RESISTÊNCIAS AFRICANAS: NOVOS PROBLEMAS E DEBATES
Formas de resistências cotidianas durante o colonialismo tardio no sul de Moçambique
Everyday forms of resistance during late colonialism in southern Mozambique
Formas de resistências cotidianas durante o colonialismo tardio no sul de Moçambique
Anos 90, vol. 26, e2019204, 2019
Universidade Federal do Rio Grande Sul, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Recepção: 18 Setembro 2019
Aprovação: 10 Outubro 2019
RESUMO: Desde a chamada “ocupação efetiva” feita pelos portugueses (1895), Moçambique experimentou transformações profundas. Estas transformações estiveram marcadas pela introdução de diferentes projetos de desenvolvimento, todos eles caracterizados por uma confrontação entre formas e percepções de mundo no político, social e económico etc. Localizando nossa reflexão no sul do país e dialogando com a história e antropologia - áreas complementares para os estudos africanos -, questionaremos a relação entre modernização econômica e modernidade política a partir de uma releitura, de um lado, dos processos de arregimentação da mão de obra nativa por parte da empresa colonial e, de outro, das dinâmicas que as populações da região desenvolveram como respostas a estas políticas, muitas delas apontadas aqui como formas de resistência cotidiana. Combinando metodologicamente situação colonial e paradigma indiciário, revisitaremos fontes coletadas em trabalhos prévios feitos por autores das duas áreas supracitadas, para logo introduzir os conceitos de mobilidade forçada e margens do estado, colonialidade e repertórios de poder, buscando uma reinterpretação da relação entre empresa colonial e práticas autonômicas.
PALAVRAS-CHAVE: Moçambique. Colonialismo Tardio. Trabalho Forçado. Mobilidade, Resistência.
ABSTRACT: Since the so-called “effective occupation” made by the Portuguese (1895), Mozambique has experienced profound transformations. These transformations were marked by the introduction of different development projects, all characterized by a confrontation between forms and perceptions of the political, social and economic etc. Locating our reflection in the south of the country and in dialogue with history and anthropology - complementary areas for African studies - we will inquire the relationship between economic modernization and political modernity from a re-reading, on the one hand, of the processes of regimentation of native labor by the colonial enterprise and, on the other hand, the dynamics developed by the populations of the region in response to these policies, many of them pointed out here as forms of everyday resistance. Methodologically combining the colonial situation and the indiciary paradigm, we will revisit sources collected in previous works by authors from the two areas mentioned above, and then introduce the concepts of forced mobility, state margins, coloniality and power repertoires, searching a reinterpretation of the relationship between colonial enterprise and autonomous practices.
KEYWORDS: Mozambique, Late Colonialism, Forced Labor, Mobility, Resistance.
Estado1 moderno como repertório, margem e exceção
Em uma entrevista realizada em 1979, em Guijá, Gabriel Mukavi, habitante de Gaza de 79 anos, relata uma conversa com o administrador de posto em 1963:
[…] vocês vieram para África por motivos errados e são culpados. Não vou falar da situação nas outras terras porque não sei nada sobre isso, mas posso falar sobre Gaza. Qual era a situação quando vocês chegaram a Gaza, no tempo de Ngungunhana? Foi fácil para vocês capturá-lo porque fizeram-no na ausência de Maguiguane, que tinha ido consultar os ancestrais e procurar comida para o exército. Depois da captura de Ngungunhana oprimiram sistematicamente o povo, usando soldados angolanos, que andavam de casa em casa a obrigar as nossas mulheres a lavarem-lhes os pés […]. Depois indicaram alguns de nós, os donos da terra, para serem chefes ou régulos, enquanto os ngunis dispersavam-se e desapareciam. Isto é o que vocês os portugueses fizeram, mas também deixarão esta terra da mesma maneira como os ngunis fizeram […]. Vocês começaram a promover costumes retrógrados na nossa cultura, e eram ainda esses aspectos negativos que vocês diziam tinham vindo destruir... (MUKAVI apud MANGHEZI, 2003, p. 35-36).
Este texto representa basicamente um esforço de reflexão sobre o que significou o processo colonial tardio para as populações do sul de Moçambique a partir da releitura de algumas produções historiográficas que discutem principalmente trabalho e mobilidade no contexto da presença portuguesa nessa região. Este esforço de reflexão não pretende entregar afirmações conclusivas sobre o dito processo, outrossim, procura-se por um viés diferente abordar as formas de resistência que esta população foi implementando durante o período, e que não implicassem o uso da violência direta, a qual muitas vezes se prioriza na hora de analisar as formas de contestação à empresa colonial.
Embora ideologicamente a produção discursiva da própria empresa colonial estivesse baseada em justificações e princípios na ordem de “promover” um já manuseado “ideal civilizatório”, será talvez só a partir do final dos anos 40 do século XX, precisamente quando se começa a promover sistematicamente a emigração da população metropolitana para estas regiões (CASTELO, 2007), que podemos começar a vislumbrar os primeiros esforços de transformar essa maquinaria extractiva em algo parecido com uma entidade estatal, com instituições e estatutos legais semelhantes aos desenvolvidos na metrópole e em outras regiões europeias.
Mesmo assim, toda esta institucionalidade não foi pensada para outorgar direitos às populações nativas. Contrariamente podemos afirmar que o que caracterizou esta empresa colonial foi um processo radical de incorporação masculina à maquinaria extrativista (HERNANDEZ, 2015) em um contexto que, para efeitos da análise, chamaremos de estado de exceção (AGAMBEN, 2008, p. 15) que tentou impor um repertório significativo de medidas compulsórias que apontava a sujeitar e tornar dependente, em seu conjunto, a uma população muitas vezes inacessível e desconfiada, um sistema que só em parte fora bem sucedido.
Ao refletir sobre este processo como um todo, devemos, de início, reconhecer que entre muitos aspectos a serem considerados, talvez o mais significativo seria que sem uma entidade jurídica, política e militar, mais ou menos operativa, que agisse na base deste processo, certamente não teria sido possível para os colonialistas sustentar seu domínio no território. No entanto, propõe-se que é possível pensar o mesmo processo desde uma perspectiva um tanto inversa, neste caso, desde as próprias margens que o processo de construção desta entidade fora criando na medida em que ia aplicando seus repertórios de poder (COOPER; BURBANK, 2012, p. 359). Neste sentido é que se resgata a afirmação de Mukavi na entrevista acima: os portugueses teriam chegado a terras do Sul pelos motivos errados e, assim como os Nguni2, tiveram que deixar essas terras 70 anos depois de ocupadas.
Certamente é possível refletir sobre este projeto desde o próprio discurso justificatório ou condenatório do estado, contudo limitar a abrangência à análise de discurso pode nos conduzir apenas a um debate meramente legalista, e este não é o propósito do texto. Um dos primeiros argumentos que sustenta esta reflexão se baseia na constatação de que o chamado “estado colonial” muitas vezes é caracterizado - em certa literatura que se debruça sobre a questão colonial - como uma espécie de parente vilão do “estado moderno”, como se este último de alguma forma representasse a medida a partir da qual pudessem ser pensadas as práticas inumanas e coercitivas desse “parente institucional” arrogante e racista.
Contrariamente, nossa abordagem parte do reconhecimento que o chamado “estado moderno” agiu na maior parte das vezes, muito mais como uma aspiração do que uma realidade e o que realmente estava se constituindo sob o rótulo de “colonial”, com instituições e ordenanças, era a manifestação institucionalizada do projeto moderno aplicado a regiões cujas populações eram consideradas desde há muito não apenas como “outras”, racial e culturalmente, mas principalmente como inferiores. Civilização e modernidade agiriam deste modo como ficções teleológicas sustentadas nos ideais evolucionistas e raciológicos de progresso e desenvolvimento, introjetados gradativamente no ethos europeu como propósitos missionários nos últimos cinco séculos, desvendando, desta forma, seu caráter violentamente messiânico e e doutrinador3.
