Artigo
Famílias de gays e lésbicas e o acesso à democracia no Brasil: o reconhecimento como família através do sistema de justiça
Gay and lesbian families and the access to democracy: the legal recognition
Famílias de gays e lésbicas e o acesso à democracia no Brasil: o reconhecimento como família através do sistema de justiça
Anos 90, vol. 27, e2020003, 2020
Universidade Federal do Rio Grande Sul, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Recepção: 30 Março 2019
Aprovação: 20 Outubro 2019
RESUMO: Minha proposta neste artigo é contar uma história recente sobre o reconhecimento social e jurídico das famílias de homens gays e mulheres lésbicas no Brasil, como uma pauta do movimento LGBT, que possibilita o exercício da democracia para essas famílias. O acesso a direitos, como a união estável e o casamento, inserido em uma ideia de democracia sexual, é destaque a partir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em maio de 2011 que reconheceu as uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo como família.
Palavras-chave: Famílias gays e lésbicas, Reconhecimento como união estável, Casamento, Democracia, Direitos Sexuais.
ABSTRACT: The purpose of this paper is to count a recent story about social and legal recognition of the families of gay men and lesbian women in Brazil, as an agenda of the LGBT movement, which enables the exercise of democracy for these families. Access to rights as marriage, inserted as an idea of sexual democracy, from legislative and judicial spheres, is highlighted in the Federal Supreme Federal Court decision in May 2011 that legalized same-sex couples as family entities.
Keywords: Gay and Lesbian Family, Recognized as stable union, Marriage, Democracy, Sexual Rights.
O artigo conta uma história recente do Brasil, sobre como a demanda pelo reconhecimento social e jurídico da conjugalidade de pessoas do mesmo sexo como uma família se tornou uma importante bandeira de luta dos movimentos LGBT. A partir da decisão do Supremo Tribunal Federal de 2011 que reconhece as conjugalidades gays e lésbicas como família há uma mudança social e outros reconhecimentos e direitos se desdobram a partir da decisão1, fazendo com que casais que vivenciavam experiências de homo/lesboparentalidade, mesmo que já tivessem reconhecidos direitos em relação a essas famílias de forma individualizada, houve uma ampliação de direitos e o reconhecimento social das conjugalidades.
A decisão reconhece uma possibilidade de experiências conjugais e de famílias gays e lésbicas de forma ampla, tornando-se um dos eixos centrais não só nos movimentos, mas também das experiências de gays e lésbicas, pensando o reconhecimento como família como uma possibilidade de exercer efetivamente a democracia.
Analiso a demanda pela normalização da conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo pelo Estado, inserida na luta democrática por direitos sexuais, numa ideia de democracia sexual2, como trata Eric Fassin (2008; 2009). Mesmo que se tenham demandas na esfera legislativa por direitos sexuais, para que alcancemos uma efetiva democracia, os direitos sexuais devem ser pensados como direitos humanos, atingíveis a todas as pessoas. No Brasil, o reconhecimento como famílias e o direito ao casamento foram concedidos através do sistema de justiça. De uma forma ou outra, a democracia sexual é buscada e atingida no tocante às questões de família e o acesso aos direitos advindas destas conjugalidades.
Assim, se o direito ao casamento foi autorizado através do Conselho Nacional de Justiça (2013), mesmo que o casamento seja visto como um ideal conservador para algumas pessoas, tradicional ou normatizador de comportamentos, parte dos casais de gays e lésbicas desejam o efeito simbólico do casamento e a possibilidade de um reconhecimento como uma família. Mesmo que autoras como Judith Butler (2003), por exemplo, questionem o casamento como um ideal conservador e burguês, na prática a possibilidade de casar, além de trazer visibilidade da conjugalidade gay e lésbica, permite a estes casais o acesso a direitos como família. Tratando-se de uma população já tão fragilizada e alijada de seus direitos, marcadas por experiências de homofobia e lesbofobia, sobretudo no âmbito da família, o que faz com que o direito ao casamento torne as conjugalidades protegidas e reconhecidas pelo Estado.
Desta forma, o acesso ao casamento e o reconhecimento da conjugalidade se traduzem em uma forma da concretização da democracia sexual 3, entre homo e heterossexuais. Fassin que analisa, a partir de uma perspectiva política, as questões relacionadas aos debates de sexo e gênero nos Estados Unidos e na França. Fassin aborda as questões sexuais, como o reconhecimento das famílias de gays e lésbicas, o direito a união estável e ao casamento, a partir de uma ideia que denominou de “democracia sexual”. Aponta o sociólogo que a temática, apesar das divergências apresentadas “à l’évidence, d’un pays à l’autre, et même d’um continente à l’autre, la diffusion de la politique homosexuelle du mariage s’inscrit dans le cadre plus large d’une politisation des questions sexuelles - soit que j’ai proposé d’appeler la ‘democratie sexuelle” (FASSIN, 2008, p. 99, tradução nossa)4. Assim, mesmo que sejam defendidas como saída para alguns casais as vivências de experiências de conjugalidades fluídas e não normalizadas pelo Estado, muitos casais almejam o casamento como estratégia de reconhecimento social, como um princípio de cidadania, de forma que sejam atingidos, em sua plenitude, os princípios constitucionais da igualdade e da não discriminação, por exemplo.
