Artigo
Poderes, corpos e performances de gênero: feminilidades e masculinidades no Tratado en defensa de virtuosas mujeres de Diego de Valera
Powers, bodies and gender performances: feminilities and masculinities in the Tratado en defensa de virtuosas mujeres of Diego de Valera
Poderes, corpos e performances de gênero: feminilidades e masculinidades no Tratado en defensa de virtuosas mujeres de Diego de Valera
Anos 90, vol. 27, e2020012, 2020
Universidade Federal do Rio Grande Sul, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Recepção: 22 Setembro 2019
Aprovação: 20 Janeiro 2020
Resumo: Neste artigo, o objetivo é discutir analiticamente os problemas que envolvem a elaboração de uma linguagem centrada na multiplicidade, hierarquização e assimetrização do discurso de gênero em Diego de Valera. O propósito é esquadrinhar as temáticas, as performances das personagens e as perspectivas político-culturais presentes no Tratado en defensa de virtuosas mujeres. Os índices de historicidade dos processos de significação foram priorizados com o intento de não interpretar a obra em questão de forma monista, estática e descritiva. Assim, desejou-se indagar sobre as experiências discursivas baseadas nas diretrizes de gênero, os aspectos vertebrais da obra e suas dimensões “desviantes”, ou seja, os múltiplos e complexos arranjos histórico-literários.
Palavras-chave: Diego de Valera, Estudos de Gênero, Performance histórico-literária.
Abstract: In this article, the objective is to discuss analytically the problems that involve the elaboration of a language centered on the multiplicity, hierarchy and asymmetry of gender discourse in Diego de Valera. The purpose is to scan the themes, the performances of the characters and the political-cultural perspectives present in the Tratado en defensa de virtuosas mujeres. The historicity indexes of the signification processes were prioritized with the intention of not interpreting the work in question in a monistic, static and descriptive way. Thus, we wanted to inquire about the discursive experiences based on gender guidelines, the vertebral aspects of the work and its “deviant” dimensions, that is, the multiple and complex historical-literary arrangements.
Keywords: Diego de Valera, Gender Studies, Historical-literary performance.
A Idade Média era misógina? As mulheres foram tratadas como figuras inferiores, débeis, perigosas e más? Como e por que as diretrizes de gênero atuavam na construção de estereótipos femininos em Castela do século XV? As assimetrias e multiplicidades das configurações de gênero eram complexas e relativas para os parâmetros de uma sociedade que primava pela hierarquia e desigualdade. A obra de Diego de Valera, o Tratado en defensa de virtuosas mujeres, cujo objetivo central era se opor aos discursos excessivamente misóginos vigentes à época, é um exemplo de combinação de aspectos socioculturais e político-institucionais, aristocráticos e monárquicos, acionados na construção das narrativas escritas. Mesmo posicionando-se contra as modalidades de “maledicentes” acerca do feminino, ele reproduziu diretrizes tradicionais sobre o que se entendia como “homem”, “mulher”, “masculino” e “feminino”, “masculinidades” e “feminilidades”. O que se quer aqui é identificar e analisar as escalas e configurações discursivas generificadas da retórica valeriana1.
Embora as informações sobre a atuação e vida de Diego de Valera sejam bem conhecidas, seu retrato biográfico foi amplamente revisado por diversos especialistas (RODRÍGUEZ VELASCO, 1996; SALVADOR MIGUEL, 2004; REAL DE LA RIVA, 1961). Como ocorre com muitas personalidades medievais, não se conhece com exatidão a data de nascimento de Valera. Provavelmente, nasceu em Cuenca em 1412 e morreu por volta de 1488, em Puerto de Santa María, em Cádiz. Ele foi o mais jovem filho de Alfonso Chirino, médico do rei castelhano Juan II, e de sua primeira esposa, Isabel ou Maria de Valera. Foi criado na casa materna de Violante Lopez, segunda esposa de Chirino. Na expressão de Shima Ohara, ela teria sido sua “mãe afetiva” que criou não só os filhos e filhas do antigo matrimônio do marido, como também os seus (OHARA, 2004, p.153-154). Se ele descendia de uma nobreza judia e convertida, ainda não se sabe ao certo. A própria manutenção deliberada do sobrenome Valera indica a tentativa de conservar a nobreza e o vínculo com a casa materna dos Valera de Cuenca, na qual foi educado no período de viuvez de seu pai.
As vinculações parentais e as sociabilidades políticas renderam-lhe posições importantes. Apesar das lacunas documentais, cogita-se que, a partir dos quinze anos, ele cresceu no ambiente da corte castelhana sendo, quando jovem, pajem de Juan II (1406-1454), depois atuou como agente diplomático e tomou parte das ações contra os hussitas. Diego de Valera foi a combinação de um cortesão letrado e um militar, viajando para diversas regiões europeias, atualmente conhecidas como França, Áustria e Boêmia. Entre a adolescência e a primeira parte da sua vida, é plausível que tenha aprendido as primeiras letras e o latim em Cuenca ou na Corte de Castela. Parcela da historiografia alega que, após a morte do rei Juan II, ele teria abandonado a vida pública, dedicando-se mais estritamente à vida intelectual, retornando para a sociedade de corte por volta de 1474, quando se tornou mordomo de Isabel I e cronista de Fernando II. Essa hipótese deve ser negada ou ao menos matizada, já que participou das controvérsias do seu tempo no reinado de Henrique IV (1454-1474).
A historiografia associa o conjunto dos seus trabalhos à produção de crônicas sobre os reinos de Henrique IV de Castela, e de Fernando II e Isabel I. Valera elaborou obras poético-literárias, cronísticas, genealógicas, filosófico-panegíricas, doutrinárias etc.2 O interesse de Diego de Valera pelos temas do governo e da política institucional permanece uma constante em toda sua vida intelectual, ainda que seu pensamento não se apresente como homogêneo nem deixe de se articular com diversos campos culturais (SCANDELLARI, 2005). Talvez, por essa razão, a historiografia dedicou maior atenção às relações de Diego de Valera com o florescimento do humanismo e com o ambiente de conflitos entre a Coroa e os grupos nobiliárquicos, especialmente as disputas entre castelhanos e aragoneses. Ao lado dos aspectos propriamente literários, e das temáticas ligadas ao governo dos reinos e do lugar da nobreza na sociedade estamental, a bibliografia enfatiza as representações ideais das virtudes morais dos príncipes, como asseguradores da paz e da justiça, destacando não só os preceitos teóricos como também os conselhos práticos dados por Valera aos reis e à nobreza masculina.
Uma constatação é válida. Em termos comparativos, pouca atenção é dada pela historiografia à sua obra laudatória Tratado en defensa de virtuosas mujeres, sobretudo na perspectiva da História das Mulheres e, muito menos, dos Estudos de Gênero (NIETO SORIA, 2006, p. 11-15; MAIER, 2005)3. A razão disso provavelmente está no caráter da obra de Valera, tomada em seu conjunto, que privilegia certos assuntos.4 No entanto, isso pode ser explicado também pela própria tradição historiográfica, cujos cânones e clichês epistemológicos ainda são hesitantes quanto às conexões das investigações coevas do medievalismo hispânico às temáticas dos Estudos Feministas, da História das Mulheres, da História das Masculinidades, dos Estudos Queers e dos Estudos de Gênero.5 Ou seja, o androcentrismo das fontes e da historiografia contemporânea contribui para recriar o silêncio das abordagens que relacionam gênero e poder para além de perspectivas tradicionais.6 Por vezes, associam-se tais campos aos Estudos Feministas como se o olhar situado fosse necessariamente a antítese das abordagens críticas, não reconhecendo suas atualizações e contribuições para a História (MÉRCURI, 2016, p. 15; MÉRCURI, 2013, p. 579). Como noção, categoria ou conceito aberto o gênero pode ser repensado inseparavelmente como fenômeno social e como perspectiva analítica. No primeiro caso, trata-se de uma configuração ou dimensão capaz de intersecionar, transversalizar e constituir outros aspectos da vida social e política, possuindo diretrizes, características, tamanhos, escalas, impactos e pesos distintos e recorrentes ao longo da história. No segundo caso, o gênero constitui um olhar localizado, embora sempre crítico e autocrítico, e intenta (re)pensar os sujeitos-objetos a serem descritos, narrados, interpretados, analisados e explicados na temporalidade. As maneiras como a experiência e os discursos generificados interferem nos numerosos marcadores sociais - ou são por estes modificados - são horizontes perseguidos aqui. Isso significa dizer que as simetrias, assimetrias, horizontalidades e hierarquizações, ou quaisquer outras configurações generificadas, não são dados estáticos e precisam ser historicizados de modo que se possa identificar as (des)essencializações e (des)naturalizações. Os mecanismos históricos de manutenção, legitimação e alterações das desigualdades e das discriminações - baseadas no gênero e nas relações de poder - são fatores importantes para se repensar a produção valeriana (SCOTT, 1995; TILLY, 1994; LOURO, 1997; SOIHET; PEDRO, 2007; HARDING, 1993; HARAWAY, 1995; BUTLER, 2003).
