RESISTÊNCIAS AFRICANAS: NOVOS PROBLEMAS E DEBATES

O conceito da resistência na África colonial: recompondo um paradigma

The concept of resistance in colonial Africa: recomposing a paradigm

Felipe Paiva
Universidade Federal Fluminense, Brasil

O conceito da resistência na África colonial: recompondo um paradigma

Anos 90, vol. 26, e2019201, 2019

Universidade Federal do Rio Grande Sul, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Recepção: 18 Março 2019

Aprovação: 02 Maio 2019

Resumo: Este trabalho pretende analisar as tendências historiográficas que buscaram definir um conceito historiográfico para a resistência anticolonial africana. Intenta-se inicialmente compreender o surgimento dos estudos acerca da resistência africana, inserindo-os em seu devido contexto histórico. Posteriormente, apresentamos criticamente algumas ressalvas contemporâneas feitas a esse modelo. A última parte do trabalho é composta por uma proposta teórica própria para a resistência anticolonial africana.

Palavras-chave: África, Resistência, Historiografia, Colonialismo.

Abstract: Analysis of the historiographic trends that sought to define a historiographic concept for the African anticolonial resistance. It seeks to understand the emergence of studies on African resistance, inserting them in their due historical context. Subsequently, we present critically some contemporary caveats made to this model. The last part of the work is composed of a theoretical proposal proper to the African anti-colonial resistance.

Keywords: Resistance, Historiography, Colonialism.

Propomos neste trabalho uma incursão pelo terreno da teoria historiográfica. Mais precisamente, analisamos algumas das principais contribuições historiográficas para a demarcação conceitual da resistência anticolonial africana. Neste percurso seguiremos três passos: 1) história da consolidação do conceito da resistência e uma análise de seus primeiros acólitos à época das independências africanas; 2) uma análise sobre as críticas e ressalvas feitas ao conceito da resistência; 3) uma proposta conceitual própria para o fenômeno da insubordinação africana ao jugo colonial.

A palavra “resistência”, enquanto conceito historiográfico (i.e. palavra norteadora da narrativa histórica), foi moeda corrente nos trabalhos acerca da África colonial entre os anos de 1960 e 19801. Por esta época, um conjunto mais ou menos coeso de historiadores buscou, por meio da documentação então disponível, demarcar tanto as tipologias de iniciativas e reações africanas anticoloniais, como temporalidades próprias a estas.

À guisa de contextualização introdutória, cumpre lembrar que entre os anos de 1960 e 1970 ainda estavam em curso algumas das guerras de libertação nacional, a exemplo das então colônias portuguesas - Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Já nos anos 1980 praticamente todas as nações africanas encontravam-se formalmente independentes e mergulhadas em problemáticas pós-coloniais: regimes autoritários, guerras civis, golpes de Estado. Essa diferença de conjunturas explica, em parte, o posterior abandono do conceito a partir dos anos de 1980, bem como as duras críticas que sofreu nos anos de 19902.

Quando o conceito começou a ser correntemente utilizado, em meados dos anos de 1960, havia uma necessidade premente de colocar os conflitos de libertação em uma perspectiva mais ampla, ao mesmo tempo em que também se fazia necessário devolver ao africano o caráter de agente da sua própria história. As escolhas terminológicas dos historiadores estavam, dessa forma, intimamente relacionadas ao entorno político do momento. A onda de conflitos libertadores ocorridos no pós--segunda guerra levou, em grande medida, os historiadores a explicarem tais conflitos recorrendo ao passado. A resistência tornou-se, assim, a “dimensão histórica” do moderno nacionalismo pan-africano (VAIL; WHITE, 1986, p. 193).

I

Em artigo publicado em 1968 numa publicação que permanece um verdadeiro marco no que concerne à historiografia africana/africanista - (Emerging themes of African History, organizada por Terrence Ranger e prefaciada pelo então presidente da Tanzania Julius Nyerere) -, Basil Davidson lança um clamor para que se atente para o papel central da resistência na história da África. O autor argumenta que essa resistência, sempre incessante, teria vindo de “longa data”, constituindo-se em “tradições” que possuiriam formas e características diferentes (DAVIDSON, 1968, p. 177).

A argumentação de Davidson desenvolve-se em dois sentidos. De um lado, ele insiste na importância metodológica do conceito para o correto entendimento dos fenômenos mais recentes que então se desenrolavam em solo africano. Neste caso, as lutas pelas independências nacionais. A história africana ofereceria “tipologias de iniciativas e reações” que, se corretamente mapeadas, poderiam corrigir métodos e discursos advindos da retórica historiográfica colonial (DAVIDSON, 1974, p. 62). De outro lado, estudos baseados no conceito da resistência provariam que esta atuou - e ainda atuaria - como estimulante no desenvolvimento dos povos africanos (DAVIDSON, 1968, p. 178).

A questão é, portanto, desde o seu início, tanto historiográfica quanto política. Por este motivo, não foi o acaso que providenciou que o prefácio da coletânea em que Davidson lança seu apelo para o estudo da resistência tenha sido redigido pelo então chefe de Estado da Tanzânia, Julius Nyerere. Sendo este, à época, um grande expoente das teorizações ideológicas anticoloniais, pan-africanas, terceiro-mundistas e socialistas, gozando de notável prestígio internacional.

Um tratamento mais sistemático para o problema veio ainda na década de 1960, com a publicação do longo artigo de Terence Ranger - Primary Resistance and Modern Mass Nationalism. Nesse estudo, Ranger lança mão das categorias que se fariam usuais a partir de então. Para Ranger, haveria uma tipologia básica para a resistência. As iniciativas anticoloniais deveriam ser lidas enquanto “resistências primárias” e “secundárias”. As primeiras diriam respeito àquelas iniciativas e reações desenvolvidas durante a expansão colonial. De outro lado, o “moderno nacionalismo de massas” - ou “resistência secundária” - corresponderia às reações desenvolvidas principalmente no pós-segunda guerra (RANGER, 1993).