Neste artigo, trago o caminho percorrido pelos movimentos sociais, os debates travados durante as Conferências Nacionais LGBT no que se refere ao reconhecimento da família e do casamento entre pessoas do mesmo sexo; a saída encontrada no caso Brasileiro com o reconhecimento pelo Poder Judiciário com ênfase na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal de 2011 que reconheceu como união estável as relações entre pessoas do mesmo sexo e, posteriormente, a possibilidade do casamento através de determinação do Conselho Nacional de Justiça. E o que esperar dos dias atuais? Quais os desafios e estratégias?
Os movimentos LGBT no Brasil apresentaram como uma de suas pautas o acesso aos direitos às pessoas que vivenciam conjugalidades e experiências de homo/lesboparentalidade, fazendo com que essas pessoas sejam reconhecidas como família. Tem início com o surgimento do grupo Somos, em São Paulo, no ano de 1978 e, nesse momento, o movimento homossexual se traduz como associações “com o objetivo de defender e garantir direitos relacionados à livre orientação sexual e/ou reunir, com finalidades não exclusivamente, mas necessariamente políticas, indivíduos que se reconheçam a partir de quaisquer identidades sexuais” (FACCHINI, 2005, p. 20).
Estes movimentos são caracterizados por sua diversidade de práticas e concepções políticas, tratando-se, pois, de grupos heterogêneos, mas onde cada um contribui de alguma forma com suas proposições políticas e intervenções na sociedade. O conjunto de reivindicações da população LGBT aliado às lutas feministas ao longo das décadas de 1970 e 1980 permitiu que a Constituição Federal de 1988 incorporasse a ideia de igualdade entre homens e mulheres, o que foi fundamental para o reconhecimento das famílias de gays e lésbicas pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, o que será tratado neste artigo.
Entretanto, mesmo que a Constituição tenha incluído a proibição de discriminação com base no sexo, estando entre seus objetivos fundamentais a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, e, ainda, a inclusão do princípio da igualdade em “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, não incluiu a proibição por discriminação com base na orientação sexual. Arriola chamou de “preconceito antigay” e afirmou que este “não difere de nenhuma outra forma de discriminação tida como incompatível com a garantia constitucional de igualdade perante a lei” (ARRIOLA, 1994, p. 388).
Segundo Câmara (2002, p. 36), durante o período da Constituinte houve uma demanda de grupos homossexuais, como o Triângulo Rosa, para inclusão no texto constitucional, como na promoção de políticas públicas, leis e ações que pudessem ajudar a diminuir a discriminação contra os homossexuais, via partidos políticos, organizações da sociedade civil, OAB etc. Dessa forma, ainda que o movimento homossexual já tivesse abordado a temática dos direitos, seu significado não teve a importância que adquiriu com a atuação do grupo neste âmbito, principalmente durante a Constituinte de 1988. Câmara destaca a articulação realizada pelo grupo Triângulo Rosa com o movimento homossexual para reivindicar a inclusão da expressão “orientação sexual” na Constituição Federal. Entretanto, a expressão não constou do artigo quinto da constituição que foi promulgada em 1988. Mas, é com a proposta do Projeto de Lei no Congresso Nacional, no ano de 1995, que essas famílias buscam pela primeira vez a discussão do tema no contexto legislativo brasileiro, sendo que, em um primeiro momento, se buscava o reconhecimento como parceria civil (MELLO, 2005), e somente em 2011 e 2013 é que estas conjugalidades foram propostas como uma forma de família, seja na forma da união estável ou do casamento civil para gays e lésbicas. O historiador James Green afirma que a partir dos anos 70 é possível observar “o surgimento de um movimento brasileiro pelos direitos de gays e lésbicas [...] que conseguiram provocar debates nacionais sobre temas como parceria civil, discriminação e violência social contra homossexuais” (GREEN, 2000, p. 454-456), até a apresentação do projeto de Lei 1.151/1995, de autoria de Marta Suplicy, que foi importante para dar visibilidade ao debate. Conforme Grossi, Uziel e Mello (2007, p. 482):
Desde então, não só os homossexuais estão cada vez mais visíveis na sociedade brasileira, mas também a ideia de uma ‘família homossexual’ começa a disputar espaço com outras nas lutas de poder em torno das definições socialmente legítimas de conjugalidade e parentalidade.
O projeto de lei de autoria da então deputada Marta Suplicy inaugura a discussão legislativa sobre o reconhecimento legal da família formada por pessoas gays e lésbicas no Brasil. Esse acirrado debate foi acompanhado pelo sociólogo Luiz Mello, que mostra as tensões entre as/os parlamentares, em uma Comissão Especial, que existiu no período de 13 de junho a 10 de dezembro de 1996, formada para a discussão da temática. É importante destacar que, nesse primeiro projeto de lei, o termo utilizado foi união civil, sendo que o substituto desse projeto, de autoria do então deputado Roberto Jeferson, substituiu o termo por parceria civil. Mello destaca que a autora do projeto, Marta Suplicy, ressalta que este não prevê a constituição de família. Também no mesmo sentido é o depoimento do relator do substituto do projeto de lei que afirma “este não pretende instituir um casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo. [...] não se cria nenhuma entidade familiar para efeitos de proteção do Estado” (MELLO, 2005a, p. 68). Afirma Luiz Mello que “embora a preocupação em distingui-la do casamento e mesmo da união estável tendo como resultado indireto a negação de seu caráter familiar, em nenhum momento está caracterizado que a união homossexual não constituiria uma modalidade de família” (MELLO, 2005a, p. 61). Somente posteriormente é que a ideia de família pode ser incluída neste debate.