O TDVM7 é conhecido através de cinco manuscritos incluídos em coletâneas de textos de procedências distintas, entre códices faccimilares ou miscelâneas. Três deles encontram-se na Biblioteca Nacional de España e podem ser acessados na Biblioteca Digital Hispánica (MSS/134I, ff. Ir-14v; MSS/12672, ff. 94r-117r, MSS/9985, ff. 52r-64r), respectivamente conhecidos como M1, M2 e M3; outro na Real Biblioteca del Monasterio de San Lorenzo de El Escorial, conhecido como E e localizado no códice N-I-13 (ff. 79r-83v) e, fora da Espanha, o N 82705, (ff., lr- 17r) custodiado pela Hispanic Society of America em Nova Iorque. Embora as datas dos códices variem entre os séculos XV e XVI, sendo motivo de debates, costuma-se situar o Tratado por volta de 1444 (ACCORSI, 2007; ACCORSI, 2009; MAIER, 2005, p. 3, p. 12). Para este artigo, foi consultada a edição de Rafael Herrera Guillén, disponível na Biblioteca Saavedra Fajardo de Pensamiento Político Hispánico, que corresponde basicamente ao manuscrito M1, embora tenha sido cotejado com outras versões digitais publicadas pela Biblioteca Nacional de España, especialmente M1 e M2 (VALERA, 2005). O TDVM é um texto em prosa epistolar escrito em castelhano, que segue algumas orientações clássicas de organização textual, mas modifica alguns detalhes segundo a retórica estabelecida em sua época. Conforme Lourdes Simó Goberna, as seções da epístola em prosa, estabelecidas pelas artes dictaminis, eram seis, número correspondente às partes da oração ciceroniana: salutatio, exordio, captatio benevolentiae, narratio, petitio e conclusio (SIMÓ GOBERNA, 1998). No TDVM, Diego de Valera unifica a exordio e a captatio benevolentiae com a qual a epístola é composta em cinco partes: saudação, exórdio (preâmbulo), narração, petição e conclusão (VALERA, 2005, p. 33).
O Tratado é uma obra com intuito laudatório que se diferencia dos outros trabalhos de Valera por concentrar a atenção mais diretamente sobre as mulheres e sustentar a polêmica da época sobre o lugar fixo de uma suposta “natureza” feminina. É o que a historiografia tem chamado de querelle des femmes. O texto é uma tentativa de participação da polêmica contra as posições excessivamente negativas sustentadas por Álvaro de Luna, em sua obra De las claras mujeres, ou por outro dos seus opositores intelectuais, como Juan Rodrigues del Padrón, no Libro de las Donas. De acordo com Manon Van Veen, “[...] por volta do ano de 1438, a obra de Alfonso Martínez de Toledo, Arcipreste de Talavera ou Reprobación del amor mundano, em geral qualificada como misógina pela crítica moderna [...]”, teria provocado “o desgosto de Dona María, a primeira esposa de rei Juan II”. Ela teria pedido a outros escritores que reabilitassem “[...] a honra das mulheres ofendidas, e muitos acendem a esta solicitação” (Tradução nossa, VAN VEEN, 1995, p. 465). Para Jesús Rodríguez Velasco, em última análise, esse mesmo movimento polemista é o que leva, por exemplo, Christine de Pizan a compor sua Cite des Dames (RODRÍGUEZ VELASCO, 2001, p. 127). A disputa intelectual é uma das razões imediatas atribuídas por Valera para a escrita de sua obra, ainda que se saiba que as vinculações cortesãs tenham sido fatores importantes para sua elaboração, pois era necessário enaltecer seus benfeitores reais. Com o intuito pedagógico, ela estava voltada para a nobreza letrada, não especificamente versada no assunto, mas interessada nos temas em questão. Como diz Federica Accorsi, seus “[...] destinatários ideais - e seguramente em boa medida reais - são uns leitores não especializados, porém instruídos e com desejo de luzir certa cultura, que se lhes apresenta aquí em uma forma agradável e isenta de tecnicismos” (Tradução nossa, ACCORSI, 2009, p. 303).
O texto elabora argumentos retóricos e usa recursos filosóficos para manter sua posição diante da polêmica e não deixa de mesclar um didatismo com a narrativa de exemplos retirados de textos “historiográficos” e “literários” (VALERA, 2005, p. 5). Procura desvelar os referentes considerados históricos, relatando capítulos de uma vida, detalhes provenientes da mitologia greco-romana ou fragmentos de textos hagiográficos, bíblicos, entre outros. O campo intertextual estende-se desde menções explícitas a Aristóteles, Sêneca, Salústio Crispo, Lúcio Anneo, Ovídio, Cícero, passando pelos textos bíblicos dos antigo e novo testamentos, com passagens pela patrística (Agostinho, Isidoro de Sevilha, Boécio), até menções a Egídio de Roma, Dante Alighieri e Boccaccio. Diego de Valera não possui uma postura subserviente diante das autoridades que cita. Ao lado do interesse estilístico de fundamentar seus argumentos pelo critério da auctoritas literária, há uma inclinação em esclarecer e, certas vezes, desfazer os argumentos vistos como equivocados por ele.
Configurada como uma carta a um amigo imaginário, a obra destina-se à autoridade monárquica feminina, algo um pouco distinto das tradições cronísticas medievais que versavam sobre cavaleiros, nobres e reis. É uma obra voltada para a nobreza e inspirada por demandas de uma elite governamental. Mas Valera parece incomodado com o uso do didatismo, pois, ainda no Prólogo, chama a atenção para a “synple matéria y rrudos vocablos”. A simplicidade do assunto e a rudeza da escrita, que fugiriam da superioridade de temas tradicionais sobre governo, guerra e diplomacia (assuntos masculinos acima de tudo), precisavam ser justificadas com argumentos compensatórios, aceitáveis diante da alta dignidade de uma rainha (VALERA, 2005, p. 4-5). Ao lado da simulação do topos da modéstia escritural, da inspiração literária e da valorização do poder da escrita em detrimento da oralidade, Valera diz neste mesmo Prólogo que sua obra estava oficialmente direcionada à Dona Maria, rainha de Castela (1420-1445) e esposa de Juan II (VALERA, 2005, p. 4-5). É a primeira mulher virtuosa em que o autor insufla de adjetivos e expressões de louvor. Fazia justiça ao seu compromisso com a realeza feminina. Dona Maria é, portanto, “ynclita” (ilustre), “sseñora”, “digna mente destinatária”, “virtuossa”, “muy esclaresçida rreyna” e dotada de “muy alta señoria” (VALERA, 2005, p. 4). Embora a busca de proteção do mecenato não seja novidade, o endereçamento a uma autoridade monárquica feminina marca uma especificidade dos prólogos dos códices valerianos. O objetivo da sua obra? A partir do que chama de “trobar satiro” (o trovar satírico), isto é, um falar que enaltece as virtudes das nobres mulheres e questiona a viciosa condição daqueles que as maldizem, a autoria deseja, por assim dizer, separar o joio do trigo, ou como ele mesmo diz de maneira dicotômica, distinguindo “la luz” das “tinjebras”, a “verdade” da “mentira” (VALERA, 2005, p. 6).
A proposta ideal era refutar três argumentos assumidos pelos chamados “maldizientes”, espécies de misóginos radicais, diríamos hoje em dia (VALERA, 2005, p. 9). O primeiro seria de um provérbio atribuído a Sêneca em que este afirmaria então que “[...] é boa a mulher quando claramente é má” (VALERA, 2005, p. 7). O segundo diz que “[...] a linhagem humana é muito fraca, ao ponto de não podermos resistir às tentações, e que é verdade que as mulheres naturalmente são mais fracas que os homens, que muito menos podem resisti-las”. A terceira argumentação seria a de que “[...] ao menos em pensamento não há alguma mulher que não seja adultera” (VALERA, 2005, p. 7).