De acordo com ele, os ditos movimentos primários de resistência formaram o ambiente em que, posteriormente, a política anticolonial se desenvolveu. A resistência teria tido profundos efeitos, também, sobre a política e as atitudes dos colonizadores. Neste sentido, teria havido uma “interação complexa” entre as manifestações primárias e secundárias, que, muitas vezes, se sobrepuseram uma à outra. A “resistência primária” semeou projetos que seriam desenvolvidos futuramente, servindo de inspiração para o “moderno nacionalismo de massas” (RANGER, 1993, p. 19). Trata-se de demonstrar o “sentido da resistência”. De onde surge e para onde se encaminha.

A tese de Ranger alcançou tamanho prestígio que escapou ao círculo especializado de estudos africanos. Figuras de renome, como Edward Said, avalizaram sua interpretação. Finalmente teria ficado demonstrada a continuidade da “luta moral e intelectual [...] da resistência nacionalista ao imperialismo”. Tal resistência, portanto, “prosseguiu por décadas, tornando-se parte orgânica da experiência imperial” (SAID, 2011, p. 312).

Esta ideia pautada em termos de manutenção de alguma “tradição” opositiva à modernidade colonial invasora norteou, desde então, os estudos acerca da resistência africana. Eventualmente, esse apego à tradição ganhará ares de uma história régia, fazendo da resistência quase um monopólio das antigas elites pré-coloniais. Albert Adu Boahen, por exemplo, afirmou que “na sua esmagadora maioria, autoridades e dirigentes africanos foram profundamente hostis a essa mudança e declararam-se decididos a manter o status quo e, sobretudo, a assegurar sua soberania e independência” (BOAHEN, 2011a, p. 3-4).

Por outro lado, foram realizadas tentativas de enxergar a “tradição” - e sua correlata, a resistência - como uma faina mais plural, menos elitista. Uma tentativa neste sentido foi realizada já nos anos de 1970 pelo intelectual queniano Ali Mazrui.

De acordo com Mazrui, o protesto africano e, por consequência, a capacidade do africano em resistir ao colonialismo, assumiu caráter conservador quando do primeiro contato entre a África e as culturas estrangeiras. Os chamados “movimentos de resistência primária” de Ranger teriam sido, assim, sintomas do protesto pela conservação do status quo. Posteriormente, já com o status quo colonial estabelecido, os movimentos religiosos iriam animar a nostalgia do passado. Fosse essa imagem do passado real ou imaginária. Seriam, portanto, protestos pela restauração (MAZRUI, 1970, p. 1189). A “tradição” de resistência orbita agora as esferas intrinsecamente conservadoras de soberanos como também à restauração encabeçada por forças populares ciosas de seu modo de vida próprio, abrindo margem para os ulteriores conflitos pela libertação nacional.

Tempos depois, Mazrui iria amadurecer sua teoria da insurgência anticolonial africana, propondo variações em torno do tema da tradição. A resistência responderia não ao estabelecimento de uma única tradição insurgente, antes a no mínimo cinco: 1) a de tipo guerreira; 2) a vinculada à jihad; 3) a do radicalismo cristão; 4) a da mobilização política não violenta e, por fim; 5) a tradição da guerrilha, também denominada como estratégia de luta armada pela libertação. Devemos ficar atinentes ao título do trabalho onde essas ideias são apresentadas: Procurai primeiramente o reino do político. As resistências anticoloniais amadureceriam com o tempo até alcançar o aludido “reino do político”, espaço da modernidade política definida em termos de Estado-nação (MAZRUI, 2011, p. 134, passim).

O problema aqui é seu ar teleológico-evolutivo. Em um momento existe o “primário” (“pré--político” porque “religioso”), ele deve seguir rumo ao “político (“nacionalismo de massas”). O nacionalismo revolucionário pan-africano surge, nesse ínterim, como “tipo ideal realizado na evolução histórica”, para usarmos a expressão de Thompson (1981, p. 57).

De antemão, cabe dizer que em lugar de opor tradição e modernidade para definir a resistência, acreditamos ser mais frutífero atentar para o caráter desigual e irregular das transformações da resistência, tomada enquanto fenômeno concreto. Descobrindo, assim, elementos “tradicionais” no período “moderno” e vice-versa, sem engendrar em uma fórmula opositiva em que um seria desenho acabado e o outro rascunho preparativo feito às pressas, intempestivamente. No afastaríamos, assim, de tipos ideias historicamente evolutivos.

Por este motivo, não é papel de uma teoria historiográfica propor “modelos” ou “categorias” a serem aplicadas na narrativa histórica. A teoria tem, na verdade, um papel muito mais modesto do que pretendem os acadêmicos. Ela deve legitimar o uso do conceito da resistência por uma opção ao mesmo tempo metodológica e política. Eventuais categorizações mais precisas devem partir da pesquisa de campo.

Abordagens desse tipo foram tentadas por membros desta mesma geração historiográfica. Allen Isaacman e Jan Vansina, por exemplo, são bons exemplos nessa direção. Segundo eles, os abusos criados pelo sistema colonial capitalista na África Central geraram “Protestos dos operários e camponeses”. “Evidentemente, o que se reclamava era mais a correção de algumas situações intoleráveis do que a supressão do sistema repressivo que as provocava”. O caráter esporádico dessas manifestações teria feito com que “boa parte dessa oposição local fosse ignorada tanto por seus contemporâneos como pelos historiadores”. Inobstante a isto, concluem os autores, “a ‘resistência cotidiana’, a insubmissão, o ‘banditismo social’ e as insurreições caponesas constituíram importante capítulo dos anais anticolonialistas da África” (ISAACMAN; VANSINA, 2011, p. 204).

Vemos, assim, uma diferença de tratamento a ser sublinhada. De um lado, modelos de teoria forte (Mazrui), com categorizações e subcategorizações abstratas, de outro lado, modelos mais circunscritos a realidades históricas mais específicas (Isaacman e Vansina). Entre eles, um paradigma que torna o diálogo possível pela proposição conceitual básica (Ranger). Em que pesem essas divergências de tratamento, há um elemento essencial que os une. Qual seja, a existência de um vínculo entre as iniciativas coloniais do século XIX e as ulteriores movimentações pela independências, datadas do pós-segunda guerra.