Entendido desta forma, o colonial conformaria o moderno, ou, dito de outra maneira, o moderno (suas instituições, ideias e fundamentos) seria na sua matriz um projeto colonial, daí a excepção e os repertórios. Esta necessidade de afirmar a colonialidade do moderno aponta a quebrar a ideia de externalidade do colonial em face aos processos intraeuropeus na própria constituição dos seus “estados-nações”, e no caso de Portugal, estes repertórios de poder aplicados nas tentativas de conquista e domínio dos territórios ao sul do rio Save corresponderiam a processos onde o mito da modernidade (DUSSEL, 2005, p. 48) ficaria evidenciado em seu caráter violento não apenas na sua face subjetiva - a construção das identidades e estatutos dos chamados “indígenas”4 -, mas também na sua face objetiva - a imposição do trabalho forçado e imposto de palhota como “missão civilizadora”.
É partindo desta constatação que se enuncia outro dos argumentos que vão sustentar esta reflexão e que diz respeito a pensarmos este projeto colonial/moderno desde as próprias margens (DAS; POOLE, 2004) que a prática colonial gerou, pois é desde este enfoque que atentamos compreender como a aplicação desses repertórios de poder, em vistas a consolidar o domínio dos territórios, vai ressignificar os processos de circulação e mobilidade social de uma prática já inserida historicamente no imaginário das populações sulistas, em formas domésticas de resistência (SCOTT, 2002; (1987). Estes processos de circulação e mobilidade social antecederam à conformação do estado - colonial/moderno - e, portanto, constituir-se-iam dentro de uma lógica paralela a dos próprios limites que a empresa colonial fora construindo. No entanto, grande parte dos esforços enquadradores desta maquinaria integracionista estiveram orientados basicamente a acabar com essa autonomia relativa e controlar estes movimentos.
Visto desta maneira, precisamos procurar por possibilidades heurísticas que nos permitam entender a maneira como estes repertórios deram lugar a uma instituição que muitas vezes nos apressamos em rotular de “estado colonial” sem, no entanto, refletir muito sobre sua natureza e coerência. Neste sentido, essa natureza e coerência não pode apenas ser medida ou explicada a partir dos esforços - sucedidos e fracassados - de arregimentação da população - seja como mão de obra, seja como súditos - lembrando sempre que foram processos construídos sob um princípio de privilégio racial. Contrária e/ou paralelamente, esta natureza, assim como sua coerência podem ser pensadas também desde o imaginário produzido por essa população em movimento e confrontada a esta maquinaria institucional, trabalhadores migrantes, mulheres e homens que passaram pelo chibalo5, serviçais urbanos e trabalhadores das minas na África do Sul etc. Existe uma série de trabalhos historiográficos que recuperam a visão desta população em torno da sua relação que esta maquinaria institucional (MANGHEZI, 2003; COVANE, 2001; ZAMPARONI, 1998; FIRST, 1998; PENVENNE, 1993). Existem, também, vários trabalhos etnográficos que dão conta de um imaginário nestas populações que, apesar do contato, pode ser localizado fora do formato discursivo colonial (WEBSTER, 2009; NORMAN, 2004; FELICIANO, 1998; JUNOD, 1996).
São, precisamente, estas obras que nos servem de base para a reflexão colocada anteriormente, pois embora apontem para questões diferentes dos nossos objetivos, nos entregam também material suficiente para tentar uma releitura sobre os modos como esta população não apenas confrontou um contexto racialmente estruturado em detrimento dela, mas, principalmente, como se posicionou perante a situação cotidiana de exceção e emergencialidade do colonial, entendendo dentro desta lógica os espaços de negociação, assim como as práticas e a compreensão cotidiana da lei e o direito tanto dos agentes coloniais, quanto da própria população. Neste sentido, tentaremos demonstrar que a condição de cidadania ou pertença muitas vezes fora negociada em um universo legal e extralegal bastante desfavorável para os denominados “indígenas”, pois neste contexto de exceção “[...] the issue is not that membership is simply denied but rather that individuals are reconstituted through special laws as populations on whom new forms of regulation can be exercised” (DAS; POOLE, 2004, p. 12).
Empresa colonial: emergência e legibilidade do projeto civilizatório
As fontes consultadas e a literatura revisada indicam que Mouzinho de Albuquerque e António Enes (MACAGNO, 2001, p. 61-90), precursores da empresa colonial portuguesa no sul do rio Save durante a ocupação efetiva do território, defendiam uma “ação (política) colonial” mais “eficiente”. Para tanto, buscaram sempre articular a acumulação do capital, a ação militar e a ocupação efetiva das terras através da utilização compulsória da força de trabalho indígena e controlando os fluxos migratórios pendulares, todos estes aspectos embasados em uma legislação que fosse adequada e que garantisse a perspectiva tutelar, colocando ao indígena “não domesticado pelo hábito do trabalho, na categoria de pessoa de natureza diferente ou criança grande que deve ser tutelada, guiada, pelos caminhos de educação” (FELICIANO, 1998, p. 96-97).
No entanto, as dificuldades de domínio do território evidenciaram-se imediatamente. De acordo com Cabaço (2009), o governo metropolitano, ciente da sua incapacidade de prover recursos para suportar a ocupação efetiva do território, lançou mão de um repertório significativo de empreendimentos, os quais inicialmente procuraram atrair investimentos privados por meio de um sistema de concessões com amplos poderes de administração. Moçambique foi, assim, divido em quatro zonas: o norte do rio Lúrio foi concedido à companhia do Niassa; entre o rio Ligonha e uma faixa ao sul do Zambeze permaneceu até 1930 o regime dos Prazos6, que foram em sua maioria adquiridos pela Companhia de Moçambique e pela Companhia da Zambézia7; do sul dos Prazos ao paralelo 22 a concessão foi dada para a Companhia de Moçambique; sob administração direta do governo português permaneceu apenas o Distrito de Moçambique, uma pequena área na zona do Tete e o território ao sul do paralelo 22, de modo que, na prática, Portugal abria mão de sua autoridade sob grande parte do território da colônia.
Em relação ao marco jurídico e político que devia justificar toda esta ação colonial, Cabaço identificou três instituições que serviriam como âncora para os processos de arregimentação das populações nativas: o código de trabalho rural de 1899, a regulamentação da posse das terras de 1901 e a criação da Curadoria dos Negócios Indígenas e Emigração em 1902. Esta legislação teria apontado, entre outros, para uma reorganização do “mapa étnico”, objetivando o desmantelamento de sociedades africanas organizadas que pudessem simbolizar algum tipo de resistência. Por sua vez, Zamparoni (2000), em um documento apresentado em um congresso internacional, enumerou os esforços legislativos que apontaram para “definir as características necessárias à criação de uma identidade subordinada para o outro - o indígena - como um não-cidadão e, ao mesmo tempo, traçar fronteiras identitárias entre a grande massa de africanos” (ZAMPARONI, 2000, p. 1).
Sob esta prática se construía a retórica modernizante lusitana para encarar o empreendimento colonial frente aos outros empreendimentos europeus (JERÓNIMO, 2009). Em seus escritos e discursos “modernizantes”, reconheciam ultrapassadas as formas de economia mercantil produzidas pelo tráfico de escravos e impuseram novas formas de realização da economia, definindo primeiramente uma legislação que justificasse “a obrigação moral dos negros ao trabalho” (FELICIANO, 1998, p. 98) como o ápice da ação colonial civilizadora, nas palavras de Enes:
O Estado [...] não deve ter escrúpulo de obrigar e, sendo preciso, de forçar a trabalharem, isto, a melhorarem-se pelo trabalho [...] a civilizarem-se trabalhando, esses negros rudes [...] uma raça que ainda até hoje [...] não produziu por esforço seu espontâneo um só rendimento de civilização.8
Neste novo contexto, a obtenção de braços indígenas para o trabalho significou a reorientação do trabalho escravo para dar continuidade à acumulação, substituindo a imagem do escravo pela de um “trabalhador livre” ou “contratado”. Porém, esse processo não será linear nem menos expedito, pois, como veremos, a população não responderá da maneira esperada.