Há um jogo tenso entre o feminino e o masculino. Homens e mulheres estariam expostos de formas diferentes à maldade, à fraqueza, à resistência ao pecado e à conduta sexual desmedida? Valera tenta enfrentar a dialética da universalidade existencial da humanidade e do “homem” (ser masculino), de um lado, e da condição feminina e da “mulher” (ente feminino), de outro. Para negar teoricamente essas proposições, discorre sobre os vários tipos de virtudes que fazem da humanidade em geral (“linaje humanal”) um misto de livre arbítrio e efeito da providência divina. A humanidade possuiria liberdade, vontades, livre arbítrio e seria dotada de entendimento para discernir as virtudes dos vícios, para querer, ou não, a salvação e a graça divinas (VALERA, 2005, p. 11). Essa personificação providencial, síntese de contrários, possui um limite na argumentação do autor. Não é a força da fortuna que produz virtudes e, sim, a providência divina que condiciona o livre arbítrio para as condutas virtuosas, alguma coisa entre o fatalismo inexorável e o voluntarismo humanista. Entre essas condutas, Valera identifica quatro tipos de virtudes: as teologais (fé, esperança e caridade), cardinais (justiça, prudência, temperança, fortaleza), intelectuais (ciências especulativas como a filosofia natural e racional, metafísica, matemática, geometria) e corporais (na visão dele, as forças que naturalmente teríamos, a “formosura de mjenbros”). Para o autor, é necessário notar “[...] que destas virtudes, algunas nos vienen por natura, otras son ganadas por nos” (VALERA, 2005, p. 12, grifos nossos). As virtudes intelectuais são engendradas e adquiridas por doutrina e merecem louvor. As virtudes teologais não são inteiramente naturais, mas em parte são constituídas pela “graça de Dios” e igualmente pelo entendimento e pela disposição da humanidade diante dessa graça (VALERA, 2005, p. 13). Bem aos moldes de um estoicismo cristão medieval, ainda persistente e reeditado, as “forças do corpo” e a “formosura dos membros”, as virtudes corporais são naturais e não lhes devemos homenagem. Por fim, na argumentação de Valera, embora haja alguma esperada inclinação natural de certas pessoas às virtudes cardinais, estas seriam antes de tudo adquiridas “por larga continuaçion de obras virtuosas” (VALERA, 2005, p. 13, grifos nossos).
A conclusão do autor é dupla. Primeiro, devem ser considerados hereges aqueles que negam a existência de virtudes humanas, já que “[...] todos podemos rresistir las tentaçiones sy nuestra maldat no nos enbarga” (VALERA, 2005, p. 13, grifos nossos). Onde entrariam as mulheres nisso? A longa exposição das virtudes humanas serviu de moldura para outra conclusão abstrata: tanto homens como mulheres compartilhariam o potencial das quatro virtudes, e seria possível atestar isso pelas Sagradas Escrituras e pelas “antiguas y modernas ystorias” (VALERA, 2005, p. 13). É a partir daqui que o discurso filosófico-teológico é complementado e em parte substituído pela narração escolástica dos casos exemplares de mulheres virtuosas. É uma produção semelhante ao que havia feito Álvaro de Luna, ainda que distinta da narrativa novelesca de Juan Rodríguez Del Padrón. É possível constituir uma tipologia provisória dessas mulheres representadas na obra? Não é nosso intuito. Não é profícuo construir uma interpretação a priori ou modelar do discurso valeriano. No lugar disso, pode-se exemplificar a complexidade de sua construção literária sobre as mulheres e os homens, o feminino e o masculino, as feminilidades e as masculinidades ou quaisquer outras configurações de gênero atribuídas aos sujeitos. As performances dessas personagens são um elemento central e podem permitir a identificação de como o gênero atua na produção da narratividade e discursividade literárias. Como diria Judith Butler, as três dimensões contingentes da corporeidade significante implicam distinguir em termos teóricos e metodológicos o sexo anatômico, a identidade de gênero (assumida ou atribuída, acrescentaríamos) e a performance de gênero (BUTLER, 2003, p. 196), mesmo que esses elementos apareçam (con)fundidos nas documentações ou em outros aspectos da vida social. O pressuposto é considerar as perfomatividades como a repetição fluída de sujeitos e corpos teatralizados na narrativa valeriana. Como as diretrizes de gênero atuaram na estilização dos personagens masculinos e femininos em movimento? Os sujeitos e atos corporais femininos foram considerados subversivos e abjetos por Diego de Valera? Há ressignificação e recontextualização desses corpos?
Depois da rainha, a primeira figura feminina que é mencionada na narrativa é Medusa. Com seus “cabellos serpentinos”, ela petrificava as pessoas e fora morta por Perseu que, usando um escudo, havia cortado sua cabeça, cujo sangue caíra na terra e produzira venenosas serpentes e o cavalo Pégaso. Valera parece não acreditar na narrativa, mas como admirador crítico e cético do mundo greco-romano reitera o apreço pela “fabulosa ystoria o poetica fficçion”. Como uma personagem má pode associar-se à virtude? A contradição é apenas aparente. Nesta fabulosa história, Medusa emerge como o principal estorvo e impedimento para que o herói masculino principal, Perseu, seguisse sua aventura: ela era a “la enpeçible Medusa”, isto é, aquela que impõe ao herói um estorvo e impedimento. A escolha de uma das górgonas mitológicas não soa casual, pois, como recurso literário, ela era a expressão monstruosa da dimensão feminina “claramente má” que poderia indiretamente provocar algo positivo. Afinal, para o discurso valeriano, Pégaso, criado pelo sangue de Medusa caído à terra, havia cavado uma fonte de água com poderes mágicos, da qual quem a bebesse seria feito sábio. O deslizamento da maldade feminina intrínseca para a sabedoria é evidente. Tudo mediado pelo herói masculino. A perfomatividade masculina é capaz de vencer a maldade e viabilizar a sabedoria (VALERA, 2005, p. 7-8).
O próximo enredo inclui Febo, filho de Jupiter e Latona, também chamado Apolo, que teria nascido em Delfos e estava associado à juventude, força e valentia masculinas, matando com as próprias mãos a serpente Piton (“Fiton” ou “Titan”, para o autor). Mesmo em um universo não cristão ou gentílico, a maior das virtudes de Febo/Apolo era a sabedoria, as “ciências” e o invento das artes mágicas. De forma secundária, é exatamente aqui que Valera inclui uma figura anônima feminina (VALERA, 2005, p. 8-9). O paralelismo e o deslizamento da narrativa greco-mitológica para a exegese bíblica-cristã-mitológica são sintomáticos, quase direta e sem maiores adendos. Os “fitonisos” (pitonisos) seriam chamados assim porque eram seguidores das artes sábias de Febo, que teria forrado uma mesa oracular com a pele da serpente Fiton. Enquanto os “fitonisos” estavam mais associados à sabedoria do que à magia, a figura feminina sem nome, “vna muger fitonjsa”, parece deslocar-se menos em direção à sabedoria do que às artes mágicas. Ela teria ressuscitado Samuel a pedido de Saul, conforme assinalaria o Antigo Testamento, no Livro dos Reis.8 Seguindo uma tradição alto-medieval e ocidental, reapropriada na baixa Idade Média, Valera concebe o Livro de Reis como uma unidade textual formada por quatro partes (hoje em dia, correspondendo a I Samuel, II Samuel, I Reis e II Reis). Na narrativa de Valera, a mulher aparece pontualmente e torna-se a mediadora de artes mágicas para ressuscitar Samuel. Não está claro se Diego de Valera acreditava que a autoridade patriarcal foi ressuscitada no plano corporal ou se teria sido reanimado como um expectro-alma, conforme aponta o texto bíblico.
A referência às nove musas é a antessala para iniciar mais diretamente os contra-argumentos do autor às três formas de difamar ou menosprezar as mulheres. Há divergências entre os manuscritos M1, M2 e M3 quanto à nomeação e ao número das musas. De forma lacunar, eles não citam todas as musas e seus os atributos simbólicos, mas as associam ao conhecimento, à “ciência” e às artes liberais. Por exemplo, no M1, destaca-se que “Nueue hermanas, segund [?] fueron llamadas mussas y ovieron este nonbre apelatiuo de musa, que quiere dezir çiençia, por que éstas fueron syngular mente sabias enlas artes liberales” (VALERA, 2005, p. 9, grifos nossos). O apelo às musas indica menos uma preocupação com a dimensão feminina das “artes liberais” do que com um argumento da autoria em combater a ignorância, a rudeza e ligeireza das opiniões comuns (VALERA, 2005, p. 9).