Assim acontecia, pois, estes historiadores, personagens participantes que eram em seu tempo, sentiam, em graus distintos de mobilização efetiva, a necessidade política de dotar de consciência histórica a inflexão política que transcorria diante de seus olhos. Através de um constructo histórico que forjasse uma identidade própria, legitimava-se a soberania pretérita - dos Estados tombados pré-coloniais - bem como a soberania presente e futura - da África independente e pós-colonial.

É como se quanto mais consciente de sua identidade fossem os resistentes - “modernos” ou “tradicionais” - mais tendessem a proteger-se no passado, utilizando a história como forma de adquirir autoridade no presente, legitimando em simultâneo tanto o intuito de manutenção soberana dos Estados africanos tombados pelo domínio colonial quanto a transformação social que as independências almejavam.

Adentra-se, neste ponto da análise, na questão mais espinhosa de toda a discussão acerca da resistência anticolonial africana. Aquela que diz respeito à sua temporalidade. Mais importante do que classificar como ela, a resistência, acontece - isto é, sua tipologia - é mapear em que tempo ela ocorre.

Coube a Terence Ranger, em uma atualização do seu artigo de 1968, levar a cabo a discussão sobre o caráter “tradicional e moderno” da resistência (RANGER, 2011). Neste momento, sua blindagem teórica advém da obra de Allen Isaacman. Em uma tese publicada em 1976, Isaacman argumenta, partindo do caso moçambicano, que as lutas camponesas da “era clássica da resistência” acabaram por ser o germe da contestação que desembocaria na formação da Frelimo (Frente de Libertação Nacional de Moçambique), um moderno movimento nacionalista que encabeçou a guerra de libertação.

Para Isaacman, a “natureza do apelo, expressa em termos anticoloniais, sugerem que a rebelião de 1917 ocupou uma posição de transição entre as formas primitivas de resistência africana e as guerras de libertação de meados do século XX”. De maneira que “a revolta de 1917 constitui a culminação da longa tradição de resistência zambeziana e simultaneamente se torna precursora da recente luta de libertação” (ISAACMAN, 1979, p. 288-290).

Contudo, apesar do diálogo inevitável entre o pragmatismo político dos anos 1960, 1970 e 1980 de um lado e a teoria historiográfica de outro, não se pode reduzir esta última ao primeiro. Dentro desse conjunto autoral próximo, Henry Mwanzi é aquele que mais se esforça em argumentar neste sentido.

Diz Mwanzi que os envolvidos nas lutas e movimentações políticas nacionalistas do pós-segunda guerra tendiam a “considerar-se herdeiros de uma longa tradição de combate, que remontava aos começos do século atual, se não a antes”. Tal ponto de vista, seria “uma tentativa de utilizar critérios do presente - de utilizá-los retroativamente - na interpretação dos acontecimentos do passado” (MWANZI, 2011, p. 167-168).

Mesmo referenciando autores da escola nacionalista, Boahen em particular, Mwanzi mostra-se, pelo seu posicionamento, como um ponto fora da curva. Sua crítica às elites africanas que encabeçaram as independências vem cortante dentro da narrativa homogênea que perpassa grande parte dos demais escritos na tradição historiográfica aqui analisada. Ele repete, desse modo, críticas que foram desenvolvidas anteriormente por outros autores (especialmente Edward Steinhart) e cujo núcleo ganharia novo verniz com uma geração posterior de estudiosos (Frederick Cooper e Sherry Ortner).

II

Cumpre agora apresentar algumas das melhores antíteses contrapostas ao argumento nacionalista da resistência. Primeiramente, a obra de Steinhart, gestada na mesma época dos trabalhos de Ranger e consortes. Posteriormente veremos a posição de dois influentes intelectuais contemporâneos, Sherry Ortner e Frederick Cooper.

A obra de Edward Steinhart é geralmente negligenciada no que diz respeito à teorização historiográfica sobre a resistência anticolonial africana. Menos ambiciosa que os modelos de teoria forte (Mazrui), Steinhart é artífice de uma peça que brilha como bronze: The Nyangire Rebellion of 1907: anti-colonial protest and the nationalist myth. Texto originalmente publicado no periódico East African Studies em 1973. Plena ressaca revolucionária africana.

Ao analisar o caso de uma rebelião acontecida em Bunyoro, Uganda, Steinhart avança uma crítica convincente ao que denomina, acertadamente, como “historiografia nacionalista africana”. Em seus próprios termos: “Nas últimas duas décadas assistimos à ascensão e triunfo do nacionalismo africano”. Paralelamente a isso, consolidou-se “uma interpretação da moderna história africana” concentrada em “explicar as mudanças sociais e políticas que transformaram as sociedades africanas durante a era colonial, colocando uma grande ênfase na continuidade de certas formas africanas pré-coloniais sobre seu papel na iniciativa de transformação” (STEINHART, 1993, p. 332).

Steinhart propõe uma reavaliação do cânone historiográfico nacionalista, visto que este se basearia em uma “interpretação errônea das manifestações anticoloniais” vendo-as como portadoras de sentimentos nacionalistas ou protonacionalistas, ao passo que “desconsidera ou deflaciona outras fontes de sentimentos e ideologias anticoloniais” (STEINHART, 1993, p. 333-334). Logo, no que concerne à resistência, nem tudo seria nação ou nacionalismo.

Além disso, outra questão levantada por Steinhart é a da colaboração. Os historiadores da escola nacionalista estariam ávidos em encontrar os resistentes, enquanto pouca atenção era dada ao fenômeno da colaboração (STEINHART, 1993, p. 337). A pergunta que jaz no subtexto é: quais fatores endógenos às realidades africanas tornaram possíveis as colaborações com o invasor europeu.

Esse movimento, que nega a contradição das sociedades africanas em nome de uma homogeneidade insurgente fictícia, seria, nas palavras de Steinhart, um fator que “nublaria nosso entendimento sobre o comportamento africano tanto na era colonial quanto no imediato pré-colonial”. Seu chamado é para que, literalmente, se enterrem os feridos, pois, em linhas gerais, os africanos se revoltaram não só contra invasores estrangeiros, mas também contra subordinações de suas próprias sociedades ou, ainda, contra poderes africanos externos (STEINHART, 1993, p. 339).