O que podemos observar é que os movimentos sociais, como o movimento feminista e o LGBT, formam propulsores em proposições que buscam dar visibilidade aos/as sujeitos/as, procurando que sejam respeitados os direitos individuais e coletivos.
Histórias das primeiras lutas LGBT pelo reconhecimento da conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo no Brasil
Em relação à temática do reconhecimento das famílias de gays e lésbicas, apesar do reconhecimento não ser a principal bandeira de luta do movimento homossexual brasileiro, a discussão foi incorporada principalmente em torno do projeto de lei de autoria de Marta Suplicy. Um espaço importante de reivindicação dos movimentos sociais, durantes os governos dos Presidentes Luiz Inácio Lula da Silva Lula e Dilma Rousseff, foram as diferentes conferências nacionais5 e sua importância como espaço de articulação dos movimentos sociais com o Estado. Em relação às conferências, explica Anahi Guedes de Mello, a partir do documento organizado por Moroni, em 2005, “são um espaço legítimo de interlocução entre o Estado brasileiro e a sociedade civil, a partir da participação direta da sociedade nos processos decisórios, através de instrumentos jurídicos e políticos que permitem a intervenção direta em todas as questões que dizem respeito aos interesses da população” (MELLO, 2012, p. 5). Em relação ao segmento LGBT, as conferências foram realizadas no Brasil apenas a partir do governo do presidente Lula, a primeira, realizada no ano de 2008, tratou do direito sexual como um direito humano, mas não tratou especificamente do direito ao reconhecimento das famílias ou parceiras formadas pelos casais e seus filhos e filhas, dentre seus princípios ou diretrizes. De acordo com o texto base da primeira conferência LGBT:
O pioneirismo do projeto incentivou o debate no Congresso Nacional em torno das demandas GLBT e atraiu outros parlamentares aliados à causa, dando abertura às ações da advocacy (incidência política) do movimento GLBT organizado na Câmara e no Congresso (BRASIL, 2008d, p. 10).
Em relação aos Anais da primeira conferência, a discussão sobre parceria civil aparece apenas como uma das setenta e três deliberações do eixo “Direitos Humanos”, em que há uma intenção de aprovações de leis que tratem das questões dos direitos das pessoas LGBT como direitos humanos: “aprovar imediatamente o Projeto de Lei 122/06 que criminaliza a homofobia, o PL 1156/96 que garante o direito da Parceira Civil entre pessoas do mesmo sexo, o PLC 72/2007 que autoriza a mudança de nome para pessoas transexuais e apoio ao PL denominado Estatuto de Família” (BRASIL, 2008a, p. 167). É importante ressaltar que nas conferências nacionais se fazem presentes os representantes dos órgãos governamentais e não governamentais, em que os movimentos sociais realizam uma articulação com o Estado, sendo que o principal objetivo das conferências é definir as políticas públicas para o setor.
Como resultado da primeira conferência nacional temos a implantação do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT, em 2009, e posteriormente a implementação do Programa Brasil Sem Homofobia e do Plano Nacional de Promoção dos Direitos Humanos e da Cidadania de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Mas, foi na segunda Conferência Nacional LGBT, convocada pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), antecedida por conferências municipais e estaduais, que a temática da união estável apareceu com mais vigor, sendo que como pesquisadora pude observar as disputas em torno da questão da união estável, da família e do casamento entre gays e lésbicas.
Ao realizar a análise da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal de 5 de maio de 2011, observei que somente o ministro Gilmar Mendes fez menção ao Plano Estadual de Enfrentamento à Homofobia e Promoção da Cidadania LGBT do Estado de São Paulo6, sendo que em relação à primeira conferência e ao plano nacional LGBT nenhuma referência foi feita pelos ministros nem ministras na ocasião de seus votos. Embora as questões aprovadas como diretrizes finais nas conferências não terem sido levadas em consideração em muitos dos espaços de poder e decisão, ainda assim entendo-os como importantes espaços democráticos. É o que concluiu a pesquisa coordenada por Luiz Mello “mesmo que as propostas aprovadas nessas conferências nem sempre se tornem norma legal e, principalmente, nem sempre sejam concretizadas, ainda assim são espaços importantes para o debate do tema e para a negociação de propostas na direção do enfrentamento ou, pelo menos, na caracterização dos problemas” (MELLO et al., 2012, p. 118).
Em relação à segunda conferência, alguns tópicos merecem destaque. Primeiro, a importância dada à temática da família de gays e lésbicas diante do convite feito ao ministro Carlos Ayres Brito para proferir a palestra magna da Conferência e a escolha do título: “Por um país livre da pobreza e da discriminação: Promovendo a Cidadania de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”. A partir deste título, percebo o destaque dado pela conquista de direitos à comunidade LGBT, sendo que a cidadania plena se dá pelo acesso mínimo a direitos, dentre eles, o reconhecimento da família formada por pessoas gays e lésbicas.
