ARTIGO

A constituição de jurisdições eclesiásticas no discurso canônico sobre dízimos: a Summa Aurea de Hostiensis e suas intertextualidades*

The constitution of ecclesiastical jurisdictions in canonic discourse on tithes: Hostiensis’s Summa Aurea and its intertextualities

Carolina Gual Silva *
Universidade Estadual de Campinas, Brasil

A constituição de jurisdições eclesiásticas no discurso canônico sobre dízimos: a Summa Aurea de Hostiensis e suas intertextualidades*

Anos 90, vol. 28, e2021005, 2021

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em

Received: 12 February 2020

Accepted: 20 October 2020

Funding

Funding source: Fapesp

Contract number: nº 2017/20683-6.

Funding statement: Pesquisa realizada com financiamento Fapesp, processo nº 2017/20683-6.

RESUMO: As fontes de direito canônico, produzidas entre os séculos XII e XIII, indicam que o controle e a cobrança do dízimo desempenhavam uma série de funções religiosas, políticas e sociais. Entre essas funções, destacava-se a organização política, espacial e jurisdicional das paróquias, dioceses e do próprio papado. Em um lento processo no qual o próprio conceito de jurisdição estava em formação, os dízimos tiveram papel fundamental na definição e delimitação das jurisdições eclesiásticas, principalmente em relação à jurisdição episcopal e papal. A partir de uma leitura de intertextualidade comparativa da Summa Aurea (1253) de Hostiensis com o Liber Extra (1234) e o Decretum de Graciano (c. 1140), o objetivo desse artigo é demonstrar a relação entre o discurso sobre os dízimos e a definição tanto do conceito quanto da atuação prática da jurisdição eclesiástica entre os séculos XII e XIII.

PALAVRAS-CHAVE: Dízimos, Jurisdição, Hostiensis, Direito canônico.

ABSTRACT: Canon Law sources from the 12th and 13th centuries indicate that the control and payment of tithes performed a series of religious, political, and social functions. Among these functions, we can highlight the political, spatial, and jurisdictional organization of parishes, dioceses, and of the papacy itself. In a slow process in which the concept of jurisdiction was also under construction, tithes played an essential role in the definition and delimitation of ecclesiastical jurisdictions, particularly regarding episcopal and papal jurisdictions. Analyzing Hostiensis’s the Summa Aurea (1253) through an intertextual comparison against work as the Liber Extra and Gratian’s Decretum, this paper’s goal is to demonstrate the relationship between the discourse on tithes and the definition both of the concept and of the practical action of ecclesiastical jurisdiction between the 12th and 13th centuries.

KEYWORDS: Tithes, Jurisdiction, Hostiensis, Canon Law.

Introdução

A literatura jurídica medieval representa um dos principais legados para o historiador que se dedica a estudar a constituição dos poderes na Idade Média, tanto em termos de sua formulação teórica quanto em relação às suas representações simbólicas e às práticas da política e da justiça. Essa literatura compõe uma tradição textual que pode nos revelar “senão uma comunidade fun- damental de condições sociais de vida, pelo menos, uma comunidade de modelos sociais de pensar o homem, a sociedade e o poder” (HESPANHA, 1994, p. 296). O discurso legalístico e jurídico dos autores medievais baseava-se em noções de jurisdição para pensar sobre os espaços de atuação de cada esfera da organização eclesiástica. A teoria jurídica medieval, como um todo, tinha no conceito de jurisdição (iurisdictio) um dos pilares que sustentavam a vida institucional e política.

O poder legislativo e jurídico da Igreja encontrava-se depositado, principalmente, entre a figura do papa e do bispo e podemos chamar esse poder - ou autoridade - de jurisdição. No entanto, essa autoridade não é um fato dado, ela é lentamente construída num processo eivado de conflitos e negociações. Podemos dizer que as autoridades papais e - principalmente - episcopais são definidas em termos de espaços. Essas autoridades estão fortemente imbricadas na discussão sobre a definição e a delimitação da diocese e da paróquia num processo de “territorialização de poderes” (MAZEL, 2008, p. 18).

Nesse processo, quatro elementos foram fundamentais para a passagem de uma noção pessoal para uma espacial: o sepultamento, o batismo, a confissão e o dízimo.1 Portanto, se pensarmos a autoridade papal e episcopal em termos de território ou espaço, podemos dizer que o discurso sobre o dízimo participa ativamente da construção dessa autoridade.

Há, no entanto, uma segunda maneira de se definir a autoridade de bispos e papas que não deixa de estar ligada ao conceito de território, mas que vai além para incluir a definição e a delimitação das jurisdições. Nos séculos XI-XIII, no entanto, o conceito encontrava-se ainda em construção no pensamento jurídico e político. Entre os anos 1120-1260 não encontramos uma interpretação unívoca dele. O conceito que se desenvolvia não era representado necessariamente pela palavra iurisdictio, podendo estar relacionado a outros vocábulos como auctoritas, potestas, lex, ius, cura animarum, entre outros. Podia, assim, abarcar uma série de sentidos e se adaptar a diferentes situações. À medida que o conceito se moldava, ele passava a ser utilizado pelas forças interessadas para justificar suas posições.

Parte inerente do direito atual, no período medieval a preocupação com a jurisdição e a defini- ção desse conceito se impôs gradativamente com a retomada do direito romano civil. Transmitido pelas obras justinianas (Código, Instituições e Digesto) comentadas e glosadas pelos juristas, esse conceito foi incorporado ao direito canônico a partir do século XII, com autores como Graciano, Rufino, Huguccio, Raimundo de Peñafort e o próprio Henrique de Susa.

Jurisdição, portanto, como um conceito historicamente construído no mesmo período e pelos mesmos autores que teorizaram sobre a formação das dioceses e paróquias - noções que são particularmente importantes para o presente estudo sobre o dízimo - é uma chave importante para nosso esforço de compreensão do lugar do dízimo nessa sociedade medieval em transformação. Foi através de noções de jurisdição que os canonistas explicaram e justificaram a cobrança do dízimo, ligando-o à autoridade papal e episcopal. Portanto, o presente artigo analisa, através de obras jurídicas como a Summa Aurea de Henrique de Susa, o Liber Extra, entre outras, como o discurso sobre os dízimos foi um dos elementos fundamentais nas definições das jurisdições eclesiásticas entre os séculos XII e XIII e, ao mesmo tempo, auxiliou na formulação do próprio conceito de jurisdição, uma vez que este ainda não estava cristalizado nas obras. Através de uma metodologia comparativa, trabalharemos a partir do princípio da intertextualidade para construir os diálogos entre as diferentes obras e buscar uma compreensão da construção da jurisdição através desses textos jurídicos. É preciso, portanto, em primeiro lugar, historicizar e contextualizar iurisdictio.

O conceito de iurisdictio no direito canônico dos séculos XII-XIII

Segundo Irnério (c. 1050-1125?), glosador do Corpus Iuris Civilis, jurisdição “é o poder baseado na necessidade de pronunciar julgamento e estabelecer a equidade” (CORPUS IURIS CIVILIS, 1604, glosa ao Digesto 2, 1, 3).2 Essa definição será consagrada em definitivo por um dos mais importantes juristas do século XIV, Bartolo de Sassoferrato (1314-1357).

No entanto, entre os séculos XI-XIII não havia uniformidade entre os juristas na compreensão do que significava iurisdictio. O termo aparece no Digesto de Justiniano sob o título De Iurisdictione (2, 1), mas no direito romano não há uma definição de “jurisdição” per se. Na realidade, ela era explicada em termos daquilo que lhe pertencia, ou seja, o que era da esfera da jurisdição. O termo utilizado para se referir à jurisdição também variava, mas em muitos casos era representado pela palavra imperium (MAIOLO, 2007, p. 141-142). Podemos dizer, então, que o conceito estava vinculado à coisa, não sendo puramente abstrato.

Para tentar resolver essa indefinição, comentadores do direito romano, como Azo de Bolonha e Acúrsio, delongaram-se em uma passagem específica do Digesto de Justiniano (D. 2, 1, 3). O Digesto apresentava a jurisdição (imperium) como sendo de dois tipos: merum imperium e mixtum imperium, que variavam de acordo com o quantum de poder atribuído e quem o detinha.3 Azo via a jurisdição como legitima potestas atribuída pela lei para cada juiz. Acúrsio dizia que jurisdição era o conjunto de funções atribuídas por uma lei a cada magistratus.