Este aspecto da transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado fora discutido bastante, no entanto, resgatamos alguns aspectos que entendemos como significativos para situar a crítica ao modelo português. Claude Meillassoux, em finais dos anos 70, apontava para a existência de um paradoxo na articulação do modo de produção capitalista atrelada aos contextos coloniais em África, pois, finalizadas as relações de ordem escravistas, a maioria dos africanos voltara para suas antigas formas de dependência, retornando também ao velho modo de reprodução doméstica. Não havia forma de atrair as populações para o sistema de trabalho assalariado, desta maneira “o modo de produção doméstico seria, portanto, paradoxalmente preservado e destruído, porque mesmo que ainda exista, sua atuação e decisões estão vinculadas diretamente ao setor capitalista” (MEILLASSOUX, 1970, p. 140).
Frederick Cooper (2005), refletindo sobre as formas análogas à escravidão, confirmava as asseverações de Meillassoux e chamava a atenção para um aspecto substancial nesta chamada transição: “o trabalho constante e regular é exatamente o que o escravo ou escravo livre menos gosta” (COOPER, 2005, p. 225). Valdemir Zamparoni, por sua vez, ao analisar a teoria e as práticas em função do trabalho forçado na colônia portuguesa, salienta que “os vários regulamentos do trabalho indígena eram detalhados quanto às obrigações dos indígenas, mas extremamente imprecisos e dúbios quanto aos seus direitos” (ZAMPARONI, 2004, p. 307). Do mesmo modo, José Capela (1993) descreve a dificuldade de incorporação ao trabalho dos habitantes da região da seguinte forma:
De facto, nem as condições objetivas nem as condições subjetivas permitiam criar mão-de-obra assalariada livre. Esta podia subtrair-se à prestação de trabalho porque, melhor ou pior, dispunha de meios naturais de subsistência e nem material nem psicologicamente era possível atraí-la ao mercado livre do trabalho. (CAPELA, 1993, p. 23).
A partir daqui, podemos afirmar que apesar de toda a suposta força argumentativa que esta política sobre as formas de trabalho nas colônias pudesse ter tido na metrópole, as relações de produção não variaram substancialmente na região ocupada, pois, ao contrário de toda a retórica colonial sobre vadiagem e falta de interesse pelo trabalho atribuída à população local, na prática, esta população não via nem garantias de direitos nem benefícios na sua incorporação como “mão de obra livre” ao novo sistema. Segundo Capela, isto se devia em parte a que:
[…] os agentes locais do capital, pela sua extração classista, e pela mentalidade herdada de séculos de relações escravagistas, continuavam a encarar e a tratar o preto não como o cidadão que constava do Código Civil, mas como o escravo de sempre que continuava na sua posse. O primeiro diretor das Obras Públicas em Moçambique, liberal mandado de Lisboa, conta, espantado, que, no fim do mês, apareciam a receber os salários dos trabalhadores negros os seus patrões, que para lá os tinham mandado (CAPELA, 1993, p. 23).
Irônica e/ou paradoxalmente a política “civilizatória” que visava transformar os “usos e costumes” dos chamados “indígenas” através do trabalho assalariado, não reparou na necessidade de mudar também os “usos e costumes” dos próprios colonos portugueses, acostumados às formas oriundas do comércio escravista, constituídas por séculos de relações assimétricas. Neste aspecto, precisamos deter-nos um momento, pois, ao confrontarmos com muitos dos relatórios da época, podemos constatar rapidamente como estes apontam a reforçar a (volta da) escravatura como única forma possível de arregimentação das populações insistindo no caráter vadio e ocioso do “indígena”, e muitas vezes desconsideram ou simplesmente omitem de maneira deliberada as práticas de mobilidade laboral da própria população.
Desta forma, o argumento da suposta falta de atração ao “mercado livre de trabalho” defendida nos relatórios dos agentes coloniais, e referida por Capela, torna-se insuficiente, pois, ao não incluir o processo migratório para as minas do Transvaal e as plantações do Natal, omite um fenômeno que, além de ter alcançado uma dimensão e continuidade de proporções significativas para o universo social e econômico da região é, sobretudo, um fenômeno que fala de uma racionalidade legal e econômica, dos ditos colonizados, desprezada pelo ideário colonial.
É precisamente esta racionalidade econômica desprezada pela administração colonial que desejamos acentuar, pois, ela nos remete também às diversas maneiras como esta população respondeu à investida colonial e suas medidas compulsórias. Formas tão diversificadas que iam: das de caráter doméstico, como a evasão do pagamento do imposto, queda do ritmo de trabalho, deserção do posto de trabalho, fugir na calada da noite com o conluio dos chefes tradicionais, até sabotagem9; todas estas formas constituindo parte do imaginário de resistência aos poderes instituídos pela empresa colonial.
Voltando à reflexão inicial, a escolha pelo viés econômico para descrever o processo de ocupação e a implantação de uma estrutura colonial na região, em detrimento dos aspectos subjetivos que estes processos suscitaram, não é aleatória. Certamente porque entendemos que o econômico sugere aspectos que se originam em uma racionalidade e subjetividade determinada pela cosmovisão particular de quem elabora e aplica estas políticas econômicas (administradores e colonos), bem como em quem se vê afetado por estas medidas, e, aqui, além de reconhecermos certa unidade de pensamento nas diversas populações obrigadas a se posicionar em face às medidas econômicas impostas pelos colonialistas, observamos também uma diversidade de indivíduos (homens, jovens, mulheres, ndunas, chefes etc.), sendo afetados pela alteração da sua posição social e econômica neste universo relacional provocado pela invasão e tentativa de domínio à qual se viram confrontados.
Neste sentido, podemos afirmar que colonos e administradores encontraram sérias dificuldades na implementação do dito “projeto civilizatório” - coletivo e individual -, não pela “falta de compreensão” de sua contraparte, a qual no imaginário do invasor só era possível de explicar pela condição “incivilizada” dos chamados indígenas (preguiça, ignorância, paganismo, falta de empreendedorismo etc.), mas, sobretudo, porque essa contraparte “colonizada” mesmo entendendo seu papel no projeto, simplesmente não o aceitou. Visto desta forma, propomos pensar que a implementação de todo o repertório de leis e estatutos orientados a enquadrar a população “indígena” sob a “ilusão civilizadora” representou para a mesma uma situação de exceção inaceitável e, em última instância, inconcebível para seu universo cognitivo. Será esta não aceitação que incidirá na elaboração um repertório resistência como resposta racional às medidas compulsórias, repertório que responde proporcionalmente à maneira como essas medidas realmente foram sentidas.
Dinâmicas econômicas como formas domésticas de resistência
Como já indicamos, a migração para as regiões do Transvaal na África do Sul é um fenômeno de longa data10. Nas regiões ao sul do rio Save, inicialmente as migrações para as plantações de cana-de-açúcar em Natal constituíam o cotidiano das povoações ali assentadas (COVANE, 1989, p. 13). Com a descoberta de jazigos de ouro em 1886, na região do Transvaal, este fluxo migratório se transformou em um sistema permanente de idas e vindas. A baixa lei do metal obrigava aos donos das minas e administradores a concentrar seus esforços na contratação de suficiente mão de obra e, assim, poder manter a rentabilidade da extração. Consequente com isto se constitui a Witwatersrand Native Labour Association (WENELA), a qual estará encarregada de recrutar mão de obra fora das fronteiras sul-africanas, pois a mão de obra nativa na região não era suficiente ou era simplesmente de difícil enquadramento11.