Durante a mesa de abertura, aqueles e aquelas que tiveram direito à palavra, lembraram o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, concedido em maio de 2011, a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal. A ministra Maria do Rosário, ao se referir a Carlos Ayres Brito, elogiou o ministro que, segundo a mesma: “atuou brilhantemente como relator na defesa da cidadania e dos direitos LGBT no Brasil e dos direitos humanos de um modo geral” e ainda frisou sua atuação no voto proferido, que “trata a questão de um novo conceito de família e de reconhecimento da dignidade humana” (BRASIL, 2011, p. 21).
Ainda na mesa de abertura, Toni Reis fez referência a Carlos Ayres Brito, Maria Berenice Dias e Debora Duprat, diante de suas atuações junto ao STF, considerando a decisão de 5 de maio de 2011 como “a maior conquista da cidadania LGBT na história do Brasil”7. Assim, mesmo que questões de família fossem incluídas nas diretrizes finais da conferência, percebi que o maior destaque foi dado para outras questões legislativas, tais como, a aprovação de uma legislação que criminalize a homofobia e necessidade de uma legislação que trate sobre a possibilidade de alteração do nome e do gênero de transexuais e transgêneros. As questões do reconhecimento de família e da possibilidade de um casamento, por exemplo, ainda que formalmente não fosse destaque nas diretrizes finais da conferência, são consideradas como uma possibilidade de acesso à cidadania plena, que era o tema central da Conferência. Percebi, no entanto, que a decisão do Supremo Tribunal Federal já se entendia ser suficiente para dirimir esta questão, sendo que, no momento, era preciso se unir para reivindicar direitos em relação à questão do enfrentamento da violência contra a população LGBT.
Outro ponto que merece destaque foi a importância dada pelo ministro Carlos Ayres Brito, durante sua fala na Conferência, à articulação realizada pelos movimentos sociais LGBT, no período que antecedeu o voto dos ministros durante o processo. Segundo o ministro, Toni Reis8 foi um importante articulador e referiu-se ao militante, falando nos seguintes termos: “algumas pessoas, no anonimato, nos ajudam muito. Por exemplo, eu quero dar um testemunho das várias vezes em que fui visitado por Toni Reis, lá no meu gabinete”9. O que quero demonstrar que a articulação dos movimentos sociais, por exemplo, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros ou ABGLT, presidida por Toni Reis, que diferente do que afirmou o ministro, não atuou ou atua no anonimato: as políticas públicas para pessoas LGBT e, ainda, a atuação junto ao Poder Judiciário não foi ou ainda é realizada de forma anônima: essa atuação é resultado de um projeto coletivo realizado através de movimentos constituídos e ativistas que atuam de forma contundente nestes diferentes espaços.
Legislações sobre família, conjugalidade e casamento no Brasil
Para adentrarmos a possibilidade de contar esta história é preciso pensar como o reconhecimento jurídico da conjugalidade gay e lésbica, que aconteceu em 2011, foi possível a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Nesse caminho, destaco a promulgação da Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, que regulamentou a união estável entre um homem e uma mulher no Brasil, considerando “como entidade familiar, a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família”, e posteriormente este conceito previsto também no novo Código Civil de 2002.
Até a Constituição de 1988 e a legislação que regulamentou a união estável em 1996, estes relacionamentos conjugais não originados através do casamento civil eram considerados ilegítimos, pois, anteriormente à Constituição de 1988, família, segundo os moldes jurídicos, somente era aquela constituída pelo casamento civil. O Estado então passou a reconhecer as uniões informais por lei, sendo que a união estável foi aprovada na Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, que alterou o artigo 226, parágrafo terceiro da Constituição Federal, legitimando a entidade familiar formada por um homem e uma mulher.
O ministro Luiz Fux, no termo aditivo10 ao seu voto proferido na decisão do STF sobre a união estável entre pessoas do mesmo sexo, ao se perguntar sobre o “o que é uma família?” conclui que “[...] a Constituição Federal só consagrou a união estável porque 50% das famílias brasileiras são espontâneas”, ou seja, a alteração da legislação brasileira apenas reconheceu a união estável devido ao fato de que esta forma de organização familiar é reconhecida no Brasil, estando apenas à margem do Estado.
Viver em conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo: o desejo do casamento
A conjugalidade pode ser entendida como relações afetivo-sexuais, [...] que condensam “um estilo de vida”, fundado em uma dependência mútua e em uma dada modalidade de arranjo cotidiano, mais do que propriamente doméstico, considerando-se que a coabitação não é regra necessária (HEILBORN, 2004, p. 11-12).
A vivência da conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo trata-se de um fenômeno que pode ser visibilizado nas sociedades contemporâneas, pois, como se percebe através das pesquisas de James Green e Eduardo Steindorf Saraiva, que analisaram as homossexualidades masculinas no Brasil, era comum que gays vivenciassem casamentos heterossexuais e mantivessem relações homossexuais simultâneas (GREEN, 2000; SARAIVA, 2007). Não especificamente em relação ao contexto brasileiro, Arnaud Lerch aponta que as profundas modificações nas formas de vivência das conjugalidades hetero e homossexuais nos últimos vinte anos fizeram como que os homossexuais que viviam a sexualidade de maneira clandestina, distante do resto de sua vida social, pudessem experenciar um novo modelo de vida (LERCH, 2008).
