Artigo
“Educar pel’O Exemplo”: educação e intersecções de raça, gênero e classe na imprensa negra de Porto Alegre no pós-abolição
“Educating by O Exemplo”: education and intersections of race, gender, and class in the black press of Porto Alegre in the post-abolition
“Educar pel’O Exemplo”: educação e intersecções de raça, gênero e classe na imprensa negra de Porto Alegre no pós-abolição
Anos 90, vol. 29, e2022010, 2022
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em
Received: 15 April 2021
Accepted: 20 February 2022
Resumo: Com o objetivo de refletir sobre as lutas políticas protagonizadas por indivíduos e grupos negros no pós-abolição, o presente artigo parte do ponto de vista de intelectuais reunidos na imprensa negra de Porto Alegre, mais exatamente durante a primeira fase do jornal O Exemplo (1892-1897). Seu programa voltava-se ao combate ao racismo e à ignorância e, além da garantia de uma escolarização formal de qualidade, pretendiam também “educar pel’O Exemplo”. Explorando o duplo sentido dessa expressão e as relações mantidas com o público, analisamos os sentidos atribuídos à instrução e à educação, com ênfase nas relações e expectativas de gênero no interior dessa coletividade. Assim, esperamos ainda oferecer reflexões sobre como as intersecções de raça e gênero concorreram para a construção de desigualdades sociais e agenciamentos políticos no pós-abolição.
Palavras-chave: Pós-abolição, imprensa negra, educação, raça, gênero e classe, Porto Alegre.
Abstract: With the objective of reflecting on the political struggles carried out by black individuals and groups in the post-abolition, this article starts from the point of view of intellectuals gathered in the black press of Porto Alegre, more precisely during the first phase of the newspaper O Exemplo. (1892-1897). Their program focused on the fight against racism and ignorance and, in addition to ensuring quality formal schooling, they also intended to “educate by example”. Exploring the double meaning of this expression and the relationships entertained with the audience, we analyze the meanings attributed to instruction and education, with an emphasis on gender relations and expectations within this community. Thus, we hope to offer reflections such as the intersections of race, gender contributed to the construction of social inequalities and political agencies in the post-Abolition.
Keywords: Post-abolition, black press, education, race, gender and class, Porto Alegre.
No dia 11 de dezembro de 1892, a primeira edição do jornal O Exemplo saiu às ruas de Porto Alegre com um programa que se manteve atual ao longo das quase mil edições que circularam até sua extinção em 1930. Conferindo um papel central à educação no processo de desassociação do lugar ocupado pela população negra na hierarquia social à coloração epidérmica ou à origem, os fundadores registraram no manifesto que o combate ao preconceito de cor e à ignorância era a base do projeto político em curso. Os fundadores entendiam que a inferioridade do negro era uma questão social e não natural, como argumentavam os discursos racialistas. Era, pois, um resultado das desigualdades de oportunidades, uma vez que para o cérebro de qualquer pessoa se desenvolver bastava submeter-se ao estudo, como eles mesmos atestavam.
No entanto, diante da realidade, mais do que demonstrar pelo exemplo seus talentos, virtudes e capacidades cognitivas, era urgente agir, tornando-se a imprensa uma tribuna privilegiada para disseminação do ponto de vista da intelectualidade negra. Dessa forma, os fundadores de O Exemplo e demais colaboradores passaram a pressionar o Estado, a conscientizar a audiência e, em particular, a persuadir sua classe, ou seja, as pessoas negras, a se instruírem, visando a ampliação de oportunidades e de exercício de direitos, bem como a contestação de estereótipos e outras representações racistas em voga. Nas palavras de Olívia Cunha e Flávio Gomes:
Vários ajustes, seja no plano da linguagem, seja no da representação, foram necessários. Novos significados povoaram textos diversos e estiveram presentes em infindáveis debates travados nos tribunais, ministérios e cartórios acerca da cessão de direitos políticos e legais a pessoas de cor, classificadas não só pelo selo de sua origem étnica, mas também por uma memória sutil e poderosa memória social fortemente enraizada no imaginário patriarcal e escravista (CUNHA; GOMES, 2007, p. 10).
Por isso, o grupo de O Exemplo desejava a adesão da “nossa classe” ao programa traçado, evidenciando uma expectativa geracional de realização do projeto.1 Um ano depois da fundação, o editor Arthur de Andrade confirmou que foi no seio da “mocidade porto-alegrense” que encontraram um “generoso e espontâneo acolhimento”; e que a despeito da “senilidade decrépita, pertinaz, retrógrada e corrupta desta capital”, receberam significativo apoio da “senectude progressista” que, ao lado da mocidade, foi um dos sustentáculos do jornal.2
Essa audiência conformava uma geração, não no sentido estrito de faixa etária, mas sim de “idade social”, baseada no compartilhamento de experiências e valores (SILVEIRA, 2019). Dentre as experiências, a do racismo e, dentre os valores, a esperança iluminista na instrução como elemento fundamental do progresso, da civilização e da modernidade. O manifesto de fundação anunciava essa intenção: “Nós, moços que somos, temos sede de luz, de luz que espanque altivamente as trevas de nosso horizonte e que, qual estrela a guiar o caminhoneiro errante, nos conduza ilesos aos portos da Ciência”.3 Essas ideias estavam na base do programa do jornal e concorreram para a tessitura de estratégias estimuladoras e promotoras do “levantamento” moral e intelectual da classe.