As principais definições elaboradas e expostas por esses comentadores continuariam a influenciar juristas ao longo da Idade Média. Eles propunham uma classificação dos diferentes níveis de jurisdi- ção; em seguida, ressaltavam a dificuldade em definir esses níveis e buscavam definir o limite penal do merum imperium (o nível mais alto de jurisdição) e a regulação da delegação desse imperium.4

No direito canônico, as primeiras reflexões sobre o conceito de jurisdição associavam-na diretamente à autoridade episcopal sem uma separação clara entre o que poderíamos chamar de uma atuação de poder público e as funções religiosas da ordem. Assim, as primeiras teorizações estavam ligadas ao processo de definição do espaço e da autoridade das dioceses e das paróquias. Em Graciano, o termo iurisdictio ainda era pouco utilizado. Nas poucas vezes que foi usado, estava exatamente em causas onde ele discutiu questões de territorialização e definição de dioceses e de poderes episcopais. Nesses casos, o termo lex diocesana (lei da diocese) foi usado como um sinô- nimo para a noção de jurisdição.

Para Graciano, a lei diocesana significava todo o poder administrativo, em geral, do bispo diocesano. Glosadores do Decretum identificaram uma série de outros termos sinônimos que Graciano utilizara para se referir a esse poder administrativo dos bispos, como administratio ou potestas administrationis, auctoritas, ius episcopis ou ius episcopale, ius et dominium episcopi, lex dioce- sana, cura animarum, dispositio, potestas regiminis, entre outros. Portanto, no Decretum a jurisdição estava ligada ao bispo e, assim sendo, qualquer termo que representava seu poder e atuação poderia ser interpretado como referente à jurisdição episcopal. Tal fato, porém, não garantia uma noção exatamente clara sobre o que consistia exatamente esse conceito.

Os decretistas buscaram, então, dar maior precisão à definição de Graciano, como fizeram com tantos outros pontos pouco esclarecidos do Decretum. Rufino, por exemplo, utilizou o termo lex diocesana como sinônimo de jurisdição e o definiu como sendo a representação do poder do bispo em dispensar as spiritualia, instituir ministros e ordená-los, estando isentos desse poder apenas os mosteiros que receberam privilégios especiais do sumo pontífice dentro do direito canônico (RUFINO DE BOLONHA, 1963, p. 301).5 Para Rufino, portanto, os dois termos, Lex diocesa e iurisdictio eram equivalentes e o poder do bispo estendia-se tanto para as questões materiais quanto espirituais.

Por sua vez, o decretista Estêvão de Tournai interpretou a jurisdição de Graciano utilizando, num primeiro momento, o termo iurisdictio num sentido bastante amplo de potestas regendi communitatem (o poder que rege a comunidade), que incluía o poder legislativo, judiciário, coerci- tivo e de administração de todos os sacramentos (VAN DER KERCKHOVE, 1939, p. 426-427). No entanto, ao longo da sua Summa, Estêvão de Tournai assumiu uma posição diferente de Rufino ao concentrar a jurisdição nas questões espirituais. Ela estaria, portanto, ligada ao “poder de conferir ordenações, de excomungar, de conceder ou recusar a absolvição de penitentes, etc. Em suma, à administração espiritual da diocese” (VAN DER KERCKHOVE, 1939, p. 428). O decretista oscilava entre uma definição abrangente e uma restrita do sentido da jurisdição.

No entanto, a grande maioria dos decretistas seguia a linha de Rufino: João de Faenza (após 1171) e Sicardo de Cremona (após 1179), além de autores anônimos de várias summae, “estão ple- namente de acordo com Rufino e colocam todo o poder jurisdicional do bispo na extensão da lei diocesana” (VAN DER KERCKHOVE, 1939, p. 429). De qualquer forma, o conceito continuava bastante abrangente e, de maneira geral, Graciano e os decretistas interpretavam jurisdição no sentido mais amplo de conjunto do poder administrativo do bispo diocesano.

Com Huguccio, um dos principais comentadores do Decretum, operou-se verdadeiramente uma divisão e uma separação entre a noção de lex diocesana e iurisdictio. Huguccio identificou a existência de dois poderes, o poder diocesano e o poder jurisdicional. Ambos estavam concentrados nas mãos dos bispos. No entanto, a lex diocesana possuía apenas o sentido de administração dos bens temporais. Enquanto isso, a jurisdição estava associada à cura animarum, ou seja, ao cuidado das almas, incluindo tudo que fosse relativo ao espiritual, como a ordenação de igrejas e altares, a consagração de virgens, a dispensa dos sacramentos. A lei jurisdicional, dedicada ao espiritual, não admitia qualquer exceção, salvo com privilégio especial do papa. A lei diocesana, ao contrário, só recaía sobre os bens materiais da administração da diocese e era, portanto, passível de ser modificada.6 Outros decretistas influenciados por Huguccio, como João Teutônico (1180-1252) e Bartolomeu de Brescia (c. 1240), assim como os primeiros decretalistas, mantiveram essa separação entre o poder administrativo temporal e a jurisdição espiritual. Em comentário à D. XX, c. 1 do Decretum, datada de cerca 1201, João Teutônico aplicou a palavra jurisdição ao poder das chaves (potestas clavium), ou seja, o poder conferido pelo sacramento da ordem para perdoar os pecados, definir os dogmas da Igreja, excomungar e interpretar corretamente as Escrituras (VAN DER KERCKHOVE, 1939, p. 423).

O papa Inocêncio IV, por exemplo, reforçou a diferença entre lei diocesana e jurisdição ao dizer que a primeira regulava as coisas puramente materiais, mas, sobretudo, fixava os casos deexceção do poder do bispo. A lei jurisdicional regulava a administração espiritual e não admitia qualquer exceção dessa lei (VAN DER KERCKHOVE, 1939, p. 437). Mas, para Inocêncio IV, a lex iurisdictionis poderia ser aplicada a uma parte da lei diocesana. Ele propunha o exemplo de dízimos pagos na ocasião da administração de sacramentos. Embora os dízimos fossem, em princípio, do âmbito material, sua ligação com os sacramentos colocava-os sob a regulamentação da lei jurisdicional.7 Definia-se, assim, a jurisdição como um ius, ou seja, um direito, para além de um simples poder, potestas. Lentamente a jurisdição se separava, então, do poder da ordem. No século XIII, portanto, sob a influência crescente da interpretação do direito romano, a juris- dição tornou-se potestas publica regendi societatem que era diferente do poder sacramental do bispo e incorporava um triplo poder: legislativo, administrativo e coercitivo.

Outro ponto importante entre esses canonistas era a noção de uma dupla jurisdição, uma de ordem divina e outra humana. Nessa divisão, o poder espiritual não poderia nunca estar sujeito ao poder secular. Pelo contrário, segundo Rufino, a jurisdição secular deveria estar sempre sujeita à jurisdição do espiritual (RUFINO DE BOLONHA, 1963, p. 192).8 Huguccio lidava com a dupla ordem de jurisdição afirmando que elas eram independentes uma da outra, mas que ambas haviam sido instituídas por Deus (MAIOLO, 2007, p. 149). A jurisdição divina encontrava-se nas mãos do papa enquanto a humana estava nas mãos do imperador. Nesse sentido, observamos uma mudança no foco, com a jurisdição deixando de ser teorizada em termos da autoridade e da atuação do bispo diocesano para ser integrada ao campo do domínio papal.

Aos poucos a noção de separação das duas ordens foi sendo superada em nome de uma supremacia da jurisdição divina representada na figura do papa. Com Inocêncio III e a decretal Per Venerabilem (1202), que regulava a questão da legitimidade e herança de filhos bastardos de Felipe Augusto,9 começou-se a estabelecer uma doutrina de plenitude do poder jurisdicional nas mãos do papa. Essa plenitude foi radicalizada por Inocêncio IV que afirmou o princípio de que o “papa iudex ordinarius est omnium”, com tal jurisdição estendendo-se não apenas aos Cristãos, mas também aos pagãos (MAIOLO, 2007, p. 150). O conceito de jurisdição ampliava-se para além da paróquia e da diocese: ele passava pela consolidação da plenitudo potestatis.