Não estou afirmando que a possibilidade de manter a vida sexual de forma clandestina não permaneça como um modelo nos dias atuais, mas que a pressão social para a constituição de uma família heterossexual, que impossibilitava a vivência conjugal homossexual, era mais evidente em outros tempos. O que pretendo demonstrar, a partir das pesquisas citadas, é que, em uma história recente, homens e mulheres que se entendiam ou não como homossexuais, mantinham práticas sexuais com pessoas do mesmo sexo e, principalmente, no contexto das classes médias brasileiras, cediam às pressões familiares e à imposição ao casamento heterossexual como resposta a esta norma social, mesmo que permanecessem realizando suas “escapadas homossexuais”, como caracterizou James Green. Éric Fassin, ao fazer referência à “historiografia homossexual”, em seu texto, aponta a necessidade de se contar à história da homossexualidade, pois “ce n’est pas une même homosexulité qui traverse, immuable et inchangée, l’histoire: le mots pour la dire, que se métamorphosent au gré des époques, disent aussi une histoire de l’homossexualité elle-même” (FASSIN, 2009, p. 99).11
Se não é uma mesma homossexualidade que atravessa a história, também as formas de vivenciar as relações afetivo-conjugais sofreram transformações. No contexto brasileiro, a família incorpora novas possibilidades e a inclusão de outros sujeitos, não somente formado pela díade heterossexual, com finalidade de procriação. A importância da família na experiência social brasileira, como instituição enaltecida, protegida e incentivada. A centralidade da família fez com que as conjugalidades de pessoas do mesmo sexo pudessem passar de um modelo informal para um novo modelo que permite, inclusive, ser formalizado através do casamento civil, e como já demonstrei culturalmente e juridicamente o casamento foi por séculos a única possibilidade de formalização de uma família no Brasil.
Assim, a vivência da conjugalidade “que há algumas décadas pareceria um puro e simples paradoxo já que a identidade gay e o casamento eram visto como opostos” (MISKOLCI, 2007, p. 103) atualmente é marcada pela possibilidade do casamento. Desta forma, o desejo do casamento é comum a todas as pessoas, já que não diferentes formas de sociabilidade, pautados por uma ideia de amor romântico. Se, como sugerem Borrilo e Fassin (1999), estes casais propõem uma nova roupagem ao conceito de família, estas têm o condão de modificar as definições sociais do que é considerado família.
A justiça como uma forma de sair do armário: aspectos da decisão do Supremo Tribunal Federal de 2011
Através de algumas reflexões sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal de maio de 2011, pretendo observar como, através da via judicial, foi possível o reconhecimento das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo.
Michel Bozon afirma que “tanto a visibilidade, quanto a aceitação social crescente das orientações sexuais alternativas fazem parte dos elementos que contribuem para redefinir o horizonte da experiência sexual para os indivíduos” (2004, p. 53). Ou seja, se de um lado esses casais pretendiam manter suas relações afetivas em segredo, preservando a intimidade, afugentando comportamentos homofóbicos, por outro lado esse permanecer no “armário” traz consequências importantes, e aqui falamos das consequências jurídicas da manutenção da invisibilidade.
Para combater as práticas homofóbicas das quais são vítimas os sujeitos que se identificam ou não como homossexuais, uma das estratégias propostas pelos movimentos gays e lésbicos, principalmente dos EUA, foi o chamado coming out, sendo que a expressão traduzida para a língua portuguesa se refere ao “sair do armário”, ao se “assumir”, como forma de dar visibilidade à experiência homossexual.
Essas formas de dar ou não visibilidade às uniões de pessoas do mesmo sexo podem ser pensadas a partir de Eve Kosofsky Sedwick que, trata do “armário” como um regime “com suas regras contraditórias e limitantes sobre privacidade e revelações, público e privado, conhecimento e ignorância” (2007, p. 19). Como afirma a autora, “cada encontro com uma nova turma de estudantes, para não falar de um novo chefe, assistente social, gerente de banco, senhorio, médico, constrói novos armários” (SEDWICK, 2007, p. 22). Isso quer dizer que sair do armário não é uma coisa definitiva, mas que se constrói em cada relação social.
Kate Weston explica o coming out como tática: “sometimes called the Harvey Milk philosophy, after the first openly gay person to be elected city supervisor in San Francisco, coming out to others provided an important but limited tactic for countering heterosexism and building a gay movement” (1991, p. 47, tradução nossa).12 Esse ato de “sair do armário”, segundo Michel Bozon, “tornou-se um rito de passagem e um ato político” (2004, p. 54).
Segundo o antropólogo Jérôme Courduriès, a possibilidade do registro do Pacs no contexto francês pode ser entendida como uma forma de coming out, pois o registro implica em uma forma de visibilidade do casal, já que este implica o registro na certidão de nascimento, o que impede a permanência no “armário” (COURDURIÈS, 2011).