Vejamos, pois, como a instrução era compreendida naquele contexto e sua relação com a educação. Segundo um dicionário francês:
Instrução exprime a ciência mais vulgar, o que se aprende nas escolas. Difere a educação da instrução, sendo que a primeira inclui a ideia do bom emprego e uso da segunda: pode, pois, haver instrução com má educação, se o saber não é realçado por boas maneiras e bons costumes. O fim da educação é desenvolver as faculdades morais, enquanto a instrução visa enriquecer as faculdades intelectivas. Não obstante, instrução e educação se confundem na prática frequentemente; todavia é importante extremá-las. Ora, só mediante a inteligência os princípios se estabelecem. Concorre, pois, a instrução para a educação, tanto como a educação para a instrução (CAMPAGNE, 1873, p. 789 apudSILVA, 2014, p. 9).
Nos debates emancipacionistas, a instrução tornou-se uma aliada nas transformações das relações de trabalho, atribuindo-se ao Estado a tarefa de instruir, ou seja, ensinar a população a ler, a escrever e a contar e, em um nível técnico-profissional, ensinar-lhe algum ofício artífice ou agrícola. A educação também passou a ser compreendida como uma atribuição compartilhada com o Estado, com a especial tarefa de disseminar princípios morais e disciplinar os (futuros) trabalhadores com vistas à preservação das hierarquias sociais e da subordinação (SCHUELER, 1997; SILVA, 2014).
Consoante ao dicionário francês, as fronteiras entre instrução e educação nem sempre eram nítidas, algo que já se fazia notar no Dicionário da Língua Brasileira de Luiz Maria da Silva Pinto, de 1832, no qual instrução significava “ensinar doutrina”, sendo doutrina sinônimo de “erudição, ciência, ensino” e doutrinar, “ensinar para formar o entendimento ou a moral”. Educar, por sua vez, consistia em “dar educação e ensino de doutrina e bons costumes” e educação, “criação com ensino de doutrina e bons costumes” (PINTO, 1832). Os significados e termos se entrecruzavam, por isso é importante observar seu manejo e aplicação.
Regina Pahim Pinto (2013, p. 212-213) notou que o termo educação foi manejado pelos grupos negros organizados em São Paulo desde os primórdios do pós-abolição como sinônimo de instrução e de escolaridade. Em um sentido lato, como o conjunto de atividades culturais praticadas pelas associações negras (peças teatrais, palestras, saraus literários, eventos musicais, cursos instrutivos etc.), abrangendo a fundação de corpos cênicos, jornais, revistas, bibliotecas e escolas. Esse universo educativo também existiu no associativismo negro de Porto Alegre e foi nele que O Exemplo foi gestado e mantido (PEREIRA, 2007; SANTOS, 2011; MÜLLER, 2013; BOHRER, 2013; ROSA, 2019).
O dicionário francês explicitava ainda a distinção de gênero: aos homens cabia instruir-se nas escolas e às mulheres a tarefa de educar-se e educá-los no espaço doméstico. Considerando que o conceito de educação gradativamente passou a abranger a instrução, podemos ver em O Exemplo como a ocupação do espaço público por mulheres negras instruídas (ou não) impactou sobre os homens. No entanto, vale ressaltar que, em se tratando de grupos e pessoas racializadas, a despeito de suas individualidades e heterogeneidades, as interdições do racismo atingiam negativamente a todas elas, exigindo a mobilização e a organização coletiva com vistas à contestação racial e à própria sobrevivência.
Eduardo Bonilla-Silva (1997) reivindicou a necessidade de compreensão do racismo como estrutura e estruturante do social e destacou que a contestação racial, promovida por pessoas e grupos racializados, incide sobre as esferas social, política econômica e/ou ideológica, revela disputas de interesses e se expressa em embates por mudanças sistêmicas. Por isso, em uma sociedade que reduzia o negro à escravidão, à pobreza e ao desajuste à sociedade de classes no pós-abolição, a existência de experiências para além de imagens negativas e estigmatizantes não se tratava de uma obviedade, carecendo um árduo esforço de produção de representações de homens negros e mulheres negras respeitáveis. E esse não era um desafio restrito às fronteiras nacionais, encontrando reverberações na imprensa negra da diáspora (PINTO, 2010; XAVIER, 2012; 2013; SILVA, 2017).