Henrique de Susa (1200?-1271) sistematizou a questão da jurisdição papal a partir de um comentário da decretal Per Venerabilem. No Livro IV da Summa, título Qui filli sunt legitimi, ele começa a discussão mencionando as posições opostas de Huguccio e de Alanus Anglicus (1190-1210). O primeiro, como vimos, sustentava a independência e autonomia das duas juris- dições, enquanto o segundo afirmava que o imperador recebia seu gladium do papa. Henrique de Susa concordava que imperium e sacerdotium eram duas jurisdições distintas vindas de Deus. Mas em relação à majestade e dignidade, o poder espiritual era maior que o temporal, só exis- tindo uma cabeça para o “corpo de Cristo”, o Papa. O império era como a lua, que recebia seu reconhecimento do sol, a Igreja. Além disso, assim como o sol iluminava o mundo inteiro através da lua durante a noite, que refletia a sua luz, a Igreja iluminava o mundo através dos governantes seculares. Como a Igreja havia transferido por meio da providência divina as prerrogativas reais aos Germanos, o imperador deveria estar sujeito ao Papa, que teria o poder de confirmar, ungir e coroar o imperador e até mesmo depô-lo se fosse necessário (HOSTIENSIS, 1574, livro III, cols. 1386-1387). Além da autoridade sobre o próprio imperador, ao defender a plenitudo potestatis, Hostiensis colocava o papa acima, inclusive, do direito canônico.10 Isso significava que o papa não poderia ser julgado por ninguém - salvo em caso de acusação por heresia - e que ele possuía o poder de mudar a lei através de dispensas e concessões de privilégios.

A autoridade do papa - e, portanto, sua jurisdição - estendia-se de forma bastante ampla sobre tudo que dizia respeito à constituição da Igreja e à vida do clero. As ações do papa estavam apenas limitadas por três perguntas: o que é lícito? O que é apropriado? O que é expediente? (quid liceat… quid deceat… quid expediat) (PENNINGTON, 1993, p. 61-62). Havia um caráter deliberadamente público da ação, uma vez que expediente era entendido como aquilo que privilegia a utilidade pública sobre a utilidade privada. Hostiensis enxergava a jurisdição como uma maneira de manter a harmonia: a ordo ecclesiasticus deveria ser respeitada para que houvesse harmonia. Nessa ordem, o papa estava acima de todos e sua jurisdição (authoritas iuris) devia ser respeitada (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro I, cols. 347-351).

Como pudemos observar, o conceito de jurisdição entre os anos 1120-1260 não tinha uma única interpretação, podia abarcar uma série de sentidos e adaptar-se a diferentes situações. A palavra iurisdictio não era necessariamente associada ao conceito que se desenvolvia. Esse aparecia sob a forma de auctoritas, potestas, lex, ius, cura animarum, entre outros. Os canonistas esforça- vam-se por definir a natureza da jurisdição. Eles o faziam a partir dos conflitos e necessidades que surgiam na sociedade. Ao mesmo tempo, à medida que o conceito se moldava, ele passava a ser utilizado pelas forças interessadas para justificar suas posições.

A noção de iurisdictio, independentemente da palavra que a representava, funcionava dentro de uma lógica de esferas de atuação de poderes. Ao definir os limites, ou o que estava incluído, na jurisdição do bispo, o conceito também definia qual era a natureza desse poder. A jurisdição regulamentava práticas como a ordenação, a administração de sacramentos, os sepultamentos, os privilégios e os dízimos. O mesmo ocorria para a jurisdição papal, que era vista, inclusive, em termos de ação de poder público. Assim, podemos concordar com o historiador Jesus Vallejo, que afirma que iurisdictio era uma das concepções dominantes que regeram o poder normativo em meados do século XIII (VALLEJO, 1992, p. 15).

Diante da abrangência dos usos do termo iurisdictio e seus equivalentes, e diante das múltiplas construções que abrangem esse conceito entre os canonistas dos séculos XII-XIII, definiremos aqui jurisdição como o estabelecimento dos limites jurídicos, sociais, políticos e espaciais das paró- quias, das dioceses e do papado. Assim, propomos uma noção multifacetada de jurisdição que é simultaneamente estabelecida por diversos elementos e construtora de autoridades. É, portanto, dentro dessa concepção que exploraremos a seguir o tratamento do dízimo como constituidor de jurisdições pelos canonistas dos séculos XII-XIII.

O dízimo e as jurisdições

No cânone 14 do Terceiro Concílio de Latrão, destacava-se a presença de uma deliberação sobre o dízimo, que seria posteriormente incluída nas coleções canônicas Prohibemus e que tam- bém seria o capítulo XIX do título sobre dízimo do Liber Extra. À primeira vista, o trecho parece estar lidando apenas com o dízimo no seu aspecto de salvação das almas: “Proibimos, além disso, que os laicos que detêm dízimos, com perigo para suas almas, transfiram esses dízimos para qual- quer outro laico. Quem os receber e não os restituir à igreja será privado de um enterro cristão.”11 O cânone enfatiza o perigo para a alma e prevê como punição a exclusão do sepultamento. Logo, o dízimo é colocado em sua dimensão divina, como pertencente ao conjunto dos bens espirituais.

No entanto, ao olharmos o cânone como um todo, percebemos que o trecho sobre o dízimo está inserido num contexto mais amplo que discute a autoridade e jurisdição episcopal. A grande preocupação do Terceiro Concílio de Latrão - que pode ser verificada também nos demais cânones - era criar uma esfera de atuação específica do clero, mais especificamente dos bispos. Analisemos com mais detalhes uma parte do cânone:

[…] Além disso, uma vez que alguns laicos seguem com a audácia de negligenciar a autoridade dos bispos instituindo clérigos nas igrejas e mesmo removendo-os quando desejam e que esses laicos distribuem as posses e outros bens da igreja em sua maioria de acordo com suas próprias vontades e chegam ao ponto de sobrecarregar as próprias igrejas e seus homens com taxas e exações, decretamos que eles sejam punidos com anátema. Padres ou clérigos que possuem igrejas pelas mãos de laicos sem a autoridade do próprio bispo devem ser privados da comunhão e, se persistirem, devem ser depostos de seu ministério eclesiástico e da ordem. Decretamos que, porque alguns laicos obrigam eclesiásticos e mesmo bispos a comparecerem diante de suas cortes de juízo, aqueles que presumirem fazer isso no futuro deverão ser separados da comunhão dos fiéis […] (TANNER, 1990, p. 218-219, tradução nossa).12

O problema que os laicos representavam para a Igreja, segundo esse cânone, estava relacionado ao não respeito da autoridade dos bispos, à distribuição dos bens eclesiásticos, à imposição de taxas e exações sobre as igrejas e ao fato de que eles pretendiam ter o direito de submeter eclesiásticos e bispos as suas cortes de juízo. Havia, também, o problema dos próprios padres ou outros clérigos que detinham igrejas sem a autoridade do bispo.

Todos os elementos mencionados - a instituição de igrejas e cargos, a disposição sobre os bens eclesiásticos e o direito a julgamento - compunham o conjunto da jurisdição episcopal. Era importante delimitar a ação dos laicos com base naquilo que era do escopo exclusivo da Igreja, mais precisamente do bispo. Ao definir essas áreas de exclusividade, definia-se também qual era a jurisdição do bispo, ou seja, qual a sua auctoritas. Essa autoridade tinha uma dupla jurisdição, uma vez que regulava o universo temporal da Igreja (os bens eclesiásticos, a cobrança de impostos, a distribuição de igrejas) e também o universo espiritual (a salvação das almas, a administração dos sacramentos). A presença do dízimo nesse contexto não era, portanto, acidental. Ele participava da criação dessa jurisdição como um dos elementos de exclusividade do poder episcopal.