Além de abafar as contradições internas africanas, a historiografia nacionalista engendraria, eventualmente, não uma “história”, senão um “mito”. Os movimentos de libertação nacional distorceram as demandas e causas das resistências anticoloniais pretéritas para que estas servissem aos seus interesses, criando-se, assim, um mito ecoado pela própria historiografia acadêmica em seus melhores exemplares. Seria necessário criar um “mito melhor”, diz Steinhart, um “mito de insurreição popular” que nos levaria mais longe na compreensão do século XX, um mito que suplante o fracasso político - e também teórico - que foi o mito nacionalista, visto que este seria um falso começo para a história da África (STEINHART, 1993, p. 362-363). Guardemos suas palavras e o momento em que foram gestadas, 1973.

Se Steinhart foi o crítico contemporâneo mais convincente (e politicamente instigante), hoje uma constelação de revisores do paradigma da resistência se adianta a dialogar com a velha escola nacionalista.

Uma das críticas mais prolíficas ao conceito da resistência advém de dois nomes inter-relacionados: a antropóloga Sherry Ortner e o historiador Frederick Cooper. Interlocutores, ambos se citam mutuamente, de maneira que os trabalhos que trazemos para discussão constituem um verdadeiro diálogo complacente. Ortner cita Cooper e ele, por sua vez, em uma versão mais acabada do seu trabalho, cita Ortner. As vozes são diferentes, mas o canto é o mesmo e, por isso mesmo, não original.

Ortner argumenta que a resistência foi vista enquanto uma categoria pouco ambígua, embasada em um dualismo (dominação/resistência) simples, fixando a análise na face institucional do poder. Neste ponto, sua crítica cabe como uma luva a trabalhos feitos na mesma fôrma dos de Boahen e demais histórias régias que levaram em consideração principalmente o poder institucionalizado (seja africano ou europeu). Mas Ortner prossegue para além disso.

Citando Foucault - que teria, segundo ela, inovado, em sua concepção fugidia do poder por esta ser “menos institucionalizada” -, Ortner coloca em xeque trabalhos que atentam para formas menos institucionalizadas de resistência. Neste caso, ao retirar o caráter necessariamente organizado e “contra-institucional” da resistência, restaria a questão: o que seria “resistir” e o que seria simplesmente estratégia de sobrevivência? (ORTNER, 1996, p. 282-283).

Ortner prossegue afirmando que a categoria seria “razoável” (sic) ainda que conceitualmente ambígua. Esta ambiguidade estaria assente no fato de não existir um único sujeito subordinado unitário, os grupos subalternizados estariam eles próprios internamente divididos por clivagens diversas - etárias ou de gênero, por exemplo - e seus atores estariam afetados por disposições subjetivas heterogêneas. Tais disposições atingiriam suas relações com o poder soberano e, portanto, sua capacidade ou não de resistir (ORTNER, 1996, p. 283).

Os principais momentos em que Ortner cita Cooper são reveladores. Ela o utiliza para afirmar que a política da resistência está fadada a estar sempre limitada à relação dominante-dominado. Seria preciso abdicar da dialética da dominação em nome da habilidade e criatividade dos seres sociais através dos danos (ORTNER, 1996, p. 285). Através e não contra os danos.

Em síntese, o conceito da resistência acaba sendo estreito porque não compreende a complexidade interna dos grupos dominados, sua riqueza cultural e diversidade subjetiva dos atores em cena. Seria necessário considerar as ambivalências e ambiguidades da própria resistência, visto que essas contradições seriam um índice das “[...] intrincadas teias de articulações e desarticulações que sempre existem entre dominantes e dominados” (ORTNER, 1996, p. 299).

Por seu turno, ao debruçar-se sobre o conceito da resistência e sua aplicação pela historiografia africana/africanista, Frederick Cooper cita Ortner para dar-lhe razão. Em seus termos: o conceito da resistência padeceria “daquilo que Sherry Ortner chama thinness (estreiteza)”. Isto é, o “binômio resistente/opressor é isolado do seu contexto; as lutas no seio da população colonizada a respeito de questões de classe, de idade, de gênero, ou de outras desigualdades são ‘higienizadas’”. O resultado seria a perda da capacidade analítica em relação ao que Cooper chama de “a textura das vidas das pessoas”, além de simplificar “as estratégias complexas para lidar com as circunstâncias, para aproveitar oportunidades em economias em mudança” (COOPER, 2016, p. 105).

Além de repetir Ortner - que, por sua vez, repete o próprio Cooper - o historiador concentra uma boa parte dos seus esforços em contestar o uso feito pela historiografia nacionalista a termos advindos da colonização. A historiografia malograria, igualmente, em sua luta contra certa “visão dicotômica característica das ideologias coloniais, nascida da oposição entre o colonizador civilizado e o colonizado primitivo”. Com efeito, “os binários colonizador/colonizado, ocidental/não ocidental e dominação e resistência começam por ser instrumentos úteis para analisar questões de poder, mas acabam por limitar a procura de formas concretas de exercício do poder” (COOPER, 2016, p. 73).

Cooper dilata essa argumentação, a persistência dos dualismos e de uma suposta linguagem colonial, para Frantz Fanon, cuja definição do mundo colonial - intrinsecamente maniqueísta (FANON, 2011, p. 453) - seria contraditória, tendo em vista sua dívida para com as categorias coloniais (neste caso a violência do colonizador e a contra violência do colonizado) (COOPER, 2016, p. 123).

Finalmente, o problema para Cooper não seria admitir a resistência em si, senão reescrever a história sem a necessidade que ela, a resistência, seja um conceito norteador, pois ela seria, como é para Ortner, uma categoria que estreita “em vez de expandir nossa compreensão da história africana” (COOPER, 2016, p. 103). Por mais interessantes que sejam essas conclusões, é forçoso desenvolver mais a questão. Nossas ressalvas aos argumentos de ambos os interlocutores estão canalizadas em duas direções. Por um lado, o que chamaremos por “argumento da coerência”, por outro lado, o que designaremos como “argumento terminológico”.