Entendemos que raça, gênero, classe, dentre outros marcadores, são construções sociais, políticas e culturais interconectadas, mutuamente influenciadas e frutos de relações de poder, conformando não apenas diferenças, mas também desigualdades. Por conseguinte, o compartihamento de experiências de opressão, dominação e exploração concorre para a tessitura de identidades, lutas e solidariedades, mas também de conflitos e tensões (BAIRROS, 1995; COLLINS, 2019).
Dessa forma, a partir dos sentidos decorrentes da expressão “educar pel’O Exemplo”4, pretendemos discutir como as intersecções de raça, gênero e classe no imediato pós-abolição confluíram no projeto político do jornal O Exemplo de Porto Alegre, com ênfase em edições que integraram a primeira fase do jornal (1892-1897). Na tentativa de compreendermos os agenciamentos políticos da intelectualidade negra frente ao processo de construção de desigualdades na emergente sociedade pós-escravista e republicana, questionamos as relações e expectativas de gênero no interior da coletividade de O Exemplo, especialmente no que dizia respeito à educação.
Ressaltamos ainda que Zubarán, Bahia e Vargas (2019), ao analisarem o periódico desde a perspectiva dos Estudos Culturais, mobilizaram a categoria analítica de gênero e identificaram duas principais posturas dos jornalistas frente às mulheres: "uma mais tradicional, que buscava restringir a mulher ao lar, às tarefas domésticas e à educação dos filhos(as) e outra, mais progressista, em favor do direito e do acesso das mulheres à instrução e à emancipação" (p. 190). No presente artigo, como apontado, mobilizaremos uma perspectiva interseccional de gênero, raça e classe, desde a história social, atentando para as relações, tensões e expectativas de gênero no interior da coletividade durante a primeira fase do jornal (1892-1897), e não nas pedagogias culturais ou apenas nas representações sobre as mulheres construídas pelos homens.
Homens e mulheres exemplares
Como filhos de seu tempo, os jornalistas de O Exemplo estavam imersos na historia magistra vitae, ou seja, “como mestra da vida, cabia à história perpetuar os bons exemplos das vidas dos grandes homens ou, [...] ‘os homens notáveis por letras, armas ou virtudes” (GOMES, 2012, p. 33). Nesse sentido, desde meados do século XIX, a publicação de biografias, natalícios ou necrológios no periodismo sul-rio-grandense exercia uma “dupla função sociocultural da homenagem ou encômio e da pedagogia do exemplo, ou seja, da valorização do comportamento modelar a ser seguido pelos pósteros” (GOMES, 2012, p. 33). Podemos citar ainda que o uso da biografia pelas lideranças operárias apresentava “as trajetórias de lutadores sociais e militantes como exemplos de dedicação à causa dos trabalhadores ou dos oprimidos de maneira geral, como modelos de conduta aos homens do presente” (SCHMIDT, 2013, p. 63). Nessas elaborações, prima-se pela “coerência dos indivíduos biografados, engajados desde sempre em lutas heroicas contra a opressão dos dominantes, capazes até de se entregarem ao martírio em nome das causas defendidas” (SCHMIDT, 2013, p. 63).
Assim, os redatores de O Exemplo encerraram seu manifesto de fundação firmando o seguinte compromisso: “se não conseguirmos o levantamento da nossa classe, ao menos não a deixaremos jazer no pó do olvido, imersa em sua mediocridade”. Pretendiam, portanto, registrar memórias e histórias sobre o grupo fundador e outros homens exemplares, suas produções literárias e reflexões sobre questões e acontecimentos de seu tempo para a posteridade, salvaguardando-as por meio do jornal para as gerações futuras. Não por acaso, a sugestão de Alfredo Souza foi acatada e o jornal foi nomeado de O Exemplo. O duplo sentido decorrente evidencia ainda o desejo de demonstrar suas inteligências, talentos e virtudes e contestar os “doutrinários que julgam o homem pela cor da epiderme”.5
Vale destacar que, apesar de o negro ter sido o trabalhador por excelência no sistema escravista, no pós-abolição esse lugar foi ocupado primordialmente pelos imigrantes. Essa associação do negro ao não-trabalho decorre diretamente do racialismo em voga que, por meio do inatismo, atribuía-lhe a inclinação à criminalidade, aos vícios e à ociosidade (NASCIMENTO, 2016). Era, portanto, contra esse conjunto de estereótipos raciais que os intelectuais de O Exemplo buscavam o “levantamento” intelectual e moral de sua classe, demonstrando os beneficios da instrução e da educação.
