois o marido e pai daquele suposto bebê não aparece como personagem de importância, apenas a figura masculina do médico, diga-se, da ciência, e a beleza, que nunca se deveria abrir mão, mesmo entre a dor e a angústia, são enfatizadas. Logo, novamente, o papel social da mulher é admitido como moderno e livre dos cânones do passado apenas no universo da aparência, já que a parturiente reforça, nas frases grifadas ao final e com sua suposta felicidade estampada na beleza do seu rosto sorridente, que a maternidade seria ainda o momento mais importante da vida feminina, enquanto sutis elementos, como a aliança, a cama do casal em sólida madeira e a própria representação de Cristo, remete às condições sociais nas quais essa maternidade feliz se realizaria plenamente.
Algumas palavras para finalizar
Portanto, quando se trata de discursos compostos a partir de recursos visuais e textuais ou mesmo de apenas textos, o que se tem diante de si é uma possibilidade de interpretação, não uma verdade taxativa que reduz as outras interpretações possíveis ou mesmo a total invisibilidade do escrito ou mostrado.
Considerando os conteúdos visuais e textuais construídos ao longo desse número da revista Manchete de 1968, observam-se continuidades temáticas, reafirmações de sentido do feminino e de modernidade reverberando de uma página a outra, e é dessa insistência e dessas conexões de sentido que se aponta uma possibilidade de interpretação nestas páginas trabalhadas.
A geração de sentidos que o anúncio e seu entorno propõem, compondo um conjunto discursivo coerente e que se potencializa mutuamente, leva a sopesar que o modelo de feminino idealizado em 1968, difundido nas páginas desse semanário de sucesso nacional, estivesse centrado numa liberdade sexual tão acentuada como a de Candy. Todavia, um equilíbrio se impõe: entre a jovem que aposta em ser mãe, a esposa que adquire o jogo de estofados “opala” e aquela que negocia com pintores a renovação das paredes de sua casa, sem deixar de saber das eleições dos USA ou das opções turísticas da Argentina. O que importava não era tanto se entregar “a um professor, a um jardineiro mexicano, a seu tio, a um médico, a um guru e a uma estátua de Buda” (p. 88), como o filme de Candy narraria, ser famosa como Elis Regina, Audrey Hepburn ou Sophia Loren, cujas vidas noticiadas as tornavam ideais femininos. O que importava era saber, e “você sabe que os homens sempre ficaram malucos por causa disso”: fazer a mistura entre permissão e interdição, inocência e pecado, com aquele sorriso e olhar da mineradora que volta do interior da terra para permanecer a serviço da sedução.
As possibilidades de recepção estão dadas no conjunto dessas páginas e não além delas simplesmente, logo, não se pode julgar que todas as mulheres que viveram os dias de 1968 ou a década que este ano engloba viveram essas ambiguidades. Todavia, como veículo de comunicação de massa, produto mercadológico do setor editorial brasileiro, a revista expressa uma visão de mundo e uma possibilidade de se encontrar nele discursivamente.
A leitura do anúncio, pautada no conjunto dos valores e das imagens que a revista expõe, reafirma pela retórica da conotação que uma mulher, moderna e sintonizada nas mudanças que ocorriam nos modelos de ser e estar no mundo, precisa estampar uma beleza irretocável, atrevida e ousada, mantendo um ar de mistério, como o sorriso velado das modelos expressa e, ainda, sonhar em ser mãe e ter o seu lar decorado nas cores da moda.
Pois, afinal, como Barthes esclarece, a retórica da conotação centra-se na condição que os anúncios possuem de provocar uma significação segunda a partir de uma significação primeira, aquela dada por cada signo componente da imagem em recepção que, por sua vez, no conjunto, se postam como um signo pleno. Isto é possível porque há uma segunda mensagem (conotada), na qual os segundos sentidos derivam da cultura partilhada e das disposições variáveis conforme os leitores. Estruturalmente, essa possibilidade de abordagem do anúncio publicitário é mais importante do que a mensagem literal (denotada), pois “[...] é ela que articula todo o anúncio e, como um eixo, possibilita estabelecer uma relação de equivalência entre a imagem literal e o produto” (BARTHES, 2005, p. 106).