Henrique de Susa utilizou Prohibemus para justificar a resposta à pergunta “um laico pode recolher dízimos sem incorrer em pecado?” Para responder a essa questão, o canonista iniciou sua resposta com uma justificativa bíblica. De acordo com ele, não era possível que laicos recolhesse os dízimos, primeiro porque de acordo com o Levítico, Deus recebeu os dízimos ofertados aos Levitas como alimento na casa do Senhor. Além disso, Lv 27:30 deixava claro que os dízimos pertenciam a Deus: “Todos os dízimos da terra, tanto dos produtos da terra como dos frutos das árvores per- tencem a Iahweh.” (BÍBLIA DE JERUSALEM, 2002). A glosa ligada a essa citação de Henrique de Susa indicava que isso significava que os dízimos eram de direito divino (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1094). Portanto, quem tomasse para si os dízimos os estaria subtraindo do direito divino.

A justificativa bíblica era mais aprofundada, curiosamente, através de um capítulo de uma obra jurídica, o Decretum de Graciano. Para explicar por que são pecadores os laicos que retêm para si o dízimo, Henrique de Susa citou Graciano, C. 16, q. 1, c. 65 (Revertimini), um capítulo que não traz nenhuma referência jurídica, mas inicia com o texto bíblico do profeta Malaquias (Ml 7-9):

Voltai a mim e eu voltarei a vós! Disse Iahweh dos Exércitos. - Mas vós dizeis: como volta- remos? - Pode um homem enganar a Deus? Pois vós me enganais! - E dizeis: Em que te enganamos? Em relação ao dízimo e à contribuição. Vós estais sob a maldição e continuais a me enganar, vós e todo o povo. (GRACIANO, 1959).13

Em seguida, Graciano acrescentou a glosa a essa passagem, presente na Glossa Interlinearis da Bíblia, atribuída ao importante teólogo Anselmo de Laon (1050-1117), que afirmou que aqueles que não oferecem compensação pelos dízimos e primícias estavam, portanto, sob maldição de fome e penúria e prejudicavam ou fraudavam o senhor.14 A escolha de Henrique de Susa parece indicar que, neste caso, Graciano era mais uma fonte de conhecimento bíblico do que jurídico, algo que pode ser comprovado pela escolha textual em que ele diz que a proibição é atestada pela causa 16, capítulo revertimini, e pelo direito, como se fossem duas coisas diferentes: “decima sexta 16. quaestio prima revertimini et iura prohibent ne laici percipiant decimas, vel detineant” (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1094).

Justificada a posição de Hostiensis quanto à condição de pecado dos laicos que retêm dízi- mos através da natureza divina dos dízimos, abre-se então o caminho para a justificativa a partir de obras jurídicas. É nesse contexto que o canonista citou uma série de decretais do Liber Extra como a decretal Prohibemus (III. XXX. XIX), além de Quoniam (III. XXX. XIII), Cum apostolica (III. X. VII), Causam (I. III. XVIII). Em Quoniam, o papa Alexandre III diz ao bispo de Brescia que ele deve exigir de laicos uma exação (compensação) pelos dízimos dos frutos do seu próprio trabalho, que eles retêm, definindo as partes que devem ser pagas.15Prohibemus e Quoniam, além de lidarem com a proibição de laicos reterem dízimos com base no caráter divino da exação, tinham como objetivo também a defesa da autoridade episcopal.

A outra decretal citada por Henrique de Susa nessa questão reforça ainda mais esse aspecto da discussão do dízimo. Cum apostolica, na realidade, não fazia parte do título De decimis, primi- tiis et oblationibus e sim do título De his quae fiunt a praelato sine consensu capituli do Liber Extra (X. III. X. VII) que discutia a necessidade ou não do consentimento do capítulo para as decisões episcopais. Tratava-se, nesse caso específico, de uma decretal do papa Inocêncio III em que ele afirmava, a princípio, que os laicos que possuíam dízimos com o consentimento do bispo deviam restituí-los à igreja.16 Essa decisão era apoiada pela decretal Causam, também de Inocêncio III, presente no título De rescriptis (X. I. III. XVIII).

Hostiensis, em seguida, indicou mais três trechos do Decretum de Graciano, dessa vez como fontes de direito, para reforçar a função dos bispos no controle dos dízimos e para garantir que os laicos não se apropriassem indevidamente da exação. O primeiro foi o cânone Decimas quas (C. 16. q. 7. c.7), que determinava que os dízimos não podiam ser resgatados pelos laicos em troca de dinheiro, pois eles eram devidos aos bispos (GRACIANO, 1959).17 Em seguida, ele recomen- dava Quia sacerdotes (C. 10, q. 1. c.13), que afirmava que não era permitido aos laicos usurparem as oblações da igreja, pois os laicos as oferecem para que os sacerdotes rezem por seus pecados.18 Por último, Hostiensis indicou o cânone Hanc consuetudinem (C. 10, q. 1. c. 15), que confirmava a proibição de laicos deterem as oblações.19

Todos os cânones citados, portanto, abordavam o papel do bispo, conferindo a ele o direito exclusivo sobre os dízimos, ainda que a pergunta colocada inicialmente por Henrique de Susa não dissesse respeito diretamente a esse tema. Assim, para responder a uma questão que estava inicialmente ligada à salvação das almas dos laicos, Henrique de Susa recorreu a todo um aparato jurídico que, no final das contas, revelava mais sobre o papel do bispo do que sobre a condição de pecado dos laicos usurpadores.

Após apresentar os argumentos que corroboravam a impossibilidade de laicos deterem dízimos sem pecado, numa metodologia dialética, Hostiensis mencionou que havia argumentos contrários, ou seja, que indicavam ser possível que laicos recolhessem dízimos. Esses argumentos eram prove- nientes do costume geral de lugares como a Espanha, a França, a Alemanha e a Burgúndia. O conflito resolvia-se a partir de uma outra pergunta: esses laicos que detêm dízimos nessas regiões possuem privilégio oferecido pela Sé Romana ou não (habet privilegium Romanae sedis aut non)? Em caso afirmativo, eles possuíam o direito de manter os dízimos, pois a Sé Romana poderia conceder esse direito (quia hoc potest Romana sedis concedere) (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1094). Hostiensis, dessa forma, amarrou suas escolhas de cânones para justificar a primeira parte da questão ao escolher cânones que reforçavam muito mais uma questão de autoridades do que sim- plesmente de condenação das almas. Essas duas autoridades, a episcopal e a papal integravam-se para compor o plano de ação, ou a jurisdição do dízimo. As duas jurisdições agiam no recolhimento e distribuição do dízimo: a episcopal, que detinha o direito exclusivo da coleta e a responsabilidade da administração, e a papal, que exercia sua autoridade máxima através da concessão de privilégios que poderiam, inclusive, contrariar os cânones. Assim, temos uma indicação do desenvolvimento da dou- trina sobre o dízimo na obra de Hostiensis que se baseava o tempo todo nessa dualidade de auctoritas. Embora ele não utilize o termo “iurisdictio” em seu título sobre o dízimo, outras palavras são empregadas para a formação desse campo conceitual: authoritates, potestas, administratio, lex, ius e seus derivados verbais iudicare/iudicari (julgar/ser julgado). Vejamos a seguir de que forma esse vocabulário jurídico/político foi colocado a serviço da definição das jurisdições.

Seguindo o modelo jurídico de uma summa, Henrique de Susa iniciou o título sobre os dízimos estabelecendo as definições jurídicas essenciais para a compreensão do tema. Primeiro, ele justificou a existência do título em sua relação com o título anterior sobre as paróquias:

Escrevemos sobre paróquias e outros paroquianos: mas porque dízimos e primícias devem ser pagos à cabeça dessas paróquias, isso é, à Igreja, é preciso discernir: O que é o dízimo, por que é chamado de dízimo, quantos tipos são, a quem é dado e sobre o quê, quem paga, por que, como o dízimo é dividido e se ele pode ser prescrito. (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1085).

Em seguida, ele definiu o dízimo pelo seu caráter divino, “[a] décima parte exigida licitamente de todos os bens móveis para ser dada a Deus por constituir um débito de natureza divina (cons- titutione divina debita)” (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1085), e explicou o nome decima. O autor deixava claro que decima se referia à décima parte daquilo que se tinha e não a uma décima primeira parte sobre o que se pagava (quia decima pars dari debet, non undecima), pois era verdade que o nome devia estar de acordo com as coisas (nomina debent esse convenientia rebus) (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1085).