No editorial “Trabalhemos”, de 1893, por exemplo, os “esforços intelectuais e materiais” deveriam ser aplicados ao trabalho, o que configuraria “o ponto capital da nossa grandeza futura”. Dentre outras vantagens, ilustravam, a alfabetização traria a autonomia de escrever cartas com a própria mão, prescindindo de alguém que “lhe interprete os sentimentos”, além de assinar recibos e conquistar trabalho lícito. A entrega ao estudo seria o “remédio para todos esses males”, incluindo a possibilidade de participação na construção da nação e da modernização em curso.6
A busca pelo levantamento moral, em específico, emergia da sistemática vigilância do comportamento nos espaços públicos e de sociabilidade. Desde seu primeiro número, diversas estratégias narrativas foram acionadas, como a criação de colunas assinadas por pseudônimos para incutir no público códigos de conduta. Arthur de Andrade, primeiro editor do jornal, explicou que, por meio de seu caráter “literário, crítico e noticioso”, O Exemplo pretendia “colaborar na marcha progressiva da sociedade”, aperfeiçoando os “usos e costumes daqueles que particularmente acham-se-nos vinculados, estimulando-os a amar não só o trabalho, com a cultura das letras, das ciências e das artes e aproveitar seus melhores elementos para que a evolução progressiva de sua classe seja uma realidade”.7 Mais do que instruir, buscavam também educar.
Assim, desde o primeiro exemplar, pululam das páginas de O Exemplo histórias de homens negros que ascenderam e alcançaram respeitabilidade social por seus talentos e virtudes, valorizados e aprimorados pela instrução, pelo trabalho e pela boa conduta social. A esse despeito, não estavam isentos do racismo, mas acreditavam que a massificação de seu exemplo concorreria para a contestação racial. Destacamos, nesse sentido, que tal galeria de homens ilustres, embora em diálogo com valores e princípios do seu tempo, não correspondia às expectativas das elites e autoridades políticas sobre a identidade do povo sul-rio-grandense. De acordo com Regina Xavier (2013), os escritos dos jornalistas negros contrapunham-se às imagens de brancura, igualdade e democracia projetadas sobre o Estado pelas elites intelectuais.
Tensionando tais representações, vejamos as atividades profissionais dos fundadores do jornal: Arthur Pinto Gama, funcionário da Secretaria do Tesouro; Arthur Ferreira de Andrade, funcionário dos Correios; Marcílio Francisco da Costa Freitas, tipógrafo e futuro Guarda-Mor da Alfândega; Alfredo Candido de Souza farmacêutico na Santa Casa; Sérgio Aurélio de Bittencourt, funcionário na Secretaria do Interior; seu irmão Aurélio Viríssimo de Bittencourt Júnior, futuro bacharel em Direito pela Faculdade de São Paulo e juiz de direito em Porto Alegre; Florêncio Calisto, barbeiro e futuro funcionário do Conselho Municipal; e seu irmão Esperidião Calisto, também barbeiro. Todos eles nascidos livres, instruídos, letrados e futuros pais de família. Adiante, em sua maioria, ascenderam no funcionalismo público, credenciaram-se ao republicanismo e conquistaram prestiogiosas patentes da Guarda Nacional. Tudo isso concorreu para a conquista de respeitabilidade e a abertura de possibilidades a seus patrícios (SANTOS, 2011; PERUSSATTO, 2018; ROSA, 2019).
Percorramos brevemente alguns elementos da construção da galeria de homens negros ilustres e exemplares durante a primeira fase do periódico. Esperidião Calisto foi saudado na primeira edição em virtude de seu aniversário, tendo seus predicados morais e intelectuais e o compromisso com o jornal sublinhados:
No dia 13 completará 29 anos de idade o digno moço cujo nome encima estas linhas. Caráter ilibado e amigo sincero são as principais qualidades que possui e quem o tem feito captar a simpatia e a admiração daqueles que com ele entretém relações. Ao serviço d’O Exemplo ele tem sido uma abnegação inexcedível; já empregando toda a sua atividade na parte material, já concorrendo com as luzes de seu fulgurante talento para a parte intelectual, tornando-se assim um dos seus mais fortes sustentáculos. É justo pois que esta recordação associando-se ao unto jubilo do amigo, envie-lhe as sinceras felicitações.8
Na passagem de seu 22º aniversário, em quatro de maio de 1893, foi a vez do editor Arthur Ferreira de Andrade ser saudado de forma semelhante por seus colegas de redação:
Este nosso companheiro dedicado e infatigável lutador pelo aperfeiçoamento moral e intelectual do nosso centro de sociabilidade, viu, no 4 do corrente, decerrar- se mais um ano na sua ainda curta existência, porém já muito proveitosa.
Nos é imensamente grato reiterar aqui os protestos da mais leal estima e alta consideração, que naquele dia oportunamente patenteamos-lhe.
Ao redator-chefe, pois, almejamos que conte muitos anos e uma vida feliz e prazenteira, da qual muito depende a obra do Bem.9
Além deles, a saudação ao aniversário de dois importantes apoiadores exemplifica tantas outras homenagens. Calisto Felizardo de Araújo, proprietário do estabelecimento onde o jornal foi fundado e era sediado, sito à rua dos Andradas, número 247, por ocasião de seu 74º aniversário, foi adjetivado como “respeitável ancião” e saudado como “nosso bom e velho amigo, estremecido pai dos nossos estimados companheiros”.10 Já seu confrade na Arquiconfraria de Nossa Senhora do Rosário e pai de dois dos fundadores foi assim homenageado em seu 45º aniversário: “O dia de amanhã assinala mais um aniversário do nosso velho amigo e distintivo colaborador Sr. Major Aurélio Viríssimo de Bittencourt, ilustre Diretor Geral da Secretaria do Interior e Exterior e oficial do gabinete do Sr. Dr. Presidente do Estado”.11 Neste último caso, um exemplo de trajetória vinculada ao funcionalismo público a inspirar os mais jovens.