Por outro lado, como afirma Peninou:
Passar da letra (processo verbal da conformidade) à figura (invenção de uma conformação) equivale a passar do entendimento à sensibilidade, de uma afirmação motivada pelas propriedades de um bem a uma afirmação motivada por um consumidor, do caráter objetivo ao desejo subjetivo, e, transformação não menos importante, do valor anônimo à apropriação privada do valor (PENINOU, 1972, p. 200)
Esclarece assim o autor que o valor intrínseco e funcional de um anúncio é sempre conservado, porém, ao mesmo tempo, é também convertido, abandonando a abstração conceitual da propriedade do produto para revestir-se de toda a sedução da figura, o que implica, num processo de mimese e catarse, uma transferência de “conformidade” para “conformação”, ou seja, a transformação do que era uma informação num modelo de ação pautado pelo desejo de ser um outro, aquele que o produto ao ser consumido promete nascer (SANT’ANNA, 2007).
A poética do ter, no anúncio da Coty de 1968, consiste em se fazer bela, atraente, moderna, jovem, irreverente, sempre pronta para um novo desafio, como usar ouro nos lábios, que os produtos da marca garantiam. Consumi-los, a despeito de qualquer outro, permitia que a mulher se colocasse no momento do “agora” e, como ela sabia, ficar pronta para o jogo da sedução em que homens continuavam caçadores, e, cabia a ela, como preza moderna, reinventar com sua aparência as formas de seduzir.
Referências
ALMEIDA, Lívia de. O prédio que virou Manchete. In: Veja - Rio. 27/06/2007. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:5dWwahjxdZ0J:veja.abril.com.br/vejarj/270607/capa.html+%22Justino+Martins%22&cd=17&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-a. Acesso em: 13 jun. 2010.
ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de; CARDOSO, José Leandro Rocha. Aconteceu, virou Manchete. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, n. 41, p. 243-264, 2001.
BARBOSA, Guilherme. Adolpho Block: sua vida. Disponível em: ittp://www.redemanchete.net/artigos/artigo.asp?id=345&aid=&t=Tudo-Sobre-o-AdolphoBloch. Acesso em: 01 jun. 2010.
BARBOSA, Marialva. Desvendando a face do público: 50 anos de imprensa do Rio pelo olhar do leitor. Rio de Janeiro: Faperj, 2001.
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1997.
BARTHES, Roland. Imagem e Moda. Inéditos. vol. 3. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.
BLOGANDA -. Disponível em: http://bloganda.com.br/historia/. Acesso em: 03 jun. 2010.
CARVALHO, Nelly. Publicidade - a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 1996.
COURTINE, Jean Jacques. Foucault e a história da análise do discurso, olhares e objetos (Entrevista concedida a Nilton Milanez). In: FERNANDES, Claudemar Alves; CONTI, Maria Aparecida; MARQUES, Welissom (Org.). Michel Foucault e o discurso: aportes teóricos e metodológicos. Uberlândia: Edufu, 2013.
DAGOGNET, François. La Philosophie de l’Image. Paris: Vrin, 1986.
DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. Tradução de Guilherme Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1993. vol. 3
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998.
ISER, Wolfang. O ato da leitura - uma teoria do efeito estético. vol. 1. São Paulo: Editora 34 , 1996.
JAUSS, Hans. A estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, Luiz Costa (Coord.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 1996.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: História da vida privada no Brasil. vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
PALACIOS, Anamaria da Rocha J. Cultura, consumo e segmentação de público em anúncios de cosméticos. In: Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, v. 3, n. 6, p. 123-135, 2006.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise; HAK, Tony (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. p. 61-162.
PENINOU. Georges. Le message poétique: l’investissement de la forme. Conformité et conformation. In: Intelligence de la publicité. Collection Étude sémiotique. Paris: R. Laffont, 1972.
PIROTTE, Jean. Images et critique historique. In: JADOULE, Jean-Louis. L’histoire au prisme de l’image. vol. 1. L’historien et l’image fixe texte. Louvain: Université Catholique de Louvain, 2002.
ROMIO, Eda. Os estilistas do século 20. São Paulo: Informe Fernando de Barros, 1997.
SANT’ANNA, Mara Rúbia. Teoria de Moda: sociedade, consumo e imagem. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2007.
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução de José Rivair Macedo. São Paulo: EDUSC, 2007.
Notas
Autor notes
E-mail: sant.anna.udesc@gmail.com