Definido o que é o dízimo e a razão do seu nome, o canonista prosseguiu para apresentar as duas espécies de dízimo, o pessoal e o predial: “Quantos tipos existem? Dois: o dízimo pessoal, que é devido sobre as negociações, ou as habilidades, o conhecimento, o serviço militar, a caça. O dízimo predial, daquilo que provém dos prédios (terras), como o vinho, o trigo, os frutos das árvores.” (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1085).20 Ele indicava que poderia haver dúvidas sobre a classificação do dízimo entre pessoal e predial, no caso, por exemplo, de animais de pasto que estariam localizados numa determinada terra onde pastavam, mas que também depen- diam da custódia humana para a criação sob o risco de ser atacado por lobos. Nesses casos, consi- derava-se que os dízimos provenientes dessa produção seriam chamados de mistos (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1085). 21

Essas quatro primeiras partes do título - justificativa, definição, nome e espécies - compu- nham uma verdadeira genealogia do dízimo orientada pelas perguntas básicas para compreensão do tema: o que, por que, quantos (quid, quare, quot). Elas eram essenciais para o desenvolvi- mento do título, pois determinavam toda a ordenação que se seguia. Era preciso definir quais os tipos de dízimos existentes para poder responder à próxima pergunta que dizia respeito ao local de pagamento do dízimo.

No caso dos dízimos pessoais, Hostiensis afirmava que eles deviam ser pagos à igreja paroquial ou batismal, segundo o direito comum. Essa igreja era caracterizada como aquela à qual perten- cia o devedor, onde ele escutava a palavra divina e recebia os sacramentos (“Danda est ecclesiae parochialis, seu baptismali de iure communi, id est illi in qua dantes divina audiunt, et recipiunt sacramenta”). Os dízimos prediais, por outro lado, deveriam ser pagos à igreja da paróquia onde a terra se encontrava, a não ser que o costume ditasse diferentemente (“Praedialis vero ecclesiae, infra cujus parochiam situm est praedium… nisi aliud obtineat de consuetudine”) (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1085-1087).

Para que não houvesse dúvidas, Hostiensis deixou indicado o que constituía exatamente a paróquia. Para tanto, ele reenviava o leitor às causas 13 e 16 do Decretum e remetia às definições de paróquia em seu próprio texto no título anterior. Assim, a paróquia foi definida por Hostiensis como:

Um local onde vive um povo atribuído a uma igreja, delimitado por fronteiras certas; conside- ra-se uma paróquia na medida em que a ela se estende o direito espiritual da igreja. Não pode haver num mesmo território várias igrejas batismais e, se houver, é preciso repartir e delimitar as igrejas batismais. (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1080).22

Era, portanto, o trabalho da circularidade dos comentários que procurava dar conta da totalidade do tema com seus cruzamentos e fornecia uma ferramenta completa para o estudo do direito canônico.

Feito esse breve parêntese para incluir a definição de paróquia, Henrique de Susa voltou a apresentar as fontes que comprovavam a separação dos dízimos pessoais e prediais e seus respecti- vos locais de pagamento. Seguiram, então, as referências às decretais do Liber Extra: Commissum nobis (cap. IV), Quoniam a nobis (XIII), Cum sint homines (cap. XVIII), Ad Apostolicae (XX) e In aliquibus (XXXII). Commissum nobis determinava que os monges pagassem os dízimos das novas terras cultivadas no local onde tinham residência.23Cum sint homines, a qual voltaremos com mais detalhes adiante, confirmava que os dízimos deveriam ser recolhidos no local onde se assistia a missa e recebia os sacramentos. Ad apostolicam discutia os costumes da Hungria e reforçava que os dízimos pessoais deveriam ser dados à igreja batismal, mas os prediais poderiam ser negociados pelo bispo.24In aliquibus é um trecho do cânone 53 do Quarto Concílio de Latrão que determinava a necessidade dos dízimos sobre as terras (praedia) serem pagos pelos donos da terra no caso em que aqueles que a cultivavam não pagassem. Solver os dízimos era uma questão de necessidade (da manutenção das igrejas locais), mas também era exigido porque o pagamento era instituído pela lei divina e aprovado pelo costume.25

Além da vasta comprovação pelos cânones já existentes, Hostiensis também criou uma nova categoria que pretendia lidar com conflitos possíveis na divisão entre dízimos pessoais e prediais. Diferentemente de seus predecessores, ele estabeleceu a noção de dízimos mistos, conceito que não aparece em outras obras. Hostiensis afirmou que o pagamento desse dízimo deveria ser feito preservando-se o costume do local (Si apparet consuetudine seruanda est). Se não houvesse regu- lamentação pelo costume, o dízimo deveria ser repartido entre a paróquia do pasto e a paróquia batismal (“si non apparet, et pascuntur continue in praediis propriae parochiae, ipsi danda sunt, alias videtur, quod dividi debeant inter ecclesiae ubi pascuntur et propriam”) (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1086).

Outros canonistas não utilizavam essa categoria de dízimo misto. Godofredo de Trano, por exemplo, classificava os animais entre os dízimos prediais que deveriam ser solvidos junto às igrejas situadas no território do pasto.26 A mesma opinião foi sustentada por Raimundo de Peñafort na Summa de paenitentia.27 Aqui temos, então, um exemplo de caso em que Henrique de Susa se afastou dos canonistas que lhe influenciaram para criar um novo conceito que parece melhor se adaptar aos conflitos sobre o local de pagamento dos dízimos.

A partir dessa divisão entre os tipos de dízimo e a igreja a qual pertenciam, Hostiensis nos apresentou um primeiro elemento formador do dízimo. O dízimo estava ligado a uma igreja específica. Quem pagava o dízimo estava associado a essa igreja devido a sua filiação batismal e sacramental (que definia a paróquia) ou por onde suas terras se encontravam. A jurisdição espacial de posse do dízimo é bastante clara para esses dois casos, com precedentes no direito canônico. Já com o dízimo misto, Hostiensis propunha uma nova jurisdição, dessa vez compartilhada, como forma de garantir a justiça (quia iustum est). Era o discurso do dízimo agindo de forma a constituir uma nova esfera de ação relacional entre as diferentes paróquias.

Definida a questão do recebedor do dízimo, apresentava-se então o item que respondia sobre quais coisas se deveria pagar o dízimo. A lista era bastante longa e incluía trigo, legumes, animais de pasto e os proventos de moinhos, da pesca, feno, lã, mel de abelhas, ovos, frutos de árvores, pedras retiradas de pedreiras, minas de prata, gado, metais, além de todo o lucro licitamente obtido através de negócios, serviço militar e outros (lucro licite acquisito) (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1087). A lista de Hostiensis era uma combinação da decretal Ex multiplici (III. XXX. III), de onde ele tirou a citação “de blado et universis leguminibus”, da Ex parte canonicorum (III. XXX. XXI), que exigia os dízimos de todos os frutos da terra (de omnibus praediorum fructibus), assim como de capítulos da Causa 16 Decretum de Graciano: questão 1, capítulo 66, Decimae, sobre a obrigação de se pagar o dízimo sobre o serviço militar e os negócios (“De milicia, de negocio et de artificio redde decimas”).

Henrique de Susa se inspirou, também, na questão 7, capítulo 5, Omnes decimae, que deter- minava que como todos os animais e frutos pertenciam a Deus, o dízimo recaía sobre todos eles, além da questão 7, capítulo 30, Quicumque, que afirmava que o dízimo deveria ser pago sobre os grãos, o vinho, os frutos das árvores, o gado, sobre a horta e os negócios (“de grano aut de vino, aut de fructibus arborum, aut de pecoribus, aut de horto, aut de negocio”). Aos termos genéricos, como “todos os frutos” ou de “toda a terra”, Henrique de Susa deu especificidade, criando a lista quase exaustiva do início da questão, para que não houvesse dúvidas sobre quais produtos e ser- viços o dízimo deveria ser pago.