Os integrantes do panteão não estavam restritos ao grupo fundador ou de apoiadores. Na edição comemorativa ao 13 de Maio de 1893, os abolicionistas José do Patrocínio e Luiz Gama foram destacados, bem como dois dos caminhos trilhados nas lutas por liberdade: a imprensa abolicionista e a mobilização de sujeitos coletivos negros de diferentes condições jurídicas (PINTO, 2018). José do Patrocínio foi lembrado por Marcílio Freitas como “a pena mais cintilante da imprensa brasileira” e Luiz Gama, por Esperidião Calisto, como aquele que se somou à “rebelião do instinto racional dos escravos paulistas que, abandonando as fazendas, se aproximaram da liberdade, acelerando a consumação da lei redentora”.12
Ao adjetivar de racional o instinto dos escravizados, Calisto acenava ainda para a compreensão dessas pessoas como portadoras de consciência política em detrimento de imagens de anomia, passividade ou fúria irracional comuns na época. Ademais, por ser entendida como uma conquista de pessoas negras que marcou “o início da reivindicação de nossos direitos de cidadãos brasileiros”, “a data luminosa de 13 de maio” deveria ser “efusivamente” festejada. E o jornalismo, como a “arena onde se refletem as necessidades humanas”, era também um espaço de comemoração e fortalecimento da luta por direitos.13
Chamou-nos a atenção a escolha de um pensamento do literato iluminista francês Jules Hoche como epígrafe do texto de Esperidião Calisto: “Os preconceitos não se destroem à bala: as luzes, a instrução e o tempo são armas mais seguras”.14 Dessa forma, demarcou mais uma vez a sintonia do projeto de enfrentamento ao racismo promovido pelo O Exemplo com o repertório iluminista e a decorrente ênfase nas luzes e na instrução em detrimento de estratégias mais imediatistas. Para tanto, era fundamental estreitar os vínculos com o público, o que nos pareceu ser a aposta das colunas sobre o cotidiano e a vida social, nas quais, segundo Oliveira Silveira (1992), registravam “o lado lúdico das charadas, o humor das alfinetadas e pauladas, as notas sociais”, convidando o público a uma maior interação com o jornal.
Oliveira Silveira (1992) destacou que a “postura frente a mulher” era um tema central juntamente com a literatura e as “questões sociais e raciais”. Nesse sentido, notamos que apenas um editorial do primeiro ano de existência mencionou as mulheres, tratando-se de um protesto contra o aumento tributário proposto pela municipalidade e seus efeitos sobre as lavadeiras, adjetivadas como “pobres mulheres”.15 Em contraponto, menções às mulheres pululam na maioria das colunas destinadas à vigilância do convívio social, sobretudo no que se refere à crítica e ao controle sobre seu comportamento, demonstrando as expectativas de gênero dos redatores e demais homens. A vida social, especialmente os bailes, era amplamente vigiada: homens alvos de chacotas por galanteios malsucedidos, ameaçados a terem seus nomes publicados diante da má conduta e repreendidos quando suscetíveis a atos ilícitos ou imorais; mães especialmente repreendidas quando descuidavam da honra das filhas, cujo comportamento afetivo-sexual era frequentemente desaprovado pelos colunistas.