O argumento da coerência é simples: ao enfatizar a reação da sociedade invadida para com os invasores coloniais, obliteram-se as contradições intrínsecas da sociedade colonizada. Esta é a bala de prata contra Ranger e, também, contra Fanon. Lembrar os alvos da historiografia atual é importante. Pois, indiretamente, tanto Ortner quanto, principalmente, Cooper, não nos deixam esquecer que a discussão é tanto histórica quanto política.

A primeira ressalva contra o argumento da coerência é tão simples quanto o argumento inicial. Para chegarem a estas conclusões, Ortner e Cooper precisam esquecer, propositadamente, os momentos em que tanto Ranger quanto Fanon afirmam a heterogeneidade e a presença de contradições internas nas sociedades colonizadas.

É o próprio Fanon quem reafirma as “explosões sanguinárias”, as “luttes de çofs”, os “conflitos tribais” entre “indivíduos colonizados” que acontecem em virtude das tensões musculares acarretadas pelo fato colonial (FANON, 2011, p. 465). Podemos objetar os termos nos quais Fanon expõe a questão (“sanguinário” é um adjetivo no mínimo problemático e “tribal” claramente anacrônico), assim como podemos nos contrapor à sua metodologia (o viés psicanalítico das pulsões subjacente às aludidas “tensões musculares”). O que não se pode é negar que exista na obra fanoniana uma admissão, mais do que isso, uma análise das contradições interiores do mundo colonizado.

Por seu turno, Terence Ranger, já em seu artigo de 1968, afirmou que em determinadas circunstâncias a resistência foi tanto voltada contra o domínio estrangeiro quanto, também, contra “sub-imperialismos” de outros povos africanos (RANGER, 1993, p. 27). É possível descartar a ideia de “sub-imperialismo” como anacrônica, mas ela é um indício de “contradição interna” inerente às formações societárias imediatamente pré-coloniais.

Inobstante a isso, estamos cientes que nem o “sub-imperialismo” e tampouco as “luttes de çofs” correspondem exatamente ao que Cooper e, principalmente, Ortner nos apresentam: clivagens precisas baseadas no gênero, na idade e em demais formas de estratificações sociais que a imaginação política da sociedade subordinada seja capaz de forjar. O grande problema dessa operação é que ela se baseia em um pressuposto verdadeiro, mas em uma conclusão falsa.

As sociedades africanas pré-coloniais não eram monolíticas, antes pulsavam de contradições agudas, incluindo divisões sociais bastante rígidas. Este pressuposto é verdadeiro. No entanto, não importa a procedência do colonizado, o fato de o seu status, seu gênero ou idade torná-lo melhor diante dos seus ou diante dos seus senhores, ele ou ela ainda é um colonizado ou uma colonizada. Não se trata de um monismo redutivo, antes do exato oposto: de pôr o problema em seu correto caráter relacional.

É preciso compreender o “Colonizado” como recorte transversal na realidade social que atravessa, como uma flecha, todas as clivagens já existentes na comunidade subordinada. Por ser transversal, ele as atravessa de forma desigual, subordina na vida prática mais um do que outros, mas sangra a todos.

Por exemplo, como inúmeras pesquisas têm demonstrado, mulheres são geralmente mais afetadas na empresa colonizadora (GAUTIER, 2004, p. 696, passim). Todavia, isto não implica negar que os homens não compartilhem do mesmo contexto, ainda que seu gênero proporcione vantagens de mobilidade social e negociação diferenciada para com o colonizador. A questão não é criar uma coerência que homogeneíze a sociedade colonial. Antes se trata de não relativizar aquilo que não deve ser relativizado, sob pena de perdermos por completo a real dimensão política do fato colonial.

Queremos insistir neste ponto: o poder nas relações de status, idade ou gênero dentro das estratificações próprias à sociedade colonizada são, sem dúvida, diversas à relação colonizado e colonizador, mas nem por isso elas deixam de estar inseridas, reproduzidas, desviadas, transformadas, em um contexto colonial. É o estigma colonial que as atravessa transversalmente, de forma combinatória e desigual.

A argumentação de Cooper-Ortner pode persistir: o mundo é muito mais que os opostos binários, colonizado e colonizador, oprimido e opressor. Tudo é muito mais complexo. O que exatamente seria essa complexidade que negaria a oposição política subjacente da situação colonial? A resposta orbita em termos vagos, “criatividade” para lidar com as adversidades, capacidade de negociação com o contexto opressivo. Ora, as adversidades ainda estão lá. O contexto permanece opressivo.

Não discordamos da criatividade dos agentes, principalmente porque ela está muito bem documentada nos trabalhos de Cooper, Ortner e, mais recentemente, em uma importante síntese organizada por Lawrence, Osborn e Roberts (2006). A questão que colocamos é teórica: em que essa complexidade nega a existência de um conflito - ora latente, ora aberto - entre colonizados e colonizadores? Argumentos complexos não prescindem de sínteses e pressupostos simples, antes o exato oposto. Pensemos em paralelo: o pressuposto simples de que o universo se originou de um ponto único de densidade indizível, não nega toda a complexidade da teoria do Big Bang. Bem como não nega todos os cálculos e controvérsias entre os especialistas.

Fora isso, a outra alegação contraproducente de Ortner-Cooper foi a que denominamos por “argumento terminológico”, vocalizado especialmente por Cooper. Ele enfatiza a presença de termos coloniais nas análises de Ranger ou Fanon como algo contraditório.

A resposta para esta crítica é tão simples quanto a inquietação original de Cooper. Como abdicar de termos coloniais quando o que estamos analisando é a realidade colonial? Mais uma vez, pensando em paralelo: não podemos objetar uma análise marxista por esta, ao mesmo tempo em que se pretende uma crítica do capitalismo utilizar os termos próprios do capitalismo: proletariado e burguesia. Estes são os termos usados justamente porque são os termos da realidade social posta.

De forma semelhante, ainda que compartilhem os termos, Ranger e Fanon os preenchem com uma ideologia política distinta e, portanto, com uma linguagem diversa da colonizadora. Eventualmente ambos, e principalmente Fanon como visto acima, enveredam em uma linguagem colonial. Para estes momentos, a crítica de Cooper é certeira.