Além do detalhamento da enumeração dos itens, para o nosso objetivo, interessa particular- mente a divisão que Hostiensis operou entre frutos de uma única semente e frutos de sementes múltiplas. Nesse caso, é possível interpretar os frutos como sendo um único tipo de produto ou vários diferentes. No caso de se ter mais de um tipo de semente (trigo e vinhas, por exemplo), não era possível oferecer o dízimo do trigo a uma igreja e o da vinha à outra, pois uma mesma igreja não podia ter leis diferentes (diuerso iure) por ser uma distorção do direito (depraua corruptela) (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1087-1088). Mais uma vez percebemos um cuidado em definir os limites de cada paróquia de forma a seguir o direito, assim como de assegurar uma uniformidade de práticas.

Portanto, até aqui, na definição básica do dízimo, poderíamos dizer que Henrique de Susa desenvolveu os primeiros níveis da jurisdição do dízimo. Para ele, seu lugar imediato de coleta era a paróquia. Essas primeiras questões estavam ainda profundamente ligadas ao título anterior da Summa, o De parrochiis, e funcionavam quase como uma extensão do título ao fixar ainda mais a autoridade paroquial, mas agora em função do pagamento e coleta do dízimo. A continuação do texto de Hostiensis ampliava o alcance jurisdicional para começar a discorrer mais particularmente a respeito da autoridade dos bispos e do papa.

Um outro exemplo dessa defesa da autoridade episcopal por Henrique de Susa está na sua argumentação a favor da porção devida ao bispo. A portio canonica não podia ser negada, pois sua obrigação era atestada no Decretum, nas Decretais e na razão natural (per iura Decretorum, Decretalium et naturalium rationum) (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1075). Segundo Hostiensis, a portio canonica era a remuneração pelos trabalhos da diocese e marcava a sua supe- rioridade sobre todas as igrejas. Ela era entendida como uma legitimação do pai espiritual que não podia, portanto, ser privado dela, pois a diocese era a paróquia do bispo. Da mesma forma, o padre, que é o pai carnal, representante do Pai espiritual, teria o direito a sua porção. Assim, todas as igrejas deveriam ser submissas à diocese, mesmo aquelas que receberam isenções (como era o caso dos Hospitalários, mas também dos Cistercienses e dos Templários), uma vez que os privilégios diziam respeito apenas às propriedades e não aos lucros originários de doações. Essas deveriam ter a parte do bispo reduzida antes de serem incorporadas às igrejas (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1073-1074).

A portio canonica entrava também em jogo para tratar da divisão do dízimo. Nesse caso, Hostiensis se baseou em autoridades como, por exemplo, em Graciano e em duas decretais de Alexandre III. Também se inspirou no costume, na ideia de que a quantidade de partes em que o dízimo era dividido poderia variar segundo o costume do lugar (secundum consuetudinem loci), sendo duas, três ou quatro partes. Por fim, ele evocou a racionalização da primazia da autoridade episcopal. Porém, em todas as divisões, uma parte do dízimo sempre cabia ao bispo. Não havendo direito consuetudinário que a definisse, a divisão deveria ocorrer em quatro partes.

Como deve ser dividido o dízimo? Segundo o costume do lugar, se o bispo tem metade, um terço ou um quarto, os clérigos das igrejas de serviço têm a outra parte. Se não aparece no direito consuetudinário, deve ser dividido em quatro partes: das quais, uma para o bispo, outra para os sacerdotes, a terceira para a fábrica e a quarta deve ser designada aos pobres. (HENRIQUE DE SUSA, 1574, col. 1092).28

A jurisdição episcopal também se fez valer no caso dos dízimos novais, ou seja, a taxação sobre terras que nunca haviam sido cultivadas. Na décima segunda pergunta (duodecimo quaero), Hostiensis garantiu que o bispo tinha o direito de gratificar quem ele quisesse ou reter para si os dízimos advindos dessas terras, desde que elas estivessem dentro dos limites da paróquia (intra limites alicuius parochiae) e se isso estivesse dentro dos cânones (salua canonica). Portanto, mesmo não usando o termo, temos uma clara definição de uma jurisdição que é ao mesmo tempo territorial - a paróquia - e de exercício de função - do bispo (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1104).

Hostiensis não estava criando algo completamente novo ao definir o pagamento do dízimo em relação ao espaço da paróquia. A delimitação da jurisdição do pagamento havia sido colocada também pelo papa Alexandre III na decretal Quum sint homines, que o próprio Henrique de Susa citou ao remeter o leitor à definição de paróquia e para ligar o pagamento do dízimo a essa paróquia (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1085-1086). Mas a decretal de Alexandre III foi além da paróquia para incluir também a diocese.

Ao tentar resolver a questão se os homens deveriam pagar o dízimo junto à paróquia a qual estavam associados ou àquela onde se encontravam suas terras, o papa afirmou que: “[…] essa ques- tão já foi colocada frequentemente ao longo do tempo a nossos predecessores e jamais resolvida, uns afirmando que seria necessário pagar segundo o território e outros segundo as pessoas […]”. A solução proposta pelo papa implicou na limitação do território do episcopado. Ele afirmou que era preciso considerar se as duas igrejas se encontravam em um único ou em dois bispados, pois “[…] me parece difícil que uma igreja receba dízimos de um outro bispado sob o risco de confundir injustamente os limites episcopais.”29

Se a autoridade episcopal estava no centro das preocupações de Henrique de Susa não apenas por uma questão de doutrina, mas também por sua própria realidade enquanto bispo imerso nas disputas jurisdicionais, a afirmação da autoridade papal também tinha um lugar de destaque. Mais uma vez o dízimo apareceu como um espaço onde o papa poderia exercer sua autoridade, através de determinadas prerrogativas, pela imposição de penas e pela concessão de benefícios.

A defesa da autoridade papal em Hostiensis aparece sempre ligada à noção de plenitudo potes- tatis e de auctoritas divina que se manifestava no poder que o papa tinha de conceder privilégios e benefícios, ou seja, de atuar numa jurisdição própria. Para Henrique de Susa, o papa exercia sua autoridade de forma máxima, inclusive no que diz respeito aos dízimos. Hostiensis perguntou: “De quem vem o dízimo?” ou em outras palavras, quem deve pagar o dízimo? A resposta inicial foi direta: os laicos - segundo o Decretum de Graciano, Causa XVI, questão VII. Só seria possível ter isenção através de privilégio especial concedido pelo papa (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1088). A causa segue com as explicações do que seriam esses privilégios e completa com seis exemplos de casos em que os privilégios eram retirados. Os argumentos foram sustentados por decretais de Adriano IV (capítulo III), Alexandre III (capítulos VIII, IX e XI), Clemente III (capítulo XXI) e Inocêncio III (capítulos XXIV, XXVI, XXVII, XXXII e XXXIV).

Na terceira questão da Summa (Tertio quaeritur), Hostiensis perguntou se um laico poderia receber permissão para coletar os dízimos devidos à Igreja (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1094). Ele listou os argumentos de alguns autores (especialmente Graciano, parte II, causa 16) que afirmaram que isso não era possível, uma vez que era por lei divina, e não apenas humana, que os dízimos deveriam ser pagos à Igreja. Hostiensis, no entanto, não concordava com essa argumentação. Para ele, o papa, enquanto vigário universal de Deus (et Deus, cuius vicarius universalis est papa), tinha o poder de conceder tais privilégios a laicos, desde que isso não causasse prejuízo a outros (praeiudicum alterius) e que o papa tivesse bons motivos, para além de um simples favor a um fiel (sed non debet hoc facere nisi ex causa, puta favore fidei). Essa autoridade era exclusiva do papa, nem mesmo bispos poderiam exercê-la. Para defender sua posição, Henrique de Susa usou decretais de Inocêncio III, particularmente os capítulos XXVI (Tua nobis) e XXXI (Dudum adversus) do Liber Extra.

A excomunhão também era tida como uma arma de poder pontifical para Henrique de Susa. Ao explicar a natureza divina do dízimo demonstrando o porquê de pagá-lo, o autor tratou das consequências para quem não pagasse o imposto. Nesse ponto, ele claramente adotou uma postura semelhante à de Alexandre III, que estabeleceu a autoridade do papa em impor penas para aqueles que contrariassem os preceitos canônicos. Citando Graciano, C. 16, q. 1, c. 60, Hostiensis acusou de infâmia aqueles que se recusassem a pagar o dízimo e ameaçou com o bannuum do papa que levaria à excomunhão (HENRIQUE DE SUSA, 1574, livro III, col. 1092).