Justificado o lugar do discurso combativo à ignorância (fluída, ligeira, movente), Diego de Valera canaliza sua primeira discordância ao filósofo romano Sêneca. Este teria cometido confusões, generalidades relativas e parecia contradizer-se ao sustentar opiniões ambíguas sobre as mulheres. Sêneca teria cometido uma “generalidat” ao dizer que todas as mulheres eram más e que “[...] es buena la mala muger quando claramente es mala”. Isso teria sido assumido pelo filósofo como forma de precaver-se mais e melhor das figuras femininas, o que não seria possível fazê-lo para as que eram ocultamente más em função da “grant astuçia y agudeza”. Vejam, o autor não discorda da intrínseca maldade e esperteza das mulheres, mas relativiza a universalidade homem versus mulher, propondo outra essencialização dicotômica entre mulheres boas e mulheres más. Para o discurso valeriano, Sêneca se contradisse até certo ponto, porque também teria contemplado a existência das “buenas mugeres”. Na lógica dos vínculos matrimoniais, as boas mulheres seriam exemplos de coisas excelsas e da vida, e as más da morte, sobretudo do marido (VALERA, 2005, p. 10, grifos nossos).
A autoria não deixa de reconhecer que os filósofos antigos eram sábios e tinham algo a dizer. Contudo, essa sabedoria era limitada porque não era iluminada pela fé cristã. A desqualificação relativa de Sêneca decorria do fato de que ele não era um evangelista, pois, como outros filósofos pagãos, embora fosse sábio e dissesse “buenas cosas”, escrevia também coisas “dignas de rreprehensyon” ao se desviar da fé católica e se aproximar do entendimento equivocado dos “maldizentes” coetâneos. Portanto, baseando-se em Agostinho, e vendo de forma teleológica e anacrônica, Valera aponta a necessidade de se apropriar do que era legítimo e bom na tradição antiga, descartando o que era considerado mal e paradoxal. O olhar distorcido, as contradições e os equívocos de avaliação sobre as mulheres seriam mais fruto dos erros de fé do que do intelecto. Ou melhor, a “generalidade” sobre o feminino era resultado de um intelecto entorpecido pela falta da luz da fé católica (sempre disponível in illo tempore), cujo desdobramento é ver o único onde haveria um duplo coerente, variável e hierarquizado. No lugar da mulher sempre má, haveria mulheres essencialmente boas e más. Valera troca uma essencialização unificada por uma múltipla.9
A segunda forma de “mal dezir” refere-se ao argumento de que a condição humana é pecaminosa e fraca. Haveria dificuldades de resistir às tentações e as mulheres seriam ainda mais naturalmente débeis se comparadas aos homens. Elas não resistiriam aos pecados. Várias mulheres das tradições greco-romanas e judaico-cristãs são evocadas para servir de contraexemplo da intrínseca e dupla debilidade feminina. Depois de discorrer sobre as quatro virtudes (teologais, cardinais, intelectuais e corporais, sobre as quais falamos antes), as personagens que chamam a atenção do autor são as virgens de Diana e o caso de Camila (VALERA, 2005, p. 13). A virgindade perpétua consagrada à deusa Diana complementa as virtudes dessas mulheres que moravam nas selvas, nos montes inóspitos, caçando animais selvagens com arco e flechas. Virgens e ativas, elas eram mulheres viris. Seguindo a mitologia romana, o caso de Camila, filha do rei dos volscos, Metabo, é a mescla ambígua e hierarquizada entre masculinidades e feminilidades. O primeiro feito heróico realizado por ela foi ferir e matar o javali da Caledônia. Nesse caso, para Valera, não seria Hércules o sujeito desse feito virtuoso, mas Camila, uma “donzela”, que havia sido criada na selva depois que seu pai, rei do volscos, teria sido expulso por seus vassalos. Em uma clara medievalização do mito greco-romano (súditos e servidores se tornam “vassalos”), o rei não seria um tirano, mas uma autoridade injustiçada, obrigada a fugir e criar sozinho sua filha nas selvas e montes. Ela foi criada com “leite das feras” e da caça. Em idade adulta, depois de algum tempo, deixou as “[...] mulheris branduras, [e] ao reino de seu pai voltou e com armas o subjugou” (“mugeriles blanduras, al rreyno de su padre bolujó e por armas la sojudgó”) (VALERA, 2005, p. 14, grifos nossos). Além de defender o reino usurpado de seu pai, Camila é enaltecida por outra razão. A outra virtude não estaria no apagamento da condição feminina, mas naquilo que lhe seria inerente: frente ao desejo de Enéias em tomá-la por mulher, quis “conseruar su virginjdat” e pediu ajuda a Turnos, rei do rútulos, mesmo sendo morta com uma flechada ao fim e ao cabo (VALERA, 2005, p. 14).
Camila sintetiza a virilização do feminino, sem bani-lo por completo. Por um lado, ela foi associada à força, vigor, agilidade, destreza e coragem, em especial em virtude da luta contra o javali caledónico e no envolvimento da batalha contra Enéias, sendo que todas essas virtudes foram forjadas pelas circunstâncias da morte da mãe e do desterro forçado do pai, desviando-a para uma educação masculina, não doméstica, e paterna. Tudo isso afastou Camila das “mugeriles blanduras”, aproximando-a das virtudes varonis do pai. Por outro lado, é a manutenção de virgindade feminina que desdobra sua resistência contumaz. Camila havia travado uma dupla e complementar luta no campo de batalha: primeiro, para defender o reino do seu pai pelas armas e força militar; segundo, para resistir aos inimigos do seu corpo virgem com a arma da resistência moral. Ela seria um exemplo de virgindade varonil em um corpo mitológico feminino.
A virgindade e a paternidade são um tema recorrente na argumentação valeriana. É o caso de Claudia, mulher virgem consagrada à deusa romana Vesta, encarregada de velar o fogo sagrado perpétuo de seu altar. Suas virtudes estariam vinculadas à corporeidade feminina, mas decorreriam principalmente das virtudes paternas, patrilineares e patriarcais. Era filha de um homem anônimo, que Diego de Valera diz não se lembrar, e que pertenceria a uma “generaçion rromana magnjfica” (VALERA, 2005, p. 14). Então, sendo filha de uma linhagem magnífica e de um pai que havia alcançado o triunfo de um ofício importante, ela mesclava as virtudes involuntárias à coragem masculina e à virgindade. No episódio narrado, a vestal romana deixa os “temores femininos”, saindo do interior do templo onde morava, interno e doméstico, adentra o conglomerado de gente e, com as mãos airadas, teria colocado o pai no carro triunfal, ritual que havia sido interrompido pela multidão. Além de ter guardado a “virgindade límpida”, Claudia foi representada por Valera como a restauradora excepcional do poder e da honra do pai ultrajado pela turba.10
Essa coragem de romper com os papéis esperados para o feminino foi reforçado com o exemplo de Clódia. Dessa vez, a figura feminina estava ao serviço de uma cidade e de um império (VALERA, 2005, p. 15). Segundo a narrativa valeriana, Clódia era uma romana que havia sido casada com um rei persa. Descobrindo as artimanhas do mesmo, conseguiu escapar secretamente da residência, tomou um cavalo e denunciou ao Senado a traição tramada pelos persas, salvaguardando Roma do perigo. Não se trataria de uma coragem parental e autodefesa da virgindade. Embora essa complemente sua condição feminina, foi a intrepidez e bravura de Clódia pelo serviço “cívico” que a tornou excepcional.
A coragem inusitada foi também uma das virtudes assumidas por Armônia, filha do rei Chiro da Sicília, juntamente com sua servidora. Em represália de um reino concorrente e considerado tirânico de Saragoça, tal rei foi morto e teve decretado o extermínio de toda a sua linhagem. Como estratégia para livrar Armônia do perigo, vendo que seria morta se fosse encontrada, a sua aia deu uma filha da mesma idade para os perseguidores. Ela fora movida pelo amor e pela lealdade à sua senhora. Mas, esse intuito da serva de salvá-la fora logo desfeito quando Armônia esbravejou a morte de uma donzela inocente, revelando-se aos homens furiosos e cruéis, e sendo subitamente morta. Na lógica idealizada do poder monárquico e aristocrático, a filha de uma serva não poderia assumir injustamente o protagonismo das responsabilidades da filha de um rei. O martírio estava justificado e era algo digno de louvor (VALERA, 2005, p. 16).