No entanto, o problema é menos de linguagem e mais filosófico. Cooper e Ortner chegam às mesmas conclusões não só pela interlocução profícua que existe entre eles, mas também pela linhagem de pensamento à qual rendem tributo. Esta linhagem tem nome e sobrenome: Michael Foucault. Citado com especial ênfase por Cooper (2016, p. 104). A compreensão da ideia de poder afeta diretamente as conclusões sobre a resistência.

A tese foucaultiana a respeito do poder é, por certo, aparentemente esclarecedora, especialmente ao falar do poder enquanto “algo que só funciona em cadeia” sendo “exercido em rede [...] [e] nunca estando nas mãos de alguns”. Para Foucault, o poder só circula, em redes, através de “aparelhos de saber que não são construções ideológicas” (FOUCAULT, 2009, p. 182-183, 186). Sem dúvida, este canto é bastante sedutor, pois temos o ego maior que a responsabilidade política do nosso ofício e ao ouvir estas palavras imaginamos logo de saída a nossa pacata vida cotidiana. Com essa amostra em mente, acenamos para o filósofo francês dando-lhe razão. Contudo, em uma situação limite, a tortura, onde estaria o poder de Foucault? Onde sempre está a ultra teoria: circulando, sempre em rede, nos bancos acadêmicos.

O problema aqui é o mesmo em todo argumento embasado em teoria forte: na ânsia de explicar, verte-se, para usar os termos de Spivak, em versão mistificadora da realidade social (SPIVAK, 2012, p. 57). Em concordância com Edward Said, afirmamos que uma parte do problema reside na utilização que Foucault faz do termo pouvoir se estendendo demasiadamente, tragando qualquer obstáculo que se encontra em seu caminho (as resistências a ele, os fundamentos econômicos e de classe que o atualizam e alimentam, as reservas que acumula), excluindo completamente a mudança e mistificando sua soberania microfísica (SAID, 2004, p. 326-327).

Mesmo que concordemos, neste ponto, com Said e Spivak, cumpre lembrar que a crítica de ambos só funciona, pois advêm de um mesmo norte: Nicos Poulantzas. Em contraposição a Foucault, Poulantzas defendeu a necessidade de vincular o poder com o Estado, não se esquecendo das lutas de classes, mas também não ignorando a capacidade deste Estado de criar consenso. Isto é, de criar formas de subjugação e acordos que refreiam, por parte dos próprios oprimidos, eventuais iniciativas de resistência (POULANTZAS, 2000, p. 43, passim). As pessoas não só se opõem o tempo todo ao poder soberano (como às vezes transparece na narrativa historiográfica nacionalista), elas também colaboram com ele.

Neste ponto, cabe responder tanto a Cooper quanto a Ortner quando falam em um conceito demasiadamente amplo no qual a fronteira entre a simples sobrevivência e a resistência são demasiadamente borradas para sabermos onde começa uma e onde termina a outra. Negaríamos qualquer tipo de vida que não fosse resistir? Nisto eles estão parcialmente certos. Inobstante, em situações-limite a sobrevivência em si, pode implicar ela mesma um ato de resistência. Mas a colaboração também. A contradição é, neste caso, como sempre é, o critério do real.

É por este motivo que romantizar, ou dotar de viés político “progressista” quem resiste e antagonizá-lo com “colaboradores” faz menos sentido do que ver a ambos os personagens (não raro encarnados em um mesmo ator histórico) como partes de um mesmo sistema em que ora se colabora e ora se resiste, porque a oposição estrutural é entre submetidos e opressores e não entre resistentes e colaboradores3.

Dito isto, esboçaremos doravante uma proposta conceitual. Sem cair na romantização da escola nacionalista e sem romantizar, por tabela, a historiografia africana, mas também sem aderir aos modismos acadêmicos de ocasião e seus deslumbramentos com o Norte epistêmico. Precisamos construir uma nova agenda para os estudos acerca da insubordinação africana. A tarefa é coletiva e deve ter por base o nosso ambiente produtivo próprio: de terra também colonizada, de nativos também (ainda) em processo de extermínio.

III

O regime de temporalidade da dita “escola nacionalista” é incipiente para tratar a questão em toda a sua complexidade, mas a solução fácil e politicamente receosa de descartar o conceito é falsa. Em resumo: declinamos da teleologia contida na argumentação nacionalista. Nesse regime de temporalidade subsiste a ideia de finalidade do processo histórico. Por esta ótica, as oposições coloniais desenvolvidas durante a expansão colonial só ganham plena importância histórica se vistas enquanto predecessoras de algo qualitativamente mais elaborado: o nacionalismo revolucionário.

Entretanto, como argumenta Lukács, o processo histórico “é causal, não teleológico, é múltiplo, nunca unilateral, simplesmente retilíneo, mas sempre uma tendência evolutiva desencadeada por interações e inter-relações reais de complexos sempre ativos”. Por este motivo, as orientações que o curso dos acontecimentos parecem tomar “jamais podem, pois, ser avaliadas diretamente como progresso ou regressão” (LUKÁCS, 2010, p. 70). Naturalmente, aconteceram modificações qualitativas quanto às formas de oposição anticolonial, tanto em seus meios de expressão discursivos, caráter de ação concreto e estratégias. Mas, tais modificações devem ser entendidas como expressão de um todo processual.

Não se trata, pois, de uma torrente que necessariamente deságua em um ponto pré-fixado: o nacionalismo revolucionário da modernidade política. Ao contrário, é mais um fluxo descontínuo de águas que se chocam entre si, interpenetrando-se. O colonialismo não é, desse modo, a causa suficiente para haver resistência. Mas, sim, a causa necessária para que haja este tipo de resistência que estamos discutindo. Não sendo o colonialismo a causa suficiente, por tabela estamos admitindo, sim, que nem todos resistem.