No entanto, ao mesmo tempo em que o se assumir pode enclausurar, também pode ser um aliado quando se busca um direito. Ao explicar a noção de “armário”, Eve Sedwick (2007) entende essa expressão como além de apenas viver sua homossexualidade de forma discreta, não revelada, ou revelada a alguns poucos, questionando de forma contundente o “assumir-se” e faz uma reflexão sobre o fato de que isso quase nunca é feito de forma integral, ou com todos, ou o tempo todo. Assim, gays e lésbicas estariam o tempo todo dimensionando e ressignificando suas experiências, sejam elas sexuais ou não, de acordo com quem são seus interlocutores, e em qual contexto se encontram. Na dicotomia conhecer/ignorar, estão e estarão em jogo muito mais que a aceitação familiar, de amigos, de colegas de trabalho, mas possibilidades mais amplas de se manter inserido nas redes sociais que definem o relacional de cada indivíduo. E essas conexões vão se dando ao passo em que esses indivíduos se relacionam e se colocam enquanto família, fazendo com que reconheçam esse grupo como uma entidade familiar.
Assim, mesmo que ainda não exista uma legislação, foi a partir das proposições de sujeitos individuais e coletivos que procuram seus direitos na Justiça é que podemos pensar em efetivas transformações, até o presente momento. O que podemos concluir é que enquanto a possibilidade de reconhecimento destas uniões não avança no Congresso brasileiro, a Justiça tem sido a principal alternativa para isso, sendo que esta impulsionada pelas discussões propostas por movimentos sociais, como o LGBT. Segundo Luiz Mello, “o Judiciário é a instância que, na ausência da lei, normatizará o amparo legal às relações entre pessoas do mesmo sexo, da mesma forma como procedeu em relação às uniões concubinárias” (MELLO, 2005, p. 22).
No mesmo sentido, foi o posicionamento do ministro Gilmar Mendes, ao proferir seu voto durante o julgamento da ADI 4277, pelo Supremo Tribunal Federal que afirmou “esta coisa que não podemos fazer, estamos nos comportando como legislador positivo”, o que ele afirma ao explicar que o STF se posicionou na ausência ou inércia do poder legislativo brasileiro.13 Segundo ele, “[...] o Tribunal, dando uma resposta de caráter positivo”, ou seja, está fazendo o papel do Poder Legislativo, entretanto o faz de forma positiva para a população. Neste sentido, o ministro trouxe como exemplo a promulgação da lei do divórcio e o reconhecimento dos direitos da então conhecida como concubina, através dos casos concretos. O ministro Lewandowski entende, conforme deixou assinalado em seu voto proferido na mesma decisão, que “nós estamos ocupando um espaço que é do Congresso Nacional”14. Segundo o ministro, devido à “inércia ou incompetência do Parlamento em regular esta matéria, por razões que não nos compete examinar”15. Da mesma forma, o Ministro Gilmar Mendes também caracterizou como inércia a não atuação do Congresso Nacional, tendo em vista a inexistência de legislação que regule a matéria. O ministro Cezar Peluso, último a proferir seu voto, afirma que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a matéria “convoca o Poder Legislativo, o Congresso Nacional a colaborar com a decisão da Suprema Corte para superar todas as situações que são, na verdade, dramáticas do ponto de vista social, porque resultantes de uma discriminação absolutamente injustificável”16.
A expansão do Poder Judiciário, diante da inoperância do Poder legislativo brasileiro num contexto democrático, é chamada de “judicialização da política”, ou seja, o fato da jurisdição constitucional invadir a competência do legislador diante de sua inoperância (VIANNA; BURGOS; SALLES, 2007).
Esta invasão, então, é percebida pelos próprios ministros; entretanto, segundo os mesmos, traduz-se em uma forma do Supremo Tribunal Federal impulsionar o Congresso Nacional a aprovar determinadas legislações. Ao se referir a este jogo de forças entre os dois poderes, o ministro Marco Aurélio afirma “ainda bem que acreditam em nosso taco, ainda bem”17, que, segundo ele, a população ainda acredita na atuação do Judiciário, diante da inoperância do legislativo, o que se dá através da judicilização da política.
Na decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, o temo homoafetividade foi utilizado na decisão “para identificar o vínculo de afeto e solidariedade entre os pares ou parceiros do mesmo sexo, que não constava dos dicionários da língua portuguesa”18. De acordo com o ministro Carlos Ayres Brito, o termo está em oposição às terminologias homossexualismo e homossexualidade, que ainda são carregadas de estigmas e preconceitos, portanto foi necessária uma nova terminologia jurídica. Já o ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, em seu voto proferido no mesmo processo, entende a homoafetividade como um “fenômeno que se encontra fortemente visível na sociedade”.19 Carlos Ayres utiliza a expressão relação homoafetiva, até mesmo como um modo de vida, quando contrapõe a possibilidade de as pessoas serem “felizes heterossexualmente” ao lado de “felizes homossexualmente”, e finaliza afirmando que somente podem ser “felizes homoafetivamente”, concluindo que esta expressão é atualmente utilizada no campo jurídico e não só neste.