Também digna de “loor” foi o caso de Lucrécia, uma lendária dama romana, filha de Espúrio Lucrécio Tricipitino, prefeito de Roma (na narrativa de Diego, “rei de Roma”), e mulher de Lúcio Tarquínio Colatino. Omitindo alguns aspectos da narrativa tradicional, Valera prende-se ao essencial do enredo sobre um caso de adultério não consentido. Colatino, seu marido, havia recebido diversos hóspedes em sua casa e castelo. Todavia, violando as regras de hospitalidade, Sexto, filho do rei de Roma, aproveitou-se das circunstâncias para ir ao quarto de Lucrécia para ter relações sexuais com ela. Sonolenta, pressionada com apelos e ameaças do “adulterador”, procurou por todos os meios defender sua castidade, fama e honra. Diante da negativa, Sexto explora o temor de Lucrécia, ameaçando-a com uma faca e intimidando-a com a acusação falsa de adultério com um servo (VALERA, 2005, p. 16-17). Para Diego de Valera, Lucrécia foi considerada uma das mulheres mais castas e honradas da “generaçion rromana”, porque, embora tenha cedido à violência ao seu corpo e às pressões sexuais de Sexto, teria se mantido voluntariamente fiel ao marido, tirando a própria vida como derradeira autopunição. O foco de Valera não é o questionamento da vontade e desejos masculinos em si mesmos ou a defesa de “direitos” e “liberdades” femininas. Longe disso. Tratou-se de um adultério não consentido e forçado pelas circunstâncias. O corpo maculado, a desonra simbólica do leito matrimonial e da pessoa do marido fazem parte do ritual que levara Lucrécia à tragédia ao ceder forçadamente às maldades de seu algoz. Colácio Sexto havia sido desleal, usando apelos (“rruegos”), violência verbal (“con amenazas la fablaua”; “fallando asy duro commo piedra”) e violência física e sexual (“forçosa mente consyntio ala maldat del Sesto”).
O leito conjungal está simbolicamente associado ao masculino, inflato por ele, e teria sido maculado por um “adulterador” (sujeito ativo e masculino) por meio do corpo feminino (visto aqui como sujeito passivo e transmissor de infâmia).11 Ele foi veículo de desonra transmitido de um homem para o outro por meio do sexo no leito conjugal. No entanto, diferente das acusações e punições jurídicas sobre o adultério feminino (CÓRDOBA DE LA LLAVE, 1994), que pressupunha uma cumplicidade das implicadas, o desfecho narrativo distingue o corpo feminino das suas vontades, um corpo forçado, cujo coração era inocente. Ou seja, adulterado passivamente, o corpo de Lucrécia serviu de veículo para transmitir desonra ao marido e à família. Mas, mesmo inocente e livre da culpa, não escapou da punição prevista juridicamente para o adultério. No lugar da aplicação da punição externa, familiar e marital (nos parâmetros jurídicos medievais, se ela fosse considerada culpada), Lucrécia tira a própria vida com uma faca de modo a compensar a infâmia recebida por meio de seu corpo. Seguindo essa lógica do martírio laico, um corpo feminino maculado, mesmo involuntariamente, não tinha direito de existir.
Diego de Valera narra outros autossacrifícios emblemáticos. Os casos de Porcia, mulher de Brutus, e filha de Catão, e Julia, filha de Julio César, e Cornélia, mulher de Pompeu, são referências da vinculação mais direta da existência corporal da esposa a do marido. A falta deste implicaria a extinção daquela. Se Lucrécia havia se matado em função de uma desonra involuntária, os casos de Porcia e Julia representariam a autoanulação física voluntária ou involuntariamente diante da perda do esposo. No caso de Porcia, como esposa e filha de homens proeminentes, isso fica evidente. Se Catão tirou a própria vida para manter a liberdade, Porcia morre duas vezes ao perder o marido, razão da sua existência física, e ao suprimir a própria vida (VALERA, 2005, p. 17).12 O caso de Julia é assim narrado por Diego: “A Júlia, filha de César. Júlia, foi filha de Júlio César, primeiro imperador no mundo. Mulher do grande Pompeu, a qual, tão singularmente amou seu marido, que quando um dia diante dela trouxeram as vestimentas ensaquentadas de Pompeu, pressupondo que o dito Pompeu estava morto, subitamente morreu” (VALERA, 2005, p. 17). O caso de Cornélia também é sintomático. Tratava-se da segunda mulher de Pompeu, “o grande”, e filha do cônsul Metelo. Depois de ter sido deixada na ilha de Lesbos quando o marido foi à guerra, Cornélia teria sofrido um mal súbito, um desmaio, sentindo tanta dor, que caíra no chão dando a impressão de que havia morrido. Uma vez sabido que seu marido havia sido morto pelo malvado rei Timóteo, também tirou voluntariamente sua vida (VALERA, 2005, p. 18).
Esse autossacrifício chega ao ponto de as mulheres darem voluntariamente suas próprias vidas no lugar das de seus maridos. A narrativa das nobres e virtuosas mulheres dos Menjs é ilustrativa. Eles, ocupando indevidamente uma região da “señoria de Laçedemonja”, teriam sido condenados à pena capital e permaneciam presos. Diante disso, essas mulheres se puseram em perigo, conseguiram convencer o carcereiro para verem seus maridos e, assim que entraram, trocaram de roupas com seus esposos, permitindo que os mesmos, travestidos de mulheres, e fingindo agir como tal, com uma performance de prantos femininos, pudessem escapar do cárcere e da morte. A estratégia da persuasão e a tática da vocalidade, juntamente com a coragem, amor e lealdade aos esposos, eram a motivação para que elas preferissem perder a liberdade e enfrentar a morte para salvaguardar as vidas consideradas mais valiosas (VALERA, 2005, p. 21-22).
Se o autossacrifício em vida e a anulação existencial não eram virtudes universais de todas as figuras femininas valeriadas, cabendo a mulheres excepcionais, a abnegação monogâmica ao marido alcança até mesmo o período post mortem dele. É o caso de Antônia, filha de Marco Antônio, que amava tanto seu marido, Drusio, e a ele era tão fiel, que, mesmo depois da morte dele, sendo jovem e bonita, podendo casar-se novamente, optou por não ter mais nenhum outro homem no leito conjugal. Por isso, passou a dormir juntamente com a sogra, mantendo-se casta. Para os parâmetros medievais, o previsível para uma mulher jovem e bela seria contrair outro matrimônio, mas ela escolheu assumir o ascetismo da viuvez em memória do marido. Embora Valera considere uma situação desagradável, sendo o leito conjugal um lugar de domínio masculino, a ela só caberia a castidade e a pernoite com quem garantisse relações ascéticas, isto é, outra mulher e parente por afinidade (VALERA, 2005, p. 18).
Haveria outras formas de sacrifício que representariam as virtudes femininas. Do ponto de vista valeriano, Penélope, esposa de Ulisses e filha de Icário (curiosamente, a mãe dela não é mencionada), seria um exemplo de fidelidade conjugal feminina. Depois de Ulisses ter viajado e ficado vinte anos fora do lar, ela devotou sua castidade ao marido, apelando aos deuses gregos por ele, mas também usou de “femjnjl astuçia” (astúcia feminina) como uma estratégia (“vn nueuo engano”) para se livrar das investidas dos homens que desejavam se casar com ela na ausência do marido, como era de costume. O desfecho já é bem conhecido: não podendo confrontar ativamente os homens que a demandavam, Penélope tecia durante o dia e desfazia seu trabalho à noite, ganhando tempo para manter sua castidade e fidelidade ao marido. A astúcia e o engano são legitimados pelas circunstâncias. E o recado de Diego de Valera é claro: a mulher fiel, paciente, abnegada e devotada ao marido ausente constitui um modelo a ser seguido. Enquanto Ulisses movimentava-se pelo mundo conhecido, Penélope movia-se pelo plano doméstico para proteger mais a honra do marido do que a sua. O amor incondicional revela-se ao final da narrativa, pois, mesmo velho, solitário e destruído pelas desventuras (afinal, a beleza masculina não importa!), Ulisses é recebido alegremente no “casto lecho”, no fundo um leito tomado de poder e domínio masculino. Mas uma vez, o lugar do leito conjugal como símbolo incólume da conjugalidade é vista como uma responsabilidade feminina, embora fosse um espaço inflado pelo controle e pela atmosfera masculina: o leito casto não transmite desonra e infâmia aos homens quando a mulher age castamente, impedindo a usurpação de uma propriedade ou lugar simbólico da prática marital e patriarcal (VALERA, 2005, p. 16).