Para ilustrar, ainda no primeiro número, um texto perguntava em seu título: “Subiremos ou nos precipitaremos no abismo?”. Assinado pelo pseudônimo Nascimento, responsabilizou a mulher perante a necessidade urgente de “medidas decisivas” para “moralizar a classe”, especialmente no que se referia às mães e seu cuidado com a preservação da honra das moças, vítimas de raptos, violências, seduções, ilusões e promessas de matrimônio. Desenhou, desse modo, as figuras femininas recorrentes nas edições seguintes: jovens indefesas e vulneráveis e mães permissivas, inábeis e incapazes de cumprir com o papel de educar e zelar pela honra das filhas.16
A centralidade da mãe estava sintonizada com a moral positivista associada à moral católica, uma vez que os jornalistas e colaboradores possuíam fortes vínculos com a Igreja e com o Republicanismo que, no Rio Grande do Sul, ancorou-se no positivismo. Segundo Elizabeth Leal (1996, p. 52), para Comte “não era mais a mente esclarecida ou os ‘doutores’ que empreenderiam a reforma moral da sociedade, e sim as mulheres, desenvolvendo e dirigindo, através da bondade e do altruísmo, a vida afetiva dos filhos e do marido, os cidadãos”. Assim, conciliando a moral positivista e a moral cristã, o articulista Nascimento reforçava que para “fazer a luz nas trevas” era fundamental que as mães incutissem “no ânimo filial o amor à religião cristã”, procurassem “conhecer o bem e evitar o mal”, enfim, “cercar-se de bons costumes e fugir a quem não se define categoricamente”. Só assim seria possível “ascender ao conceito público e furtar-nos ao abismo da corrupção latente em nossa classe”.17
Mas outros papéis foram delineados, todos eles convergindo para expectativas de gênero semelhantes. Vejamos o artigo “A mulher”, publicado em julho de 1894 no espaço reservado ao editorial possivelmente por expressar uma visão compartilhada pelos redatores.18 Segundo Monsenhor Pinto de Campos, a “mulher virgem” era um ser, ainda que perfeito, vulnerável aos impulsos; “a mulher mãe” era responsável por dar “a vida, alimento e carinho” e depois ensinar o filho “a balbuciar palavras e a dar passos, a refletir e orar”; a “mulher esposa” vinculava-se exclusivamente ao marido, como a “companheira [...] que o suaviza, que o aconselha, que o guia, que o anima, que o retém, que o ama, que toda vive nele, que toda se estremece de afetos, que toda desata em dedicação”; e a “mulher filha” cuidaria do pai em sua enfermidade. Além dessas, com papéis circunscritos ao espaço doméstico e ao cuidado do homem, fosse ele o filho, o marido ou o pai, havia ainda “a irmã da caridade” e a “mulher mártir” movidas, respectivamente, pelo altruísmo e pela fé. Por fim, “a mulher por excelência”, inalcançável às demais por ser aquela escolhida por Deus para com ele consubstanciar-se.
Embora se tratando de uma visão religiosa, notamos semelhanças com o que foi observado por Sílvia Petersen (1986/87) em jornais operários de viés socialistas publicados no Rio Grande do Sul no final do século XIX: a “mulher-namorada” se manifestava “na idealização da perfeição física e espiritual, da altivez e da delicadeza do ‘sexo frágil” que, ao transformar-se na “mulher-esposa”, passava a ser vista como alguém naturalmente inferior e subordinada ao homem. A maternidade acabava por mantê-la em seu lugar de inferioridade e subalternidade e associá-la exclusivamente à família na figurada da “mulher-mãe”. Embora não tenha adensado a última imagem, tampouco trazido as representações em torno dos outros tipos citados por Monsenhor Campos, os exemplos revelam aspectos comuns, pois além da menoridade, ou seja, da incapacidade de responderem por si, as meninas e moças, enquanto futuras namoradas-esposas-mães, deveriam ter sua honra preservada pelas mães, igualmente responsáveis por sua educação dentro de princípios morais (e, no caso de Monsenhor Campos, religiosos), em consonâncias com valores patriarcais.
Petersen destacou ainda algumas posições contraditórias dos socialistas, pois a apesar de postularem a existência de uma “nova mulher na sociedade socialista do futuro”, o ideário de igualdade e liberdade era exclusivo aos homens: a nova mulher seguiria vinculada ao trabalho reprodutivo e doméstico. Por fim, salientou a ausência da dimensão mulher-mulher como mais um indicativo da postura desses homens perante as relações de gênero, bem como a inexistência de escritos de mulheres em primeira pessoa na imprensa operária socialista.
Sobre esse último aspecto não podemos dizer o mesmo, pois em O Exemplo e outros periódicos da imprensa negra há registros de mulheres autoras. Mais do que uma concessão dos homens, a presença feminina nas redações certamente resultou de pressões exercidas sobre aqueles que dirigiam os jornais (XAVIER, 2012). Seus escritos em primeira pessoa tornam-se, pois, uma forma de notarmos sua presença na parcela instruída da raça e, sobretudo, conhecemos sua participação nos debates e lutas por emancipação promovidos em diversos pontos do Atlântico (XAVIER, 2013).
Autoras: mulheres negras definindo pautas
Em março de 1893, o Dr. Saraubit, pseudônimo bastante presente em colunas sociais, deixou a redação e a nova colaboradora, a “Exma. jovem D. Celina Buz”, foi saudada.19 Até o momento é uma das poucas mulheres a assinarem publicações durante a primeira fase de existência de O Exemplo (1892-1897), tornando seus escritos ainda mais significativos. Além dela, encontramos apenas a leitora e colaboradora Izolina Ribeiro, que assinou a coluna Charada.20 No poema, Celina Buz demarcou o papel das mulheres na promoção da educação moral dos filhos, sem deixar de mostrar os laços de afeto entre os membros do seu meio social:
Na sala muitos pares
Dançam alegremente,
E da vida os azares
Esquecendo friamente.
Não cuidam dos esgares
Que mui seguidamente
Sem si importar com olhares,
Faz um par docemente
Mas uma velha patusca,
Que se fez dorminhoca
E alguma coisa busca...