Essa percepção leva-nos a um entendimento melhor, para o caso do conceito da resistência na realidade africana, do que Lukács chamou de par categorial da continuidade e da descontinuidade. Segundo ele “não há nenhum continuum sem momentos de descontinuidade e nenhum momento de descontinuidade interrompe a continuidade de maneira absoluta e total” (LUKÁCS, 2010, p. 177). Toda a questão reside em mapear, na realidade histórica concreta, a unidade fundamental que sintetiza determinada experiência histórica vivida que se desenvolve através de um mesmo processo causal, cuja evolução não conhece um fim específico devido à descontinuidade que lhe é subjacente.

A resistência, encarada no meio desse complexo processual, produz sempre categorias de maneira plural e dotadas de “constituição heterogênea” (LUKÁCS, 2010, p. 228). Essas categorias, ou “tipologias”, podem ser somente mapeadas na história concreta. Por este motivo, é empreendimento vão pensar em grandes esquemas abstratos para captar a lógica da resistência. As tipologias gerais - mesmo que assentes em categorias simples como “primária” e “secundária” - não dão conta dessa heterogeneidade. A resistência deve ser vista, portanto, enquanto processo. Mas, cabe atentar para a natureza causal - e absolutamente não-teleológica - desse processo.

Em termos mais complexos, isto implica dizer que não faz sentido pensar nos movimentos nacionalistas enquanto herdeiros de um passado insubmisso contínuo e linear. Da mesma forma, não faz sentido a ideia de uma resistência “tradicional” que prepara o terreno para uma posterior “moderna”. Ambas - que em si constituem uma unidade dialética - descendem de um mesmo evento causador: o colonialismo. Ambas, portanto, descendem da mesma fonte: o colonizador que, em movimento contraditório-reflexivo, cria o seu duplo: o colonizado. A contradição dessa afirmação é decorrente do caráter contraditório da história em sua concretude.

Vamos assim a duas constatações importantes: 1) O sujeito da resistência, o colonizado, é um sujeito-efeito. Efeito da empreitada colonial, fruto dela ao mesmo tempo em que pode nega-la, e, quando se dá essa negação há resistência. Com isso, ele, o colonizado, coparticipa no processo de sua criação, bem como (re)cria, reflexivamente, a imagem do colonizador. 2) O colonialismo deve ser visto enquanto um sistema de articulação eclética.

A dominação colonial implicou um processo de reestruturação radical complexa de costumes, práticas, configurações do imaginário e universos simbólicos, enfim, de uma miríade de modus vivendi, anteriores à colonização. Não se trata da “re-invenção” de um lugar. Ao contrário, trata-se, precisamente, de inventá-lo, ou, em melhores termos, construí-lo a partir dos contornos legados pelo colonizador, ou seja, conquistá-lo.

Essa relação colonial é realizada em condições desiguais de exploração, subordinação por um lado e resistência por outro. A articulação eclética, longe de ser empresa fácil, implica uma ruptura dolorosa com o passado, com a identidade que recobria os tempos pré-coloniais. Por seu turno, os historiadores nacionalistas comprometidos que estavam com a agenda política da sua época, determinaram o passado a partir do presente. O juízo pode ser resumido na seguinte sentença: “os heróis da resistência são os heróis das novas nações africanas” (CROWDER, 1971, p. 3).

A presença do espelhamento entre o passado e o presente é perceptível. Afinal, a causa pela qual os soberanos pré-coloniais se bateram “resta viva no espírito de seus descendentes”, para aludirmos a esta valiosa citação de Boahen (BOAHEN; GUEYE, 2011b, p. 66). Mas, que causa resta viva? A manutenção da soberania de entidades políticas que, em muitos casos, os africanos sequer vivenciaram, pois não eram sequer nascidos? Com todas as suas clivagens e estratificações sociais incluindo aqui, não raro, a própria escravidão? Ou a construção de um Estado-nacional que estes antepassados nunca presenciaram, pois já estavam mortos?

O fato é que a dor da perda da soberania é retratada, por certo, na historiografia nacionalista. Mas, os autores não problematizaram suficientemente que é a partir dessa perda que a própria África nasce. A dor, nesse caso não é só de perda de algo, de mutilação, de fim. É dor de início, de parto, como notou Hamidou Kane (1984, p. 44). A ruptura deste começo é mais profunda do que os historiadores estavam dispostos a aceitar ao apelarem para a existência de uma mesma “causa” - enquanto intento político - entre os velhos soberanos destronados e as atuais gerações de africanos.

Toda ideia de herança e de filiação entre “dois momentos da resistência”, posta na esteira linear, está fadada a entrar em discussões acerca do início de uma etapa e esgotamento da anterior. Ficando cativa, sempre, daquela que se apresenta como a mais nova feição da “longa tradição” da resistência anticolonial. Assim como, por exemplo, a própria historiografia nacionalista ficou cativa de certos elementos discursivos do nacionalismo revolucionário do pós-segunda guerra.

O grande perigo de colocar a resistência dentro de um regime temporal teleológico é o de convertê-la em uma “ideia”. Fazer da sua evolução processual o desenvolvimento de uma ideia direcionada para determinado fim. Isto é, teleologia. Essa teleologia implica um problema político (e mesmo existencial) relevante.

Se a nação é o ponto culminante de uma longa tradição “heroica”, trata-se de, literalmente, heroicizar não somente os grandes homens de linhagem que se opuseram ao colonialismo nos princípios do século XIX. Ela acaba heroicizando, também, os próprios nacionalistas da segunda metade do século XX. A escola nacionalista, na ânsia de legitimar historicamente a independência e libertação africana, acaba criando um fardo histórico desnecessário para o continente. Os heróis mitificados - “modernos” ou “tradicionais” - são referentes dos quais a história da África, da forma como é escrita na escola nacionalista, não consegue fugir.

Diante disso repetimos Peter Kien, protagonista do Auto de fé de Elias Canetti: “Ai dos que nascerão depois de nós! Estão condenados. Herdarão de nós um milhão de mártires e os instrumentos de tortura mediante os quais completarão um segundo milhão. Nenhum governo é capaz de suportar tal quantidade de santos” (CANETTI, 2011, p. 298). Ai dos que vieram depois dos épicos confrontos da resistência - “tradicional” ou “moderna” -, podem perecer hoje em meio a uma “asfixia no resistencialismo”, para usarmos a expressão de Axelle Kabou (2013, p. 93).