Mas, nem sempre a custódia do reino e a reação feminina eram mantidas por meio da abnegação pacífica e passiva. Tamariz, rainha dos chiaros, teria sido, para o discurso narrativo de Valera, um dos exemplos de governante casta e viril. Como viúva, havia governado seu reino com paz e justiça, porém, em razão da cobiça e inveja de um homem chamado Ciro, que tentou usurpar seu reino, reagiu violentamente contra o inimigo (VALERA, 2005, p. 18-19). Curiosamente, Diego de Valera mescla as virtudes femininas e masculinas, idealizando-as, estilizando-as. Nesse caso, com “coração masculino-viril” (“con viril coraçon”), deixando as “inclinações/gentilezas femininas” (“dexados los femjneos apostamjentos”, “no commo fenbra”), a personagem assumiu vigorosamente a postura de governante nas batalhas contra Ciro. Ao perder seu único filho, feriu e matou na floresta o algoz, não derramando lágrimas como era o costume feminino, contudo com ira e vingança comandou a empreitada para apressurar e ferir o inimigo de tal maneira que, nas florestas fechadas e duros rochedos (“duros peñedos”), o dito Ciro foi morto e os reinos ocupados por Tamariz. Ela assumia o papel excepcional de governante e regedora do seu povo. A violência é intrínseca ao masculino e excepcional no feminino. No entanto, essas virtudes viris, acionadas para vingar o filho e proteger o reino, logo são compensadas por atributos tradicionais vinculados à castidade feminina. Como diz Valera, nem a longa viuvez (que poderia ser um interregno entre casamentos), o desejo de herdeiros (que garantiria a continuidade na linhagem dinástica) ou a enfermidade da carne (desejos eróticos do corpo) eram suficientes para impulsioná-la a ter outro marido. A monogamia viril-feminina ultrapassava a existência física do esposo. Aqui, ao fim da narrativa, a castidade era superior às exigências conjugais, parentais e sexuais.
As mulheres eram virtuosas se expressassem amor e homenagem aos corpos dos maridos mortos em rituais fúnebres. O foco recai sobre Argia, filha de Adrasto, rei dos argos (argivos) e casada com Polinice, filho mais novo de Édipo, rei de Tebas, irmão primogênico de Etéocles, e sobrinho de Creonte, herdeiro do trono depois do conflito entre irmãos. O autor não reserva espaço para as críticas aos rituais não cristãos, omitindo diversos aspectos da narrativa mitológica grega, em especial os detalhes dos conflitos parentais, eliminando igualmente a participação da irmã de Polinice, Antígona, e da relação incestuosa de Édipo e Jocasta. Argia emerge quase sozinha como protagonista feminina que trabalhou para dar dignidade ao marido insepulto por decisão de Creonte. Na narrativa, ela, elidindo “a brandura da natureza feminina” (“la blandura dela femjnjl natura”), teria enfrentado com coragem a escuridão da noite, a crueldade iminente dos inimigos, a presença de animais selvagens, o horror dos corpos carcomidos e desfigurados, e as leis do “imperador” Creonte, que proibia retirar os corpos dos inimigos expostos à putrefação. Argia, não hesitando tocar e revolver os corpos, teria sido capaz inclusive de encontrar o de seu marido, expressando os afagos e beijos que o corpo marital merecia, cremando-o e sepultando-o em uma arca de ouro. E o que era mais importante: ela manteria a castidade perpetuamente em vida em memória e homenagem ao esposo (VALERA, 2005, p. 19-20).13
As mulheres greco-romanas não são os únicos casos de exemplaridade moral. Bem aos moldes das narrativas de viagens franciscanas sobre as terras orientais, elaboradas desde os séculos XIII e XIV (SABINO, 2018), Valera dedica algumas linhas às mulheres “indianas” (entendidos vagamente como povos orientais) (VALERA, 2005, p. 21). Ao menos aqui, o discurso de Valera não parece se incomodar com os costumes poligâmicos e os rituais fúnebres atribuídos a essa população. O estranhamento do outro é suplantado pelo propósito de demonstrar a familiaridade com a vinculação entre corpo e performance femininos e o plano da existência do esposo. Na sua narrativa, as “dueñas yndianas” eram tão apegadas aos seus maridos que disputariam o primeiro lugar para serem cremadas vivas juntamente com seus corpos. Ao segundo lugar restaria a tristeza e a condenação à solidão. A disputa meritocrática seria uma forma de saber quem amava mais e melhor o esposo, hierarquizando as mulheres em função do amor direcionado ou recebido do homem. Nessa ótica, a anulação física pela morte voluntária não era uma condenação, mas um prémio.
Por fim, as judias são os últimos exemplos de Diego de Valera: Sara (Sarra),14 Zipora (Çipora),15 Débora (Deuora),16 Ester,17 Tamar,18 Miriam (Marian),19 a mãe de Sansão (La madre de Sanson),20 Elizabete (Elisabet),21 Ana,22 Rebeca (Rrebeca)23 e Raquel (Rraquel).24 Os omze exemplos de mulheres veterotestamentárias podem ser analisados aqui em conjunto. Sua classificação segue critérios de parentesco (vinculadas às autoridades e casamentos nobres), jurídico-morais (nobreza), estéticos (beleza), religiosos (servidão a Deus, devoção por meio de orações, dom da profecia), físico-religiosos (ventres santificados, virgindade) e, eventualmente, referências viris de governo. O parentesco paterno com homens considerados proeminentes é uma forma de enaltecer a virtude da maioria das mulheres relatadas por Valera. Mesmo se esse parentesco virtuoso não fosse suficiente (Ester), as mulheres resistiriam ao pai consanguíneo para obedecer a divindade patriarcal, como teria feito Rebeca. O casamento com homens excepcionais compõe outro componente importante, porque a conjugalidade constitui o veículo de valorização do feminino. É o caso de Sara e Zipola. Mas, se as nobrezas consanguínea e conjugal não fossem suficientes, elas possuiriam outros atributos físico-morais como a virgindade, preludiando casamentos virtuosos, e a beleza corporal (Ester, Tamar e Raquel), ou mesmo a posse de capacidades de gerar virtuosamente homens vistos como excepcionais. São mães com ventres santificados, mães de profetas (como Elizabete, Ana, Raquel ou a mãe anônima de Sansão). Tudo isso é também regado pelo papel da vocalidade feminina, visto que, por meio de orações e rogos, em episódios decisivos (Ana, Raquel) e pelo dom da profecia (Débora, Miriam), essas mulheres se aproximavam da divindade como amigas e servas de Deus. Mas, se tudo isso faltasse ou não fosse suficiente no âmbito do feminino excepcional, Diego de Valera ainda teria outro argumento para convencer sua audiência e leitores potenciais: algumas mulheres abandonaram sua feminilidade, deixando de lado sua condição feminina e participaram de batalhas. Seriam mulheres incomuns porque viris (Débora).
Essas referências gerais se encaixam de forma hierarquizada e suturadas pela ótica cristã. Se a beleza aparece aqui e ali como um atributo feminino, é a submissão a um poder patriarcal de um Deus, capaz de impor sua vontade de forma descentente, que constitui uma dimensão indelével das virtudes de parte dessas mulheres. É a capacidade de elas representarem bem o plano divino que estaria em jogo, um plano que implicava complementar e potencializar a existência de homens excepcionais. Eram fora do comum, porque cumpriam um plano providencial. Por vezes, passivas ou vitimizadas, mas devotadas às orações direcionadas à divindade monoteísta, ao ponto de alcançarem o dom da profecia, elas igualmente são filhas, mães ou esposas. As judias de Valera são virtuosas justamente por meio da paternidade, maternidade e do casamento. Suas existências estão intrinsecamente articuladas à de seus pais, filhos ou maridos, e não são sujeitos autônomos, cujos corpos não lhes pertenceriam. Elas eram excepcionalidades universalizadas pelo autor.
Considerações finais
Segundo Mariana Bonat Trevisan, no plano da historiografia, “[...] criou-se a tendência de ver a mulher como uma essência, a fazer dela uma categoria independente, definindo e generalizando a mulher e o feminino por suas deficiências em relação à natureza humana, realizada plenamente no homem (tido como o humano completo, modelo universal)” (TREVISAN, 2016, p. 208). Para o autor Iñaki Bazán Díaz, essa pressuposta incapacidade estava difundida no medievo ocidental, particularmente entre os tratadistas, moralistas, canonistas, teólogos, pregadores etc. (BAZÁN DÍAZ, 2008, p. 205). Mas, será que o TDVM repete o mantra de misoginia medieval ibérica e ocidental em termos absolutos? Será que ele era, pelo contrário, um filógino?