A administração colonial portuguesa, por sua vez, superada por este sistema de idas e vindas, enxergou uma possibilidade de aumentar as rendas fiscais e de alguma maneira contrabalancear a ineficiência do próprio modelo de produção. No entanto, antes de usar a baixa mecanização e a falta de investimentos em tecnologias para fomentar a produtividade (PENVENNE, 1993, p. 17) como a justificativa central para explicar o porquê do aproveitamento deste sistema de mobilidade social africana, preferimos interpretar esta incompetência produtiva e falta de originalidade de parte dos portugueses frente a seus vizinhos regionais, como um aspecto de ordem econômica subjetiva, no convencimento racista, mencionado anteriormente, de pensar e representar a população africana da região apenas como mão de obra ociosa e improdutiva. Desta maneira, podia se justificar melhor o uso maciço e compulsório da sua força de trabalho para servir às necessidades econômicas e “civilizacionais” do português (ISAACMAN; ISAACMAN, 1983, p. 34).
Só desta maneira podemos entender como o trabalho forçado fora um sistema que funcionara em Moçambique de diversas formas até 1975. O trabalho forçado ou compelido, como era definido na legislação, foi aplicado de maneira generalizada no âmbito rural e urbano. Sobre este sistema, são dois os aspectos que queremos destacar. Em primeiro lugar seu caráter jurídico ilegível12 e, portanto, inoperante como dispositivo de integração voluntária das populações à ideia de desenvolvimento apregoada pelo projeto colonial e, em segundo lugar, sua complexa imbricação com os processos de mobilidade social preexistentes, que, de alguma forma, tornaram esta circulação em um fenômeno de mobilidade forçada.
Em relação ao primeiro aspecto, já fora mencionado no início deste texto sobre evitar a crítica legalista às medidas implementadas pela administração portuguesa em ordem a controlar os corpos e circulação dos sujeitos colonizados. Neste sentido, nossa análise pretende dialogar com a perspectiva emanada das experiências etnográficas compiladas por Veena Das e Deborah Poole, a qual:
[…] worked against the notion that the state is somehow ‘about’ its legibility. Rather, our papers seemed to point instead to the many different spaces, forms, and practices through which the state is continually both experienced and undone through the illegibility of its own practices, documents, and words (DAS; POOLE, 2004, p. 9-10).
O Código de 1899, que define o trabalho indígena, por exemplo, certamente, para o colono e o funcionário, foi compreendido como um corpo de leis que deveria sistematizar o uso da força de trabalho indígena, seja na forma voluntária, compelida ou forçada13. Esta compreensão vale também para o historiador que, mesmo questionando o espírito e a aplicação prática da lei, continua compreendendo-o como um compêndio de ordenamentos legíveis, interpretáveis e, portanto, questionável. Porém, ao voltarmos para a maneira como os afetados por estas leis realizam sua leitura, veremos que a expressão chibalo usada aqui não expressa unicamente trabalho, seja este compelido, forçado ou voluntário, mas principalmente está associado a um sentimento de injustiça e/ou sofrimento, o qual envolveria basicamente trabalhar para outrem. Esta ideia de sofrimento é repetida em muitas das entrevistas que tanto Manghezi (2003), como Covane (2001) e Penvenne (1993), realizaram durantes suas investigações em torno do trabalho durante a administração colonial.
Mesmo parecendo óbvia esta constatação, parece-nos importante aprofundá-la, pois, na maioria dos trabalhos revisados que discutem o processo de transição do trabalho escravo para o trabalho “livre” na região sul de Moçambique, talvez por falta de uma definição etimológica precisa, chibalo e trabalho forçado são colocados como sinônimos. Nossa leitura aponta, no entanto, para colocar cada uma destas expressões dentro da lógica que as gerou, que ao falarmos de trabalho forçado devemos entendê-lo como um subproduto específico de toda uma aspiração de domínio cuja matriz podemos encontrá-la no convencimento racista de superioridade branca e, portanto, teria uma carga ideológica positiva: o trabalho forçado como instrumento “civilizador”. O chibalo, por sua vez, originou-se como uma expressão criada na experiência de sujeição especificamente colonial e possuiria uma carga ideológica negativa: práticas abusivas aleatórias e sofrimento injustificado. Aqui reproduzo algumas que me parecem representar de maneira gráfica esta ideia de chibalo como injustiça/sofrimento, para além das diferenças formais colocadas pela administração entre trabalho voluntário, compelido ou mesmo forçado14.
O primeiro depoimento que usamos aqui é o de Mahawani Khosa, antigo habitante da atual Chókwè na província de Gaza, entrevistado pela equipe de Manghezi em fevereiro de 1979. Ao ser consultado sobre o que sabe do chibalo, ele responde:
O xibalo é um assunto muito longo porque começou a partir da altura em que os brancos puseram os pés em Moçambique. Eles prendiam-nos e obrigavam-nos a trabalhar a troco de nada. Eles prendiam alguém, faziam-no trabalhar duramente, batiam-lhe e pagavam-lhe 100$00 por mês. Nós sofremos durante muitos, muitos anos e só muito recentemente é que o xibalo terminou. O xibalo e a palmatória vieram ao mesmo tempo e já acabaram. (KHOSA apud MANGHEZI, 2003, p. 18-19).
Neste depoimento, sobressaem três aspectos significativos. O primeiro é que o chibalo está associado à presença dos portugueses na região. Sendo uma expressão de caráter êmica poderia ser que ela existisse antes como designação de algum tipo de atividade prévia à ocupação colonial. Porém, não temos conhecimento de qualquer trabalho que discuta a origem da expressão chibalo, inclusive, nos dicionários existentes sobre as línguas do sul de Moçambique, esta expressão designa o trabalho forçado como única expressão. O segundo aspecto é que o interlocutor nomeia duas formas de trabalho, um remunerado e outro não. De acordo com a legislação que regulava o trabalho no contexto colonial, formalmente todas as formas de uso da força de trabalho indígena deviam ser remuneradas, no entanto os diversos trabalhos com os que trabalhamos aqui apontam para uma realidade mais aleatória no que diz respeito a esse quesito. Finalmente, a violência como elemento conector das duas formas de trabalho mencionadas e como prática constitutiva na sistematização do uso da força de trabalho.
Outro depoimento que representa de forma bastante clara esta percepção do chibalo atrelado à ideia de sofrimento e injustiça é tirado de outra entrevista feita pela equipe de Manghezi, desta vez se trata de dona Mindawu Bila, outra habitante do distrito do atual Chókwè que participou da experiência do colonato de algodão no Limpopo:
Integrei-me na cultura obrigatória do algodão, e nós sofremos. Trabalhávamos sob a supervisão rígida dum capataz insensível que nos chicoteava pela mais pequena infracção às suas ordens. Por exemplo, exigiam-nos que queimássemos os caules do algodão depois da colheita, mas alguns destes capatazes não nos davam tempo para os caules secarem antes de serem queimados. Trabalhávamos duramente mas nunca nos pagavam o preço certo pelo nosso algodão. Como resultado, chegou uma altura em que achamos que era demais e paramos de cultivar algodão para os colonialistas. ‘Eles disseram que todos tínhamos que cultivar algodão e que todo o dinheiro ganho seria nosso. Pensamos que esta era uma boa ideia, e decidimos cultivar o algodão - ‘para fazer dinheiro’. Contudo, compreendemos logo que, embora nos tivéssemos voluntariado para produzir algodão, eles estavam sempre sentados atrás de nós, empunhando o chamboco, e forçando-nos a trabalhar [...]. Eles não contavam em termos de meses porque não era esse tipo de xibalo (com um contrato específico). Toda a gente fazia o trabalho de estradas - todos foram chamados para trabalhar na construção de estradas sem pagamento. Hoje, depois da independência, a vida é melhor porque já não estamos mais sujeitos ao xibalo. Quando os homens voltavam das minas, tinham que pagar 100$00 ao régulo - ‘o pão do régulo’. Sim, todos os magaizas15, tinham de pagar 100$00 ao régulo e, todavia, o régulo não fazia nada por eles. Os magaizas que não pagassem esta quantia eram levados para o xibalo [durante o tempo de férias]. (BILA apud MANGHEZI, 2003, p. 51-52, grifo nosso).