Os “heróis da resistência” instrumentalizados pelos dirigentes políticos do presente, com a transigência de parte significativa da historiografia, serviram tão somente para reforçar a influência das elites políticas, encerrando o restante da população em um interminável passado (KABOU, 2013, p. 44, 160).

Se a tarefa colocada for a de erigir um conceito da resistência, ele precisa, necessariamente, se pôr na contramão das tendências instrumentalistas e anacrônicas. Deve ser um conceito crítico consigo mesmo, a partir de um movimento auto questionador. Esse movimento não se faz notar, da forma que deveria, na historiografia nacionalista, mas abdicar dele ou afirmar que seja somente uma palavra “razoável” no vocabulário analítico não é a solução, por todos os motivos que expomos no tópico anterior. Neste aspecto, Steinhart aponta uma tensa solução: o “mito nacionalista autoritário” deve ser, ele próprio, alvo do conceito da resistência que pretende monopolizar.

O grande risco que há nessa operação é moralizar a pesquisa. Esta é a real tentação com quem trabalha com o conceito. É isto que deve ser evitado a todo e qualquer custo. A tensão é constante e, por conseguinte, a responsabilidade institucional do historiador particularmente aguda.

A resistência não deve ser um conceito moralmente valorativo. As críticas de Cooper-Ortner só se tornaram possíveis, pois resistir tornou-se profissão de fé moral, verteu-se em história politicamente correta, axioma. Não é preciso atribuir valor moral à oposição anticolonial. Afinal ela, de fato, existe. É preciso admitir, com isso, que resistir ao jugo colonial não é necessariamente um atributo “progressista”. Ao contrário, resistir é em muitos casos algo bastante literal: conservar. Da mesma forma, ainda que o comprometimento político acompanhe os estudos acerca da resistência, a solução que propomos chega a prescindir de uma agenda política específica (o nacionalismo de massas, por exemplo).

É desnecessário comprar a ideia nacionalista para admitir que tanto as primeiras oposições anticoloniais quanto os movimentos nacionalistas possuem um mesmo vínculo causal objetivo: o colonialismo. É preciso atentar, nesse contexto, para uma distinção simples, mas importante, que Wittgenstein não deixa esquecer. Aquela que existe entre a causa e o motivo (WITTGENSTEIN, 2008, p. 598).

O que torna possível o entrelaçamento de todas as iniciativas de ações que fizeram oposição ao colonialismo sob a alcunha de um mesmo conceito é o vínculo causal. Por outro lado, as motivações que subsidiaram estas oposições devem sempre ser demonstradas quando forem diferentes e, dado a enorme variedade de contextos específicos, essas motivações são, quase sempre, distintas.

Em um momento essa motivação pode ser a independência, a construção do Estado-nação, a expulsão do invasor, assim por diante. É isto que diferencia eles de nós e não o fato de sermos mais ou menos “conscientes” porque supostamente mais politizados, ou o fato de eles serem mais ou menos “tradicionais”. São as motivações que estabelecem a distância necessária do historiador com sua fonte sem que, com isso, ele abra mão do conceito e do engajamento que seu uso implica. Não se pode atribuir uma mesma motivação subjacente a expressões diferentes da resistência. Para isso, seria preciso aceitar a ideia de filiação, descendência ou linearidade, suprimir a rica diferença do nós e eles por um metafísico e improvável vínculo familiar comum. Logo, não é a “tradição” que faz a resistência. É a prática, ela mesma, que se define.

Por conseguinte, o que há de historicamente objetivo nesse fenômeno é o evento causal que desencadeia as iniciativas que lhe fizeram oposição e que justifica, no plano da práxis, a utilidade do conceito. Toda a ideia de filiação mais profunda, ou toda noção de exemplo histórico a ser seguido, reinventado ou superado - só existe na medida em que o engajamento de grupo se faz presente. Este engajamento pode ser, sob alguns aspectos, estrategicamente útil ou humanamente desastroso.

Há uma conhecida passagem de Walter Benjamin onde ele fala do “salto de tigre para o passado” de símbolos pretéritos que voltam para um presente em luta (BENJAMIN, 2012, p. 18). Este salto, por ser benjaminiano, não combina com o monopólio da resistência por um grupo social específico. Tampouco harmoniza com a pulverização dos poderes e, consequentemente, da lógica da dominação implicada no colonialismo. Reconhecer essa tensão é reconhecer também o papel de capital político do passado e, com isso, a necessidade de questionar o conceito sempre, dissolvendo moralismos e axiomas politicamente corretos.

Ainda que seja ambiciosa em seu voo, a teoria mostra aqui o seu limite. Sua contribuição é sempre muito mais modesta do que os teóricos querem fazer crer. Quando se aventura em generalizar, ela cai na abstração metafísica descolada da realidade e suas situações-limite. Ela não é capaz de indicar nada além disso: a utilidade da palavra baseada em uma temporalidade causal. Tipologias, periodizações precisas, idiossincrasias internas e, principalmente, motivações subjacentes, devem ser apresentadas na história, ela mesma, sempre em construção.

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Notas

1 As datas dizem respeito aos primeiros trabalhos publicados. Muitos historiadores desta seara continuaram produzindo no mesmo paradigma nas décadas seguintes, quando as críticas ao conceito da resistência já se avolumavam, como veremos adiante.
2 Para uma contextualização histórica mais completa ver: PAIVA, Felipe. Indômita Babel: Colonialismo, resistência e a escrita da história na África. Niterói: Eduff, 2017.
3 O grande problema aqui é que estamos diante de um choque geracional e, comumente acontece, Hamlet está mais preocupado em colocar a coroa do que em se perguntar por que ele mesmo existe. Em melhores termos: da mesma forma que as posições políticas e historiográficas de Ranger e seus consortes podem ser explicadas através de uma contextualização dos atores, historiadores, o tipo de engajamento (ou a ausência dele) nos historiadores posteriores também pode ser devidamente mapeada na história do nosso tempo. Essa cartografia, no entanto, infelizmente, nos empurra para fora dos limites desse texto.

Autor notes

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