Diz a filha: Milóca,
Não deixe o primo Juca
Dar-lhe tanta beijoca.21
Os bailes não eram apenas espaços recreativos, mas também de arranjo matrimonial (SILVA, 2017), o que nos ajuda a compreender os porquês de receberem tamanha atenção nas páginas do jornal. Ademais, ainda que Celina Buz tenha reproduzido uma cena de controle geracional entre mulheres, isso não quer dizer que concordava com a vigilância de uma “velha patusca” sobre o comportamento afetivo-sexual de jovens como Milóca. Evidentemente, trata-se de um exemplo da forma como as mais velhas zelavam (ou deveriam zelar) pela honra das mais jovens e as entrelinhas sugerem conflitos, resistências e negociações no exercício de suas vidas afetivo-sexual. Disso decorre ainda o nítido padrão heterossexual de relacionamento.
A atuação de Celina não parou por aí. Em 1893, um artigo escrito por Sanspeur, pseudônimo de um assíduo colaborador do periódico, a pedido da sua “ilustre colega, Exma. Sra. Celina Buz”. Segundo ele, “D. Celina deu-me, para estreia, um assunto bastante escabroso, qual seja: armar um reclame para o moderno Fígaro”. Publicada na coluna “Farpas”, a crônica posicionou-se em relação à conjuntura política e às forças beligerantes, enfocando os prejuízos decorrentes do recrutamento forçado de jovens habilidosos para a guerra civil em curso no Estado, como era o caso do barbeiro do moderno Fígaro: “o rapaz tem mais queda para a navalha do que para a espada; mesmo porque mais vale ganhar à sombra de um teto plácido e feliz [...] do que arriscar a pele por um governo ingrato, que nem ao menos lhe deu as tão almejadas divisas de sargento”. E assim finalizou Sanspeur: “Bem ou mal, estão por hoje cumpridas as ordens de V. Exa., D. Celina”. 22
Os pronomes de tratamento dispensados à Celina Buz pelo redator anônimo informam sua respeitabilidade perante a redação e o teor do texto torna-se um importante registro da atuação política de uma mulher na imprensa do final do século XIX. Celina Buz não apenas se somou aos seus pares na redação de colunas sobre a vigilância das mulheres de seu meio, mas também definiu uma pauta política, posicionando-se criticamente em relação ao governo. Portanto, valeu-se do espaço privilegiado de comunicação da redação com as leitoras, as colunas sociais, para assumir o lugar de autora e dialogar diretamente com elas. Em um contexto de profundo analfabetismo, racismo e dominação patriarcal, sua autoria na imprensa potencializa ainda mais a dimensão política de seus escritos.
Desse modo, vemos ainda que a centralidade do cuidado na vida das mulheres negras não excluía outras formas de participação e mobilização, tampouco as reduzia à passividade nos projetos de emancipação racial (DAVIS, 2016). Ao posicionar-se como pensadora, Celina Buz certamente impactou sobre expectativas de gênero do seu meio social, bem como sobre as “imagens de controle” (COLLINS, 2019). Conforme Collins, mais do que estereótipos, são imagens construídas sobre as mulheres negras em meio às relações de poder que impactam sobre suas vidas e geram reações e resistências.
Nessa perspectiva, o espaço de “rainha do lar” não foi historicamente destinado à mulher negra e ocupá-lo podia configurar-se uma forma de resistência. Por outro lado, como salientado por Collins (2019), vai ao encontro da imagem de controle da matriarca, ou seja, a compreensão da mulher negra como suficientemente forte para atender ao trabalho produtivo e reprodutivo, doando-se integralmente à família e prescindindo do autocuidado. Ou seja, o esforço dos jornalistas em representá-las como responsáveis pelo cuidado dos seus não pode ser interpretado exclusivamente como uma tentativa de produção de imagens positivas e respeitáveis.
Lembremos, nesse sentido, que o único editorial a mencionar as mulheres ao longo do primeiro ano do jornal referiu-se aos efeitos do aumento dos impostos sobre as lavadeiras, adjetivadas como “pobres mulheres”. Isso nos leva ao principal espaço de trabalho das mulheres negras, o serviço doméstico, que embora tenha assegurado a sobrevivência de muitas famílias, representa a manutenção de sua exploração e subalternidade no pós-abolição. Por isso, para o projeto de emancipação encabeçado pel’O Exemplo, era igualmente importante protestar contra o efeito do aumento dos impostos sobre a vida das trabalhadoras que pertenciam ao principal espaço laboral das mulheres negras. Destacamos ainda que o trabalho, sobretudo o serviço doméstico e suas tarefas correlatas, era a forma pela qual a maioria das mulheres negras ocupava o espaço público, mas também os lares de muitas famílias brancas, obrigando-as muitas vezes a renunciar ao cuidado de si e dos seus.