Para o ministro Marco Aurélio, o não reconhecimento do afeto nestas relações contraria os princípios constitucionais, dentre eles o da dignidade da pessoa humana, pois consideraria “[...] o afeto entre elas é reprovável e não merece respeito da sociedade, tampouco a tutela do Estado, o que viola a dignidade dessas pessoas, que apenas buscam o amor, a felicidade, a realização”.20 Perceber a existência do afeto nestas relações conjugais possibilitou reconhecer estes casais como entidade familiar no contexto brasileiro. Luiz Fux, ao mencionar o artigo 226 da Constituição, “pressupõe a existência de relações de afeto, assistência e suporte recíprocos, bem como a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum”21. O ministro Cezar Peluso acrescenta ainda que o referido artigo “não exclui outras modalidades de entidade familiar”.22 Mais do que perceber o afeto, o amor é enfatizado como argumento que possibilitar reconhecer estes casais como família, pois, segundo o ministro, “o que faz uma família é, sobretudo o amor, e não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar”.23 Mas o que seria este “verdadeiro amor familiar”, o que caracterizaria o “verdadeiro amor”?
A partir desta possibilidade e desta maior aceitação, é que, em torno da homoafetividade e união homoafetiva, se construiu não só um novo termo jurídico e um novo vocábulo no dicionário, como alertou o ministro Carlos Ayres Brito em seu voto, mas também uma nova área do direito, que englobaria todas as reivindicações dos direitos dos homossexuais. A procuradora geral, Débora Duprat, ao redigir a petição que iniciou o processo de reconhecimento da entidade familiar entre pessoas do mesmo sexo, considerou a valorização do afeto como “a nota essencial das entidades familiares, introduzido pela constituição de 88”, sendo que para a procuradora “estas parcerias [...] que podem caracterizar-se pela mesma comunhão e profundidade de sentimentos presentes nas relações estáveis entre pessoas de sexo oposto”.
Percebo que, se por um lado, o reconhecimento da conjugalidade de pessoas do mesmo sexo é postulado a partir dos direitos sexuais, exigindo um efetivo respeito à autonomia dos indivíduos, à liberdade sexual, a partir dos princípios constitucionais; por outro, busca-se o reconhecimento com base no afeto, principalmente no campo do direito de família, distanciando-se das questões dos direitos sexuais. Para Roger Raupp Rios, “a liberdade sexual vai muito além da possibilidade de manter vida familiar com pessoa do mesmo sexo e receber proteção adequada” (2013, p. 14), o que poderia levar em uma “leitura mais apressada ou conservadora, condicionar-se a compreensão do conteúdo jurídico dos direitos sexuais à convivência familiar” (2013, p. 15).
Penso que dar ênfase à sexualidade e à liberdade sexual não foi tarefa fácil, considerando o viés conservador dos poderes Judiciários e Legislativos Brasileiros, sendo que enfatizar o afeto nestas relações e afastar a sexualidade se tornou mais fácil de ser reconhecido como direito e digerido pelos ministros e ministras como um direito a ser respeitado.
Em relação à decisão, destaco como importante a participação de diversas entidades na condição de amici curiae24, e a atuação junto aos ministros que produziram seus votos, trazendo conceituações sobre família, sexualidade e gênero, dentre outros.
O processo pode ser entendido como trilha, travessia, caminho. A juíza Carmem Lúcia afirma que “este julgamento demonstra que ainda há uma longa trilha, que é permanente na história humana, para a conquista de direitos”25. A decisão é o resultado de dois processos que tramitaram no Supremo Tribunal Federal. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), número 4277, ajuizada pela Procuradoria Geral da República e o pedido de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), número 132, ajuizada pelo representante do Estado do Rio de Janeiro, o Governador do Estado senhor Sérgio Cabral, denominado de arguente, sendo os arguidos a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e o Tribunal de Justiça do mesmo Estado.
A ADPF tinha como objetivo reconhecer como uniões estáveis as chamadas uniões homoafetivas, buscando a interpretação conforme a Constituição e aos artigos 19, II e V1, e 33, ambos do Decreto-Lei estadual nº 220/752. O objetivo da ação foi assegurar aos servidores públicos estaduais do Rio de Janeiro, que vivem em conjugalidade com pessoas do mesmo sexo, os benefícios previstos no Decreto-Lei estadual nº 220/752. Já a ADI tinha como finalidade conferir “interpretação conforme a Constituição” em relação ao artigo 1.723 do Código Civil. Ao final, o processo, que inicialmente foi ajuizado como Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, foi conhecido como ação direta de inconstitucionalidade, sendo ambas ADPF 132 e ADI 4277 julgadas em conjunto, ou seja, foi dada uma só decisão aos dois processos.
A decisão final foi no sentido de considerar que a união contínua, pública e duradoura entre duas pessoas do mesmo sexo seja considerada união estável, como entidade familiar, conforme determina a Constituição Federal em seu artigo 226 e no Código Civil Brasileiro em seu artigo 1273. Assim, enquanto a legislação brasileira não disciplina sobre os direitos de gays e lésbicas quando mantêm relações afetivo-conjugais, fazendo com que os casais homossexuais não tenham igualdade jurídica aos casais heterossexuais, a decisão do STF vem suprir esta lacuna legislativa26. Para Maria Eugenia Bunchaft, “o Constitucionalismo Democrático de Post e Siegel legitima a atuação do judiciário por meio da utilização de princípios constitucionais de abertura argumentativa no processo de interpretação constitucional, potencializando o engajamento público expresso em termos de interações entre as Cortes e os movimentos sociais” (BUNCHAFT, 2011, p. 158).