Jacques Le Goff escreveu na ocasião da publicação de um livro clássico de Marc Bloch que um “[...] novo ponto de vista dá novos sentidos ao documento antigo, inclusive no âmbito da literalidade e da historicidade” (LE GOFF, 1999, p. 18). Obviamente, ele não estava se referindo à História das Mulheres ou aos Estudos de Gênero nem à obra analisada aqui, porém a citação nos serve como uma luva. O texto de Diego de Valera, o Tratado en defensa de virtuosas mujeres, é acima de tudo um exercício de retórica voltada para uma polêmica situada no bojo dos quatrocentos, a chamada querelle des femmes, uma disputa entre defensores e detratores das mulheres. Para Christiane Klapisch-Zuber, a “[...] ambição de muitos hoje em dia é compreender a parte que as relações entre os sexos ocupam no conjunto das relações sociais”. E, dessa forma, continua a autora, “[...] uma tarefa preliminar impõe-se assim ao historiador, que deverá se preocupar com as definições de masculino/feminino elaboradas por teóricos que fundamentam estas representações” (KLAPISCH-ZUBER, 2002, p. 138). Não foi propriamente o “sexo” (anatômico) que nos interessou aqui (KLAPISCH-ZUBER, 2002, p. 142). Neste artigo, pretendeu-se discutir como Diego de Valera construiu um discurso de unidade, união e complementaridade entre os gêneros/sexos, sem excluir as noções de subordinação, desigualdade, dependência e hierarquia sociais baseadas no gênero.
Para essa produção literária-cronística em prosa epistolar, justamente num momento em que o humanismo medieval adquire contornos diferentes, colocava-se no centro das atenções as figuras femininas. Embora não seja a única a se posicionar diante da querelle, essa obra destoa do discurso tido como universal à época de que as mulheres eram naturalmente más, fracas ou adúlteras. Para Valera (2005), elas, pelo contrário, como os homens, seriam portadoras de virtudes. Mesmo que fossem excepcionalidades. Ao menos em parte, em um momento artificialmente considerado como o alvorecer de uma fase moderna, isso nos faz relativizar a generalização de que o período medieval era exclusiva e absolutamente misógino. Sem deixar de sê-lo, por vezes, é claro, os trâmites discursivos eram bem mais complexos do que o jogo simples de significação universal, rígida, estática e dicotômica. As virtudes foram tensionadas.
Se as virtudes consideradas femininas estão moldadas aos discursos fundadores de textos greco-romanos e judaico-cristãos, não se pode perder de vista de que era uma polêmica que motivava a feitura da obra de Diego de Valera. A narrativa valeriana cinscunscreveu e torceu sujeitos, comportamentos, performances e temporalidades a partir da medievalização dessas tradições, dizendo muito mais sobre o seu próprio tempo do que de tempos não coetâneos. Ele reproduziu a sua contemporaneidade situada no século XV. Deslocou-se entre as especulações de caráter universal, que aparentemente incluía as mulheres no interior da condição humana, porém, esforçou-se em associá-las a uma casuística baseada na narração de exemplos de mulheres virtuosas por serem virgens castas, filhas devotadas, viúvas continentes e dedicadas mulheres casadas. Nesse caso, Valera (2005) é tanto questionador e crítico das tradições que narra quanto conservador e legitimador delas.
Parte das suas figuras femininas foi circunscrita nas esferas domésticas, no âmbito da virgindade consagrada e do casamento. Mas, um olhar mais atento para as performances estilizadas e as qualidades atribuídas às figuras femininas permite-nos identificar associações delas com as virtudes teologais, cardinais, intelectuais e corporais propostas por Diego de Valera. Este autor, mesmo buscando polemizar com a conduta dos “maledicentes”, não escapa das diretrizes de gênero presentes nas representações sociais de seu tempo. As figuras femininas no Tratado não são somente virgens, viúvas e esposas. Há um conjunto de escalas de mulheres, femininos e feminilidades que não se separam das relações com os homens, os masculinos e as masculinidades. Havia, sem dúvida, uma crença na existência de uma natureza feminina, sólida, fixa, normal, mas esta poderia ser deslocada, alterada e reconduzida por mulheres consideradas incomuns. As virtuosas mulheres seriam aquelas que romperiam momentaneamente as condições femininas, os papéis sociais e as configurações de gênero para salvaguardar seus filhos, maridos, pais, cidades, reinos e impérios.
Muitos dos casos narrados parecem implicar concepções de gênero e corpo bem particulares para o período medieval. Como diria Jean Dangler, ao citar criticamente Jeffley J. Cohen, o conceito de corpo é algo mais amplo do que o contorno de pele e ossos, e provavelmente é algo mais “[...] permeável, aberto e interminável, e assim capaz de aglutinar-se com outros corpos e objetos [...]”, ou melhor, o corpo humano não seria uma dimensão circunscrita e fechada, mas, isto sim, “algo infinito por sua porosidade e sua combinação com outros entes e coisas” (Tradução nossa, DANGLER, 2011, p. 18). Os casos citados de autossacrifícios voluntários e involuntários, a abnegação monogâmica e passiva, a castidade autoimposta, e as homenagens aos corpos dos esposos mortos, tudo isso parece demonstrar a vinculação do corpo feminino intrinsecamente atado ao do cônjuge, aos espaços e lugares simbólicos patriarcais. O corpo feminino não teria existência plena, separada e autônoma sem o corpo masculino.
Na tipologia móvel de Valera, há virtudes como beleza, virgindade, domesticidade, brandura, autossacrifício, nobreza moral e parental, e muitas delas estavam mescladas às virtudes consideradas masculinas tais como a liderança, intrepidez, a coragem de pegar em armas e vingar-se, usando a força física e a violência. Se a astúcia feminina era uma virtude negativa, embora tolerada em determinados contextos, ela era substituída e misturada à honradez. Havia graus e escalas ambíguas do feminino e do masculino, constituindo extremos virtuosos que se moviam, misturavam-se, combinando-se interna e externamente, tanto para o lado do feminino (virgindade, castidade, abnegação, dedicação, autoanulação voluntária e involuntária) quanto para o masculino (coragem, força, lealdade, violência legítima).
Mas, eram graus de comportamentos igualmente essencializados. É difícil não ver no panegírico construído por Valera uma outra forma de perceber as relações de poder e as diretrizes de gênero. É válida a hipótese de que o Tratado respondia a uma conjuntura de conflitos políticos entre os reinos de Castela e Aragão, em especial no reinado de Juan II e Dona Maria. Isso poderia ter implicações indiretas nas escolhas de temas e personagens que instruíssem a elite aristocrática para a recuperação e aceitação de uma memória positiva sobre as mulheres e os homens do passado (MÉRCURI, 2013, p. 578). Contudo, há outras concepções de poder: não se trataria simplesmente do poder como sinônimo de guerra, intrigas palacianas, estratégias de governo, negociações e diplomacia. Em parte, isso também está presente e constitui a ambientação das narrativas. Todavia, como ocorre com outras obras valerianas e coetâneas, o Tratado postulava justificar e compensar o déficit de legitimidade das figuras femininas quando elas assumiam ou mediatizavam atividades consideradas masculinas. A expressão “déficit de legitimidade” foi usada por José Manuel Nieto Soria para referir-se ao tratamento dado às rainhas que viabilizaram o acesso ao trono ou assumiram como titulares o poder monárquico na Castela Medieval. Como fez Nieto Soria, considera-se que o Tratado também fez parte do esforço de compensação desse déficit de legitimidade ao enaltecer diversas figuras femininas históricas ou literárias (NIETO SORIA, 2006, p. 4).
A inserção das mulheres como protagonistas esconde uma maneira de ver as figuras femininas através de um prisma bastante conservador e cúmplice de valores cristãos tradicionais. As performances das mulheres foram personalizadas de uma maneira em que suas ações dependiam das suas conexões com as demandas e necessidades dos entes masculinos, sejam eles pais, filhos, maridos ou, para os casos judaicos, a autoridade patriarcal-mor, que, em última instância, se identificava com Deus. Um protagonismo situado entre o fatalismo planificado e o voluntarismo individual. Elas eram uma personificação providencial, embora recheada de excepcionalidades inesperadas, portanto, dignas de louvor. Essas mulheres não agiam literariamente como feministas. E Diego de Valera (2005) não estava a meio caminho entre os tratadistas supostamente antifeministas ou profeministas, entre posturas misóginas ou filóginas. Isso seria uma forma anacrônica de ver o texto e o autor. As mulheres valerianas agiam como mulheres em função dos seus entes masculinos e como extensão deles a partir de virtudes hiperfemininas ou hipermasculinas.