Diferente do depoimento anterior, dona Bila aponta para uma predisposição inicial a participar do sistema de trabalho instaurado pelos portugueses, um aspecto que indica uma racionalidade econômica relacionada ao processo de monetarização em curso na região: cultivar algodão para fazer dinheiro. Porém, ao longo do depoimento, vai ficando evidente a maneira arbitrária e, para ela, injusta como foi sendo implementada esta cultura do algodão por parte dos agentes do colonato. O que parecia ser um acordo contratual: produzir algodão por tempo determinado passa a ser atravessado por uma série de irregularidades (pagamento de tributos e impostos), incluindo o uso da violência, ilustrada na figura do chamboco16 e os capatazes. Neste depoimento, aparece novamente a ideia de chibalo associado à injustiça, primeiro pela falta de uma especificação do tempo de uso da mão de obra e também pela falta dos acordos realizados em torno da remuneração, dos aspectos fundamentais na racionalidade econômica dos afetados. Através deste depoimento, podemos ver que a diferenciação entre trabalho voluntário e forçado não faz nenhum sentido para a população afetada, pois em ambos o engano e a arbitrariedade de parte dos agentes coloniais são entendidos como fazendo parte da mesma estrutura.
Um outro depoimento resgatado das entrevistas realizada pela equipe de Manghezi na região de Chókwè em 1979, é o de dona Oselina Marindzi:
Hei-de contar alguma coisa do meu sofrimento. Eu sofri bastante porque o meu marido foi para as minas e não voltou para casa pelo medo que teve do xibalo. O que costumava acontecer nestes tempos era que o meu marido voltava das minas para passar férias e que na manhã depois da sua chegada iam buscá-1o para o xibalo. Foi isto que os colonos fizeram para fazer-nos sofrer. Depois de ele ter ido para o Joni17 para voltar nunca mais, fiquei aqui sozinha e tive de cultivar algodão para pagar o imposto de palhota que eles disseram que ele devia ao regime colonial. Fomos sovados por pessoas como Albino Mabunda durante o cultivo forçado de algodão. Eles bateram-me e rasgaram o meu cartão de algodão, alegando que eu era uma mulher que só causava problemas, mas eu não era uma mulher que causava sarilhos - eu estava apenas cansada de cultivar algodão forçadamente, algodão do qual não tirava nenhum benefício. Eu fui sendo castigada pelo facto que o meu marido ter fugido do país porque receava ser recrutado para o xibalo. Por causa deste sofrimento, eu costumava voltar para a casa depois do trabalho no campo, ficando sentada e pensando, desesperadamente, o que havia de fazer, aonde havia de ir, e como havia de 1á chegar (MARINDZI apud MANGHEZI, 2003, p. 73).
O sofrimento de dona Oselina, além de vir associado à falta de benefícios econômicos concretos da cultura do algodão, está associado também à ausência do marido, no entanto, se apontamos para as causas desta situação veremos que de fundo está o sistema compelido de trabalho imposto pela administração colonial. Aqui o chibalo atuaria como um aspecto desagregador, o qual é muitas vezes citado em outras entrevistas. Covane no seu trabalho sobre a migração de trabalhadores para as minas do Transvaal mostra como este sistema serviu para desagregar muitas famílias das unidades agrícolas que deviam deixar devido à ameaça do chibalo. Neste sentido, o chibalo não era ruim apenas por ser violento e arbitrário, mas também e sobretudo por trazer consequências perniciosas a longo prazo na estrutura social das unidades produtivas agrícolas.
Temos, assim, que, ao aceitar as diversas leituras desta situação colonial18, estaremos em condições de entender que aquilo que um tipo de leitura historiográfica chama de “estado colonial”, sob nossa interpretação, só seria possível de compreender se aceitamos a indissociabilidade da relação contínua entre norma e exceção. Esta relação abriria a possibilidade de evidenciar seu caráter emergencial, na medida em que a exceção (neste caso indígenas, vadios e preguiçosos) justificaria a existência desta entidade estatal através da elaboração da norma (civilizar com o trabalho), afirmando sua aspiração de poder soberano. Muitas vezes aceitamos o fato colonial para criticá-lo ou, como em alguma velha historiografia, reconhecer algum benefício para os afetados por este. No entanto, nossa direção é heuristicamente outra: a ideia de discutir o estado como norma e exceção e entender esta indissociabilidade como processos (re)fundacionais contínuos, outorgando a possibilidade de (re)dimensionar o grau de externalidade que esta maquinaria colonial teve para as populações em questão e, desta maneira, aproximá-la a uma leitura menos condescendente.
Tanto colonos como funcionários interpretam, isto é, leem os regulamentos e dispositivos legais como fazendo parte de uma lógica “universal”, uma lógica que, se aplicada ao cotidiano das populações afetadas, possibilita-nos ver quão distantes toda esta regulamentação e normativa estavam das noções e sentidos do justo dessas populações. No cotidiano, o aleatório, o arbitrário e a violência faziam parte das regras de negociação. Será a partir desta relação entre norma e exceção que iremos discorrer brevemente sobre a imbricação do chibalo com algumas dinâmicas que poderiam ser consideradas como práticas de resistência no sentido que James C. Scott (1987) explora.
Como referíamos anteriormente, o segundo aspecto em relação ao sistema de trabalho forçado é sua imbricação entre as medidas regulatórias impostas pela administração colonial e a mobilidade preexistente da população à ocupação efetiva dos portugueses. Neste sentido, assumimos o conceito definido por Jean-Paul Guademar que, em 1977, afirmava que “[...] sempre o modo como os homens submetem o seu comportamento às exigências do crescimento capitalista, toda a estratégia capitalista de mobilidade é igualmente estratégia de mobilidade forçada” (GAUDEMAR, 1997, p. 17). A ideia que queremos introduzir aqui se insere em um longo e inacabado debate, iniciado nas décadas de 60 e 70 do século XX, entre formalistas e substantivistas. Tentando resumir estas duas posturas, citamos algumas perspectivas tiradas do livro de Maurice Godelier, Antropología y economía (1976a). A concepção formalista centra-se na análise do comportamento individual. Isto não significa ignorar absolutamente os aspectos sociais referentes às estruturas, instituições e sistemas, mas conferir um lugar subsidiário às ações individuais. O individual explicaria o social porque a sociedade é concebida como uma somatória de indivíduos. Segundo Burling, no mesmo livro:
A sociedade é um conjunto de indivíduos que fazem escolhas, a mesma ação envolve uma escolha consciente ou inconsciente entre meios alternativos. Os fins (econômicos) são as metas do indivíduo matizadas pelos valores de sua sociedade à qual tenta avançar [...]. Não há técnicas especificamente econômicas nem metas econômicas. Economia é apenas a relação entre meios e fins (BURLING, 1976a, p. 113).
A crítica substantivista é colocada por Polanyi no mesmo livro:
A economia humana, portanto, está embutida e imbricada nas instituições econômicas e não econômicas. A inclusão do não econômico é vital. Pois a religião ou o governo podem ser tão importantes para a estrutura e funcionamento da economia quanto as instituições monetárias ou a disponibilidade de ferramentas e máquinas para aliviar o trabalho da mão de obra (POLANYI, 1976, p. 161).