A partir destes conceitos é que se trata de uma decisão histórica, em que a atuação dos ministros e ministras, da procuradora geral da República, Deborah Macedo Duprat que escreveu a petição inicial deste processo, sendo o seu trabalho elogiado por ministros como Celso de Mello, entre outros. Também foi importante a atuação dos advogados e advogadas das associações que representam a sociedade civil, que atuaram como amicus curiae.
O Supremo Tribunal Federal é considerado a última instância do Poder Judiciário brasileiro, responsável por decidir processos que tratem de infração à Constituição Federal. Dentre as funções do Supremo Tribunal Federal, destaca o ministro Celso de Mello, a “proteção das minorias analisada na perspectiva material de democracia constitucional”. Ou seja, proteger as consideradas minorias27 em um estado democrático, o que ele interpreta como “defender as minorias contra eventuais excessos da maioria [...] diante da inércia do Estado”28. Trata-se aqui de uma minoria exposta a “situações de vulnerabilidades jurídica, social, econômica ou política”29.
O fato de ser uma decisão unânime é destaque, sendo considerado um “marco histórico na jurisprudência nacional” (RIOS; GOLIN; LEIVAS, 2011, p. 7). Mesmo que todos os ministros e ministras tenham sido unânimes em reconhecer que a união entre pessoas do mesmo sexo como união estável, nos moldes do que preceituam o Código Civil Brasileiro e a Constituição Federal de 1988, as argumentações que levaram ao convencimento de cada ministro e ministra foram bastante diversas. Assim, foram destaques os princípios constitucionais, além da abordagem dos conceitos como gênero, Estado laico, liberdade sexual, homofobia, homoafetividade. Também foram destaques alguns autores do meio jurídico, como de outras áreas do conhecimento, demonstrando a interdisciplinaridade trazida pela decisão, o reconhecimento da ausência de uma legislação específica quanto à temática e, por fim, a citação de decisões e legislações de outros países em relação aos direitos das pessoas LGBTQ+, principalmente, quanto ao reconhecimento da união estável e o casamento.
Depois do reconhecimento como união estável, o Conselho Nacional de Justiça-CNJ, em resolução de 14 de maio de 2013, autorizou a “habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo”.30
A referida resolução assinada pelo então ministro Joaquim Barbosa autoriza a realização de casamento entre pessoas do mesmo sexo nos cartórios de todo o Brasil. Assim, mesmo que o CNJ determine que os cartórios devam realizar os casamentos civis, ainda não há uma alteração legal (ainda que haja o projeto em tramitação no Senado Federal que busca alterar o dispositivo legal que trata do casamento para incluir que este possa entre duas pessoas, e não mais entre o homem e a mulher).
Desta forma, em Estados como o de Santa Catarina, diversos casais de pessoas do mesmo sexo tiveram seus casamentos anulados, especialmente pelo promotor de justiça Henrique Limongi, em total desrespeito ao entendimento do STF e do CNJ. Em 2018, casais de mesmo sexo de Santa Catarina foram intimados sobre anulação de seus casamentos pelo promotor de Justiça, o que causou repercussão na mídia e nos movimentos LGBTQI.31
Considerações finais
“Os temas de gênero e sexualidade chegaram ao terreno da alta política, e dizem respeito hoje em dia aos rumos de nossa democracia” (SEFFNER, 2016, p. 16).
Temas que envolvem sexualidade e gênero foram trazidos ao debate a todo momento durante o período pré-eleitoral em 2018 e mesmo durante as eleições. Na política e principalmente nas eleições presidenciais, a discussão sobre um suposto kit gay distribuído nas escolas, que efetivamente não foram distribuídos, roubaram a cena e fizeram com que a suposta afronta a moral e os bons costumes da família tradicional brasileira, aliado ao suposto incentivo à sexualidade, foram considerados um dos motivos pelos quais o candidato conservador foi eleito presidente.
A sexualidade está no centro da seara presidencial e um único conceito de família também. Por esse motivo, diante desse quadro proposto pelo novo governo, o direito destas pessoas constituírem família é uma verdadeira afronta, pois não se enquadram no modelo de família proposto pelo presidente e seu governo. Destaque para a nova Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Senhora Damares Alves, que sugere que o modelo de família seja representado pela mãe cuidadora dos filhos que não trabalha fora. Para esse governo, o único modelo de família permitido é da família nuclear heterossexual, por esse motivo, desde a eleição em 2018, viu-se uma verdadeira corrida aos cartórios para a realização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo nas mais diferentes cidades do país, incentivados pela própria Comissão Nacional da Diversidade da OAB, que vê um atual governo como ameaça aos direitos da população LGBT já conquistados.
A guerra no Brasil é pelo que essas famílias representam o antinatural, o imoral, o que foge a mãe cuidadora, “bela, recatada e do lar”, pois, nesse caso, o cuidado das crianças é compartilhado por seus pais ou suas mães. Não haverá mais retrocesso, pelo menos no aspecto social, pois essas famílias já saíram do armário e estão nas ruas, nas escolas, vivenciando e experienciando seus modos de fazer família e reivindicando os direitos das mesmas. Como enfrentaremos retrocessos legais em afronta à democracia já conquistada, cabe a nós, cidadãos, cidadãs e movimentos sociais, ser resistência.
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Notas
Autor notes
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