Considerações finais

Quase quarenta anos passados do Terceiro Concílio de Latrão, o Quarto Concílio, em 1215, revisitou o mesmo cânone sobre dízimos:

Foi proibido no Concílio de Latrão,30 como todos sabem, que quaisquer regulares ousassem receber igrejas ou dízimos das mãos de laicos sem o consentimento dos bispos ou admitirem de qualquer forma os serviços divinos daqueles atingidos por excomunhão ou nominal- mente sob interdito. Nós agora proibimos de forma ainda mais forte e nos certificaremos que os ofensores serão punidos com punição condizente. Mesmo assim, nós decretamos que naquelas igrejas que não lhes pertençam em pleno direito, os regulares, em justo acordo com os estatutos daquele concílio, apresentem ao bispo os padres que deverão ser instituídos para serem examinados, pois o bispo responde pelo cuidado (cura) da população; em relação aos assuntos temporais, os regulares devem prestar contas ao próprio mosteiro. Que eles não ousem remover, sem consulta ao bispo, alguém que tenha sido instituído. Acrescentamos, ainda, que se cuide para que sejam apresentados padres que sejam conhecidos por sua correção de vida ou que tenham sido recomendados pelo testemunho de prelados com bases prováveis. (TANNER, 1990, p. 262-263).31

Percebemos, nesse cânone, o reforço contínuo de definição de jurisdições. Primeiro, da jurisdição episcopal, a partir da prerrogativa do bispo em autorizar a concessão de igrejas ou dízi- mos, examinar e instituir os presbíteros e ter a responsabilidade do cuidado (cura) da população. Por outro lado, cabia à jurisdição papal punir aqueles que desobedecessem às leis instituídas pelos concílios, ou seja, o direito da Igreja. Todas essas preocupações já estavam presentes em Latrão III.

Entretanto, na retomada das prescrições do cânone de Latrão III, algumas questões foram deixadas de lado, como a pluralidade de igrejas, a cobrança de taxas e exações sobre os clérigos e a questão de clérigos julgados por cortes laicas. Manteve-se, no entanto, a ideia de que existia uma esfera de atuação direta - ou um espaço de autoridade - dos bispos que estava ligada aos limites de sua jurisdição. Mais ainda, o Quarto Concílio agora previa uma proibição ainda mais forte e punições condizentes. E, novamente, o dízimo aparecia como participante ativo dessas definições.

Para além dos cânones conciliares, o discurso jurídico sobre o dízimo se desenvolveu nas obras jurídicas dos séculos XII-XIII. Um dos principais juristas a dar centralidade ao dízimo foi Hostiensis. Os diálogos intertextuais que a Summa Aurea estabeleceu com outros juristas, como Graciano, Raimundo de Peñafort, Godofredo de Trano, entre outros, faz dela uma fonte valiosa para observarmos como esse discurso contribuiu para a constituição das jurisdições eclesiásticas.

Os limites da atuação episcopal eram definidos pelo exercício de direitos específicos sobre o controle da coleta e distribuição do dízimo. Esses participavam, assim, da constituição do espaço da paróquia e da diocese ao mesmo tempo em que eram influenciados pelas constantes transformações desses espaços. Os dízimos também eram um elemento importante na separação das jurisdições eclesiásticas e laicas, com a denúncia dos supostos “abusos” de laicos que desconsideravam a autori- dade episcopal. A noção de iurisdictio, independentemente da palavra que a representava, funcionava dentro de uma lógica de esferas de atuação de poderes de bispos e papas. Ao definir os limites, ou

o que estava incluído, na jurisdição, o conceito também definia qual era a natureza desse poder.

A discussão canônica sobre o dízimo por parte dos juristas também propiciou uma maior teorização sobre a natureza da autoridade papal, principalmente através do direito absoluto de concessão (ou anulação) de benefícios e privilégios. Henrique de Susa foi um feroz defensor da potestas absoluta do papado e os conflitos ocasionados pela cobrança do dízimo se constituíam como espaço privilegiado de manifestação desse poder.

A produção documental jurídica é testemunha de uma preocupação, por parte principal- mente de bispos e do papado, com a definição de jurisdições, ou seja, com a delimitação dos limites jurídicos, sociais, políticos e espaciais das paróquias, das dioceses e do papado. O direito desempe- nhava, assim, uma função fundamental na reflexão e na produção da autoridade e da atuação das diferentes esferas da hierarquia eclesiástica. E, mais uma vez, a presença crescente das discussões sobre dízimos denota sua articulação com essas novas preocupações. Na busca por definir as jurisdições, elementos religiosos como o dízimo foram jurisdicizados, tendo como objetivo criar as esferas de atuação direta da Igreja na sociedade.