Nesse sentido, a inclusão do não econômico resulta fundamental e constitui um dos eixos a partir dos quais se sustenta a polêmica. Por sua vez, Sahlins aborda esta temática a partir de uma posição substantivista, na introdução do seu livro sobre as sociedades primitivas:
O debate formalista-substantivista, endêmico na Economia de mais de um século, parece, no entanto, carecer de história, já que aparentemente nada mudou desde que Karl Marx definiu os pontos fundamentais em contraposição a Adam Smith (cf. ALTHUSSER et al., 1966). No entanto, sua nova encarnação na forma da antropologia destacou outros aspectos da discussão. Se no início o problema era a ‘antropologia ingênua’ da economia, hoje é a ‘economia ingênua’ da antropologia. ‘Formalismo frente ao substantivismo’ se reduz à seguinte opção teórica: entre os modelos pré-fabricados da economia ortodoxa, especialmente a ‘microeconomia’, aceites universalmente como válidos e aplicáveis grosso modo às sociedades primitivas e a necessidade - assumindo que a posição formalista seja sem fundamentos - de desenvolver uma nova análise, mais apropriada para sociedades históricas em questão e para a história intelectual da antropologia. (SAHLINS, 1983, p. 9).
No entanto, buscamos transcender a ideia um tanto anacrônica que define as atividades de reprodução econômica apenas como formas de subsistência19. Pois, será precisamente esta mobilidade, entendida como forçada porque inevitável, que desencadeará outros processos de readequação do universo social do migrante e que não diz respeito única e exclusivamente com um posicionamento de subordinação aos modelos de enquadramento sejam estes de ordem político-jurídica e também econômica, mas sobretudo a um processo extremamente dinâmico de adaptação e inovação frente ao capitalismo em formação em toda a região.
Neste sentido, acredito seja de interesse resgatar talvez uma das mais interessantes estratégias que um grupo específico de indivíduos desenhou para fazer frente a esta realidade de arbitrariedade e injustiça. Interessante porque nos abre uma série de possibilidades de interpretações, contudo mostra-nos até que ponto as estratégias de chibalo implementadas pela administração e seus beneficiários em função de angariar mão de obra barata, tiveram que confrontar também algumas respostas vindas dos afetados por este sistema de trabalho forçado. Este é o caso dos “Muchopes” estudado por Jeanne Penvenne. Para o caso, trata-se do sistema de limpeza e remoção do lixo e esgoto da cidade de Lourenço Marques, capital do então Moçambique colonial. Este serviço era realizado através do chibalo e, mesmo sendo uma atividade no extremo insalubre, os muchopes, de acordo com Penvenne, “tornaram-se, assim, o Chibalo preferido para aqueles trabalhos e, enquanto grupo, souberam tirar partido da situação” (PENVENNE, 1981, p. 15).
Segundo Penvenne, a partir de 1908 o trabalho de limpeza e remoção fora entregue a uma firma portuguesa que se utilizou basicamente do chibalo para recrutamento dos seus empregados. Por se tratar de um serviço delicado, qualquer trabalho mal realizado era multado pela administração da cidade. Os muchopes, mesmo em condição de trabalhadores chibalo, entenderam rapidamente as complicações que poderiam trazer para seus empregadores. Dessa maneira, idearam um sistema que lhes permitisse realizar as tarefas de limpeza de maneira rápida e, assim, poder ter mais tempo de descanso e usar este para outro tipo de serviços que lhes traria benefícios concretos, entre estes serviços estava a jardinaria, artesanato e sobretudo trabalho de concerto de artefatos achado no lixo das casas mais abastadas. Embora esses serviços “adicionais” fossem considerados “ilegais” devido à condição de chibalo, muitas vezes eram tolerados pelos funcionários encarregados de supervisionar o trabalho destes trabalhadores, precisamente porque caso fossem reprendidos eles podiam responder com um trabalho malfeito na limpeza da cidade.
Outra estratégia, derivada desta leitura da situação feita pelos muchopes, foi a criação de um sistema de gorjetas que consistia em cuidar de maneira excepcional dos recipientes de lixo dos habitantes que participavam deste sistema e punindo outros, derrubando os recipientes de lixo daqueles que os desprezavam ou não cooperavam. Esta experiência, entre algumas outras coletadas por Penvenne, é resgatada para apontar que mesmo o chibalo sendo um sistema de compulsão, aleatório e arbitrário, este era confrontado não apenas com uma narrativa que exaltava seu caráter injusto, mas também mobilizava estratégias que respondiam sobretudo à racionalidade econômica dos afetados.
Talvez a estratégia mais corriqueira fora a migração para as minas da África do Sul, precisamente porque esta mobilidade respondia a essa racionalidade econômica que pretendi esboçar nos casos citados. Esta estratégia de mobilidade era de tal envergadura que ambas as administrações, portuguesa e sul-africana compreenderam-na rapidamente como a peça de engrenagem mais versátil no sistema de produção capitalista na região. Desta forma, a parte moçambicana, aproveitando a posição estratégica de seus portos, realiza, entre 1896 e 1909, uma série de convênios com a administração sul-africana, culminando com o convênio de 1909 que senta as bases do que serão as relações comerciais entre Moçambique e, primeiramente, a região do Transvaal. Uma das causas sobressalentes destes acordos descreve Norman (2004) da seguinte forma:
The mining companies and the Mozambican government were interested in exploiting, expanding and regulating the existing movement of workers from Mozambique to South Africa. The Chamber of mine did not want a free labour market to push up the cost of labour and the Mozambican government saw labour exportation as a means of increasing revenue (NORMAN, 2004, p. 64).
Esta congruência de interesses se vê refletida no que veio a se constituir como o sistema de pagamento diferido:
Through a system of deferred pay, the Mozambican state was able to generate important revenues from the migrating miners. The miner’s salaries were paid in gold to the Portuguese government. This gold was sold on their behalf by the South African government, fetching the open market price. The miners themselves received their salaries in escudos calculated at a fixed official rate of exchange (NORMAN, 2004, p. 64).
Além disso, o fato de que o pagamento fosse diferido obrigava o trabalhador a usar o dinheiro no consumo de produtos portugueses (COVANE, 1989, p. 38).
Essa situação, em teoria vantajosa para a administração colonial, contrastava com uma outra de igual dimensão. Se, por um lado, o pagamento do salário era realizado de uma vez ao retornar os trabalhadores à sua terra, permitindo à administração ter uma sensação de controle sobre estes migrantes, sobretudo para a cobrança do imposto de palhota, por outro, sem a participação dos agentes africanos na figura dos régulos e chefes locais, essa cobrança dificilmente poderia ser levada a cabo de forma eficiente. Covane (2001) dimensiona o papel de intermediação desses agentes quando afirma que:
Assim, o dinheiro obtido do trabalho migratório era, às vezes, usado pera evitar recrutamento compulsivo engendrado pelas autoridades administrativas locais. Embora os funcionários portugueses soubessem que os trabalhadores migrantes davam presentes aos seus chefes para garantir a sua dispensa do chibalo e outras formas de trabalho indesejável, eles eram incapazes de exercer controle completo, dependentes que estavam da fidelidade dos régulos e dos chefes. Isto também explica porque os portugueses costumavam dizer que os africanos se tinham tornado arrogantes com o dinheiro que ganhavam na África do Sul o qual usavam para subornar os chefes tradicionais por forma a evitar o seu recrutamento como trabalhadores agrícolas (COVANE, 2001, p. 99).
Nesta passagem podemos constatar que, apesar dos mecanismos de controle e suas respectivas leis justificatórias, assim como as vantagens econômicas garantidas nos acordos, na prática o que predominava era uma série de outros acordos “extralegais” entre trabalhadores migrantes e seus chefes locais para escapar a essas obrigações. Na percepção destes indivíduos, as ditas leis e obrigações não constituíam benefício algum para seu cotidiano. Nesse sentido, se por um lado os acordos entre a administração colonial e a câmara de minas sul-africanas foram definidos formalmente para outorgar benefícios a cada uma das partes, por outro a população reagia articulando práticas diádicas e de reciprocidade já conhecidas em seu universo relacional, mas desta vez com a finalidade de resistir às imposições entendidas como externas.