Refletindo sobre o trabalho intelectual das mulheres negras, bell hooks (1995) diz-nos que o modelo de intelectual burguês não serve para analisá-lo, pois o patriarcado e o racismo ensinaram-lhes que sua função social é o cuidado, mas também porque é no convívio familiar e comunitário que seu pensamento é formulado. Dessa forma, o compartilhamento de experiências de dominação a partir da intersecção de raça, gênero, classe, dentre outros marcadores, em seus corpos e mentes concorre para a construção de uma consciência sobre seu lugar nas relações de poder, de grupos e de um “ponto de vista” (BAIRROS, 1995, p. 461).
A diferença de classe social no meio negro, portanto, não era desconsiderado nas páginas do jornal e Celina Buz torna-se um importante exemplo de mulher que conseguiu instruir-se e participar da imprensa. Além de O Exemplo, é possível que suas leitoras e colaboradoras, como Celina Buz e Izolina Ribeiro, lessem, se educassem e formassem opinião por meio de periódicos da imprensa feminina. Em abril de 1893, a redação de O Exemplo saudou o aparecimento de um jornal feminino na capital: “A Grinalda, jornal especialmente consagrado ao belo sexo, de propriedade da conhecida literata D. Maria da Cunha”.23
Conforme Alice Fonseca (2005, p. 11), seus editoriais abordavam geralmente “uma figura feminina ou fatos e teses de interesse das mulheres”. Os outros espaços eram ocupados por “poemas, contos e ensaios de diversos autores [...], bem como notícias e notas de pêsames, casamentos, aniversários e noivados”. Na última página havia “anúncios de produtos ‘próprios para o sexo das graças’: flores artificiais, lojas de roupas, espartilhos e outros” (FONSECA, 2005, p. 11). A proprietária de A Grinalda, a dramaturga Maria da Cunha (1862-1917), nasceu e morreu em Porto Alegre, sendo conterrânea da professora pública e literata Luciana de Abreu (1847-1880).
Considerada a primeira mulher a subir em uma tribuna no país, Luciana de Abreu proferiu um emblemático discurso sobre a emancipação feminina no Partenon Literário de Porto Alegre na década de 1870. De acordo com Cássia Silveira, sua participação na entidade revela suas hierarquias sociais e as possibilidades de discurso político aos dominados (SILVEIRA, 2016, p.36). Embora sem a devida visibilidade, outras mulheres possivelmente se lançaram ao trabalho intelectual no final do século XIX em Porto Alegre, colocando em questão os papéis sociais que lhes eram atribuídos pelos homens.
Educar pel’O Exemplo
Apesar da maior parte da população negra seguir fora das escolas no alvorecer republicano, por meio do jornal O Exemplo vimos um grupo de jovens negros, sedentos de luz e frustrados com os descaminhos republicanos, colocar-se como arauto dos interesses de sua classe, elegendo a luta contra o preconceito de cor e a ignorância como centrais em seu projeto de emancipação. A imprensa tornou-se um meio de promover o erguimento moral e intelectual de sua classe, concorrendo para isso o uso exemplar de trajetórias de homens negros virtuosos e respeitáveis, bem como o controle sobre a vida social de homens e mulheres em crônicas e colunas satíricas. Além disso, com o desejo de estimular em seu público o gosto pelas artes, pelas letras e pela ciência, havia as publicações críticas, noticiosas e literárias.
O impacto das relações de gênero no interior da coletividade negra pode ser notado na definição dos diferentes papéis e expectativas na consecução do projeto político em tela no jornal, que passava pela construção de masculinidades e feminilidades respeitáveis por meio da instrução e da educação. Aos homens estimulava-se a busca pela formação intelectual e moral com vistas a sua qualificação para a inserção no mercado de trabalho e à construção de imagens de laboriosos cidadãos, pais de família, honrados, dignos e respeitáveis. Às mulheres projetava-se expectativas de educação moral no âmbito doméstico, o que incidiria sobre a formação dos meninos, futuros cidadãos, e das meninas, futuras esposas. Contudo, as mulheres tensionaram tais expectativas e adentraram a redação do periódico estabelecendo debates e pautas políticas.
Embora não tenha sido o foco do presente artigo, debruçado sobre a primeira fase do jornal (1892-1897), a presença feminina na redação foi mais significativa na fase que se inaugurou em 1902, com a colaboração de Uma Democrata, Sophia Ferreira Chaves, Carmem d’Aguiar, dentre outras. Em comum, diziam sair de seu lugar de obscuridade para se credenciarem firmemente ao projeto encabeçado por valorosos homens. Nesse contexto, registra-se ainda um importante debate sobre a emancipação da mulher, por meio do qual, a despeito do apoio dos autores, não podia colidir com ou prejudicar a suprema missão feminina, qual seja, a maternidade (PERUSSATTO, 2018). Ademais, os homens da redação ao se dedicarem ao tema da emancipação feminina, sugerem tratar-se de um assunto inescapável para a emancipação racial, abrindo caminhos para reflexões sobre tais confluências no alvorecer no século XX.
Referências
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Notes
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