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Notas

1 Ver, particularmente, os trabalhos de Michel Lauwers (2005a, 2005b). Os demais artigos desse número temático da Médiévales também trazem contribuições importantes sobre o tema.
2 “[…] [I]urisdictio est potestas cum necessitate iuris reddendi aequitatisque statuendae.”
3 “Imperium aut merum aut mixtum est. merum est imperium habere gladii potestatem ad animadvertendum facinorosos homines, quod etiam potestas appellatur. mixtum est imperium, cui etiam iurisdictio inest, quod in danda bonorum possessione consistit. iurisdictio est etiam iudicis dandi licentia.” (CORPUS IURIS CIVILIS, 1604), Digesto. 2, 1, 3.
4 Para uma análise detalhada de cada um desses tipos de jurisdição, ver Vallejo (1992, p. 8-11).
5 “Est autem lex diocesana, qua episcopus potestatem habet dispensandi spiritualia et ministros instituendi et ordinandi, quartam et cathedraticum exigendi. Excipiuntur illa monasteria, quorum capelle speciali privi- legio summi pontificis a iure canônico, sicut ipsa monasteria, sunt exempte.” Causa 10, questão 1, capitulo 1. (RUFINO DE BOLONHA, 1963, p. 301.)
6 “[…] quod ut mellius intelligatur notandum, quod due sunt leges in quibus consisti tota potestas quam habet episcopus in ecclesiis sui episcopatus. Est enim lex iurisdictionis et lex diocesana. Ad legem iurisdictionis spectat cura animarum sive eio datio, delictorum coercitio, ordinatium ecclesiarum et altarum, virginum con- secratio, crismatis et generaliter omnium sacramentorum collatio. Ad legem diocesanam spectat institutio et investitura clericorum, vocatio ad synodum et ad sepulturas mortuorum, cathedraticum, tertia vel quarta oblationum, prestatio decimarum et consimilia.” (HUGUCCIO, Glosa da C. X, q. 1, introdução apud VAN DER KERCKHOVE, 1939, p. 431-432).
7 “[…] est ergo melhor quod partem de huiusmodi legatis recipere est de lege iurisdictionis, quod sic probatur: divisio hec fit propter sacramenta ecclesie et inter eas ecclesias fit divisio ubi sacramenta percipit. […] Cum autem collatio sacramentorum sit de lege iurisdictionis […] et hec divisio que consequens est vel accessoria ad collationem sacramentorum de lege iurisdictionis dicenda est. Sic etiam potest de quarta decimarum que pro sacris datur […]” (INOCÊNCIO IV, 1570, col. 177, r-v).
8 “[…] quia apostolicus, cum sit maior augusto, non ab eo iudicari, sed iudicare debet.”
9 Essa decretal teve grande repercussão entre os canonistas que ofereceram inúmeras interpretações. Para uma análise de seu sentido e impacto e mais referências bibliográficas, ver Watt (1980, p. 99-114).
10 Essa supremacia papal foi desenvolvida por Henrique de Susa não apenas na Summa, mas também na sua Lectura. J.A. Watt identificou 19 referências a plenitudo potestatis na Summa e 71 na Lectura. (WATT, 1965, p. 161-187, 178-187).
11 “Prohibemus insuper ne laici, decimas cum animarum suarum periculo detinentes, in alios laicos possint vero receperit et ecclesiae non reddiderit, Christiana sepultura privetur” (RAIMUNDO DE PEÑAFORT, 1879, III, XXX, XIX).
12 “[…] Praeterea, quia in tantum quorumdam laicorum processit audácia, ut episcoporum auctoritate neglecta clericos instituant in ecclesiis et removeant etiam cum voluerint, possessiones quoque atque alia bona ecclesiastica pro sua plerumque voluntate distribuant, et tam ecclesias ipsas quam earum homines talliis et exactionibus praesumant gravare, eos qui amodo ista commiserint, anathemate decernimus feriendos. Presbyter autem sive clericus, qui ecclesiam per laicos sine proprii episcopi auctoritate receperit tenendam, communione privetur, et si perstiterit, a ministerio ecclesiastico et ordine deponatur. Sane quia laici quidam ecclesaisticas personas et ipsos etiam episcopos suo iudicio stare compellunt, eos qui de cetero id praesump- serint, a communione fidelium decernimus segregrandos […]” (TANNER, 1990, p. 218-219).
13 “Reuertimini ad me, et ego reuertar ad uos, dicit Dominus exercituum; et dixistis, in quo reuertemur? Si homo affiget Deum, quia uos configitis me, et dixistis, in quo configimus te? in decimis et in primiciis. Et in penuria uos maledicti estis, et me configitis tota gens.” C. 16, q. 1, c. 65. Esse é o texto da maneira como Graciano o cita.
14 “Quia michi non reddidistis decimas et primicias, idcirco in fame et penuria maledicti estis, et me uos sub- plantastis, siue defraudastis.” O uso das passagens bíblicas e as fontes que existiam, podemos nesse caso dizer que o uso que Graciano faz das glosas interlineares indica que ele possivelmente utilizava uma versão glosada da Vulgata. Para uma melhor compreensão sobre a importância, usos e interpretações da Glosa Ordinaria e da Glosa Interlinear, ver Häring (1991, p. 173-200).
15 “Quod si laicus aliquis a sacerdotibus vel clericis decimas de laboribus suis in tua dioecesi requisiverit eum ab exactione huiusmodi prorsus cessare compellas et laicos illos, qui a colonis tertiam vel quartam partem laborum suorum ante solutionem decimarum recipiunt, decimam de portione sua secundum quod colonus de parte quae illum contingit exsolvere consueverit, absque diminutione aliqua iis, quibus iure debentur facias exhibere.” (RAIMUNDO DE PEÑAFORT, 1879, III. XXX. XIII).
16 “Quia vero super his auctoritatibus dubitantes nos consulere voluistis, humiliter inquirentes, utrum, quando decima tenetur a laico, si conferatur ecclesiae, ad confirmandam donationem consensus episcopi sine cleri consensu sufficiat, nos devotioni vestrae taliter respondemus, quod monendus est laicus, qui decimam detinet, ut eam restituat ecclesiae, ad quam spectat.” (RAIMUNDO DE PEÑAFORT, 1879, III. X. VIII).
17 “Decimas, quas populus dare non uult, nisi quolibet munere ab eo redimantur, ab episcopis prohibendum est, ne fiat.” C. 16, q. 7. c. 7 (GRACIANO, 1959).
18 “Quia sacerdotes pro omnibus orare solent, quorum elemosinas et oblationes accipiunt, qua fronte presu- munt laici oblationes, quas Christiani pro peccatis suis offerunt, uel ipsi comedere, uel aliis concedere, cum ipsi non debeant ex offitio pro populo orare? Ob hoc, Papa gloriose, mittere oportet illos presumptores in excommunicationem perpetuam, ut ceteri metum habeant, et amplius hec in ecclesia non fiant.” C. 10, q. 1. c. 13 (GRACIANO, 1959).
19 “Hanc consuetudinem, que contra sanctam ecclesiam catholicam augeri uidetur, omnino interdicimus, ut nullo modo umquam ullo tempore oblationes, que intra sanctam ecclesiam offeruntur, sub dominio laicorum detineantur.” C. 10, q. 1. c. 15 (GRACIANO, 1959). As oblações, diferentemente dos dízimos, têm caráter voluntário, como oferenda feita a Deus ou aos santos, principalmente na forma do pão e vinho ofertados. Ao utilizar os cânones sobre oblações para justificar sua posição em relação à posse de dízimos por laicos, Hen- rique de Susa claramente indica o pertencimento dos dízimos à esfera das oferendas sagradas, enfatizando o seu caráter divino.
20 “Duae, scilicet personales debentur ex negociatione, vel artifíci, seu scientia, vel militia, seu venatione. Item prediales scilicet quae proveniunt exipsis praediis: ut vinum, bladum, fructus arcborum.”
21 “[…] sunt mixte, cum partim a praediis proueniant […] partim a personis.”
22 “Quid sit parochia. Locus in quo degit populis alicui ecclesiae deputatus, certius finibus limitatus, et accipitur hic parochia quatenus spirituale ius ecclesiae se extendit, et in una determinatione plures baptismales esse non possunt… Plures baptismales imo diuidi debent, et limitatio a Dionysio initium habuit.”
23 “[…] ut ipsas decimas etiam de terris cultis, in quibus olim domus constructae fuerant, praefatae ecclesiae cum ea integritate persolvant, qua prius, quam in eadem parochia morarentur, solebant persolvi, sine appel- lationis obstaculo nostra auctoritate cum omni districtione compellas.” (RAIMUNDO DE PEÑAFORT, 1879, III. XXX. IV).
24 “[…] aequum est, ut illi ecclesiae decimae personales reddantur ab eis, in qua ecclesiastica percipiunt sacramenta. […] Decimas vero messium vel fructuum arborum, si coluerint in alia parochia, quam in ea, in qua habitant, quoniam a diversis diversa consuetudo tenetur, tu eligas in hoc casu quod per consuetudinem diu obtentam ibidem noveris observatum.” (RAIMUNDO DE PEÑAFORT, 1879, III. XXX. XX).
25 “Illae quippe decimae necessario solvendae sunt, quae debentur ex lege divina vel loci consuetudine appro- bata.” (RAIMUNDO DE PEÑAFORT, 1879, III. XXX. XXXII.
26 “Sed dubitatur de decimis animalium an inter prediales vel personales debeant numerari. Et videtur quod inter prediales. Nam ibi decime soluuntur animalium ubi ipsa pascuntur.” (GODOFREDO DE TRANO, 1968, cols. 146-147).
27 “Ad aliud dico, quod de lacte, fetu et lan detur decima illi ecclesiae, in cuius parochia pascua sita sunt, quia, cum inde suscipiant totum nutrimentum, tales descimae prediales censentur.” (RAIMUNDO DE PEÑAFORT, 1976, col. 422).
28 “Quomodo decima dividatur. Secundum consuetudinem loci, ut episcopus habeat dimidiam, tertia, vel quartam, clerici vero ecclesiae deservientes aliam habeant […] si non apparet consuetudo, dividatur in quatuor partes: quarum une epíscopo, alia sacerdoti, tertia fabricae, quarta pauperibus assignetur.”
29 “[…] si illae ecclesiae in uno sint vel in diversis episcopatibus constitutae; quia difficile nimis videtur, ut una ecclesia in episcopatu alterius recipiat decimas, quum ex hoc episcopatuum fines confundi non immerito viderentur.” (RAIMUNDO DE PEÑAFORT, 1879, III. XXX. XVIII).
30 Referência ao cânone 14 do terceiro Concílio de Latrão.
31 “In Lateranensi concilio noscitur fuisse prohibitum, ne quilibet regulares ecclesias seu decimas sine con- sensus episcoporum de manu praesumant recipere laicali nec excommunicatos vel nominatim interdictos admittant aliquatenus ad divina. Nos autem id fortius inhibentes, transgressores condigna curabimus animad- versione puniri statuentes nihilominus quatenus in ecclesiis, quae ad ipsos pleno iure non pertinente, iuxta eiusdem statuta concilii episcopis instituendos presbyteros repraesentent, ut illis de plebis cura respondeant; ipsos vero pro rebus temporalibus rationem exhibeant competentem. Institutos vero removere non audeant episcopis inconsultis; sane adicimus, ut illos repraesentare procurent, quos vel conversatio reddit notos vel commendat probabile testimonium praelatorum.” (TANNER, 1990, p. 262-263). Esse cânone está presente também no Liber Extra, Livro III, título V, capítulo XXXI (De praebendis ey dignitatibus).
* Pesquisa realizada com financiamento Fapesp, processo nº 2017/20683-6.

Author notes

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