Outro fenômeno que vale a pena resgatar também por colocar a tensão do “legal” e o “extralegal” no cotidiano desta situação colonial é aquele que diz respeito à categoria “emigração clandestina” (COVANE, 2001, p. 106), criada pela administração colonial, de acordo com Covane:
A migração clandestina florescia porque a colônia portuguesa não podia absorver os trabalhadores que não estavam em condições de emigrar no contexto dos acordos entre a administração portuguesa e o governo sul-africano […]. Os vencimentos baixos pagos no território, relativamente altos salários pagos nas minas sul-africanas; mão-de-obra forçada […] e o pesado imposto de palhota são alguns dos fatores que jogavam um papel-chave na motivação da emigração clandestina (COVANE, 2001, p. 107).
Vale destacar que esta categoria “clandestina” faz sentido apenas na produção formal das normas de controle, pois, precisamente sendo a mobilidade geral uma dinâmica adaptativa, não existia forma eficiente de frear o movimento nessa direção, de fato, não havia punição específica para quem recrutava trabalhadores considerados “clandestinos”, daí entender que sua formulação era dirigida para apoiar os esforços da administração colonial portuguesa por exigir da sua contraparte sul-africana um controle mais severo sobre esta migração. Efetivamente, se atentarmos para as “motivações” dos trabalhadores migrantes, entenderemos que a percepção entre “legal e extralegal” não passava única e exclusivamente pela aceitação destes acordos ou regulamentos, e, sim, mais pela necessidade concreta de auferir rendimentos, independentemente se isso podia ser considerado uma contravenção ou até um delito. Existia, sim, a consciência de que se estava incorrendo em uma ação “ilegal”, porém, entendemos também que mesmo sendo “ilegal” para a maioria, carecia de legitimidade para a racionalidade econômica da população, particularmente porque o ato de migrar estava inserido em um universo muito mais abrangente e que apontava muito mais para salvaguardar uma autonomia econômica ameaçada. Desta forma, tanto a exigência do pagamento de impostos como o próprio chibalo eram obstáculos que deviam ser contestados, a migração pode assim ser entendia como um ato de resistência.
Consideramos necessário aprofundar esse aspecto, precisamente porque é dentro deste conjunto de tensões criadas nas margens dos âmbitos de coerção estatal que as práticas de contestação e resistência dos sujeitos e populações aparecem de forma diferenciada. Em primeiro lugar, destacamos a relação direta entre o chibalo e a migração ao Transvaal. William Norman, na sua etnografia sobre a situação dos vilarejos de migrantes na fronteira, expõe esta relação, desde a perspectiva dos próprios mineiros, de maneira eloquente. Isso, por sua vez, nos permite ver uma série de outras motivações para migrar, sobretudo as que têm relação com sua vida de agricultores:
[…] all were recruited by Wenela and worked in the gold mines; most said that their motivation for migrating was to earn money and avoid the Portuguese system of forced labour; all said that they first went as ‘boys’ before they were married; most men would spend their earnings on cattle for marriage; all would talk about how tough the work was; most, having got married, returned to the mines and earned more money with which to establish an independent homestead; and all returned home to raise cattle and farm (NORMAN, 2004, p. 69).
Essa visão nos remete a um fenômeno mais relacionado a uma noção de autonomia que tem suas bases na cultura tradicional destes migrantes. O ato de migrar implica a busca de status e mobilidade social para o cumprimento com as obrigações sociais dentro da comunidade. Aqui a necessidade de fugir ao chibalo e o imposto de palhota (avoid the portuguese System) são mencionadas, evidenciando o caráter pernicioso da política compulsória da administração colonial para o planejamento autônomo da vida.
Outro aspecto que queremos destacar é uma opinião dos próprios migrantes e que Norma consegue compilar neste relato: “The Portuguese came and said that I would have to do Xìbàlu (forced labour). It was terrible because they beat us and paid us virtually nothing. It was much better working for the English in South Africa.” (NORMAN, 2004, p. 68). Lembrando que as condições de trabalho nas minas da WENELA eram muito rigorosas, exigiam muito esforço da capacidade física do trabalhador e não estavam isentas de perigo para a vida dos mineiros. A questão que cabe aqui perguntar é ao que se refere este mineiro entrevistado quando fala que melhor preferia trabalhar para os ingleses?
Aceitamos que os processos de migração trabalhista e industrialização condicionaram uma série de problemas sociais para a população envolvida nestes processos, por isso propomos pensar que a escolha do “inglês” em contraposição ao “português” não apontaria para uma diferenciação que envolva necessariamente algum caráter intrínseco diferenciado entre um e outro, mas, sim, preferimos pensar que esta distinção aponta para escolhas a partir de uma compreensão dos modos de produção operacionalizados pelos colonialistas e a esta compreensão atrelar a maneira como os próprios sujeitos migrantes, confrontados a estas duas estruturas contrapostas, procuram responder no intuito de salvaguardar, mas também de desenvolver sua própria autonomia. Pois, pensamos que é nesta contraposição que os sentidos de trabalho e mobilidade são interpretados, tanto em sua acepção analítica em relação à produção de valor: Já que preciso monetarizar minha força de trabalho para poder circular com menos dificuldade no mundo do branco, preciso então otimizar essa mesma força de trabalho e assim responder às exigências do branco e da minha comunidade, proporcionalmente. Mas também no sentido social como formador de subjetividades20: e já que o trabalho do branco é um castigo, injusto e sem sentido, pelo menos se garanto ao final da jornada o dinheiro necessário para dar conta das exigências, é lógico que o inglês seja a melhor escolha.
A bibliografia que aponta para esta sensível questão é enorme e não apenas concentrada na região que abrangemos. A respeito destes reacomodamentos, William Watson (1958), na sua etnografia sobre a população Mambwe no Norte de Rodésia (hoje Zâmbia), afirmava que as remessas do trabalho assalariado elevaram os padrões da vida rural e a migração trabalhista atuou para estabilizar a sociedade “tribal”21. Por sua vez, Jan Van Velson (1961) sugere que os migrantes Tonga do Malaui voltavam ao lago Niassa “estimulando ativamente os valores tradicionais da sociedade rural” (VAN VELSON, 1961, p. 278). Em trabalhos mais contemporâneos, Patrick Harries, na sua etnografia sobre os Tsonga e Changanas, demonstra que a identidade de Tsonga/Changana foi consolidada e emergiu como uma nova cultura através do processo de migração para trabalhar na África do Sul. O sistema de minas foi estruturado com base em uma segregação étnica e isto teve o efeito de que os chegados de Moçambique meridional tivessem que viver e trabalhar juntos com os “Changanas” (Shangaans) sem importar as respectivas pertenças étnicas e/ou regionais (HARRIES, 1994, p. 194-226). Harries demonstra que, no seu encontro com outros africanos e europeus nas minas, estes grupos de migrantes foram expostos a novas ideias, crenças e bens materiais. Essas novas experiências foram incorporadas na vida como mineiros, formando assim novas relações sociais ao voltar a casa. A respeito, Jeanne Penvenne, em seu livro sobre os trabalhadores de Lourenço Marques (1993), apontava que:
Quando a mobilidade, a segurança e a prosperidade pareciam desesperadamente comprometidas na sua terra, os moçambicanos, com algum sacrifício, podiam ainda ganhar para pagar o lobolo da noiva, os instrumentos de produção, os impostos exigidos, a educação e as suas necessidades de consumo, trabalhando legal ou clandestinamente na África do Sul. A fuga para as minas verificava-se particularmente nos períodos de redução dos salários reais e durante as campanhas de recrutamento para as forças militares moçambicanas (PENVENNE, 1993, p. 133).