Quando mais próximas desses ideais extremados, masculinos e ou femininos, tanto mais se reconhecia as performances dessas mulheres virtuosas dignas de defesa. O discurso valeriano era polêmico, idealizado e evidenciador de potencialidades comportamentais, legitimando as relativas mudanças de perspectiva à época de um humanismo ainda medieval. Diego de Valera, criticando seu tempo, também foi seu cúmplice, porque não deixou de lado as hierárquicas e complementaridades entre as dimensões unitárias do masculino e do feminino, das masculinidades e feminilidades. Suas virtuosas mujeres seriam “elites discriminadas” (numa expressão cara à historiadora María Antonia García de León), uma vez que a narrativa valeriana escolhe figuras femininas aristocráticas, portadoras de riquezas, títulos e dignidades. As excepcionalidades tornavam-nas dizíveis e visíveis sem que se deixasse de distingui-las e discriminá-las no jogo das relações de poder tecidas pelo gênero, mesmo quando o intuito fosse enaltecê-las (GARCÍA DE LEÓN, 1994).
Referências
ACCORSI, Federica. Los manuscritos de la Defensa de vituosas mujeres de Diego de Valera.Revista de Literatura Medieval,n. 21, p. 251-308, 2009.
ACCORSI, Federica. Un nuevo testimonio manuscrito del Triunfo de las donas de Juan Rodriguez del Padrón. Revista de Literatura Medieval.XIX, p. 275-293, 2007.
ACCORSI, Federica; BAUTISTA PÉREZ, Francisco; GAMBA CORRADINE, Jimena (eds.).La influencia de Alonso de Cartagena en la “Defensa de virtuosas mujeres” de Diego de Valera/Estudios sobre la Edad Media, el Renacimiento y la temprana Modernidad. San Millán de la Cogolla, La Semyr, CiLengua, el Semyr, p. 15-23, 2010.
ANDERSON, Patrícia Tatiana.Edición crítica del Tratado llamado defenssa de virtuosas mugeres de Mosén Diego de Valera. (Tese). Athens: University of Geórgia, 1996.
BAZÁN DÍAZ, Iñaki. La violencia legal del sistema penal medieval ejercida contra las mujeres.Clio & Crimen, n. 5, p. 203-227, 2008.
BUTLER, Judith.Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 185-201.
CONTRERAS, José Vitelio.Estudio y edición del Tratado en defenssa de virtuossas mugeres por Mosén Diego de Valera. Thesis (Ph. D.). Albuquerque: University of New Mexico, Dept. of Spanish and Portuguese, 1999.
CÓRDOBA, Martín.Jardín de nobles doncellas. Introdução de Padre Felix García. Madri: Coleção Joias Bibliográficas, 1953.
CÓRDOBA DE LA LLAVE, Ricardo. Adulterio, sexo y violencia en la Castilla medieval.Espacio, tiempo y forma. Serie IV, Historia moderna, n. 7, p. 153-184,1994.
CURI, Radhis.Reseña a Diego de Valera, En Defensa de virtuosas mujeres. Biblioteca Saaedra Fajardo de Pensamiento Político Hispano. p. 2. Disponível em: <Disponível em: http://www.saavedrafajardo.org/archivos/NOTAS/RES0023.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2019.
DANGLER, Jean. La teoria queer y la ibéria no-moderna.Lectora, v. 17, p. 15-23, 2011.
DEL PADRÓN, Juan Rodríguez. Triunfo de las donas. In:Obras Completas. Edição preparada por Cesar Hernandez Alonso. Madri: Editora Nacional, 1982.
GARCÍA DE LEÓN, Maria Antonia.Èlites discriminadas: sobre el poder de las mujeres. Barcelona: Anthropos; Santafé de Bogotá: Sigo del Hombre, 1994.
GIRAUDO, Tiago.Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 1973.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial.Cadernos pagu, v. 5, p. 07-41, 1995.
HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feministas. Estudos Feministas. Rio de Janeiro, n. 1, p. 7-32, 1993.
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Masculino/feminino. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude.Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Impresa Oficial do Estado, 2002. p. 137-150.
LE GOFF, Jacques. Prefácio. In: BLOCH, Marc.Os reis taumatúrgicos. O caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
LIMA, Marcelo Pereira.O gênero do adultério no discurso jurídico do governo de Afonso X (1252-1254). Doutorado (Tese). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2010.
LÓPEZ-RÍOS, Santiago. Diego de Valera y la literatura de mirabilia. In: SALVADOR MIGUEL, Nicasio; LÓPEZ RÍOS, Santiago; BORREGO, Esther (Eds.).Fantasía y literatura en la edad media y los siglos de oro. Madri: Iberoamericana Vervuert, 2004.
LOURO, Guacira Lopes.Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.Petrópolis: Vozes, 1997.
LUNA, Álvaro.Libro de las claras e virtuosas mugeres. Edição preparada por Manuel de Castillo. Toledo: Estabelecimento Tipográfico de Rafael G. Menor, 1908.
MAIER, Erica N.Los tratados en defensa de las mujeres virtuosas en la Castilla medieval: textos y contextos. Tese submetida à Faculty of The University of Georgia, 2005. Disponível em: < Disponível em: https://getd.libs.uga.edu/pdfs/maier_erica_n_200508_ma.pdf >. Acesso em: 12 abr. 2019.
MÉRCURI, Danielle O.Os letrados castelhanos no rastro das mulheres quatrocentistas: da defesa e da educação delas. Franca: [s.n.], 2016. Tese (Doutorado) UNESP. Disponível em: < Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/143458 >. Acesso em: 17 abr. 2018.
MÉRCURI, Danielle O. Entre a necessidade de lembrar e a recomendação de condutas às mulheres em Castela no século XV.Revista História e Cultura. Franca, v. 2, n. 3 (Especial), p. 574-589, 2013.
NIETO SORIA, José Manuel. Ser reina: un sujeto de reflexión en el entorno historiográfico de Isabel la Católica.E-Spania: Revue électronique d’études hispaniques médiévales, n. 1, 2006.
OHARA, Shima.La propaganda política en torno al conflicto sucessório de Enrique IV (1457-1474). Doutorado (Tesis) Universidade de Valladolid, Faculdad de Filosofía y Letras, Departamento de Historia Medieval, 2004, p. 153-153. Disponível em: < Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/nd/ark:/59851/bmc8d066>. Acesso em: 15 out. 2018.
REAL DE LA RIVA, César. Un mentor del siglo XV Diego de Valera y sus epistolas.Revista de literatura, Tomo 20, n. 39-40, p. 279-305, 1961.
RODRÍGUEZ VELASCO, Jesús D. La “Bibliotheca” y los márgenes. Ensayo teórico sobre la glosa en el ámbito cortesano del siglo XV en Castilla. I: códice, dialéctica y autoridad.eHumanista: Journal of Iberian Studies, v. 1, p. 119-134, 2001.
SABINO, Amanda Mantoan.Olhares franciscanos sobre os cultuos do oriente (séculos XIII e XIV). Mestrado (Dissertação) Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Unesp. Franca, 2018.
SCANDELLARI, Simonetta.Mosén Diego de Valera. Biblioteca Saavedra Fajardo de Pensamiento Político Hispânico, 2005. Disponível em: <Disponível em: http://www.saavedrafajardo.org/Buscador.aspx?busqueda=Simonetta_Scandellari>. Acesso em: 11 out. 2018.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.
SIMÓ GOBERNA, Lourdes. Una elegía epistolar a la muerte del Magnánimo. Universidad de Barcelona, 1998. Disponível em: <Disponível em: http://parnaseo.uv.es/Lemir/Revista/Revista3/Lourdes/Index.htm >. Acesso em: 11 out. 2018.
SOIHET, Raquel; PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero.Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, n. 54, p. 281-300, 2007.
TILLY, Louise A. Gênero, História das Mulheres e História Social. Cadernos Pagu, v. 3, p. 29-62, 1994.
TREVISAN, Mariana Bonat. A guarda da esposa e a obediência ao marido: a reciprocidade dos deveres conjugais masculinos e femininos nos tratados do rei D. Duarte e de Christine de Pisan (séc. XV).Revista Diálogos Mediterrânicos, n. 11, 2016.
VALERA, Diego de.Tratado en defensa de virtuosas mujeres [Manuscrito 1341 de la Biblioteca Nacional]. Edición de Rafael Herrera Guillén para la Biblioteca Saavedra Fajardo. Disponível em: <https://www.saavedrafajardo.um.es>. Acesso em: 21 abr. 2019.
VAN VEEN, Manon. La mujer en algunas defensas del siglo XV: Diego de Valera y Juan Rodríguez del Padrón y los mecanismos de género.Medioevo y literatura. Actas del V Congreso de la Asociacion Hispánica de Literatura Medieval. Juan Salvador Paredes Núñez (coord.)., v. l. n. 4, p. 465-474, 1995.
VARIKAS, Eleni. Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-Scott.Cadernos Pagu,v. 3, p. 63-84, 1994.
Notas
Autor notes
* E-mail: inperpetuum@uol.com.br