David Webster (2009), por sua vez, ao referir sobre a ética masculina dos sujeitos Chopes em relação à sua circulação migratória para as minas da África do Sul, conclui:
Esta ética estimula a expressão própria e o individualismo, o que é complementado pela flexibilidade do sistema social. Se considerarmos a mobilidade elevada dos indivíduos, que implica a reconstrução da rede social a cada mudança, bem como a variedade de campos de que o indivíduo dispõe para a obtenção de estatuto e reconhecimento, ou ainda os meios usados para os alcançar, não é surpreendente que os chopes consigam muitos lugares de liderança nas minas de ouro (WEBSTER, [1976] 2009, p. 347-348).
Considerações finais
Compreender o projeto modernizador da administração colonial tardia, que sustentou o seu imaginário integracionista na compulsão ao trabalho como “ato civilizador”, sem se importar por desenvolver minimamente qualquer mecanismo de redistribuição que garantisse a reprodução social da população, revelou não apenas certa arrogância subjetivista e essencialismos de ordem ideológica de parte do colonizador, mas evidenciou principalmente a violência constitutiva aos processos de modernização. Neste contexto, o chibalo, a mobilidade forçada, entre outros, além de constituírem-se uma marca registrada da presença portuguesa na região, desvendaram-se como linguagens de poder pouco efetivas para o enquadramento da população. Efetivamente nenhuma destas políticas conseguiu acertar o alvo, ou seja, atingir globalmente com as suas ideias modernizadoras específicas os sujeitos do seu projeto. Ao contrário, impulsionaram toda uma dinâmica de contestação a estas políticas, uma dinâmica que obrigou à recorrência do acervo social e cultural que os próprios sujeitos teriam desenvolvido de maneira paralela, nas margens da institucionalidade.
Em Moçambique, segundo Cabaço (2009), a ocupação efetiva do território africano criou uma sociedade dual, paralela. Essa polarização seria o produto dos repertórios de poder que a empresa colonial fora desenhando à medida que implementava sua expansão. À polarização somar-se-iam os processos de hierarquização que atingiram todas as manifestações da vida nos territórios ocupados. A ordem colonial baseou-se num dualismo, cujo padrão diferenciador e estratificador foi a “raça”. Neste sentido, para Cabaço, o repertório assimilacionista, além de incongruente, seria impossível. A introjeção dos valores lusitanos por parte da população submetida não diminuiria o racismo que ordenava as próprias representações dos primeiros, a estratégia assimilacionista serviu como uma ferramenta mais para garantir a produtividade dos afetados, dentro da lógica da economia colonial.
Mesmo concordando com essa perspectiva, acreditamos que esta polarização ou lógica dual foi um resultado, outrossim, muito posterior, perceptível como dual e polarizado talvez só a partir do início da guerra de libertação e mesmo assim uma parte significativa da população se eximiu de tomar partido. O que tentamos mostrar neste trabalho foi que durante o pretendido domínio colonial, os repertórios de poder utilizados pelo colonizador, na figura dos seus agentes e funcionários, foram provocando um sem fim de processos nos quais foi possível enxergar respostas alternativas à rebelião por parte da população afetada. Respostas que não se manifestariam, necessariamente, a partir de um confronto ou dissidência - enquanto excluídos, marginalizados e explorados - contra os grupos dominantes, e sim como se pretendeu desenvolver ao longo deste trabalho, apreendidas dentro de um universo de circulação e mobilidade, as quais irão variando, precisamente, de acordo com as subjetividades produzidas no contexto em que cada indivíduo era enquadrado. Tanto a elevação dos padrões de vida rural junto à estabilização social das comunidades de origem; quanto o estímulo aos valores tradicionais da vida rural; assim como a constituição de novas subjetividades acompanhadas da construção de novos vínculos simbólicos entre o mundo rural e industrial; junto ao fomento dos processos de individuação e ascensão social, apresentar-se-iam aqui como processos autonômicos que demandaram o uso prático e versátil da resistência cotidiana, assim como uma diversidade de linguagens de poder paralelo para responder às tensões emanadas da situação colonial na qual estavam inseridos.
Considerar a migração ao Transvaal como uma forma de resistência cotidiana contra o sistema compulsório de trabalho impulsado pela empresa colonial, entendendo que atua como um fator contundente e não menos importante para a decisão de migrar, parece-nos propositiva. A realidade geral dos trabalhadores migrantes do sul de Moçambique, em situação de exploração laboral, coloca a questão da perda de sua autonomia em relação às cambiantes realidades econômicas, sob um novo enfoque, reconhecendo, desta maneira, a capacidade racional e pragmática de decidir estratégias coerentes com seus modos de vidas, como também de reagir às injustiças que as relações coloniais lhes impuseram.
Outro fator que merece ser mencionado aqui é aquele mencionado por Norman (2004) e que está relacionado ao fato de que grande parte dos estudos sobre o fenômeno da migração laboral às regiões do Transvaal procurou separar e reconhecer as diversas relações e clivagens entre os diferentes agentes econômicos e políticos coloniais, sejam estes de caráter público ou privado, tanto no setor agrícola como industrial, o mineiro foi desenvolvendo uma perspectiva diferente a estes enfoques utilizados para explicar o binômio tradição/modernidade, tal como o refere Norman:
While I’m aware of the differences and conflicts that existed between the States of Mozambique and South Africa, as well as between both States and many mining companies, including also plantation owners, my informers from the villages of Massingir saw them all as indivisible and monolithic. The state companies and the mining sector tied themselves institutionally one to the other in all stages of the migration of miners to South Africa: the motivation to migrate, the forms of recruitment and their experience in the mines, the way they received payment, even the way they went back home. For the Massingir miners, the State and mining companies were so strictly tied to each other that both were often talked of as a single entity (NORMAN, 2004, p. 72).
Este último aspecto é significativo, pois confirma nossas sérias dúvidas sobre os tipos de análises da situação colonial, revisados até hoje. Dessa forma, ao tentarmos introduzir uma perspectiva de análise que mostrasse a política aplicada pela administração colonial em Moçambique desde um viés que evidenciasse seu caráter contraditório porque incompreensível nos termos de uma racionalidade econômica não europeia, podemos concluir que apesar de toda a carga discursiva de elevar ao indígena a um grau de civilização através do trabalho e libertá-lo dos “atavismos” dos seus usos e costumes, ao tempo que não escondia toda sua maquinaria compulsória para extrair excedentes, não só não esteve ao nível de desenvolver qualquer infraestrutura que possibilitasse um desenvolvimento da sua sociedade colonial nos moldes capitalistas congruente com suas próprias aspirações.
Contrariamente, aprofundou as já graves diferenças entre colonizado e colonizador ao cimentar uma sociedade colonial dependente economicamente do exterior e, junto a isso, empobrecer ainda mais a população indígena, debilitando o aspirado desenvolvimento agrícola através do trabalho compulsório e os recrutamentos para trabalhar nas minas da África do Sul, entendendo que estas normativas foram constitutivas do universo cognitivo do colonizador. No entanto, e paralelamente a esta situação, as populações afetadas e submetidas a esta política puderam incorporar, de maneira muitas vezes pragmática, novas formas de entrelaçamentos e readequações da vida agrícola, mineira e industrial, possibilitando, por um lado, escapar às imposições legais porque ilegítimas e sem sentido e, por outro, desenvolver novas formas de sobrevivência econômicas centrando na mobilidade já preexistente, fomentando assim o desenvolvimento de novas formas de relacionamento entre a vida tradicional e o enquadramento no sistema internacional de exploração capitalista, tornando-se desta maneira no eixo dinamizador da economia regional. Este importante aspecto ainda está por ser desenvolvido em pesquisas futuras.
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Notas
Autor notes
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